revista gragoatá 22 - Universidade Federal Fluminense

Transcripción

revista gragoatá 22 - Universidade Federal Fluminense
Gragoatá
n. 22
1o semestre 2007
Política Editorial
A Revista Gragoatá tem como objetivo a divulgação nacional e internacional
de ensaios inéditos, de traduções de ensaios e resenhas de obras que representem
contribuições relevantes tanto para reflexão teórica mais ampla quanto para a
análise de questões, procedimentos e métodos específicos nas áreas de Língua e
Literatura.
ISSN 1413-9073
Gragoatá
n. 154p. 1-140
Gragoata 22.indb 1
Niterói
2. sem. 2003
n. 22
p. 1-290
1. sem. 2007
6/11/2007 14:25:52
© 2007 by
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense
Direitos desta edição reservados à EdUFF ­– Editora da Universidade Federal Fluminense
Rua Miguel de Frias, 9 – anexo – sobreloja – Icaraí – Niterói – RJ – CEP 24220-008
Tel.: (21) 2629-5287 – Telefax: (21)2629-5288 – http://www.eduff.uff.br – E-mail: [email protected]
Organização:
Projeto gráfico:
Capa:
Revisão:
Normalização:
Editoração:
Supervisão Gráfica
Coordenação editorial:
Periodicidade:
Tiragem:
Eurídice Figueiredo e Lívia Reis
Estilo & Design Editoração Eletrônica Ltda. ME
Rogério Martins
É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da E
­ ditora.
Eurídice de Figueiredo (português), Viviana Gelado e Márcia Paraquett (espanhol), Bárbara Teixeira (inglês)
Caroline Brito de Oliveira
Vívian Macedo de Souza
Káthia M. P. Macedo
Ricardo Borges
Semestral
500 exemplares
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
G737
Gragoatá. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal Fluminense.— n. 1 (jul./dez. 1996) - . — Niterói : EdUFF, 1996 – 26 cm; il.
Organização: Eurídice Figueiredo e Lívia Reis
Semestral
ISSN 1413-9073.
1. Literatura. 2. Lingüística.I. Universidade Federal Fluminense. Programa de
Pós-Graduação em Letras.
CDD 800
APOIO PROPP/CAPES / CNPq
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
Reitor:
Vice-Reitor:
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação:
Diretor da EdUFF:
Roberto de Souza Salles
Emannuel Paiva de Andrade
Humberto Machado Fernandes
Mauro Romero Leal Passos
Conselho Editorial:
Mariângela Oliveira (UFF) – Presidente
Lívia de Freitas Reis (UFF)
Eneida Maria de Souza (UFMG)
Solange Vereza (UFF)
Silvio Renato Jorge (UFF)
José Luiz Fiorin (USP)
Leila Bárbara (PUC-SP)
Lucia Helena (UFF)
Eurídice Figueiredo (UFF)
Regina Zilberman (PUC-RS)
Laura Padilha (UFF)
Jussara Abraçado (UFF)
Conselho Consultivo:
Ana Pizarro (Univ. de Santiago do Chile)
Cleonice Berardinelli (UFRJ)
Célia Pedrosa (UFF)
Eurídice Figueiredo (UFF)
Evanildo Bechara (UERJ)
Hélder Macedo (King’s College)
Laura Padilha (UFF)
Lourenço de Rosário (Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa)
Lucia Teixeira (UFF)
Malcolm Coulthard (Univ. de Birmingham)
Maria Luiza Braga (UFRJ)
Marlene Correia (UFRJ)
Michel Laban (Univ. de Paris III)
Mieke Bal (Univ. de Amsterdã)
Nádia Battela Gotlib (USP)
Nélson H. Vieira (Univ. de Brown)
Ria Lemaire (Univ. de Poitiers)
Silviano Santiago (UFF)
Teun van Dijk (Univ. de Amsterdã)
Vilma Arêas (Unicamp)
Walter Moser (Univ. de Montreal)
Gragoata 22.indb 2
6/11/2007 14:25:52
Gragoatá
n. 22
1º semestre 2007
Sumário
Apresentação .................................................................................... 5
ARTIGOS
Epistemic Disobedience: the de-colonial
Option and the Meaning of Identity in Politics........................ 11
Walter D. Mignolo
O arquivo e o presente....................................................................43
Raúl Antelo
Os discursos da mestiçagem: interseções com outros
discursos, críticas, ressematizações..............................................63
Eurídice Figueiredo
“Nós Outros, Neo-Ibéricos”: O Entre-Lugar da identidade
nacional no pensamento de Manoel Bomfim.............................85
Luiz Fernando Valente
Debates de 1920: formas de pensar a tradição............................99
Silvina Carrizo
A América Latina no Suplemento Literário
do Minas Gerais (1969-1973)......................................................... 119
Haydée Ribeiro Coelho
Modernismo brasileño y vanguardia argentina: filiaciones
y homenajes (Macedonio y Mario: um diálogo fictício).........133
Mónica Bueno
Visões da morte no indigenismo
de Darcy Ribeiro e Jorge Icaza.................................................... 145
Paulo Sérgio Marques
Saberes performáticos nas ficções de Haroldo Conti.............. 163
Graciela Ravetti
Romances híbridos e crítica ficcional na narrativa
contemporânea latino-americana:
o caso de Roberto Bolaño.............................................................. 179
Rafael Eduardo Gutiérrez Giraldo
Gragoata 22.indb 3
6/11/2007 14:25:53
El sueño de la razón....................................................................... 191
Olga Valeska
O conto policial de Jorge Luis Borges:
cânone e marginalidade................................................................207
Andréa Lúcia Padrão Ângelo
O enteado, de Saer: uma percepção poética
da Conquista Hispânica Americana...........................................221
Danilo Luiz Carlos Micali
Textualidade, imagem e mestiçagem
na crônica de Guamán Poma.......................................................235
Consuelo Alfaro Lagorio
Perdón, desculpa, desculpa aí.
La expresión de las disculpas en el cine iberoamericano.......253
Flávia de Almeida Monteiro, Célia Regina dos Santos Lopes
e Leticia Rebollo Couto
RESENHAS
PIZARRO, Ana.O sul e os trópicos.
Ensaios de cultura latino-americana. Niterói, RJ: EdUFF,
2006, 112 p. ......................................................................................273
Lívia Reis
TROUCHE, André. América: história e ficção. Niterói, RJ:
EdUFF, 2006, 156 p. . ......................................................................275
Heloisa Costa Milton
Gragoata 22.indb 4
6/11/2007 14:25:53
Apresentação
Na década de 1980, numa conferência em Campinas, o crítico uruguaio Ángel Rama sugeria a necessidade de se construir,
através do trabalho intelectual, “uma aventura de um diálogo
possível” entre o Brasil e a América Hispânica. Esta preocupação
refletia seu trabalho de latino-americanista e homem dedicado
ao estudo das letras e da cultura. Muita pesquisa foi feita desde
então e o hiato existente entre as duas partes da América Latina
parece ter ficado menor. Foi com o intento de continuar a construir este “diálogo possível” que este número 22 da Revista Gragoatá foi pensado. A leitura dos diversos textos que compõem
o volume, sem dúvida, conduz o leitor por um multifacetado
universo de literatura e de cultura atravessado por problemas
políticos, éticos, estéticos e teóricos que fazem parte das principais preocupações da crítica cultural na atualidade.
O texto que abre o volume, “Epistemic Disobedience: the
de-Colonial Option and the Meaning of Identity in Politics”,
do pesquisador argentino radicado nos Estados Unidos Walter
Mignolo, apresenta um argumento que se baseia em duas teses
interrelacionadas. A primeira tese, a identidade NA política
seria, para o autor, um movimento necessário de pensamento
e ação no sentido de romper as amarras da teoria política que
prevalece na Europa desde Maquiavel, racista e patriarcal por
negar o agenciamento político às pessoas classificadas como inferiores (em termos de gênero, raça, sexualidade, etc). A segunda
tese se fundamenta no fato de que estas pessoas, consideradas
inferiores, tiveram negado o agenciamento epistêmico pela
mesma razão. Assim, toda mudança de descolonização política
(não-racista, não heterossexualmente patriarcal) deve suscitar
uma desobediência política e epistêmica. As duas teses são os
pilares da opção descolonial, que permite pensar em termos do
diversificado espectro da esquerda marxista e, de outro lado, do
diversificado espectro da esquerda descolonial.
No artigo “O arquivo e o presente”, Raul Antelo demonstra
que o modernismo latino-americano é um fluxo histórico com
momentos de intensidade, lacunas, períodos de agitação e ruptura dissidente. Reconstruir seu arquivo não significa procurar
sua origem mas escolher, identificar e analisar aqueles momentos preteridos pela autonomia modernista. O efeito barroco,
o assim chamado neo-barroco latino-americano dos anos 70,
vincula-se diretamente a uma espécie de momento pré-póstero
dessa história.
Niterói, n. 22, p. 5-9, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 5
5
6/11/2007 14:25:53
Em “Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações”, Eurídice Figueiredo
propõe uma leitura cruzada dos discursos da mestiçagem em
relação aos discursos da transculturação, do hibridismo e da
crioulização, mapeando como foram conceitualizados ao longo
do século XX por alguns pensadores significativos da América
Latina — continente emblemático da mestiçagem. Demonstra,
em seguida, como eles acabaram extrapolando o âmbito deste
continente para um uso mais generalizado tanto na América do
Norte quanto na Europa, tendo em vista o fluxo de imigrantes,
que cresce de maneira exponencial, numa diáspora que muda a
feição de países até então considerados homogêneos, tanto étnica
quanto culturalmente.
No artigo “‘Nós Outros, Neo-Ibéricos’: O entre-lugar da
identidade nacional no pensamento de Manoel Bomfim”, Luiz
Fernando Valente demonstra que Bomfim define o singular
espaço ocupado pelo Brasil dentro da geografia sócio-politicocultural lusófona em termos de uma dialética entre uma mentalidade consciente da sua diferença, que se poderia qualificar
de pós-colonial já no século XVII, e o persistente “parasitismo”
da herança ibérica, que teria “infectado” nosso corpo político e
social, deixando seqüelas das quais ainda não nos conseguimos
recuperar. Rejeitando as noções de síntese e harmonia caras ao
pensamento oficial e codificadas no século XIX pelos textos de
von Martius, Bomfim constrói a identidade brasileira como um
“entre-lugar,” configurando-a através de uma espécie de psicomaquia entre, de um lado, um espírito independente, criativo
e contestador, presente desde o início da nossa formação, e, do
outro, um corpo sócio-político doente, contaminado pelo decadente colonialismo português.
Já Silvina Carrizo em “Debates de 1920: formas de pensar a
tradição” examina as diferentes discussões em torno do conceito
da tradição de intelectuais como José Carlos Mariátegui, no Peru,
e Gilberto Freyre, no Brasil, na década de 1920. Ao mesmo tempo,
busca dialogar com as propostas de alguns escritores da época,
como Graciliano Ramos, para analisar o alto grau de debate sobre o tema em questão. Tanto o indigenismo peruano quanto o
regionalismo nordestino possibilitaram uma relação particular
entre o regional e o étnico, o cultural e o temporal, assim como
entre a linguagem e a memória, ao colocar no centro desta problemática universos culturais antes não considerados.
Em “A América Latina no Suplemento Literário do Minas
Gerais (1969-1973)”, Haydée Ribeiro Coelho traça a interlocução
entre o Brasil e os países hispano-americanos nos anos 1960 e
1970 através da análise de alguns textos do Suplemento Literário do Minas Gerais (cuja primeira edição data de 1966) que,
buscando romper o isolamento do Brasil em relação aos demais
6
Gragoata 22.indb 6
Niterói, n. 22, p. 5-9, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:25:53
países da América Latina, publicou literatura e crítica hispanoamericanas. O material selecionado contém entrevistas, textos
panorâmicos sobre a literatura hispano-americana, destacando
também as resenhas que permitissem refletir sobre a indicação
de obras aos leitores do Suplemento, propiciando ao estudioso de
hoje reconstituir aspectos do diálogo do Brasil com a América
Hispânica.
No artigo intitulado “Modernismo Brasileño y Vanguardia
Argentina: Filiaciones y Homenajes (Macedonio y Mário: un
diálogo ficticio)”, Mónica Bueno estabelece um paralelo entre a
literatura brasileira e a literatura argentina, demonstrando que
o modernismo brasileiro é, como a vanguarda argentina, uma
polifonia que os críticos tentam delimitar. Considerando que o
romance na América Latina tem sido um gênero privilegiado
para marcar a forma irreverente da margem cultural, a autora
aponta Macedonio Fernández como o ponto de virada na história do romance na Argentina, por alterar consideravelmente os
fundamentos epistêmicos da representação e Mário de Andrade
no Brasil, porque põe em crise o marco do gênero.
Em “Visões da morte no indigenismo de Darcy Ribeiro e
Jorge Icaza”, Paulo Sérgio Marques compara duas cenas de morte
em Maíra, de Darcy Ribeiro, e Huasipungo, de Jorge Icaza, a
fim de mostrar as diferentes concepções da morte, da cultura
branca européia e do indígena americano, apresentadas nos dois
romances indigenistas, e como elas expressam uma cosmovisão
peculiar a cada uma dessas culturas, a cristã e a pagã, a colonizadora e a colonizada. Enquanto em Jorge Icaza a morte descrita
pelo olhar do colonizador serve de objeto de hierarquização e
separação, a morte pelo olhar indígena de Maíra revela-se como
um processo de comunhão e participação.
Graciela Ravetti em “Saberes performáticos nas ficções de
Haroldo Conti” aborda questões relacionadas com o transgênero performático. Tomando como objeto a ficção de Haroldo
Conti, Mascaró, el cazador americano, pesquisa, a partir da
compreensão de como performance e escrita se interligam,
uma chave crítica e teórica que permita novas perspectivas de
análise cultural.
Em “Romances híbridos e crítica ficcional na narrativa contemporânea latino-americana: o caso de Roberto Bolaño”, Rafael
Eduardo Gutiérrez Giraldo apresenta uma tendência da narrativa latino-americana contemporânea que consiste na mistura
de gêneros e no uso da crítica literária ficcional na construção
de romances e livros de contos híbridos. Tomando como estudo
de caso a obra do escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003), o
artigo mostra as principais características deste tipo de narrativa
e faz um paralelo com outros exemplos recentes de escritores
da América Latina. Finalmente propõe algumas hipóteses teóricas para tentar situar o fenômeno na tradição literária latinoNiterói, n. 22, p. 5-9, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 7
7
6/11/2007 14:25:53
americana e analisa sua relação com as transformações recentes
no campo das humanidades e das ciências sociais.
Em “El sueño de la razón...”, Olga Valeska faz uma reflexão
sobre o lugar da poesia e da literatura no atual contexto de mudança epistemológica. Dentro desse campo de discussão, o seu
texto focaliza a obra ensaística do poeta mexicano Octavio Paz,
colocando-a em diálogo com discursos advindos de diversos
campos do conhecimento.
“O conto policial de Jorge Luis Borges: cânone e marginalidade”, de Andréa Lúcia Padrão Ângelo, enfoca dois contos
de Borges em um gênero ainda considerado “menor”, o policial.
Mostra, também, como essas narrativas aparecem vinculadas a
preocupações que ultrapassam o gênero, abrangendo elementos
comuns ao universo borgiano: filosóficos, teológicos, místicos,
míticos, metafísicos e históricos.
Danilo Luiz Carlos Micali, no artigo “O enteado, de Saer:
uma percepção poética da Conquista Hispânica Americana”,
analisa o romance do autor argentino que promove um debate
sobre a Conquista Hispânica da América, do ponto de vista particular de um narrador que constrói poeticamente a sua visão
daquele passado, que não diz respeito a nenhum fato histórico
preciso. Mas, enquanto a historicidade desse texto transparece
nas suas entrelinhas, a sua imanente poesia define o seu aspecto
de prosa poética, senão de narrativa poética, traços que apontam
para um possível hibridismo literário do romance.
Consuelo Alfaro Lagorio, em “Textualidade, imagem e
mestiçagem na crônica de Guamán Poma de Ayala”, examina
a obra Nueva Crônica y buen gobierno, cujo texto reproduz,
entre outros, os processos críticos de identidade, resultado dos
acontecimentos históricos do século XVI. A crônica envolve um
interdiscurso entre tradição oral da língua materna e literalidade
em segunda língua, mas recorre também à tradição iconográfica
andina, como parte dos conflitos desta identidade. Consciente
do irreversível das mudanças pelas quais passavam as sociedades andinas, o cronista índio decide formular por escrito o
que recolhe à maneira de um etnógrafo, o que lê nas crônicas
espanholas e o seu próprio testemunho sobre os acontecimentos
e seus antecedentes históricos.
No texto “Perdón, desculpa, desculpa aí. La expresión de
las disculpas en el cine iberoamericano”, Flávia de Almeida
Monteiro, Célia Regina dos Santos Lopes e Leticia Rebollo Couto
levantam o conjunto de fórmulas rituais, cristalizadas ou não,
que permitem expressar pedidos de desculpas em diversas comunidades ibero-americanas, bem como comparar a natureza
das ofensas que demandam atos reparadores. Analisam uma
amostra de nove filmes contemporâneos ambientados em oito
diferentes centros urbanos (Cuba, Espanha, México, Peru, Chile, Brasil, Argentina e Colômbia). Como resultado preliminar,
8
Gragoata 22.indb 8
Niterói, n. 22, p. 5-9, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:25:53
observam que houve algumas diferenças no uso de desculpas
nas comunidades hispânicas ou brasileiras quanto 1) a suas
formulações e 2) aos tipos de ofensas que são objeto de desculpas. Em suas formulações diretas, as desculpas estão necessariamente relacionadas aos diferentes sistemas de tratamento
verbo-pronominais no que se refere às formas de tratamento:
ustedeo, tuteo, voseo, no espanhol, neutralização tu/você, em
português, e às correspondentes relações interpessoais em cada
contexto sócio-cultural.
Por fim, o volume apresenta duas resenhas. O primeiro
livro, resenhado por Lívia Reis, é O Sul e os Trópicos. Ensaios
de cultura latino-americana, de Ana Pizarro, e o segundo, resenhado por Heloísa Costa Milton, é América: história e ficção,
de André Trouche, ambos publicados em 2006 pela Editora da
UFF.
Eurídice Figueiredo e Lívia Reis
(organizadoras)
Niterói, n. 22, p. 5-9, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 9
9
6/11/2007 14:25:54
Gragoata 22.indb 10
6/11/2007 14:25:54
Epistemic disobedience:
the de-colonial option and the
meaning of identity in politics.
Walter D. Mignolo
Recebido 19, jan. 2007/Aprovado 15, mar. 2007
Resumo
O argumento deste artigo se baseia em duas teses
interrelacionadas. A primeira tese, a identidade
NA política (melhor do que política de identidade), é um movimento necessário de pensamento e
ação no sentido de romper as grades da moderna
teoria política (na Europa desde Maquiavel),
que é — mesmo que não se perceba — racista e
patriarcal por negar o agenciamento político às
pessoas classificadas como inferiores (em termos
de gênero, raça, sexualidade, etc). A segunda
tese se fundamenta no fato de que estas pessoas,
consideradas inferiores, tiveram negado o agenciamento epistêmico pela mesma razão. Assim,
toda mudança de descolonização política (nãoracista, não heterossexualmente patriarcal) deve
suscitar uma desobediência política e epistêmica.
A desobediência civil pregada por Mahatma Gandi
e Martin Luther King Jr. foram de fato grandes
mudanças, porém, a desobediência civil sem desobediência epistêmica permanecerá presa em jogos
controlados pela teoria política e pela economia
política eurocêntricas. As duas teses são os pilares da opção descolonial, que nos permite pensar
em termos do diversificado espectro da esquerda
marxista e, de outro lado, do diversificado espectro
da esquerda descolonial.
Palavras-chave: opção descolonial; desobediência
epistêmica; desobediência política.
Gragoatá
Gragoata 22.indb 11
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:25:54
Gragoatá
Walter D. Mignolo
0.Readers of Gragoatá may be not familiar with a fundamental paragraph by Anibal Quijano in his ground-breaking article
“Colonialidad y Modernidad/Racionalidad” (1990. 1992).
La crítica del paradigma europeo de la racionalidad/modernidad es indispensable. Más aún, urgente. Pero es dudoso
que el camino consista en la negación simple de todas sus
categorias; en la disolución de la realidad en el discurso; en la
pura negación de la idea y de la perspectiva de totalidad en
el conocimiento. Lejos de esto, es necesario desprenderse de
las vinculaciones de la racionalidad-modernidad con la colonialidad,
en primer término, y en definitiva con todo poder no constituido en
la decision libre de gentes libres. Es la instrumentalización de la
razón por el poder colonial, en primer lugar, lo que produjo
paradigmas distorsionados de conocimiento y malogró las
promesas liberadoras de la modernidad. La alternativa en
consecuencia es clara: la destrucción de la colonialidad del
poder mundial (QUIJANO, 1992, p. 447. Italics mine)
What Quijano is proposing here is nothing less than epistemic disobedience. Without taking that step, and making that
move, epistemic de-linking will not be possible and, therefore, we
will remain within the domain of internal opposition to modern and Eurocentered thoughts, ingrained in Greek and Latin
categories of thoughts and the experiences and subjectivities
formed from that foundation, both theological and secular. We
won’t be able to transgress the limits of Marxism, the limits of
Freudism and Lacanism, the limits of Foucauldianism; or the
limits of the Frankfurt School, including such a superb thinker
grounded in Jewish history and German language like Walter
Benjamin. I hope that it would be clear for reasonable readers that
affirming the co-existence of de-colonial thinking won’t be taken
as “deligitimazing European critical thoughts or post-colonial
thoughts grounded in Lacan, Foucault and Derrida.” I have the
impression that intellectuals of post-modern and Marxist bent
take as an offense when the above mentioned author, and other
similar, are not revered as believers do with sacred texts. This is
precisely why I am arguing here for the de-colonial option as epistemic
disobedience.
I.
No, I am not talking about “identity politics” but of “identity in politics.” No need, therefore, to argue that identity politics
is predicated on the assumption that identities are essential aspects of individuals, that leads to intolerance and that in identity
politics fundamentalists positions are always a danger. Because
I partially agree with such a view of identity politics — of which none is exempt, as there is an identity politics predicated on
Blackness as well as on Whiteness, on Womanhood as well as
12
Gragoata 22.indb 12
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:25:54
Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics
on Manhood, on Homosexuality as well as Heterosexuality —,
is that my argument is built on the extreme relevance of identity
in politics. And identity in politics is relevant not only because
identity politics is, as I just suggested, all over the spectrum of
social identities, but because the control of identity politics lies,
precisely, in the construction of an identity that doesn’t look as
such but as the “natural” appearance of the world. That is, Whiteness, Heterosexuality and Manhood are the main features of an
identity politics that denounces similar but opposing identities
as essentials and fundamentalists. However, the dominant identity politics doesn’t manifest itself as such, but through abstract
universals such as science, philosophy, Christianity, liberalism,
Marxism, and the like.
I will argue that identity in politics is crucial for any decolonial option, since without building political theories and
organizing political actions that are grounded on identities that
have been allocated (e.g., there were no Indians in the American continents until the arrival of the Spaniards; and there
were no Blacks until the beginning of the massive slave trade
in the Atlantic) by imperial discourses (in the six languages of
European modernity — English, French and German after the
enlightenment; and Italian, Spanish and Portuguese during
the renaissance), it may not be possible to de-naturalize the imperial and racial construction of identity in the modern world
under a capitalist economy. Identities constructed by European
modern discourses were racial (that is, the colonial racial matrix) and patriarchal. Fausto Reinaga (the Aymara intellectual
and activist) clearly stated in the late sixties: “I am not Indian,
dammit, I’m Aymara. But you made me Indian and as Indian I
will fight for liberation.” Identity in politics, in summary, is the
only way to think de-colonially (which means to think politically
in de-colonial terms and projects). All other ways of thinking
(that is, intervening in the organization of knowledge and understanding) and of acting politically, that is, ways that are not
de-colonial, means to remain within the imperial reason; that
is, within imperial identity politics.
The de-colonial option is epistemic, that is, it de-links from
the very foundations of Western concepts and accumulation of
knowledge. By epistemic de-linking I do not mean abandoning
or ignoring what has been institutionalized all over the planet
(e.g., look what is going on now in Chinese Universities and
the institutionalization of knowledge). I mean to shift the geoand body-politics of knowledge from its foundation in Western
imperial history of the past five centuries, to the geo-and bodypolitics of people, languages, religions, political and economic
conceptions, subjectivities, etc., that have been racialized (that
is, denied their plain humanity). Thus, by “Western” I do not
mean geography per say, but the geo-politics of knowledge.
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 13
13
6/11/2007 14:25:54
Gragoatá
I use South America in
a very general sense that
includes Central America and the Caribbean,
“south of Rio Grande”
in the one sense; and
the Caribbean that in
spite of being English
or French, has more in
common with the South
than with the North,
that is, North America (U.S. and Canada).
Briefly, the imperial/
colonial history is what
is at stake rather than
Eu r o p e a n o r No r t h
American text-books
on geography.
1
14
Gragoata 22.indb 14
Walter D. Mignolo
Consequently, the de-colonial option means among other things,
learning to unlearn (as it has been clearly articulated in the Amawtay Wasi high learning project, I will come back to it), since our
(a vast number of people around the planet) brains have been
programmed by the imperial/colonial reason. Thus by Western
knowledge and imperial/colonial reason I mean the knowledge
that has been built on the foundations of Greek and Latin and
the six European imperial languages (also called vernaculars)
and not Arabic, Mandarin, Aymara or Bengali, for example.
You could argue that Western reason and rationality is not all
imperial, but also critical like Las Casas, Marx, Freud, Nietzche,
etc. Sure, but critical within the rules of the games imposed by
imperial reasons in its Greek and Latin categorical foundations.
There are many options beyond the bubble of The Truman Show.
And it is from those options that de-colonial thinking emerged.
De-colonial thinking means also de-colonial doing, since the
modern distinction between theory and practice doesn’t apply
once you enter in the realm of border thinking and de-colonial
projects; once you enter the realm of Quichua and Quechua,
Aymara and Tojolabal, Arabic and Bengali, etc. categories of
thought confronted, of course, with the relentless expansion of
Western (that is Greek, Latin, etc.), foundation of knowledge, let’s
say, epistemology. One of the achievements of imperial reason
was to affirm itself as a superior identity by constructing inferior constructs (racial, national, religious, sexual, gender), and
expelling them to the outside of the normative sphere of “the
real.” I agree that today there is no outside of the system; but
there are many exteriorities, that is, the outside constructed from
the inside in order to clean and maintain its imperial space. It is from
the exteriority, the pluri-versal exteriorities that surrounding
Western imperial modernity (that is, Greek, Latin, etc.), that decolonial options have been repositioned and emerged with force.
The events in Ecuador in the past 10 years, as well as those in
Bolivia that culminated in the election of Evo Morales as president of Bolivia, are some of the most visible signs today of the
de-colonial option, although de-colonial forces and de-colonial
thinking have been in the Andes and Southern Mexico for five
hundred years.
In South1, Central America and the Caribbean, de-colonial
thinking has been dwelling in the minds and bodies of Indigenous as well as of those of Afro-descendent. The memories inscribed in their bodies through generation, and the socio-political
marginalization to which they have been subjected by direct imperial institutions as well as by republican institutions controlled
by the Creole population from European descent, nourished a
shift in the geo-and body-politics of knowledge. “Maroon decolonial thinking” built on the Palenques in the Andes and the
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:25:54
Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics
G u a m á n Po m a d e
Ayala, Nueva Crónica y
Buen Gobierno (1516) is
one of the first de-colonial Indigenous political
treatise that remained
in manuscript format
until 1936. Quobna Ottobah Cugoano, who
was transported from
Jamaica to England toward the second half of
the eighteenth century,
published another decolonial political treatise in 1786, in London:
Thougts and sentiments
of the evil of slavery
(1786). More recently,
Maori scholar and activist, Linda Tuhiwai Smith published a groundbreaking de-colonial
proposal: Decolonizing
methodologies: research
and indigenous peoples.
See the extensive three
book reviews published
by Heather Howard-Bobiwash; by John Ortley
and by Monica Buttler
et al., in The American Indian Quarterly,
disponible on: <http://
muse.jhu.edu/journals/
american_indian_quarterly/toc/aiq29.1.html>
(v. 29, n. 1-2, 2005). The
pioneering and ground
breaking work of Fausto
Reinaga is being re-considered today in Bolivia;
Frantz Fanon is being
re -read, b eyond t he
post-colonial market, by
de-colonial intellectuals
and activists. In the U.S.,
Native Americans are
re-evaluating the pioneering work of Sioux
legal scholar, intellectual and activist Vine Deloria, Jr. See for example,
Devon Abbot Mihesuah,
Indigenous american
women: decolonization,
empowerment and activism (2003).
3
See Madina Tlostanova
(2006).
2
Kilombos in Brazil, for example, complemented “Indigenous
de-colonial thinking” at work as immediate responses to the
progressive invasion of European imperial nations (Spain, Portugal, England, France, Holland).2 De-colonial options, and decolonial thinking have a genealogy of thought not grounded in
Greek and Latin but in Quechua and Aymara, in Nahuatls and
Tojolabal, in the languages of enslaved African peoples that was
subsumed in the imperial language of the region (cfr. Spanish,
Portuguese, French, English, Dutch), and re-emerged in truly
de-colonial thinking and doing: Candomblés, Santería, Vudú,
Rastafarianism, Capoeira, etc. After the end of the eighteenth
century, the de-colonial options extended to several locales in
Asia (South, East, Central) as far as England and France, mainly,
took over the leadership of Spain and Portugal from the sixteenth
to the eighteenth centuries.
But, let’s come back to the Andes and to South America,
dwelling in and thinking from the de-colonial option (or decolonial options, if you prefer). There are a series of keywords
explicit and implicit in my paper (development, inter-culturality,
imaginary of the nation, de-colonial). These keywords are not
in the same universe of discourse. Or better yet, in the same
epistemic field. We have indeed two sets of key words here:
development, difference and nation and inter-culturality and
de-coloniality. The first set belongs to the imaginary of Western
modernity (nation, development) and post-modernity (difference), while the second belongs to the de-colonial imaginary. Let
me explain. “Development” was — as we all know —in South
America and the Caribbean, the key word of the third wave
of global designs after WWII when the U.S. took the lead over
England and France, and replaced their civilizing mission with
their own version of modernization and development. It became
apparent by the late sixties and early seventies — with the crisis
of the welfare State — that “development” was another term in
the rhetoric of modernity to hide the re-organization of the logic
of coloniality: the new forms of control and exploitation of the
sector of the world labeled Third World and underdeveloped
countries. The racial matrix of power is a mechanism by which
not only people, but languages and religions, knowledge and
regions of the planet are racialized. Being underdeveloped is
it not like being Indigenous from the Americas, Australia and
New Zealand? Or Black from Africa? Or Muslim from the Arab
world? Being from the colonies of the Second World (e.g., Central Asia and Caucasus)3, was it not in a way being as invisible
as colonies of a second-class empire, an imperial racialization
hidden under the expression “Second World”?
The rhetoric of modernity (from the Christian mission
since the sixteenth century, to the secular Civilizing mission, to
development and modernization after WWII) occluded — under
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 15
15
6/11/2007 14:25:55
Gragoatá
The Eastern Front was
unparalleled for its high
intensity, ferocity, and
brutality. The fighting
i nvolved m illions of
G e r m a n a nd S ov ie t
troops along a broad
front. It was by far the
deadliest single theatre
of war in World War
II, with over 5 million
deaths on the Axis Forces, Soviet military deaths were about 10.6
million (out of which
2.6 million Soviets died
in German captivity),
and civilian deaths were
about 14 to 17 million.
If one adds to this the
six millions Jews killed
under Hitler’s regime
(the Jewish Holocaust);
and to Iraq and Lebanon, where the State of
Israel is enacting on the
population of Lebanon
what happened to their
own Jewish ancestors in
Western and Central Europe half a century ago;
from the commodit y
value to which enslaved
Africans were subjected
to the current traffic of
women and children as
well as human organs,
the rhetoric of modernity remained strong.
5
The maquila, the commercialization of human organs and human
bodies (e.g., young women in regions of Asia,
Central Asia, Russia)
“captured” and “sold”
pretty much like enslaved African men in
the sixteenth and the
seventeenth century,
are all examples of the
same history of Western
barbarism hidden under
the rhetorical splendors
of Western civilization.
The world is flat, as Thomas Friedman celebrates, but it is also very,
very thick!
4
16
Gragoata 22.indb 16
Walter D. Mignolo
its triumphant rhetoric of salvation and the good life for all —
the perpetuation of the logic of coloniality, that is, of massive
appropriation of land (and today of natural resources), massive
exploitation of labor (from open slavery from the sixteenth to the
eighteenth century, to disguised slavery, up to the twenty first
century), and the dispensability of human lives from the massive
killing of people in the Inca and Aztec domains to the twenty
million plus people from Saint Petersburg to the Ukraine during
WWII killed in the so called Eastern Front.4 Unfortunately, not
all the massive killings have been recorded with the same value
and the same visibility. The unspoken criteria for the value of
human lives is an obvious sign (from a de-colonial interpretation) of the hidden imperial identity politics: that is, the value of
human lives to which the life of the enunciator belongs becomes
the measuring stick to evaluate other human lives who do not
have the intellectual option and institutional power to tell the
story and to classify events according to a ranking of human
lives; that is, according to a racist classification.5
It is true, as I mentioned before, as everybody knows, that
within the same civilization of death and of fear, critical voices
stood up to map the brutalities of a civilization built upon the
rhetoric of salvation and well-being for all. Eric Hobsbawm wrote
a powerful piece titled “Barbarism: A User’s Guide” (1994) in
which he recognized, described and condemned the “barbarian”
record of modern and Western civilization (as a good British
intellectual Hobsbawm’s horizon was the enlightenment). And
also with English humor, he clarified from the beginning that
his article was not intended as a guide to practice barbarism but,
rather, a guide of the barbarian moments of Western civilization
(e.g., modernity and capitalism). He highlighted the Jewish Holocaust, but “forgot” the Holocaust of enslaved Africans before
the enlightenment as well as the killing of non-Western lives, like
the 25 million Slaves that died in the Eastern frontier of Europe,
as I mentioned before, from Saint Petersburg to Belarusia and
the Ukraine.
II.
But let’s come back to the concept of “development” during
the Cold War that was the name of the global design of the US
in its inaugural stage of global domination. In South America,
the politics of development was denounced by the CEPAL (Comisión Económica para América Latina) itself (by its own chairman, the argentine economist Raúl Prebisch), and by the more
left-leaning sociologists and economists that advanced the well
known “dependency theory.” “Development” was also critiqued
in South America by the foundation of Liberation Theology and
Liberation Philosophy.
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:25:55
Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics
See for instance the
e d it ion i n t h e web,
<http://www.crusader.
net/texts/mk/>; a site
called The Occidental
Pa n-Ar ya n Cr usade,
where there is a list of
“other white nationalist
texts.”
6
If during the Cold War the liberal concept of “development” embodied a re-organization of the logic of coloniality
as lead by the U.S., and encountered the Dependency Theory
and Theology/Philosophy of Liberation as its opponents, after
the end of the Cold War new developmental designs (this time
in terms of a Free Trade Agreement (FTA) of a different kind),
encountered a fierce resistance by the political and economic
projects emanating from Indigenous Nations, mainly in the Andean region of South America. Globally, Free Trade Agreements
have been opposed by a number of social movements under the
banner of “yes to life” as a response to the “projects of death”
embodied in FTA.
Today the de-colonial option is at work around the world,
beyond the critiques being advanced, daily, within the capitalist
and neo-liberal civilization. In Israel and in the U.S., as well as
in Europe, the opposition to the invasion of Iraq and of Lebanon
has been growing. Internal critiques (liberals, Marxists, Jews
and Christians) are necessary but hardly sufficient. De-colonial
options are showing that the road to the future cannot be built
from the ruins and the memories of Western civilization and
its internal allies. A civilization that celebrates and enjoys life
instead of making certain lives dispensable to accumulate wealth and to accumulate death, can hardly be constructed from
the ruins of Western civilization, even in its “good” promises
as Hobsbawn would like to have it. Recently, for example, Via
Campesina, the Fishermen World Forum, International Friends
of the Land, and other social movements, have been imposing
themselves as leaders of a non-capitalist world, by forcing the
collapse of the Doha Round. Pascal Lamy, the secretary of the
OMC, officially announced the suspension of the Doha Round’s
negotiation. Non-development projects, like projects for the
reproduction of life and not for the reproduction of death (like
Via Campesina, the Fishermen World Forum, the International
Friends of Land, the Indigenous Nations of Ecuador, etc.), are
gaining ground.
A cautionary note is in order. When I talk here about
“reproduction of life” I am not aligning myself with Henry
Bergson’s vitalism and its re-inscription in contemporary debates. Deleuze’s vitalism or philosophy of life, for instance, has its
roots in Henri Bergson’s (1911) and its conception of the “elan
vital” (vital force) and it is cast in the philosophy of evolution
and development of organism. “Vital force” was a concept, an
important concept, in Adolf Hitler´s Mein Kampf.6 If we were only
to think within the limits of modern and imperial reason, then
every reference to the reproduction of life will be interpreted in
the trajectory from Bergson to Hitler. Fortunately, the de-colonial
option allows for a conception of reproduction of life that comes
from the damnés, in Frantz Fanon’s terminology, that is, from the
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 17
17
6/11/2007 14:25:55
Gragoatá
On border thinking
or border epistemology
(also gnosis), see Walter
D. Mignolo and Madina
V. Tlostanova (2006, p.
205-222).
7
18
Gragoata 22.indb 18
Walter D. Mignolo
perspective of the majority of people on the planet whose lives
were declared dispensable, whose dignity was humiliated, whose bodies were used as a work force: reproduction of life here is
a concept that emerges from the Indigenous and enslaved Afros
in the formation of a capitalist economy, and that extends to
the reproduction of death through Western imperial expansion
and the growth of a capitalist economy. That is, the de-colonial
option that nourishes de-colonial thinking in imagining a world
in which many worlds can co-exist.
Today, a de-colonial way of thinking that doesn’t own
allegiance to the Greek categories of thought, is already an existing option: re-inscribe in the legacies of the ayllu in the Andes
and the altepetl in Mexico and Guatemala. We can imagine that
similar de-colonial moves are taking place in the Islamic world,
in India, in North and Sub-Saharan Africa. Re-inscription of
marginalized and denigrated languages, religions and ways of
thinking are being re-inscribed in confrontation with Western
categories of thought. Border thinking or border epistemology is
one of the consequences and the way out to avoid either Western
or non-Western fundamentalisms.7
The reproduction of life that I am talking about (in the sense that the university Amawtay Wasi understands “buen vivir”
instead of “professional excellence”, the mantra of the modern,
corporate university in the US and Europe, but also in other
parts of the world due to the imperial dimension of learning—
flattening the world, as Thomas Friedman would like to celebrate) then comes from the long memories of the ayllu and the altepetl,
without which it would be difficult to understand the force of
Indigenous nations in Ecuador, the election of Evo Morales in
Bolivia, and the Zapatistas uprising in Southern Mexico. That
is, the re-articulation of Indigenous Nations and the recession
of mono-topic (that is, mono-linguistic and religious ethnicity
of the creole-mestizo/a elite in South America, equivalent to the
national white elite in Western Europe and the U.S.), is forcing a
radical transformation of the equation of one Nation-one State.
The pluri-national State that is already well advanced in Bolivia
and Ecuador is one of the consequences of identity in politics
fracturing the political theory on which the modern and monotopic State was founded and perpetuated, under the illusion
that it was a neutral, objective and “democratic” state detached
from identity in politics. Whiteness and political theory, in other
words, are transparent, neutral and objective, while Colors and
political theory are essentialists and fundamentalists. The decolonial option disqualifies this interpretation. By linking decoloniality with identity in politics, the de-colonial option reveals
the hidden identity under the pretense of universal democratic
theories, while building on the racialized identities that were
constructed by the hegemony of Western categories of thought,
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:25:55
Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics
histories and experiences (again, Greek and Latin foundations
of modern/imperial reason).
Thus, if in the modern/colonial world, philosophy since
the European Renaissance was part of the formation and the
transformation of European history by its indigenous population
described as Western Christians, such a concept of philosophy
(and theology) was the weapon that mutilated and silenced similar rationalities in Africa and in the Indigenous population of the
New World. By philosophy here I mean not only the disciplinary
and normative formation of a given practice, but the underlying
cosmology that underlines it. What Greek thinkers called philosophy (love to wisdom) and Aymara thinkers tlamachilia (to
think well), are local and particular expressions of a common
tendency and energy in human beings. The fact that “philosophy” became global doesn’t mean that it is also “uni-versal.” It
simply means that the Greek concept of philosophy was picked
up by the intelligentsia linked to imperial/colonial expansion,
the foundation of capitalism and Western modernity.
I bring up these examples because I am interested in three
(among others) types of projects that confront neo-liberal globalization yet at the same time work toward a socio-political
organization, on a global scale, based on the de-fetichization
of political power and on an economic organization that aims
at the reproduction of life instead of the reproduction of death;
and aims at reciprocity and fair distribution of wealth among
many rather than the accumulation of wealth among the few.
It is this latest economic goal that needs exploitation and domination, corruption and self-serving labor. An economy oriented
toward the reproduction of life and the well being of the many,
embodies a politic of representation in which the power is in the
community and not in the State or any other equivalent administrative institution.
A simplified version of four to five hundred years of history
in South America and the Caribbean (depending on the location
and the communities, Indigenous or Afro communities), would
have these elements in common:
a) An internal organization of the Indigenous and Afro
communities (intra-cultural) as a matter of survival confronted with the invasion of Europeans (Spanish, Portuguese, Dutch, French and English imperial designs), in
different locales of the Americas and the Caribbean;
b) An external organization to fight against the imperial/
colonial infiltration in their town, economic and social
organization, cultures and lands. First, in confrontation
with imperial/colonial authorities; secondly, after “independence” against the nation-state controlled by Creoles
from European descent and Mestizos with European
dreams; finally, and more recently, in confrontation with
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 19
19
6/11/2007 14:25:55
Gragoatá
Walter D. Mignolo
the transnational corporations dilapidating the forests,
the beaches and the areas rich in natural resources; and
also in confrontation with the national-states defending
Free Trade according to Washington designs.
The consequences of three hundred years (approximately)
of direct colonial rule and of two hundred years (approximately)
of internal colonialism (that is, the Creole/Mestizo elite after
independence), was the growing force of nations (indigenous
and afros) within the nation where mestizaje became the ideology
of national homogeneity, an oxymoron that portrays the reality
of colonial states in South America and the Caribbean. In the
U.S. (like in England, Germany or France), mestizaje was not a
problem until the recent flow of immigration. For centuries, modern/imperial Europe lived under a national ideology sustained
by a white Christian population (either Catholic or Protestant).
Indigenous nations within the Creole/Mestizo nation, is what
is at stake today in the Andes, Southern Mexico and Guatemala.
Indeed, what is in recession is the ethnicity upon which nationstates were imagined, from the early nineteenth century until
recently. What is in recession is the Latin ethnicity and what is
accelerating and rising is the variegated spectrum of Indigenous
and Afro projects, in their epistemic and political dimension.
What is at stake then in identity in politics and epistemology?
We are not just facing demands, from Indigenous and Afrocommunities, to the national state and to the Latin ethnic group
that control politics and economy. We are facing a radical shift
in which Indigenous and Afro-communities are clear about two
basic principles:
(a) The epistemic rights of Indigenous and Afro communities
upon which political and economic de-colonial projects
are being built and a de-colonial subject affirmed as difference in the human sameness (e.g., because we are all
equal we have the right to the difference, as the Zapatistas
claimed) and
(b) Without the control of the epistemic foundation of Afro
and Indigenous epistemology, that is, of political theory
and political economy, any claim made from the liberal
or Marxist State will be limited to offering liberty and preventing Indigenous and Afros to exercise their freedom.
De-colonial thinking is the road to pluri-versality as a
universal project. The pluri-national State that Indigenous and
Afros claim in the Andes, is a particular manifestation of the
larger horizon of pluri-versality and the collapse of any abstract
universal that is presented as good for the entire humanity, its
very sameness. This means that the defense of human sameness
above human differences is always a claim made from the privileged position of identity politics in power.
20
Gragoata 22.indb 20
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:25:56
Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics
III
I have been asked question as this: oh, so you mean that
to shift the geo-graphy of reason or to shift from ego-politics to
geo-politics of knowledge you have to be Indian, and that only
Indians can do it? So, what about me, who is not Indian but
White, what can I do? Am I being left out of the game? Last time
I have been asked such questions, not without anger, was by a
young Spanish Marxist, during one of the summer seminars,
organized by Universidad Complutense. This seminar was on
“De-colonial thinking” and Nina Pacari was one of the speaker
and participants during the week-long seminar. The question
brought to the forefront the complicity between geo- and bodypolitics of knowledge disguised under “disciplinary identity.”
One of the arguments advanced during the debates, in that
long week seminar, was that after all the talk about de-colonial
thinking, cannot be taken seriously; that de-colonial arguments
were not argument grounded in the social sciences (and I am
not joking here). Another sociologist in the audience asked,
with the assurance that being a sociologist gave him, “could you
define de-colonial thinking? You gave a history, used it metaphorically, but you never gave a definition.” They were asking
for epistemic obedience. I did not offer him of course a definition
because it would have meant playing according to the rules he
was asking me to play to that was “disciplinary identity”. And
he was refusing to play according to the rules I was playing,
which was the racialization of bodies and geo-historical locations. That is, I was not playing the game of disciplinary identity
but of “geo-and body-identification” as formed and shaped, in the
modern/colonial world, by the rhetoric of modernity justifying
capitalist economy. In other words, I was offering the Marxist
and sociologists interlocutors to consider the de-colonial option;
and they refused of course, inviting me to play according to the
social sciences disciplinary norms and marxist convictions. It
was not easy for my interlocutors to see that they were playing
an “identity politics game” and pretended, or believed, that their
position occupied a location beyond identity; beyond geo- and
body- political configurations. I was, in other words, de-linking
from Eurocentrism in the particular sense that the concept of
Eurocentrism has for us, in the project modernity/coloniality.
Eurocentrism doesn’t name a geographical place but the hegemony of a way of knowing grounded in Greek and Latin and
in the six European and imperial languages of modernity; that
is, modernity/coloniality.
And how do you de-link from Eurocentrism if you are, like
me, an Argentinean of European descent and not an Indian of
the Andean Region or an Ecuadorian, Barbadian or Martinican
of African descent? Certainly, you can be of African descent
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 21
21
6/11/2007 14:25:56
Gragoatá
The work of Gunther
Rodolfo Kusch extends
from 1952 (La seducción
de la barbarie) to 78 (Geocultural del hombre
Americano’1976’ and
Esbozo de una antropología Filosófica Americana, 1978). In the meantime he published three
major books: América
Profunda (1963), Pensamiento Indígena y
Pensamiento Popular
en América (1973). What
follows is a summary of
ideas running through
the work of Kusch, here
as well as in articles and
talks he delivered in
Argentina and Bolivia,
mainly.
8
22
Gragoata 22.indb 22
Walter D. Mignolo
and embrace the tradition of White European thinkers, Jews or
not; or you can be a White person from France or the U.S. and
embrace the tradition of African and Afro-Caribbean radical
thinkers, etc. I am uncoupling the formation and transmission of
epistemic regions, linked to bodies and regions of the modern/
colonial world and their movement through time and space.
They move but they do not vanish: go tell a post-modern thinker
or a conservative European philosopher that there is no such a
thing as European philosophy or European history of ideas, and
you may have the confirmation that fictional entities also exist;
and that European thinkers have made clear that there is a corelation between certain ideas, certain regions of the world and
certain types of persons. That is why still Indigenous and Afro
intellectuals have difficulties in getting their ideas competitive
with say some one like Martin Heidegger or Samuel Huntington,
to give two different examples.
Now let’s go back to the initial question of the previous
paragraph and take the example of the Argentinean philosopher of German descent, Gunther Rodolfo Kusch (1922-1979),
whose work was written and published between 1953 and 1980.
Among Kusch’s many original contributions, and his isolation
precisely because of its originality, is the concept of “mestizo
consciousness” that he introduced in the late fifties. “Mestizo
consciousness” in the fifties, in Argentina and in the pen of a
philosopher of German descent, was a concept not yet ready to
be seen.8 Here we have, in the work of Rodolfo Kusch, a sustained
effort of twenty five years of epistemic disobedience. He paid his dou,
and he was isolated.
“Mestizo consciousness” for Kusch did not have anything
to do with biology and mixed blood, which was the canonical
understanding of mestizaje: mixed blood of Spaniard or Portuguese (generally the father) and Indian (generally the mother).
We should remember also that Spaniard or Portuguese coupled
with Africans were called “mulatos.” Although Kusch refers only
incidentally to Blacks in America, “mestizo consciousness” is a
concept open enough to embody also the “mulato consciousness.” What is then, for Kusch, “mestizo consciousness”?
It has been a concern of thinkers and philosophers of European descent, particularly in Argentina, there being displaced
Europeans; that is, Europeans but not quite enough. The distinction in Castilian language between “ser” (to be) and “estar”
(to be), acquired a philosophical dimension that explained the
fractures and the existential feelings of displaced Europeans in
the Americas.
Important: Kusch doesn’t talk about Latin America, but
about America. For a philosopher in America, a mestizo consciousness, it was difficult to think “Being”, or “Existence”, or
“History” or “Economy” of “Humanity”…etc., etc.Those uniNiterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:25:56
Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics
versal entities could/can only be conceived, explored, unfolded,
conceptualized from the perspective of a “pure consciousness”,
from a consciousness where there is no difference between ser
and estar; for a consciousness in which some one es donde está
and está donde es. That is, for some one who can feel/be where
she is and are where she should be. If you are not, if you do not
feel you are a “pure consciousness,” you may feel that you do not
belong to the sphere of Being, of History, of Economy, of Politics,
etc. Instead, if you feel you belong to the “pure consciousness”
category you may not even know it and do not ask such questions, because simply you feel you are and, naturally, everybody
else should feel the same and if they don’t, well, it is not your
fault; there must be something wrong with them. However,
the category of “pure consciousness” is only conceivable from
the perspective of “mestizo consciousness”, which is a way of
shifting the geography of reason and unveiling the regionality
of a consciousness without qualification because it is assumed
to be uni-versal.
Thus, mestizo consciousness for an Argentine philosopher
of German descent, very well versed in Kant, Hegel, Niestzche,
Husserl, Heidegger, the fracture between ser and estar is not a
question of blood but a question of feeling; a feeling of being out
of place, of feeling when he will theorize during the fifties as the
natural force of America and in the sixties and seventies moving
to an understanding of Aymara philosophy, of Aymara thought.
But also bringing both together, the correlation between space
and density of organic life (pampas, mountains, jungles, flora,
rivers, etc.) with scattered cities and low demographic density.
In other words, Greece and Rome (or Jerusalem for Levinas) are
far, too far away, for a mestizo consciousness in America. Instead, the exuberant organic life (some would say “nature”) and
the dense memory of Indigenous civilizations and cosmologies
(instead of Greek, Roman or Hebrew) and languages (Aymara
and Quechua, instead of Greek, Latin and Hebrew), offered in
America the place and the memory of who one is (ser) and where
one is (estar). Thus, mestizo consciousness is a philosophical
and not a biological concept. A philosophical concept that is
unthinkable in the history of European philosophy, from Tales
of Mileto to Heidegger of the Black Forest in Messkirch.
Mestizo consciousness is a philosophical concept open to
the pluri-versal, like double consciousness in Du Bois, mestiza
consciousness in Anzaldua; mestizo/mulato consciousness in
Colombian thinker, writer and medical doctor, Manuel Zapata
Olivella. Concepts in the history of European philosophy are
mono-topic and uni-versal not pluri-topic and pluriversal. And
why are concepts that are elaborated in de-colonial projects
and in the process of de-colonial thinking pluri-topic and pluriversal? Because the colonial wound has been diversified, emNiterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 23
23
6/11/2007 14:25:56
Gragoatá
Walter D. Mignolo
ploying the language of Wall Street, around the world: Indians
in America, Australia and New Zeland; Sub-Saharan African
Blacks and in the Americas; Arabs and Berbers in North Africa
and in the Middle East; Indians in post-partition India; and even
Chinese, Japanese, and Russian and their colonies had to deal
one way or another with the mono-topic cosmovision of Western
civilization encapsulated in Greek and Latin, the six modern European imperial languages, and the corresponding subjectivity
inscribed in and through artistic expression, popular culture,
mass communication, etc. That is why mestizo consciousness
is diverse and diversified. And that is why also any de-colonial
project and any de-colonial option had to deal with border
epistemology and border thinking and double translations as
methodological path (sorry for the pleonasm, and the redundant
expression “methodological path”).
The dislocation of “mestizo consciousness” lived and experienced in the critical awareness of people of European descent
has something in common with the dislocation of Indigenous
and Afro dislocated consciousness also in America. If the awareness of being of European descent, and therefore not of African
or of Original (that is Ab-Original) descent, is the awareness of
a dislocation of a “mestizo consciousness”, that consciousness
has something in common with W.E. B. Du Bois double consciousness or Gloria Anzaldúa mestiza consciousness. What they
have in common is the colonial wound; a sense of the modern/
colonial fracture; of the modern/colonial racial displacement.
Certainly, there is a question of scale, and the colonial wound
in an Argentine of European descent is not the same as the
colonial wound of an Aymara of ab-original descent. The three
kinds of experiences, however, are felt in relation to the presence
of the absence: the pure consciousness of European imperial/
colonial expansion and forced invitation to assimilate or to feel
the difference, the colonial difference.
Thus, the de-colonial option shall become clear in this
context. De-colonial means thinking from the exteriority and in
a subaltern epistemic position vis-à-vis the epistemic hegemon
that creates, builds, constructs an outside in order to assure its
interiority. Don’t we hear that every day in President Bush’s
discourses, a discourse that was common among Western
Christians in the sixteenth and seventeenth century; secular
Liberals in the nineteenth and twentieth century; Neo-liberals
and Marxists. The de-colonial implies to think from languages
and categories of thoughts not-included in the fundamentals of
Western thoughts. Again, Greek and Latin and (please repeat
with me…!).
But the question here was, what can an Argentine of European descent do if his family language is German and the
official language of the country, Argentina, is Spanish? He is not
24
Gragoata 22.indb 24
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:25:56
Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics
Black or Indian, so how can he think from Exteriority (instead of
Greek or Latin) categories of thoughts that are not imbedded in
the imperial history of Western thoughts? There a few ways to
answer these questions. Be patient, please. We have to unknot
the knot, learn to unlearn, and learn to relearn at every step.
Kusch engaged in three of his books, with both the colonial
archive of Indigenous philosophy and the present philosophical
thoughts among Aymara’s. In the first dimension, he engaged
with Waman Puma de Ayala and the Warochiri Manuscript,
as well as the Quechua and Aymara dictionaries by González
Holguin and Ludovico Bertonio. In the preface of one of his
fundamental books, El Pensamiento Indígena y Popular en América
(1963), Kusch observes, from the outset:
La búsqueda de un pensamiento indígena no se debe sólo al
deseo de exhumarlo científicamente, sino a la necesidad de
rescatar un estilo de pensar que, según creo, se da en el fondo
de América y que mantiene cierta vigencia en las poblaciones
criollas (Prologo).
Certain words like “rescatar” (to recover) and “el fondo de
America” (“deep America”) do not sound right forty years later.
We would say “re-inscribe” and perhaps “in the ab-original
memory in America”. But this is not the point. The point is the
clarity of the project and the need to make it explicit from the
very beginning, the first sentence of the prologue. A couple of
good books have been written, more recently, in which a scientific analysis (philosophical one and anthropological the other;
Josef Estermann and Fernando Martinez Enriquez) has been
advanced. Kusch follows in the steps of Nahuatl historian Miguel
Leon Portilla and attempts to take another step. And that step is
to move from the analysis of Aymara thought, to take it seriously,
to understand the socio-historical and subjective “problems” in
America. Furthermore, a third step is to offer the sketch of an
American way of thinking (parallel, co-existing and overlapping,
and obviously differential with a Western way of thinking. The
key concept here is estar instead of ser.
This is nothing less than the main goal of El pensamiento
indigena y popular en America. Let me offer you a highlight of the
Kusch enterprise from chapter 10, “Salvation and Economy”. I
selected this chapter because it can be put into a dialogue with
Felix Patzi and Nina Pacari that I mentioned before.
Kusch began the chapter, as he often does, with an anecdote
that sets the stage of the issue to explore. In this case, he remembers that Toledo, a small city in Bolivia, a very well educated
resident and self identified Indian, confessed to Kusch that for
him Indians were illiterate and as such they couldn’t get used
to a cooperative system. A few weeks ago a fight among Indians
themselves took place in the copper of Huanuni. The tragic case
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 25
25
6/11/2007 14:25:57
Gragoatá
Walter D. Mignolo
of the past few weeks goes way back to the neoliberal privatization of the mining industry. The neo-liberal strategy was to
create an Indian elite of cooperativistas who were the bosses of
other waged Indians. That is, Indians exploiting other Indians.
The same strategy took place before neo-liberalism, during the
Cold War and US projects of modernization and development
in South America. Kusch is reporting on one specific case that
helps in understanding imperial global designs and their impact
on social and personal relations. The case reported by Kusch is
not an isolated one. As a matter of fact, Kusch shows the links
of a long chain of events going back to the sixteenth century, the
massive appropriation of land and the transformation of living
to waged labor. Kusch now, in the chapter, goes into one of the
stories told in the one of the many narratives of Visitas (Spanish
administrative visits to different towns to gather information
to be used by the Crown in its managerial designs).
The botton line is this. Garci Diez, the Dominican father
that reports on the Visit to the region of Lupaca, reports with
indignation the fact that women will produce tejidos, fabric,
weaving by the request of Mallku (the supreme authority of the
region) and not receiving, to his eyes, anything more than some
food and other small recognition. Garci Diez believes that the
women should receive a salary for their work and that is what
the Spaniards will give them, instead of just food and other small
recognitions in species. But, alas, the women refused to deal with
the Spaniards, they are not interested in the salary, and will only
do the work for and when Malku asks them to do so.
Obviously, what Garci Diez reports is what he sees according to the logic of an emerging capitalist economy. He wasn´t
able to see that the other logic, the sistema de prestaciones, that
is, of communal reciprocity that govern an economy of which
he was only able to see the object, the fabric; the workers and
the time employed to produce the object; and finally the receiver
of the object, the Mallku, who was not properly rewarding the
time employed to produce the object. The Mallku, in Garci Diez’s
eyes was exploiting the women while he was trying to extract
them from that inhuman system by offering them a salary for
their work, so they will not be exploited. And yet, the women
apparently preferred to be exploited by the Mallku rather than
to be exploited by the Spaniards. Seriously speaking, they opted
for a qualitative economy of communal reciprocity instead of a
quantitative economy in which the product of labor is compensated by a salary; an economy in which the focus is on the object
and the time of labor and not an economic system that functions
according to other logic, that produces different subjectivities,
and that focuses on the well being of the community instead of
private and personal accumulation.
What happened in Huanuni is that Garci Diez view beca26
Gragoata 22.indb 26
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:25:57
Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics
me naturalized and those particular Indigenous communities,
cooperativistas and waged Indians, were both caught into Garci
Diez’s logic. And the resident of the small city of Toledo, who
told Kusch that Indians who refused the co-operativista system
were illiterate, was also already caught into the single logic of
capitalist economy.
However, the fact that Indians and Indigenous communities were converted to the capitalist system doesn’t mean that
every single Indian in the Americas has been converted. And
the other way around: the fact that Indians, in the government
of Evo Morales, and those supporting him, as well as in Ecuador
and the U.S., maintain a social organization based on communal
reciprocity and qualitative economy, doesn’t mean that every one
who is or considers himself Indian, like the resident of Toledo,
has to accept communal reciprocity as a way of living. We have
to uncouple socio-economic organization from the essentialist
qualities of the agents: a capitalist economy can be endorsed and
embraced by Indians or Afros, by peasant or by waged industrial
workers. Conversely, a communal reciprocity economy could
be endorsed by Creole and Mestizo Bolivians and by white US
or French members of the middle or high middle class ( I doubt
that any higher than that would endorse communal reciprocity
economy).
But Kusch’s doesn’t stop at the descriptive and interpretive stage of two economic systems that, even if they infected
each other through the centuries, there is still “something” that
distinguishes them. It would be, for instances, like looking at
Islam and Christianity in their mutual interaction throughout
the centuries. You could say that it is too binary for your postmodern taste; or too simplistic and dichotomous, for the same
post-modern taste. But, you see, we are already talking about two
binary systems: capitalist and communal reciprocity economies,
on the one hand, and Christianity and Islam on the other. So,
dichotomies are not onto-logical but hermeneutical. In any case,
this is not the point I want to make — just a preparation to it.
Kusch takes the next step by asking a question of surprising actuality, taking into account the situation in Venezuela
and Bolivia, and the result of the election in Ecuador, two days
ago. Kusch asks: does the indigenous system of prestaciones,
reciprocity economy, have any incidence today in South America? What would be the impact of a qualitative economy over
a quantitative economy? And he further asks, in 1963, “What is
the true meaning of the current revolutionary agitation all over
America. Will it be just a case of foreign infiltration?” (pp. 435).
He was referring to the rumors that the revolutionary agitation
was due to the Soviet and Cuban influence on Latin America,
and he knew that that was not the case. However, intellectuals
like Nina Pacari and Feliz Patzi Paco are following, from their
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 27
27
6/11/2007 14:25:57
Gragoatá
Walter D. Mignolo
own Indigenous experience, a path that Kusch dis-covered as a
philosopher out of place, by discovering the mestizo consciousness among displaced Europeans in the history of America.
So, that is the answer to the question I asked at the beginning of this section: how can a European for whom his or her
language is not Aymara and whose skin is not Black and his ancestors from Africa, engage in de-colonial thinking and advance
the de-colonial option? Well, Kusch offers a good example.
IV
More than ideology:
the conflation of populism with the left in
Latin America. Harvard
International Review,
Har vard, v. 28, n. 2,
p. 14-18, July 2006.
9
28
Gragoata 22.indb 28
The Latin-ethnics (that is, people of European descent in
South America and the Caribbean) are caught within the epistemology of modernity. Dependency theory, as stated before, as
well as the philosophy and theology of liberation, were strong
statements to fracture the homogeneity of a political economy
controlled by liberal ideologues and liberal institutions (I am
talking about the 60s), that were either too naïve to believe in
the development of the so termed underdeveloped (or Third
World) or were perfect hypocrites that were selling the ticket of
development and modernization knowing perfectly well that it
was a legally organized way to continue the pillage of regions
around the world, outside of Europe and the U.S., and that were
not under the control of the Soviet Union.
Now, during the first decade of the 21st century, the roads
to the future could be analyzed in four general directions:
One is what has been loosely called by some a “turn to the
left” (by the extreme right and the enthusiastic left), or as a “return to populism” (by neo-liberal aligned leaders like Fernando
Henrique Cardoso).9 In the first camp the names of Luiz Ignacio
Lula da Silva in Brazil, Nestor Kirchner in Argentina and Michele
Bachelet in Chile, could be loosely described as such, in spite
of their differences and in spite of their loose (if any in some
case), links with the “left,” in the Marxist meaning of the word.
In general “left” means that these governments are not always
enthusiastic and following the dictates of Washington as did
Carlos Menem in Argentina, Sánchez de Losada in Bolivia and
before them Augusto Pinochet in Chile. In this context, “Left”
means that neo-liberal and extreme right dictate are not being
followed by global designs emanating from Washington D.C.
The second is the “re-turn to the right.” The current talk
about extending the Puebla-Panama corridor (initiated by Vicente Fox) to Bogota now that Alvaro Uribe has been confirmed for
his second term in office:
From July onwards, Colombia will form part of the one-sided
geopolitical mega-project that seeks to consolidate the neoliberal model in western Latin America with the aim of privatizing highway infrastructure, public services and natural
resources. This economic and political strategy is promoted by
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:25:57
Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics
Washington via Mexico’s President Vicente Fox and counts on
the financial support of the Inter-American Development Bank
and the World Bank, while various multinational companies
are committed to its implementation. Nonetheless, the impact
President Alvaro Uribe’s announcement, that in his second
period in office Colombia will join Plan Puebla Panama, will
have in the country at every level in the immediate future has
gone unnoticed by public opinion, probably through ignorance
as to Plan Puebla Panama’s causes and consequences.10
Fernando Orellano
Ortiz. Plan Puebla Panamá. Disponible on:
< http://www.scoop.co.nz/
stories/HL0607/S00341.
htm>.
11
See Fernando Aellano
Ortiz, disponible on:
<http://www.scoop.co.nz/
stories/HL0607/S00341.
htm>.
12
See report on NeoNazis, disponible on:
<http://www.scoop.co.nz/
stories/HL0511/S00064.
htm>.
13
See Ernesto Laclau
(2005).
10
One could guess that if Bogotá joins the corridor PueblaPanama, then the corridor could be extended to Santa Cruz,
Bolivia, where it will be well received by the Nación Camba and
the Unión Radical Nacional Socialista de Bolivia.
The aim of the plan is very clear: to help multinational companies privatize ports and airports, highways, electrical energy,
water, gas, oil and, above all, to get unrestricted control of the
huge resources of biodiversity of the Lacandona forest (2), and
the Chimalapas in Oaxaca (3) in Mexico and of the Mesoamerican
Biological Corridor that reaches all the way to Panama. It has
a planned cost of US $25 billion and seeks to open up Central
America and Colombia to free trade.11 “ Nación Camba” is the
name of a right-wing movement that took the name “Camba”
from Indigenous and peasant populations. It is known as the
Separatist Movement of Bolivia and is made up of rich, white people -the URNSB (Union Radical Nacional Socialista de Bolivia)
and is one of the organizations that protect the desires of whites
in Bolivia. Both groups, with different degrees of viciousness,
use a language of liberation and sovereignty with direct and
indirect references to Nazism and the Kux Klux Klan. 12
The third orientation or direction has been traced with
distinctive strokes by Hugo Chávez, in Venezuela. For many,
Fernando Henrique Cardoso among them, Chávez is a populist;
the return to the populism of the Cold War. It will require an
extensive and detailed argument to show that this may not be
the case. Just as a hypothesis consider the following: There is
a significant, radical difference between Juan Domingo Perón
and Hugo Chávez. Perón was “a populist” following the recent
conceptualization of populism.13 However, being a “populist” is
not necessarily all that bad as liberal and right wing intellectuals
would like to portray it. For, was a “democratic” president like
Alvaro Uribe or George W. Bush preferable to a populist like
Perón? Yes and no. Since both options are within the system,
that is the political-economic system of modernity/coloniality,
neither of the options are clear-cut.
But the point here is not to discuss the pros-and-cons of
populism. Rather it is to submit (without space for arguments)
that Hugo Chávez is not only different from Perón, but quite
the opposite. Perón operated on the fetichization of the State to
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 29
29
6/11/2007 14:25:57
Gragoatá
See Arturo Escobar
(2004).
14
30
Gragoata 22.indb 30
Walter D. Mignolo
manipulate a crowd (the populus), to which he offered significant benefits (unionizing, vacations, shortening the length of
working hours, health insurance, extra-month of salary every
twelve months, etc.). All these compensations were based on
clear-cut “social class politics.” That is, based on material benefits, which, of course, were very welcomed by the workers. Hugo
Chávez operates on the basis of “identity in politics.” Chávez`s
self-description as a mestizo shall not be taken lightly. He is building on the large population of mestizos/as and mulatos/as in
Venezuela, which not by chance, happened to be the lower class.
Identity politics operates on the assumption of essential identities
among marginalized communities (for racial, gender and sexual
reasons) that deserve recognition. In general, identity politics
doesn’t engage in politics at the level of the State and remains
within the sphere of the civil society. Identity in politics, instead,
de-links from the iron cage of “political parties” as have been
set up by modern/colonial political theory and Eurocentered at
that. “La Revolución Boliviariana”, like MAS (Marcha hacia el
Socialismo), are both political projects that de-link from the Eurocentered frame of political theory and political economy and,
at the same time, that empower the de-colonization of colonized
racial subjectivities. Both projects are of course different, but they
also differ from Fidel Castro’s in Cuba. While Castro’s socialist
project in Cuba remains within the rules of the game (that is,
of changing the content but remaining within the same logic of
Western modernity), Chávez brakes away by re-inscribing the
struggle for independence carried on by Simón Bolívar. Although
for many Bolívar is not the “ideal model”, in the sense that he
contributed to the affirmation of a Creole elite of Spanish descent that turned their back on Indians, Afros, Mestizos/as and
Mulata/s, it is a history with which Chávez and Venezuela have
more in common then that with Vladimir Lenin and the Soviet
Revolution. In that sense, the connections that Chávez is looking
for with the populus that supports him and with the slogan of
“Bolivarian Revolution”, is not based on class-improvements without a common subjectivity to work at (like in the case of Perón).
Granted, there is not yet a clear formulation of the project, but
there is enough signs to believe that what Chávez is looking for
runs parallel to the de-colonial epistemic and political project
that had been advanced, in the past 10 years, by a community
of scholars, intellectuals and activists.14
While one can see in Chávez’s political and economic management (both in internal politics and international relations)
the remains of the fetichization of State power, Evo Morales
provides still a different path. The fourth path I am describing
here. The history of Bolivia in the past fifteen years, the growing
strength of the Indigenous nation (in its diversity or, if you wish,
the Indigenous nations), established a distinct mode and model
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:25:58
Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics
Enrique Dussel
(2006).
16
See Samir Amin (1990);
Sayyid Qutb (2001); Ali
Shariati (1980).
17
Indigenous intellectual do not enjoy yet
of wide circulation, because precisely the coloniality of knowledge,
t hat non-i ndigenous
intellectuals enjoys. Not
being acknowledged by
the media or the university, it doesn’t mean
that their work and intellectual production is
less meaningful in the
social fabric. It is less
recognized — certainly — by the elite that
control the market of
intellectual production.
My comments here are
based on the intellectual
and political trajectory
of Luis Macas and his
leadership in the creation of Amawtay Wasi
(Aprender en la sabiduría y el buen vivir;
Learning wisdom and
the good way of life);
on the intellectual and
political trajectory of
Nina Pacari. Recently
she has clearly expressed the epistemic and
political historical foundations of Indigenous
de-colonial projects in
Ecuador (La incidencia de la participación
política de los pueblos
Indígenas: uno camino
irreversible. Paper presented and discussed
widely during one day
section of the summer
school, organized by
the Universidad Compluten se de Madrid;
The one week workshop
was titled: pensamiento
descolonial y la emergencia de los indigenas en América Latina.
Nina Pacari questioned
head on the title of the
workshop: “En estos
últimos tiempos se habla de la emergencia
indigena. De unos seres
anclados en los museos
para el gusto colonial de
muchos, hemos pasado
a ser unos actores que
les provocamos miedo, incertidumbres o
desconfianza.” and in
15
of the political that I will describe as the de-colonial move. The
awareness among the leaders and the participants in Indigenous
claims is that power cannot be taken (as Enrique Dussel reminds
us)15 because power is not in the State but in the people politically
organized, it is loud and clear in Bolivia. By that I mean that in
Bolivia, like in any place else today in South America and the
Caribbean, the possibility that Evo Morales may not end his period as president, will not change at all the political organization
and mobilization of the Indigenous population. What counts is
not that Evo Morales was elected president (although, of course,
important), as the international media celebrated still anchored
in the old model of fetichization of power, but the radical shift
that is taking place by the inscription of identity in politics.
Identity in politics, in Bolivia, has also made clear the
rift between different versions of Marxist left and Indigenous
de-colonial projects. And that is basically what is at stake in
the “levèe éthnique”: de-colonization (a word that is of current
use in the Andes) doesn’t mean anymore that the State will be
in the hands of the local elite (which ended in “internal colonialism” in South America during the nineteenth century, and
in Asia and Africa after WWII). De-colonization, or rather decoloniality, means at once: a) unveiling the logic of coloniality
and the reproduction of the colonial matrix of power (which of
course, means a capitalist economy); and b) de-linking from the
totalitarian effects of Western categories of thoughts and subjectivity (e.g., the successful and progressive subject and blind
prisoner of consumerism). By de-linking as de-coloniality I start
and departs from Samir Amin’s introduction of the term within
a Marxist vision of a polycentric world. However, the attention
and homage that Amin paid to the work and vision of Sayyid
Qutb is a signpost that alerts us to the divergent and sovereign
projects of Marxism and Islamism, as Iranian philosopher Ali
Shariati had clearly articulated it before the Iranian Revolution.16
But Marxism cannot de-link in the sense of de-coloniality because either will no longer be Marxism or it will be a new imperial
project that absorbs, swallows, silences and represses categories
of thoughts articulated in languages and cosmologies that are not
Greek and Latin, translated into the six European and imperial
languages of Western modernity (Italian, Spanish, Portuguese,
German, English and French).
There is today a strong Indigenous intellectual community
that among many other aspects of life and politics has something
very clear: their epistemic rights and not just their right to make
economic, political and cultural claims.17 La “levée éthnique” is,
in the last analysis “a de-colonial epistemic break” that cannot
be subsumed under Michel Foucault’s narrative (Les mots et les
choses, 1966) and even less under the “paradigmatic changes” of
Thomas Khun (The Structure of Scientific Revolutions, 1970). The de-
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 31
31
6/11/2007 14:25:58
Gragoatá
Continuação nota 17:
Patzi-Paco (aymara sociologist and current
Ministro de Cultura y
Educación) and his proposal Sistema Comunal:
una propuesta alternative al sistema liberal. La
Paz: CEA, 2004. To this
core of Andean indigenous intellectuals, we
could add the influential work Decolonizing
methodologies: research
and indigenous people by Linda Tuhiwai
Smith. She is Associate Professor of Maori
Education and Director of the International
Research Institute for
Maori and Indigenous
Studies at the University of Auckland, New
Zealand. Also, the well
know work in the U.S.
of Vine Deloria, Jr., Devon Abbot Mihesuah
and Carvender Wilson.
As for the contribution
of Afro-Caribbean see
Padget Henry. Caliban’s
reason: introducing caribbean philosoph. London: Routledge, 2003
and Catherine Walsh
and Juan García for the
contribution of AfroAndean intellectuals
and activists.
32
Gragoata 22.indb 32
Walter D. Mignolo
colonial epistemic break is literally, something else. True, there
is not much written and documented for the social scientist of
the First World to “study.” Epistemic fractures are taking place
around the world and not among the Indigenous communities
in the Americas, Australia or New Zealand; it is happening
also among Afro-Andean and Afro-Caribbean activists and intellectuals. And it is most certainly also taking place, although
shaped by different local histories, among progressive Islamic
intellectuals and activists. And as far as that epistemic break is
concerned, the consequence is the retreat of “nationalism”, that
is, the ideology of the bourgeois State that managed to identify
the State with one ethnicity and, therefore, able to succeed in the
fetichization of power: if the State is identified with one nation,
then there is no difference between the power of the people and
the power in the hands of the people of the same nation in the
hands of those who represent the State. Furthermore, the people
and the State that the people and its representatives created all
operated under the same cosmology: Western political theory
from Plato and Aristotles to Machiavelli, Hobbes and Locke.
But things began to change when Indigenous people around
the world claimed their own cosmology in the organization
of the economic and the social, of education and subjectivity;
when Afro-descendents in South America and the Caribbean
followed a similar path; when Islamic and Arabic intellectuals
broke away from the magic bubble of Western religion, politics
and ethics.
This is, in a nutshell, “la versant de-colonial” (or the decolonial option) that is taking place at the global scale for the
simple reason that the logic of coloniality (that is, capitalism,
State formation, Uni-versity education, media and information
as commodity, etc.) has been and continues to be “flattening the
world” (according to the enthusiastic expression coined by Thomas Friedman, 2006). The radical shift introduced by “la versant
de-colonial” moves away, de-links from Western civilization’s
expendability of human lives and civilization of death (massive
slave trade, famines, wars, genocides and elimination of the
difference at all cost, as we have been witnessing in Iraq and
Lebanon), toward a civilization that encourages and celebrates
the reproduction of life (not of course, in terms of having or not
having rights to abortion, which I do not have time to analyze
here), but the celebration of life on the planet, including human
organisms that have been “detached” from nature in the cosmology of European modernity; cf Francis Bacon, Novum Organum,
1605).
Inter-culturality shall be understood in the context of decolonial thinking and projects. Contrary to multi-culturalism,
that was an invention of the national-State in the US to concede
“culture” while maintaining “epistemology”, inter-culturality
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:25:58
Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics
in the Andes is a concept introduced by Indigenous intellectuals to claim epistemic rights. Inter-culture, indeed, means
inter-epistemology, a tense dialogue that is the dialogue of the
future between non-Western (Aymara, Afros, Arabo-Islamic,
Hindi, Bambara, etc) and Western (Greek, Latin, Italian, Spanish,
French, German, English, Portuguese) cosmology. Here you find
precisely the reason why Western cosmology is uni-versal (in its
difference) and imperial while de-colonial thinking and epistemologies had to be pluri-versal: what non-Western languages
and cosmologies had in common is to have been forced to deal
with Western cosmology (once again, Greek, Latin and modern
imperial European languages and epistemology).
IV.
Let me advance a blue-print of the de-colonial processes
and epistemic disobedience and suggest the horizons these
acts of epistemic disobedience are opening up toward a future
beyond capital accumulation and military enforcements; beyond
post-modern and post-structuralist recasting of Eurocentered
cosmology of modernity. Notice that in my view modernity
is not a historical period of which we cannot escape, but the
narrative (e.g., the cosmology) of a historical period written by
those who felt they were their protagonist. “Modernity” was the
term in which they cast the heroic and triumphant view of the
history they were making. And that history was the history of
imperial capitalism (there were other empires which were not
capitalist) and modernity/coloniality (which is the cosmology
of the modern, imperial and capitalist empires from Spain to
England and the U.S.).
Aymara sociologist and current Minister of Culture and
Education in Bolivia, Félix Patzi Paco, advanced before his appointment by President Evo Morales, the outline of a “communal
system” in counter-distinction with the dominant “(neo) liberal
system.” I am offering here a modified version of his proposal.
Patzi starts from the assumption that socio-economic systems
with a certain degree of complexity are formed by a nucleus and
a context; or a center and a periphery, if you wish. The nucleus
or center consisted of various types of managements, economic
and political. That is, management of resources and labor, on the
one hand, and management of social distribution of resources
and labor. In the current (neo) liberal system, management of
resources and labor and management of social distribution,
we know, is geared toward accumulation of wealth, individual
(quantitative minority) appropriation of natural resources and
exploitation of labor. The nucleus is constituted, for him, by the
economic and political management. My modification here is to
include management of education in the nucleus, since education
is basic for both the formation of subjectivity and the formation
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 33
33
6/11/2007 14:25:58
Gragoatá
Walter D. Mignolo
and management of economic and political organization of
society.
Patzi Paco’s proposal should be understood in diachronic
as well as synchronic dimensions. The economic and political
systems implanted by European imperial/colonial expansions
(Spanish, Portuguese, French, British, Dutch) fractured and mutilated exiting economic and political systems in the continent
and in the Caribbean Islands. However, indigenous systems
co-existed, marginalized and fractured, with the imperial cores.
Although Patzi Paco is basically thinking from the experience
of Aymara Ayllus, it is possible to include Palenques and Kilombos formed by runaway enslaved Africans, as still another
co-existing economic and political system. Education (in the
family, schooling and advanced training), economy and politics
are different aspects of communal organization, called ayllu in
Aymara, oikos in Greek and state in modern European vernacular
and imperial languages. Thus, the analytic and the projection
toward the future follow a dialogic or pluri-logic movement.
In the first place, and historically, the communal system
of Andean economy was displaced and fractured, by the installation of an emerging system, mercantile and colonial capitalism, consisting on the appropriation of land and the massive
exploitation of labor (Indigenous and Afro-enslaved). The ayllu
survived, however, and entered in a double historical register.
Quichua lawyer, politician and activist, Nina Pacari, puts it in
this way:
nuestros mayors salvaguardaron y fortalecieron nuestras
identidades e instituciones por dos vías simultáneas: 1) la interna, radicada en la Fortaleza de los usos y costumbres, en
la recreación de los mitos y los ritos, en la reconstitución de
los pueblos y territorios, así como en la reconstrucción de la
memoria ancestral y colectiva para proyectarse en un futuro
con inclusion social que no es otra cosa que el posicionamiento
del principio de la diversidad; 2) la externa, que permitió
utilizar los mecanismos como los “alzamientos”, “levantamientos indígenas” o “revueltas” en contra del abuso y del
despojo promovido por la estructura del poder imperante
(PACARI, 2006).
Pacari mentions two simultaneous ways in which the
history of Indigenous nations had survived in co-existence and
power differentials for five hundred years. The internal and the
external, of which, only the external is more or less known by
anybody who is not Indian him or herself. The reason is simple:
the internal way is supposed to have ceased to exist since the
arrival of Christians and monarchic people and institutions,
in the sixteenth century, and by its transformation in the nineteenth century, when internal colonialism in the hands of the
Creole elite of European descent displaced the imperial elite from
34
Gragoata 22.indb 34
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:25:59
Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics
Spain and Portugal. In different shapes and shades, England
and France took over the leading role left by Spain and Portugal
and worked closely with the managerial Creole elite ruling the
new “independent” countries. The internal way in the life and
survival of Indian Nations became invisible because Indians
were supposed to have lost their souls and become Indians with
a European-type of spirit. And since histories and descriptions
of Indian Nations were written by people of European descent,
the internal way constantly escaped them. Indians in other ways
were not supposed to have a soul and that was the reason for
Christianizing, civilizing and more recently developing them.
Patzi Paco offers one of the first written descriptions and
arguments that explain the persistence of a communal system
that has always been there, but invisible, and that is coming up
in full force in Bolivia and Ecuador. The visible part was always
there; uprisings were always registered by the ruling elite because they create a problem for them; but official discourse described
it as the Indian problem. Nina Pacari, in the previous quotation,
offers a synopsis of the historical survival and struggle of Indian
Nations, a historical synopsis in which Indian political theory,
economy and epistemology are of the essence. Gone are the
days in which the beliefs that Indians have cultures and White
or Mestizo/as have theories were prevalent and looked like the
only game in town. Today, and for the foreseeable future, the
struggle is for epistemic rights, the struggle for the principles
upon which economy, politics and education will be organized,
ruled, enacted.
The communal system described by Patzi Paco is a way
toward the future, and not for Indigenous people only, but as a
blue-print for a global organization, for a world in which many
worlds will co-exist, and shall not be ruled out in the name of
simplicity and the reproduction of binary opposition. The communal system offers an alternative to both liberal and socialistcommunist systems since these last two are both Western (that
is, conceived from the experience of imperial expansion and
capital accumulation, and the corresponding political theory
and political economy, be it their liberal or Marxist-communist
versions). The communal system described by Patzi is instead
based on the historical experience of the ayllu, coexisting with
Western imperial/colonial institutions since the moment in
which the Spaniards invaded the Andes. Similar observations
could be made about the altepetl in the Anahuac region. To
make a long story short, let’s stress that a communal economic
management is not a matter of an all-powerful State (like the
communist system) or the invisible hand (like in the liberal
free trade economy). Land, cannot be owned, but only used by
the community. In the same vein, factories and technologies to
facilitate communal-social life, cannot be possessed by one or a
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 35
35
6/11/2007 14:25:59
Gragoatá
Walter D. Mignolo
few individuals who will exploit other individuals for their own
personal benefit and accumulation of wealth. In the communal
system, power is not located in the State or in the Individual (or
corporate) Proprietor but in the community. When the Zapatistas
say “to rule and to obey at the same time” they are enouncing a
basic principle of political and economic communal management
(PATZI PACO, 2004, p. 172-191).
Nina Pacari describes communal political and economic
management succinctly. The Indian philosophical concept of
Power is sustained in a basic number of vital (in the sense of
communal life) elements:
a) YACHAY, which means wisdom, the know-how and
know-that that allows Indigenous Nations to maintain-intransformation the internal way (that is, in the same way
that the West operates maintaining-in-transformation
its way of life, forms of knowledge and economic and
political management);
b) RICSINA, means knowledge, and refers to knowledge of
the complex geography of human beings in order to help
harmonious co-existence, that is, conviviality (and, I shall
say, no Derrida is needed here--for conviviality is not a
private property of French intellectuals but a common
sense of human existence);
c) USHAI, means management or planning and refers to
the know-how presupposed in every consistent execution
in the management of politics, economy and education;
that is, in socio-communal organization;
d) PACTA-PACTA, means the exercise of “democracy” not
in the bourgeois sense of the word or in its socialist
meaning, but in the sense of conviviality, equal to equal
relationship, with collective participation and social
management as it is inscribed in the memories and experiences of the ayllu (or the altepetl in the case of Mexico)
and not in the memories and experiences of the oykos;
e) MUSKUI, which could be translated as the ideal horizon
of the future, that is, utopia; a necessary concept to be
active in the process of social transformation instead of
waiting for the liberal economy or the communist State
to find a solution for the Indian Nations!
I understand the communal system and the Indian philosophical concept of Power as an alternative TO (neo) liberal and
Marxists or neo-Marxists models of society. It could, with proper
time and space, be considered in relation to Islamic and Chinese,
for example, concept of power, of political and economic management and of education (both in the sense of subject formation
and individuals trained to fulfill particular roles in the management of politics, education and economy). Although there is no
time to go in this direction, it is important to keep in mind that
36
Gragoata 22.indb 36
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:25:59
Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics
This is not the place to
go into an analysis of the
category “woman” as an
invention of Western
gender system, based on
opposition and power
differential, that mutilated and marginalized
the complementarit y
masculine-feminine in
societies and knowledge
system that were alien
to Christianity and its
Greek foundations (see
M a r í a Lugon e s a nd
Oyewumi, Oyeronke
(1997)
19
See also interview of
Nina Pacari, by Luis
Gomez, dispoble on:
<ht t p://w w w.n a rco news.com/Issue26/article543.html>.
20
Universidad Intercultural Amawtay Wasi,
disponible on: <http://
i c c i . n at i ve we b.o r g/
bolet i n/65/editor ial.
html>.
18
neither Patzi Paco nor Pacari or myself, are thinking in binary
terms. It could be that a Western trained reader may see binary
opposition for lack of experience in “seeing” the internal ways
of many nations and religious communities around the world.
A second caveat is also that a modern or postmodern sensible
reader could think that the communal system is a totalitarian
dream that is intended to re-place the dominant neo-liberal model
and the utopian dominant alternative, the communist-socialist
system. If that were the case, the communal system will not be
a de-colonial proposal, but another modern proposal disguised
under de-colonial thinking. De-colonial thinking rejects, from
the very beginning, any possibility of new abstract uni-versals
that will replace existing ones (liberals and its neos, Marxist and
its neos, Christians and its neos or Islamic and its neos). The era
of abstract uni-versal is over. The future that will prevent the
self-extermination of life on the planet shall be pluri-versality
as a uni-versal project. And to that MUSKUI is that the very
conception of the communal system and the Indian philosophy
of power is pointing.
Nina Pacari offers a blue-print to think and act in that direction, that is, a blue-print of de-colonial thinking. Recognizing
the actual moment of affirmation of Indian identities, that is,
the consolidation of the internal way, she mentions four general
principles upon which political empowerment is being enacted
and moving forward:
a) Proportionality-Solidarity, is the principle that guides
the political (e.g., political thinking) toward the benefit
of those who have less. The political impinges here in
the oyko-nomy (or, to invent a neologism, on ayllu-nomy),
that is, in a political economy that administrates scarcity
rather than celebrating accumulation;
b) Complementarity, refers to production and distribution that contemplate the well- being of the community
and not the accumulation and well- being of an elite. It
means, in other words, conviviality in the harmonious
complementarity of opposing elements. For instance, Sun
and Moon (masculine and feminine) are not opposed by
power relations, but two halves of a unit; a unit without
which the generation of life is not possible;18
c) Reciprocity, it is expressed in the institution called “minga”, which means cooperative work for improvement.19
To give and to receive, the principle of reciprocity is the
both rights and obligations of every one;
d) Correspondence, simply means the sharing of responsibilities (Pacari, 2006, p. 9-10);
Management of the economic and political spheres, as
summarized above, goes hand in hand with the management of
education Amawtay Wasi.20 Under the leadership of Luis Macas,
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 37
37
6/11/2007 14:25:59
Gragoatá
S e e “La proye cc ión mult icult ural del
Ecuador, comentarios
del Dr. Luis Macas”,
disponible on: <http://
w w w. m m r r e e . g o v.
ec/mre/documentos/
m i n i s t e r i o/p l a n e x/
comen _ponencias_6.
pdf#search=%22luis%20
macas%20amawtay%20
wasi%22>; Catherine
Walsh, “Geopolíticas del
conocimiento, interculturalidad y descolonización”, disponible on:
<http://icci.nativeweb.
org/boletin/60/walsh.
html>.
22
On the privilege of
whiteness see for inst a n ce t he fol low i ng
interview, disponible
on: <http://www.lipmagazine.org/articles/
featbrasel_145.shtml>.
21
38
Gragoata 22.indb 38
Walter D. Mignolo
Amawtay Wasi is a uni-versity that in reality is a pluri-versity
organized according to the cosmology and wisdom (epistemology) of the Indigenous people and nations.21 In that regard, it
de-links and departs from the Renaissance university and the
Kantian-Humboldtian which, directly or indirectly, contributed
to the coloniality of knowledge and of being. “Learning to be”
is one of the goals of Amawtay Wasi, that is, the de-coloniality
of being. The method for such a goal is “learning to unlearn in
order to re-learn.” Re-learn what? I offered a highlight through
the proposals advanced by Nina Pacari and Patzi Paco. Amaway
Wasi complements the management of the economic and political spheres of the communal system, but work on de-colonizing
subjectivities (e.g., the affirmation and empowerment of which
Nina Pacari refers in her article quoted above).
I hope, first, that my argument here was not only a report
on de-coloniality, de-colonial projects and de-linking from a
neutral and scientific scholarly perspective, but that my own
discourse, here, is part of the wide and global de-colonial orientation (versant) in thinking and acting. And, secondly, I hope
also to have made clear that the de-colonial option demands to
be epistemically disobedient. In that respect, identity in politics and
that identity in politics is not a question of affirmative action
and multiculturalism in the U.S.—that, affirmative action and
multiculturalism is identity politics which has its good and bad
sides. The good side is that it contributes to make visible the
identity politics hidden under the privileges of Whiteness and
the bad side is that it can lead to fundamentalist and essentialist
arguments.22 In South America and the Caribbean, we know,
the privileges of Whiteness are grounded in the histories and
memories of people of European descent that carried with them
the weight of certain ways of managing politics, economy and
education. That privilege, if it is not over, is being unveiled. The
road to the future is and will continue to be, the epistemic line,
that is, de-colonial thinking as the option offered by communities that have been deprived of their “souls” that is of their
way of thinking and of knowing. What we are witnessing in
the Andes today is no longer a “turn to the left” within the Eurocentered ways of knowing, but a de-linking and the opening
to de-colonial options. That is, we are witnessing an act of epistemic disobedience that touches on the state and the economy. This is
nothing less that the challenge the government of Evo Morales
is putting in front of us.
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:25:59
Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics
Abstract
Two interrelated theses sustain the argument. First, identity IN politics (rather
than identity politics) is a necessary course
of thought and action in view of the iron
cage of modern (e.g., European from Machiavelli on) political theory. Insofar as
modern political theory is—knowingly or
not—racist and patriarchal by denying
political agency to people classified as inferior (in terms of race, gender, sexuality,
etc.), and insofar as they have been denied
epistemic agency for the same reason (the
second thesis), all de-colonial political
moves (non-racist and non-heterosexually
patriarchal) must engage in epistemic and
political disobedience. “Civil disobedience,” as predicated by Mahatma Ghandi and
Martin Luther King, Jr. were great moves
indeed. But, civil without epistemic disobedience will remain caught in games ruled
by Eurocentric political economy and political theory. Both theses are pillars of the
de-colonial option. Thus, the de-colonial
option allows us to think in terms of the
variegated spectrum of the Marxist left and
— on the other hand — of the variegated
spectrum of the de-colonial left.
Keywords: de-colonial option; epistemic
disobedience; political disobedience
References
AMIN, Samir Delinking: Towards a Polycentric World. Translated
from French by Michael Wolfers, New York: Zed Books; 1990;
BERGSON, Henri. Creative Evolution, translated by Arthur Mitchell, Ph.D. New York: Henry Holt and Company, 1911.
CUGOANO, Quobna Ottobah. [1786] Thougts and Sentiments of the
Evil of Slavery. Edited with an introduction and nots by Vicent
Carreta. London: Penguin Books, 1999.
DUSSEL,Enrique. 20 Tesis de Politica, Mexico: Siglo VXI, 2006
Introduction and notes by Vicent Carreta. London: Penguin
Books, 1999.
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 39
39
6/11/2007 14:26:00
Gragoatá
Walter D. Mignolo
ESCOBAR, Arturo. Beyond the Third World. Third World Quarterly, London, v. 25, n. 1, p. 207-230, Feb. 2004. Disponível em:
<http://www.nd.edu/~druccio/Escobar.pdf#search=%22escobar%20
worlds%20and%20knowledges%20otherwise%22>.
FANON, Frantz . Les damnés de la terre. Paris: Maspéro, 1961.
FRIEDMAN, Thomas. The World is Flat. A Brief History of the twentieth First Century. New York: Farrar, Strauss and Giroux, 2006.
HOBSBAWM, Eric. “Barbarism: A User’s Guide” New Left Review, I/206, 1994
LACLAU, Ernesto. La razón populista. Buenos Aires: Fondo de
Cultura Económica, 2005.
LUGONES, María. “Heterosexualism and the colonial/ modern,
gender system”, Hypatia, forthcoming.
MIGNOLO, Walter D. TLOSTANOVA, Madina V. Thinking From
the Borders; Shifting to the Geo- and Body-Politics of Knowledge.
European Journal of Social Theory, . 9/2. 2006, p. 205-222.
MIHESUAH, Devon Abbot. Indigenous American Women: Decolonization, Empowerment and Activism. Tucson: Bison Books, 2003.
OYEWUMI, Oyeronke. The Invention of Women. Making an African Sense of Western Gender Discourses. Minneapolis: University
of Minnesota Press. 1997;
QUTB, Sayyid Social Justice in Islam,. New York: Islamic Publications International, 2001.
PACARI, Nina. La incidencia de la participación política de los
pueblos Indígenas: Un cambio irreversible. Ponencia presentada
y discutida en el Seminario de Verano, “El Pensamiento Descolonial”, organizado por la Universidad Complutense de Madrid,
El Escorial, Julio 24-29, 2006.
PADGET, Henry. Caliban’s Reason, Introducing Caribbean Philosoph, London: Routledge, 2003
PATZI PACO, Felix. Sistema Comunal. Una propuesta alternative al
sistema liberal. La Paz: CEA, 2004.
PUMA De AYALA, Waman. Nueva Corónica y Buen Govierno
[1516] Edited by John Murra and Rolena Adorno, México: Fondo
de Cultura Económica, 1982.
QUIJANO, Anibal “Colonialidad y modernidad/racionalidad”.
En Los conquistados. 1492 y la población indígena de las Américas . In
Heraclio Bonilla, compilador. Quito: Tercer Mundo-Libri Mundi
Editors, 1992, 447.
SHARIATI,Ali. Marxism and Other Western Fallacies. An Islamic
Critique. New York: Mizan PR, 1980.
SMITH, Linda Tuhiwai. Decolonizing Methodologies. Research
and Indigenous Peoples London and New York: Zed Books Ltd.,
1999.
40
Gragoata 22.indb 40
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:00
Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics
TLOSTANOVA, Madina. “Imperial discourse and post-utopian
peripheries: ‘suspended’ indigenous epistemologies in the Soviet
non-European (ex) colonies”, in Desarollo e Interculturalidad, Imaginario y Diferencia: La Nación en el Mundo Andino, 14 Conferencia Internacional de L’Academie de la Latinité, Quito, Ecuador,
(Textos de referencia, 2006. p. 296-332
Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 41
41
6/11/2007 14:26:00
Gragoata 22.indb 42
6/11/2007 14:26:00
O arquivo e o presente*
Raúl Antelo
Recebido 10, jan. 2007/Aprovado 20, mar. 2007
Resumo
O modernismo latino-americano é um fluxo
histórico com momentos de intensidade, lacunas, períodos de arrebatada agitação e ruptura
dissidente. Reconstruir seu arquivo não significa
procurar sua origem mas escolher, identificar e
analisar aqueles momentos preteridos pela autonomia modernista. O efeito barroco, o assim
chamado néo-barroco latino-americano dos anos
70, vincula-se diretamente com uma sorte de
momento pré-póstero dessa história.
Palavras chave: arquivo; autonomia; neo-
barroco; diáspora
Neste artigo, excepcionalmente, as notas de
texto, por serem extensas, aparecem no final.
*
Gragoatá
Gragoata 22.indb 43
Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:00
Gragoatá
Raúl Antelo
Arquivo e memória
Uma reflexão sobre arquivo e memória nos obriga a repensar, mais uma vez, a política do tempo e as alianças anacrônicas
da crítica cultural1. Tive a ocasião de desenvolver, em um seminário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em dezembro
de 2005, a hipótese de que, no tocante à arqueologia, um dos
fantasmas que ameaçam a tarefa de leitura é a ilusão tautológica.
Ela consiste em julgar, simplesmente, que o texto conservado
no arquivo diz o que diz e que nele vemos o que se vê. A ilusão
tautológica é uma ilusão de sincronia. Ela poderia ser resumida
com a fórmula de Didi-Huberman: o que vemos não nos olha,
o que lemos, não nos lê. Nada mais ilusório, portanto, do que
a constatação meramente referencial, porque um texto achado
num arquivo sempre postula um para além da significação e
um maior ou menor anacronismo, de tal forma que sua leitura
propõe uma relação indiciária de contigüidade e causalidade
entre o signo e seu objeto, isto é, uma relação, simultaneamente,
das mais diretas, mas, também, das mais diferidas possíveis,
entre essas duas instâncias. Todo enunciado lido no arquivo é,
literalmente, uma transposição, uma tradução, o vestígio de um
corpo ausente que tocou essa matéria (uma página, a tela). Sua
compreensão inscreve-se, portanto, na lógica da literatura mas
também fora dela, na da fotografia. Com efeito, a extremamente
complexa técnica de leitura de um texto arquivado implica, ao
mesmo tempo, a presença de uma tela que sirva de suporte para
a inscrição (o documento, o recorte de jornal), assim como a projeção (que poderíamos assimilar ao punctum, pelo deslocamento
anamnésico), uma projeção originada (a memória como técnica
mas também como matéria e, ainda, como foco de uma operação de atribuição de sentido), projeção essa de uma matéria (a
linguagem), que, simultaneamente, inscreve, fixa e oblitera um
sentido. O resultado parece ser, então, uma sombra conduzida,
uma fantasmagoria em negativo, um volume oco, esvaziado, uma
materialidade não construída, mas obtida por subtração, por
preservação de um espaço virgem, que corresponde a uma zona
muito indeterminada, até então recoberta, de maneira asfixiante, pela onipresença do referente. Essa definição da arte, ou da
leitura do documento no arquivo, que o avalia como traço, como
transposição, ou como vestígio de algo desaparecido que esteve
ali é, em suma, uma forma de apoiar o sentido em um Eterno
Retorno da verdade, gesto que tem uma clara conotação dissidente com relação ao presente e à própria presença do sentido
materializado nas coisas. O fundamento do sentido não passa,
portanto, de non-sense.
Essa análise nos leva à segunda ilusão implicada no arquivo: a ilusão na crença. Ela consiste em encontrar modos de
contornar a angústia que provoca o vazio de significação, ultra44
Gragoata 22.indb 44
Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:00
O arquivo e o presente
passar a questão, colocar-se para além da cisão aberta por aquilo
que, enquanto o lemos, devassa-nos. Chamamos esta ilusão de
ilusão na crença porque, tal como a outra, ela é uma manifestação
de horror vacui, porém, ali onde a primeira satura o sentido com
referencialidade significante, esta segunda postula a transcendência como um para além da verificação documental. Admitindo, portanto, que, em toda operação de leitura, nos arquivos e
acervos de escritores, há metamorfose e há transformação, somos
levados a concluir que essa transformação deriva do próprio
material que ali se acumula. No caso da pintura, ela deriva dos
pigmentos (isto é, da terra) que, transfigurada, se aplica à tela,
às madeiras ou aos papéis, para figurar o objeto perdido. No
caso da literatura, ela provém da linguagem, sua disseminação
como poeira da vida, com a qual se armam as ficções axiológicas
do presente.
Ora, assim raciocinando, a modernidade dos arquivos não
estaria pois na memória (na matéria) por eles acumulada mas
residiria, entretanto, nesse esquecimento do sentido simbólico
dos materiais, trate-se dos pigmentos ou da linguagem, através
dos quais conseguimos, finalmente, ter acesso à decadência e à
diferença. A partir de um conceito de Reinaldo Marques, propus, então, naquela ocasião, denominar o trabalho de leitura dos
documentos de um arquivo como uma operação an-arquivista. E,
a partir dessa definição, foi possível compreender, mais claramente, o paradoxo apontado por Jean Clair, em seu diagnóstico
de arquivos e museus. Esses espaços, longe de serem repositórios
de humanismo, representam o que, na cultura ocidental, há de
mais inumano, o que ela não cessa de esquecer: a singularidade2.
O arquivista ou o curador, geralmente funcionários do clero secular com que o Estado celebra o culto de sua própria imagem,
de tudo entendem, porque nada discriminam, de modo tal que
tudo, absolutamente tudo, vai parar no arquivo. Tudo aquilo
que em vida pertencera ao escritor arquivado, torna-se assim
sua mais-vida. A memória do arquivo não passa, pois, de ser a
mais-vida da linguagem, seu gozo. Por isso, por tudo acolherem,
esses funcionários ressalvam a lei patrimonial pública, mas é a
partir dos seus paradoxos (e não de suas coerências, meramente
imaginárias) que a economia do arquivo se constitui e deve ser
analisada.
O barroco e as escrituras do presente
Isto posto, caberia resumir, ainda que muito brevemente, a
proposta de pesquisa em que me encontro trabalhando no momento. Ela parte, a rigor, de um estado do debate sobre a ficção
contemporânea na América Latina. Com efeito, tenho verificado,
em vários colegas, a tentativa de dar conta de uma estética do
presente — e da presença — em termos bastante diferentes daqueles que nos eram familiares nos anos 80. Em artigo recente,
Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 45
45
6/11/2007 14:26:01
Gragoatá
Raúl Antelo
“Sujetos y tecnologia. La novela después de la historia”, Beatriz
Sarlo argumentava, por exemplo, que, se a história iminente,
obliterada pelos arquivos, era a obsessão crítica dos anos oitenta,
o presente é, tautologicamente, o tempo da literatura que se está
escrevendo precisamente hoje. Porém, esse presente não é mais
um enigma modernista mas um cenário a ser representado: “si la
novela de los 80 fue interpretativa, una línea visible de la novela
actual es etnográfica” (SARLO, 2006, p. 2)3.
Embora Sarlo tente não absolutizar os dois extremos e
irrite-se só de pensar em listas de duas colunas, com textos interpretativos ou etnográficos enfrentados entre si, ela também
considera que as interpretações do passado já não são mais
relevantes para a nova escritura, por apostarem a um todo, a
um conjunto comunitário e que, pelo contrário, na atual posição
etnográfica, prevalece a singularidade ou a particularidade absoluta. O exemplo, como é óbvio, são alguns textos de César Aira,
figura até então, sintomaticamente, ausente em sua reflexão. São
textos em que a imaginação etnográfica opera uma reconstrução
mais conjuntural do presente, embora, a bem da verdade, assim
raciocinando, Sarlo leve água ao moinho Aira = dândi = moderno, tese que, em poucas palavras, contesta o valor contingente
do presente para hipostasiar a eterna presença do moderno. Seja
como for, essa estética do abandono opõe-se à clássica narrativa
moderna, em suas duas principais variantes, tanto “la cerrada,
que implica una representación de totalidad y un mundo social
de personajes”, quanto “la abierta, que debilita la trama como
señal de la dilución de las historias y de los caracteres” e em que
“el personaje se convierte en una fluctuante duración de notas
subjetivas y verbales”. E define, então:
El abandono de la trama, en cambio, refuta la pericia formal,
una vez que se ha mostrado que puede ejercérsela; y también
refuta el verosímil sostenido por cualquier paradigma de
historia. La trama, simplemente, describe una elipsis que la
aleja cada vez más de los desenlaces posibles al principio, y
cae, invalidando la idea misma de un desenlace acordado con
el comienzo de la ficción. Al caer, la trama señala la ilusión de
cualquier verosimilitud que podría haberse construido en el
comienzo; desautoriza, de atrás hacia delante, lo que se ha venido leyendo. Como si se dijera: donde todo puede pasar, se pone
en duda lo que pasó antes de que la trama cayera. La novela
muestra una especie de cansancio del narrador con su propia
trama, que es un cansancio (contemporáneo) de la ficción. Aun
en sus obras más “etnográficas”, Puig no abandonó la trama,
porque ella era una dimensión central de lo que prometía a sus
lectores, pero también de la forma en que se planteaba para
sí mismo la novela. Disuelta por abandono, la trama fuerza a
la ficción dentro de una lógica donde todo puede ser posible,
que se distancia de una historia “interpretable” y cuestiona
la idea de que exista un orden de los “hechos” de la ficción,
así como la de un personaje que se mantenga de principio a
46
Gragoata 22.indb 46
Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:01
O arquivo e o presente
fin, cambiando sólo dentro de las posibilidades que quedan
marcadas en el comienzo (como sucede con los personajes modernos). Probablemente no haya una impugnación más severa
de la ilusión representativa que el abandono de la trama en el
desenlace (SARLO, 2006, p.3-4).
Trata-se, a seu ver, de relatos que giram em torno de algumas idéias antecipadas pelo alto modernismo. Em primeiro
lugar, a de que a originalidade não é, a rigor, um valor. A seguir,
a noção de que a subjetividade não é mesmo expressão, ela é,
fundamentalmente, construção e, por último, a de que, nesses
relatos, o narrador, consciente de que o real nunca é suficientemente real, nem no plano da ação nem mesmo no fluxo da
história, chega, enfim, à conclusão de que a arte também não
se sente suficientemente artística no plano da dicção e, assim,
essa literatura do presente acaba por revelar uma incontida
paixão do real4, (BADIOU, 2005, p. 75-76) através de um desdobramento, sem fundador nem origem, que, legitimamente,
pretende aspirar à condição de catástrofe discursiva, sem dentro,
nem fora, colocando-se como um estranho a ambas as esferas,
simultaneamente. É, portanto, a partir do vazio, em que o presente pode ser, precariamente, figurado, que poderíamos falar
dessa estética como uma estética do vazio. Nela a obra de arte já
não é a portadora ou produtora de uma verdade enigmática mas
a organização significante de uma alteridade radical extra- ou
hiper-significante (RECALCATI, 2006, p.12). Trata-se de uma
estética em que o modelo teórico também não é mais aplicado
à arte, como, ingenuamente, ouvíamos nos anos 60, mas uma
estética em que a teoria está implicada na arte e dela, justamente,
a derivamos.
De maneira menos melancólica do que Sarlo, Josefina
Ludmer também nos propôs, recentemente, um outro modo de
pensar essas escrituras do presente. Ludmer prefere vê-las como
“literaturas pós-autonômicas”. A seu ver, tais escrituras
no admiten lecturas literarias; esto quiere decir que no se sabe
o no importa si son buenas o malas, o si son o no son literatura.
Y tampoco se sabe o no importa si son realidad o ficción. Se
instalan en un régimen de significación ambivalente y ese es
precisamente su sentido.(...) Muchas escrituras del presente
atraviesan la frontera de la literatura y quedan afuera y adentro, como en posición diaspórica: afuera pero atrapadas en su
interior. Como si estuvieran ‘en éxodo’. Siguen apareciendo
como literatura y tienen el formato libro (...) conservan el
nombre del autor (......) y se incluyen en algún género literario
como ‘novela’, por ejemplo. Siguen apareciendo de ese modo
pero se sitúan en la era del fin de la autonomía del arte y por
lo tanto no se dejan leer estéticamente. Aparecen como literatura pero no se las puede leer con criterios o con categorías
literarias (específicas de la literatura) como autor, obra, estilo,
escritura, texto, y sentido. Y por lo tanto es imposible darles
un ‘valor literario’: ya no habría para esas escrituras buena o
Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 47
47
6/11/2007 14:26:01
Gragoatá
Raúl Antelo
mala literatura. Estas escrituras aplican a ‘la literatura’ una
drástica operación de vaciamiento: el sentido queda sin densidad, sin paradoja, sin indecidibilidad, y es ocupado totalmente
por la ambivalencia: son y no son literatura al mismo tiempo,
son buenas y malas, son ficción y realidad. Quedaría el ejercicio del puro poder de juzgar [o decidir] qué son, o también
suspender el juicio, o dejar operar la ambivalencia (...). Estas
escrituras, entonces, pedirían, y a la vez suspenderían, el poder
de juzgarlas como ‘literatura’. Podríamos llamarlas escrituras
o literaturas postautónomas; son constituyentes de presente
(LUDMER, 2006)
Para Ludmer, essas escrituras abandonam a literatura e
penetram na realidade tomando a forma de escrituras do real,
de tal forma, diríamos, que ativam aqueles mesmos mecanismos
apontados acima em relação ao arquivo. Poderíamos também
pensar a questão da seguinte forma: enquanto houve autonomia
literária, o modelo da acumulação foi bibliotecário (organizado,
hierárquico). Sob a pós-autonomia, porém, a acumulação obedece à lógica do arquivo e o conjunto é, fatalmente, arbitrário e
anárquico.
Ahora, en las literaturas posautónomas [‘ante’ la imagen como
ley] todo es “realidad” y esa es una de sus políticas. Pero no
la realidad referencial y verosímil del pensamiento realista y
de su historia desarrollista [la realidad separada de la ficción],
sino la realidadficción producida y construida por los medios,
las tecnologías y las ciencias. Una realidad que es un tejido de
palabras e imágenes de diferentes velocidades y densidades,
interiores-exteriores al sujeto (que es privadopúblico). Esa
realidadficción tiene grados diferentes e incluye el acontecimiento pero también lo virtual, lo potencial, lo mágico y lo
fantasmático; es una realidad que no quiere ser representada
o a la que corresponde otra categoría de representación (LUDMER, 2006)
Nesse sentido, ao perder, voluntariamente, especificidade
e atributos literários, ao perder o valor literário, enfim, a literatura pós-autonômica perderia também o antigo poder crítico, a
potência emancipatória e até mesmo a revolta subversiva, que
a autonomia lhe atribuíra à literatura, como sua política mais
própria e específica.
Las literaturas postautónomas del presente saldrían de ‘la literatura’, atravesarían la frontera, y entrarían en un medio [en
una materia] real-virtual, sin afueras, la imaginación pública:
en todo lo que se produce y circula y nos penetra y es social
y privado y público y ‘real’. Es decir, entrarían en un tipo de
materia donde no hay ‘índice de realidad’ o ‘de ficción’ y que
construye presente y realidadficción. Y por lo tanto se regirían
por otra episteme. Y lo que contarían en la imaginación pública
sería una pura experiencia verbal [de la lengua: la lengua se
hace en ellas recurso natural e industria] subjetivapública de
la realidadficción del presente en una isla urbana latinoamericana (LUDMER, 2006)
48
Gragoata 22.indb 48
Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:01
O arquivo e o presente
Em função de diagnósticos como esses, para os quais
toda linguagem opera, afinal, como um arquivo, cujo sentido,
em última análise, deriva da própria ausência de sentido, uma
das vertentes que me parece colaborar na formulação de uma
memória do modernismo latino-americano5 consiste na revisitação
do arquivo para dele extrair linguagens até agora obliteradas.
É, dentre outros, a alternativa de Roberto González Echevarria
(2000). A minha hipótese, bem mais modesta, é relativamente
simples. A hegemonia da literatura autonomizada, através do
formalismo e do funcionalismo, consolidados depois de 1930,
ocultou de nossa apreciação as experiências de fusão barroca,
néo-colonial ou primitivo-vanguardistas, já muito sólidas nos
anos 20, porém expulsas, daí em diante, do campo artístico,
como sinônimas do feio, kitsch, abjeto, não-emancipatório... Só
bem recentemente, com a dissolução da autonomia, é que tería­
mos podido compreender a singularidade de muitas dessas
experiências, ora chamadas de néo-barrocas, mas que, no entanto,
sempre estiveram aí. Nós é que não tínhamos categorias para
analisá-las e conseqüentemente, avaliá-las.
A imagem como resto da autonomia
Interessam-me, particularmente, as opções de alguns intelectuais derrotados pela história funcionalista do modernismo,
movimento que tortura e reprime essa experiência melancólica
(vingativa, restauradora) de comparação entre o pré-moderno e o
moderno, experiência essa muito presente entre os pré-pósteros
(ou hiper-modernos), e que o modernismo autonomizado exclui,
peremptoriamente, da sua agenda. E dentre eles, os arquitetos.
Penso, por exemplo, em gente como Martín Noel, o autor de
Teoria estética de la arquitectura virreinal (1932). Noel é uma figura
decisiva nos desdobramentos da vanguarda no Prata. Sabemos
que os artistas agrupados pela revista Martín Fierro praticavam
um paradoxal criollismo urbano de vanguardia (Sarlo) que, de fato,
esfacela-se pouco antes da reeleição do presidente Yrigoyen e
do golpe militar de 1930. Noel empenhou-se, ativamente, em
agregar as forças sincréticas e vanguardistas numa nova revista
de sintomático título, Síntesis, e nela entregou as resenhas bibliográficas a um jovem yrigoyenista, Borges. Nessas resenhas,
o autor de El tamaño de mi esperanza publica quase a mesma
quantidade de textos, dezenove ao todo, que, anteriormente o
destacaram dentre os colaboradores da Martín Fierro. Porém, os
textos de Síntesis têm merecido menor atenção da crítica. São, de
fato, textos fusionais ou diaspóricos6. São uma ampla “Indagación
de la palabra”, ou notas sobre Cansinos, Pirandello ou Saenz
Hayes. Incluem resenhas de Reloj de sal de Alfonso Reyes, do livro
de Carlos Octavio Bunge sobre Sarmiento, ou da antologia da
nova poesia de Pedro J. Vignale e César Tiempo, sem esquecer
dos livros de poetas amigos, como Alberto Hidalgo, González
Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 49
49
6/11/2007 14:26:02
Gragoatá
Raúl Antelo
Lanuza ou Norah Lange, ou ainda jovens poetas uruguaios,
igualmente próximos, como Welker ou Alfredo Mario Ferreiro.
São textos sobre o Idioma nacional rioplatense de Vicente Rossi
ou até mesmo “Séneca en las orillas”, sua abertura à poética
formalista-regional, simultaneamente publicada também pela
revista Sur, que se complementa, ainda, com o emblemático “La
duración del infierno”, em que Borges aborda a contingência do
eterno, a política do anacronismo.
Outro dos arquitetos que merecem exame é Mario José
Buschiazzo, autor da Historia del Arte Hispanoamericano (19451956), editada pela Salvat de Barcelona. Em obras como os Estudios de arquitectura colonial hispanoamericana (1944), De la cabaña
al rascacielos (1945), ou na Historia de la Arquitectura colonial en
Iberoamérica (1961), Buschiazzo, a partir desse confronto entre o
modernismo e o pré-modernismo, reivindica a figura soterológica do artista diaspórico, o Aleijadinho, que, sem ter saído de
Minas, conseguiu incorporar influências orientais7. O dado, não
menor, também nos alerta para a dimensão supra-nacional dessas abordagens. Mas, provavelmente, a figura mais interessante
dos arquitetos néo-coloniais, seja Ángel Guido. Sob o olhar de
Martín Noel, e antes dele, de Ricardo Rojas, Guido defendera a
Fusión hispano-indígena en la arquitectura colonial (1925), aprofundando, a seguir, algumas de suas premissas metodológicas em
Arquitectura hispanoamericana a través de Wölfflin (1927). Em 1931,
Guido analisa, de maneira muito pioneira, antes mesmo do que
Mário de Andrade, a obra de Aleijadinho, chamando o barroco
baiano de tropicalismo, e nele destacando a potência criadora
da Euríndia (GUIDO, 1930)8. Para Guido, o Aleijadinho era o
símbolo do artista pautado pelo desejo de salvação, que assim se
transformava em fundador de uma tradição.
Um ano mais tarde, em 1932, o arquiteto Guido desenvolvia
um curso sobre Arqueologia y estética de la arquitectura criolla (no
mesmo local, aliás, em que o financiador da Escola de Frankfurt, Felix Weil, divulgava as premissas de ocidentalização da
economia, e para o mesmo público, seja dito de passagem, que,
em 1952, ouviria de Borges a mesma tese antropofágica, a de
“El escritor argentino y la tradición universal”). Defendendo a
teoria do háptico-óptico de Riegl, aclimatada por Wölfflin, Guido
pretendia, tanto quanto os surrealistas, seus contemporâneos,
captar uma nova idade de ouro, uma reunião da vanguarda com a
história e o mito, “enderezándose hacia la reconquista del hombre
auténticamente americano y a la reconquista de la tierra”. Admite,
então, que “una de sus más certeras imágenes tutelares” (GUIDO,
1937, p. 504) não era senão o Aleijadinho. Para precipitar essa
“dramática cruzada” da arte americana, o arquiteto de Rosario
publica, a seguir, em 1940, Redescubrimiento de América en el arte
(GUIDO, 1940), ensaio definitivo, a partir do qual, precisamente,
Lezama Lima tomaria não só as análises da obra diaspórica do
50
Gragoata 22.indb 50
Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:02
O arquivo e o presente
Aleijadinho, mas também um conceito chave para sua teoria
acerca de La expresión americana: o conceito de contraconquista,
que, com os correlatos de reconquista e cruzada, vinha sendo
elaborado por Guido desde 1931. (Cabe, ainda, assinalar que as
análises contrastivas entre o Aleijadinho e Kondori, antes de
serem de Lezama, são também de Guido, nesse Redescubrimiento
de 1940, e que a primeira descrição da igreja de San Lorenzo
de Potosí foi feita pelo já citado Pedro Juan Vignale, a partir de
uma expedição organizada por Martín Noel. Ambos os autores,
Noel e Guido, reuniriam esses esforços nos dois grossos volumes
de La arquitectura mestiza en las riberas del Titikaca, publicação da
Academia Nacional de Bellas Artes, na série Documentos de arte
colonial sudamericano, em 1952-1956).
Isto posto, de que modo resgatar essa estética, violenta e
torturada, no arquivo ficcional latino-americano para além do
historicismo? Dou um mínimo exemplo. Em 1956, Beatriz Guido
publica e, logo em seguida, roteiriza La casa del ángel, um filme de
Leopoldo Torre Nilsson, que, por sinal, já abordara a vingança
feminina em Dias de ódio (1954), uma versão de “Emma Zunz”,
o conto de Borges. Gonzalo Aguilar afirma que essa é a obra de
Nilsson em que a temporalidade está mais cindida entre o presente do relato da protagonista e o passado do flash-back narrativo, “tal vez porque es la más cercana a la caída del peronismo,
tal vez porque la modernidad no se anunció todavía en el horizonte”. Nesse sentido, diz o crítico, “el presente es el momento
no-narrativo, aprisionado por la repetición y el rito vacío (...); y
el pasado es la genealogía de ese presente inmóvil. Mientras lo
pre-moderno se desarrolla con dramaticidad y cierta progresión
narrativa, el presente se encuentra estancado en la repetición”.
Uma das questões técnicas mais relevantes no filme, no entanto,
é o abandono, no plano musical, da síncrese, em benefício do que
poderíamos chamar de anácrise ou anacruse, graças à partitura
de Juan Carlos Paz, divulgador das idéias de John Cage9.
Dois anos depois desse filme, Beatriz Guido empreeende
uma alegoria narrativa do país que acaba, justamente, em 1945,
com o peronismo: Fin de fiesta. O texto abre-se, ilustrativamente,
com duas epígrafes. Na primeira, Borges traça uma ambivalente
cena de zoé. É a estrofe final de um poema de Luna de enfrente, “El
general Quiroga va en coche al muere”, e diz: “Ya muerto, ya de
pie, ya inmortal, ya fantasma, / se presentó al infierno que Dios
le había marcado, / y a sus órdenes iban, rotas y desangradas, /
las ánimas en pena de hombres y caballos”. Na segunda, Angel
Guido, pai da autora, fixa uma premissa da estética violenta da
América Latina, chamando o continente — com uma fórmula
digna de Alejo Carpentier — “novela de novelistas”. Ambas
as apropriações do arquivo latino-americano colocam Beatriz
Guido nesse limiar tão ambivalente em que encontramos gente
como o próprio Carpentier ou Glauber Rocha10. Em poucas paNiterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 51
51
6/11/2007 14:26:02
Gragoatá
Raúl Antelo
lavras, esses exemplos nos mostram que, contra a autonomia,
valor supremo para o grupo Sur, os diaspóricos da fusão contrareformista tendem a pensar a cultura, a partir da imagem, como
pathos. É dessa vertente que se obtêm alguns filmes de Glauber,
como o projetado América Nuestra (que forneceria subsídios para
Terra em transe, também de 1967, e A Idade da Terrra, de 1979) ou o
posterior e censurado História do Brasil (1971-4), filmado de fato a
partir de arquivos cinematográficos, em Roma e Havana11.
(Não é ocioso sublinhar que Nilsson, esteticamente um
bastardo, um in-fans, constrói La casa del ángel a partir do relato
de sua mulher. Ela, por sua vez, que dedica a obra “a mi padre”,
denuncia, no romance, a opressão da protagonista no interior da
casa paterna, a casa de um político conservador. La casa del ángel
é também la casa de Ángel (Guido). Essa será, de algum modo,
a casa do casal: a produtora dos filmes de ambos chamar-se-á,
sintomaticamente, Producciones Ángel. Mais recentemente, em
1998, o filho de Nilsson, o cineasta Pablo Torre, filmou uma outra
história, quase homônima, La cara del ángel, em que a casa é um
local de torturas e el ángel alude ao angélico rosto do repressor
da ditadura, o capitão Astiz, loiro como a protagonista do filme
de Nilsson, cuja beleza perversa foi decisiva para a escolha da
atriz, em tudo destoante com relação às ingênuas do cinema
argentino de gênero, nos anos 50. O anacronismo, mais uma vez,
nos obriga a ler em rede. Lemos a ficção de uma arte nacional
mas também uma ficção familiar narrada como matéria pública
e política).
Corpo e arquivo
Voltemos, porém, ao pathos. Jacques Lacan nos oferece uma
reflexão substancial acerca do pathos barroco, em seu seminário
Ainda, sobre a Ética na psicanálise. Argumenta que, sendo o corpo um misto de palavra e gozo12, a realidade do parlêtre conjugase com a impossibilidade de escritura da relação sexual. Por isso
Lacan mostra-se interessado em explorar o que se disse, ou se
pensou, ao longo da história, acerca do corpo. Quer saber quais,
dentre esses enunciados, se ajustam à verdade da estrutura, i.e.
quais são aqueles que atribuem uma dit-mension, uma residência
simbólica, em que o sujeito possa habitar, adquirir um modo de
ser e se satisfazer com ele. Combina, nesse novo conceito, a dimension (o espaço físico) e a dit-mension (a residência do dito). Cabe
aqui relembrar que muitos, dentre os vanguardistas (Borges ou
Duchamp são alguns dos mais marcantes) empenharam-se na
busca da quarta-dimensão (o tempo) e Duchamp, em particular,
chega, no final da vida, a intuir que a quarta dimensão está
relacionada com uma atividade em que a linguagem articulada
é desnecessária: o erotismo. Dele, Georges Bataille fará um sinônimo de obsceno13, ou como preferia Lacan, de eaubscène, um
deslocamento fora de cena, sem lugar cativo, cuja transparência
52
Gragoata 22.indb 52
Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:02
O arquivo e o presente
aquática (eau) é meramente ilusória porque a sua verdade reside
no anagrama (eaub, mera desconstrução de beau)
No caso de Lacan, a preocupação com a dit-mension busca,
de fato, reconhecer uma primeira articulação de palavra e gozo
no comportamentalismo e sua associação à ciência tradicional
de extração aristotélica, à qual ele denomina dit-manche, o discurso do cabo, mas também o que diz o ócio, o domingo, o dia
do Senhor. Reúnem-se aí todas as versões sobre o Uno, tanto
as idéias acerca do pensamento como Amo, quanto a noção de
que o pensamento pode segurar “la sartén por el mango”, na
relação com o corpo14. A segunda posição é a da ciência moderna, interessada, basicamente, em medir, quantificar, a energia.
A partir do principio de homeostase, deduzido da própria
inércia da linguagem, tenta-se reduzir os afetos a valores constantes, ainda que arbitrários, de transmissão de energia. Essa
tendência torna-se, entretanto, um modo de submissão da vida
à biologização da conduta, ameaçando assim o conceito de singularidade irredutível15. A seguir, Lacan incorpora os elementos
das sabedorias orientais, entendidas como autênticas doutrinas
de salvação. Nesse sentido, tanto o taoísmo quanto o budismo,
solicitam ambos uma renúncia (uma castração) para reunirem
o pensamento e o gozo: o tao abdica do sexual, ao passo que o
budismo abdica do pensamento. Modernistas periféricos como
Borges ou Octavio Paz nos ilustram, novamente, essa busca. A
partir dessa constatação, Lacan traça uma sutil diferenciação
entre duas dit-mensions quase paralelas, a da religião e a do
discurso analítico. É nesse contexto, especificamente, que Lacan desenvolve sua teoria do barroco, que seria a dit-mension do
obsceno, um habitat de “formas torturadas”.
Por isso Lacan define o barroco como a vitrine da Contra
Reforma, acertada, em 1563, pelo Concílio de Trento, para a
expansão do Ocidente. Por essa via, a Igreja teria assumido a
reconquista destinada à recuperação das almas perdidas, interiorizando o sentimento religioso, com o apoio de um arrojado
programa iconográfico. A imagem dele resultante articularia arte
e vida ( tal como se tornará a ouvir das vanguardas históricas)
de forma tal que toda obra humana pudesse contribuir, daí em
diante, ad maiorem dei gloriam. A arquitetura dos templos, o traçado urbanístico das cidades, a pintura maneirista ou a escultura
contorcida pelo pathos pautar-se-iam, então, pelo princípio de
delectare et movere.
Se a Contra Reforma busca assim recuperar as fontes do
cristianismo, seu sentido pregresso, isso significa que o barroco
— seu luxo, seu lixo; sua literatura, sua lituraterre — tem o objetivo
de manifestar, através das imagens, os dogmas e as verdades
da fé, com o intuito de persuadir os inocentes. Nesse sentido, a
arquitetura, em particular, estava voltada à encenação da liturgia,
favorecendo a comoção dos sentidos, mediante a repetição dos
Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 53
53
6/11/2007 14:26:02
Gragoatá
Raúl Antelo
rituais (COCCOZ, 2006, p.120). Há portanto uma sutil pedagogia
jesuítica na linha que, a partir de Ricardo Rojas, chega a Lezama
Lima, através de Ángel Guido ou mesmo Vignale. Ou, em outras
palavras, ainda: boa parte da cultura visual nacional-popular
sessentista, de Eva Perón a Hélio Oiticica, de Nestor Perlongher
a Glauber Rocha, nada mais faz do que renovar essa dit-mension
estrutural do gozo explorada pelos vanguardistas-primitivistas
de 1920.
Segue daí um peculiar paradoxo. Embora as representações
do corpo, na arte barroca, constituam uma exibição dos corpos
que evocam o gozo, a cópula (ou, como diria Borges, o espelho)
delas está excluída, daí que seu sentido não seja mais definido
pelos símbolos presentes mas pelo significante ausente, a partir
do qual os outros significantes adquirem seu valor simbólico16.
A leitura, portanto, dessas escrituras do presente não é mais
hermenêutica, mas pura encenação do non-sense. Ou, por outra,
a realidade é o fantasma, ao passo que a estrutura religiosa da
realidade é que é fantasmática, porque ela suplementa a relação
sexual, que aliás não existe, daí retirando seu efeito de verdade.
Como a partir do cristianismo, o gozo é então lançado à abjeção, nesse sentido, sob a Contra Reforma, a religião monoteísta
ocidental teria renovado o poder da palavra, graças às imagens
barrocas. Ela fabrica assim uma nova dit-mension, a da imagem,
por meio da qual inunda tudo aquilo que antes chamávamos de
mundo e que, daí para frente, fica restituído, enfim, à sua verdade
de imundicia, de poeira, de desagregação e de resto (COCCOZ,
2006, p.124-125).
Jean-Luc Nancy, aliás, vai nos dizer que o peso restritivo
que, a partir do Iluminismo, paira sobre as imagens, obedece, de
fato, a uma interpretação, obviamente letrada, que delas se faz.
É preciso, para tanto, que a imagem seja pensada como “presencia cerrada acabada en su orden”, não aberta absolutamente a
nada e enclaustrada, enfim, numa “estupidez de ídolo”. Daí que
não haja, na filosofia e na arte ocidentais, nada mais comum do
que o tópico da imagem rebaixada pelo seu caráter secundário,
imitativo e inessencial, derivado e inanimado, inconsistente ou
enganoso. Ele seria o fruto de uma aliança hegemônica, acertada,
no Ocidente, entre o preceito monoteísta e o tema platônico da
cópia e da simulação, do artifício e da ausência de original.
De esta alianza proceden, con seguridad, una desconfianza
ininterrumpida hacia las imágenes que llega hasta nuestros
días, en el seno mismo de la cultura que las produce en
abundancia; la sospecha recaída en las “apariencias” o el
“espetáculo”, y cierta crítica complaciente de la “civilización
de las imágenes”, tanto más, por otra parte, cuanto que de
ella provienen, a contrario, todas las iniciativas de defensa e
ilustración de las artes, y todas las fenomenologías (NANCY,
2006, p. 26-27).
54
Gragoata 22.indb 54
Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:03
O arquivo e o presente
Anacronismo e sintoma
Se, chegados neste ponto, voltamos o olhar para as atuais
teorias sobre uma estética do presente como estética do vazio e,
mais ainda, se levamos em consideração que essas posições revelam uma peculiar teoria do arquivo cultural latino-americano,
talvez se entenda melhor a restrição de Sarlo, com relação às
estéticas da imagem, que exploram a abjeção e por que motivo
ela prefere chamá-las de etnográficas. Essas novas estratégias
já não interpretam a escritura, mas operam, como a arquitetura
barroca, encenando uma nova liturgia, o que, como vimos, estimula a comoção dos sentidos. Da mesma forma, a desagregação
da dit-mension autônoma, no caso de Ludmer, nos ilustra que a
atitude dos artistas rigorosamente contemporâneos afasta-se
de um trabalho com o corpo e prefere, no entanto, investigar
a potencialidade criadora dos suportes tecnológicos (o arquivo
imaterial) enquanto movimentos e percepções areais (Nancy),
situados para além das limitações corporais. Algumas dessas
obras já não são só objetos culturais (páginas web) mas, fundamentalmente, processos simbólicos (ações na rede), em que o
tempo é anacrônico com a leitura: é o tempo da ação17.
De simples objeto passivo, sobre o qual operava, ativamente, uma tecnologia discursiva, o corpo torna-se, com
Nancy, tela; com Agamben, suporte para o poder e a glória,
isto é, passividade aberta e imanente, não exatamente para
uma economia mas para uma oikonomia e, enfim, com Lacan,
sintoma. Mediante o sintoma, o ser falante pode, finalmente,
habitar uma dimensão do corpo na qual viver e gozar, não só
não se repelem mutuamente, mas lhe atribuem ao sujeito um
partenaire para sua condição, simultaneamente, finita (conforme
o tempo) e infinita (conforme o gender)18. Essa dimensão não se
pauta mais pelo tempo lógico mas pelo instante do regard, dirá
Lacan em um célebre ensaio que lhe fora solicitado, aliás, pelo
pessoal da revista Cahiers d´Art. Um desses artistas, Duchamp,
traduzia o instante do regard como diferimento do retard, ao que
o travestimento, obviamente, não era alheio, de tal forma que
o gregário ou comunitário se dissolvia em uma singularidade
irredutível, a do anacronismo.
Outro dos artistas que vem construindo sua estética a
partir desses preceitos, ainda que seus pressupostos sejam,
aparentemente, mais tradicionalistas, é Alexander Sokurov.
Fredric Jameson vê, em seus filmes, uma peculiar assincronia
que ele interpreta como redimensionamento da autonomia,
de tal modo que Sokurov pouco teria a ver com uma pretensa
pós-modernidade pós-soviética e muito mais com uma reconfiguração (ainda modernista) das relações entre arte e história
(JAMESON, 2006, p. 1-12). Ao analisar essa obra, entretanto,
Giorgio Agamben tem chamado a atenção para a grande lição,
Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 55
55
6/11/2007 14:26:03
Gragoatá
Raúl Antelo
a seu ver, dos filmes de Sokurov: a contemplação do poder, enquanto contemplação de um vazio, só pode ser elegíaca. E, nesse
ponto, as elegias de Sokurov são muito próximas das de Guy
Debord. Porém, nesse mesmo instante em que elas mostram-se
iguais, essas elegias exibem também sua diferença. A arché, essa
origem, porém, ainda, esse seu mistério ou arcano conservado
pelo arquivo, revela, então, sua verdade quase banal:
si el arca del poder está vacía, si justamente este vacío es el
verdadero y último arcanum imperii, entonces la elegía debe
romper su forma. Ella no tiene literalmente nada que lamentar.
Acaso por este motivo, evocando el “Arca” de Rusia, Sokurov
ha debido introducir en la elegía la figura irónica de un extranjero, en cuyos labios el lamento se rompe incesantemente
en balbuceo y sonrisas. Y el ruso, a cuya mirada debemos todo
lo que vemos, es el signo de un presente que debe permanecer
invisible, y al cual la posibilidad del lamento le ha sido vedada
para siempre (AGAMBEN, 2006, p.81)
Poderíamos dizer, em resumo, que uma política do anacronismo, como é a que se ativa toda vez que arquivo e memória se
justapõem, implica, ao mesmo tempo, a inequívoca singularidade
do evento mas também a ambivalente pluralidade da rede. A
primeira impõe-se através da experiência; a segunda, através do
arquivo. Este parti pris redefine o tempo em foco como tempo-com
(como diferença ou diferimento, como con-temporização ou
temporalização). Significa, em última análise, que a essência do
tempo é uma co-essência que atua, que se ativa, no presente de
uma leitura, de modo tal que uma temporalização não pode ser
definida, tão somente, como um conjunto aleatório de tempos
quaisquer, em que o tempo do corte — da crise e da crítica —
ficaria sempre aberto e indefinido.
A temporalização do anacronismo significa, pelo contrário,
uma participação temporal na temporalidade, ou, em outras
palavras, uma hiper-temporalização, infinita e potencializada,
do evento, através do recurso anagramático da leitura. Se o que
define o anacronismo é, portanto, a con-temporização, então,
não é o tempo per se o que define a história cultural. Aquilo que
define a temporalidade é, pelo contrário, o com, é a sua sintaxe ou
composição, seu uso, sua política, e não uma hipotética matéria
livre ou indeterminada, comunitária ou compartilhada. Essa é
a que, no presente, virou etnográfica.
56
Gragoata 22.indb 56
Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:03
O arquivo e o presente
Abstract
Latin-American modernism is a cultural
stream with moments of intensity, lapses,
periods of fervish agitation, and dissident
rupture. Rebuilding its archive doesn’t
mean searching for origins but choosing
to identify and analyze those moments
overlapped with modernist autonomy.
The Baroque effect, the so-called LatinAmerican neo-Baroque style of the 70s
links directly with a preposterous moment
of that history.
Keywords: archive; autonomy; neoBaroque; diaspora.
Referências
AGAMBEN, Giorgio – “La elegia de Sokurov” in Las ranas, nº 2,
Buenos Aires, abril 2006. p.57-92.
AGUILAR, Gonzalo. “El fantasma de la mujer” (Sobre La casa
del ángel de Torre Nilsson), manuscrito inédito.
ATTRIDGE, Derek. The singularity of Literature. New York: Routledge, 2004.
BADIOU, Alain. El siglo. Trad. �������������������������������
Horacio Pons. Buenos Aires: Manantial, 2005.
BOZAL, Valeriano. El tiempo del estupor. Madrid: Siruela, 2004.
BUSCHIAZZO, Mario J. Historia de la Arquitectura Colonial. Buenos
Aires: Emecé, 1961
CLAIR, Jean. Paradoxe sur le conservateur. Paris : L´Échoppe,
1988.
COCCOZ, Vilma. “El cuerpo mártir en el barroco y en el bodyart” in RECALCATI, Massimo et al. Las tres estéticas de Lacan
(Psicoanálisis y arte). Trad. A. Rodriguez. Buenos Aires: Ed. del
Cifrado, 2006.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Imágenes pese a todo. Memoria visual
del Holocausto. Trad. M. Miracle. Barcelona: Paidós, 2004.
FOSTER, Hal. The return of the real. The avant-garde at the end
of the century. Cambridge: MIT Press, 1996, p.171-204.
GONZALEZ ECHEVARRIA, Roberto. Mito y archivo. Una teoría
de la narrativa latinoamericana. Trad. V. A. Muñoz. México:
Fondo de Cultura Económica, 2000.
Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 57
57
6/11/2007 14:26:03
Gragoatá
Raúl Antelo
GUIDO, Angel. “El Aleijadinho”. La Prensa, Buenos Aires, 11 jan.
1931 (tradução em inglês: “O Aleijadinho: the little cripple of
Minas Gerais”. Bulletin of the Pan-American Union, Washington,
v.65, nº 8, ago 1931, p. 813-822).
______.“Bahia: el tropicalismo en la arquitectura americana del
siglo XVIII”. La Prensa, Buenos Aires, 11 jun. 1933.
______. Eurindia en la arquitectura americana. Santa Fe, Universidad Nacional del Litoral. ���������������������������������
Departamento de Extensión Universitaria, 1930.
______.“El Aleijadinho. El gran escultor leproso del siglo XVIII
en América” in II Congreso Internacional de Historia de América.
Buenos Aires, Academia Nacional de la Historia, 1937, tomo IIII,
p. 504.
______. Redescubrimiento de América en el arte. Rosario, Universidad Nacional del Litoral, 1940 (3ª ed. Buenos Aires, El Ateneo,
1944).
HALL, Stuart. Da diáspora. Identidades e mediações culturais. Ed.
Liv Sovik. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2003.
HUYSSEN, Andréas. Memórias do modernismo. Trad. P. Farias.
Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997.
______. En busca del futuro perdido. Cultura y memoria en tiempos
de globalización. Trad. S. Fehrman. México: Fondo de Cultura
Económica, 2002.
JAMESON, Fredric. “History and Elegy in Sokurov”. Critical
Inquiry, volume 33, outono 2006. p. 1–12.
LACAN, Jacques. El Seminario. Libro 20. Aún. Buenos Aires: Paidós, 1981.
LAHUERTA, Juan José. El fenómeno del éxtasis. Dali ca. 1933. Madrid: Siruela, 2004.
LUDMER, Josefina. “Temporalidades del presente” in Boletín
del Centro de Estudios de Teoría y Crítica Literaria, Universidad
Nacional de Rosario, nº 10, 2002, p.92-93 ou na revista Margens/
márgenes. Belo Horizonte, Buenos Aires, Mar del Plata, Salvador,
nº 2, dez. 2002, p.15-16.
______. “Territorios del presente” in Confines, nº 15, Buenos
Aires, dez. 2004.
______. “Las tretas del débil” . In: VARIAS AUTORAS. La sartén
por el mango. México: Huracán, 1985, p.47-54.
______. “Literaturas postautónomas” in http://linkillo.blogspot.
com (18.12.2006)
MAIER, Corinne. Lo obsceno. Trad. H. Cardoso. Buenos Aires,
Nueva Visión, 2005.
NANCY, Jean-Luc. La representación prohibida. Trad. M. Martínez.
Buenos Aires: Amorrortu, 2006. p.26-27
58
Gragoata 22.indb 58
Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:04
O arquivo e o presente
RECALCATI, Máximo. “Las tres estéticas de Lacan” in IDEM. Las
tres estéticas de Lacan (Psicoanálisis y arte). Trad. A. Rodriguez.
Buenos Aires, Ed. del Cifrado, 2006.
ROCHA, Glauber. Cartas ao mundo. Ed. Ivana Bentes. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997.
______. Revolução do Cinema Novo. Prefácio Ismail Xavier. São
Paulo: Cosacnaify, 2004.
SARLO, Beatriz – “Sujetos y tecnología. La novela después de la
historia”. Punto de vista, nº 86, Buenos Aires, dez 2006, p. 2.
Notas
Este texto foi apresentado no seminário “Memória e arquivo”, organizado pela professora
Luz Rodriguez, na Universidade de Leiden (Holanda), no início de 2007.
2
“Une civilisation cesse d’être humaine où les musées sont parfaitement entretenus, sans
relâche agrandis, améliorés et renouvelés, et où les œuvres sont inlassablement restaurées,
refourbies, mais où le culte rendu aux morts n’est plus rendu que de façon furtive, honteuse
et dissimulée. L’art n’est pas un alibi pour nier la mort, un divertissement puéril qui nous
permettrait de nous en épargner la pensée et la vue. Il est au contraire le plus haut exercice de
notre finitude et ce qui nous assure de garder parmi nous le simulacre consolateur des dieux,
alors même qu’ils ont disparu” (CLAIR, 1988, p. 40). A polêmica suscitada, na Argentina,
em janeiro de 2007, com a renúncia de Horácio Tarcus à vice-direção da Biblioteca Nacional,
insere-se, diretamente, nesta lógica.
3
Para uma discussão sobre a questão da arte contemporânea e a etnografia, ver também
Foster (1996, p. 171-204).
4
Para uma discussão do problema no campo das imagens, ver Bozal (2004) e Didi-Huberman
(2004).
5
Penso, evidentemente, na contribuição de Huyssen (1997, 2002).
6
Tomo o conceito de diáspora (utilizado, aliás, por Ludmer) de Stuart Hall (2003).
7
“Bastó un siglo de euforia y riqueza para producir la manifestación más representativa
del arte brasileño, última y brillante expresión de ese barroco portugués que abarcó desde
Macao, en la China, y Goa, en la India, hasta las entrañas de la América meridional” (BUSCHIAZZO, 1961, p. 161).
8
Em 1950, como reitor-interventor na Universidade do Litoral, durante o governo peronista,
Guido faz uma palestra em francês, na Maison de l’Amérique Latine, com o título de Latindía.
Renacimiento latino en Iberoamérica (Santa Fe, Imprenta de la Universidad, 1950). A vinheta
é uma águia imperial preta com bandeiras espanholas e argentinas.
9
“Como a Torre Nilsson y a Beatriz Guido no les interesaban los sentimientos femeninos
sino la mirada femenina, no es casual que hayan buscado una música que acentuara el
distanciamiento y la no identificación entre música e imagen y ya solo este motivo explica
que hayan recurrido a uno de los músicos argentinos de vanguardia más importante de ese
entonces: Juan Carlos Paz. Músico erudito y conocedor de las corrientes más actuales de la
música contemporánea (en los años en los que componía para Nilsson, estaba escribiendo
Arnold Schoenberg o el fin de la era tonal), Paz había polemizado con el nacionalismo musical y se reconocía en los aportes de la escuela vienesa y en la innovación norteamericana
(fue el primero en hablar extensamente sobre Yves y Cage en nuestro país con su libro
Introducción a la música de nuestro tiempo de 1955). La elección de Paz venía a resolver de
un solo golpe varios de los inconvenientes que le interesaba despejar a Torre Nilsson. Desde
el punto de vista de la musicalización propiamente dicha, la orquestación (hecha, en contra
de lo que se estilaba en el cine nacional, con pocos instrumentos) corrompía lo que Michel
Chion llamó “síncresis” (una suerte de diégesis audiovisiva) [...]. Pero en función de lo que
sucede en términos de estética del cine, la estrategia básica de Torre Nilsson consistió en
trasladar propiedades de otros campos (música, literatura) al campo del cine”. Cf. Aguilar
(manuscrito inédito).
10
Glauber Rocha era um evidente admirador do estilo, como disse Sadoul, simultaneamente,
poético e realista, de Torre Nilson. Fornece uma resenha do que vira em Cannes 1967 ao
amigo Alfredo Guevara. “O Torre Nilsaon de La Muchacha del Lunes surpreende a todos,
menos aqueles que já tinham visto no anterior El ojo en la cerradura um desvio do autor dos
temas intimistas para uma realidade social. Mudou Torre Nilsson? Tudo leva a crer que sim.
El ojo en la cerradura, apresentado no Festival do Rio em 1965, já fazia críticas ao fascismo.
O que limitava o filme era sua linguagem fechada, que diluía o tema político numa reflexão
quase metafísica. A crescente onda de agitação política pela qual passa a AL tem provocado
crises e manifestações até mesmo no cinema argentino, dentre todos os cinemas latinos, o
mais estetizante. Esta modificação viemos a sentir, com definição precisa, em La muchacha
1
Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 59
59
6/11/2007 14:26:04
Gragoatá
Raúl Antelo
del lunes, produção americana, embora o financiador, De Rona, seja um porto-riquenho. TN
explicou em sua conferência de prensa que De Rona viveu um drama parecido e, tendo a idéia
inicial, o convidou para fazer um filme que ele, De Rona, produziria. Trabalhando a idéia
inicial com sua esposa, B. Guido, TN realizou o filme em Porto Rico, com atores americanos,
Arthur Kennedy e Geraldine Page. Um furacão ataca Porto Rico e leva ao desabrigo centenas
de famílias pobres. Uma empresa americana constrói edifícios em Porto Rico. Os americanos
estão na sua ‘fazenda’. O povo morre de fome nas ruas. O americano trata o porto-riquenho
como um escravo e, quando o trata com simpatia, o trata com um paternalismo cristão típico
do senhor pelo escravo. Com tintas claras e diretas, TN pinta este quadro e não hesita um
só segundo em revelar esta relação colonial nos gestos, detalhes e significações. Ataca de
frente a inconsciência e o egoísmo dos americanos, embora não os pinte como monstros devoradores de criancinhas, isto é, os coloca como seres humanos, também produtos de uma
conjuntura social e econômica. Arthur Kennedy é o americano, pai de família, funcionário
da grande empresa, que, dominado pela mulher, vai ao fundo de uma experiência pessoal:
sua filha, voluntariosa e deformada, exige que ele vá a um bairro pobre de Porto Rico em
busca de uma boneca velha que sua mãe, dia antes, dera como donativo às crianças pobres
vítimas do furacão. A mãe dera vários objetos usados, e uma boneca, distraidamente. Pois é
em torno desta boneca (solução talvez um pouco prosaica) que o filme se conduz. Seguindo
os caminhos da boneca, acompanhado pela família, o americano descobre a falta de sentido daquela sua ação e percebe, entre os nativos esmagados, os traços de seres humanos.
Moralismo? O filme é ambíguo no final. O americano estaria redimido pela experiência?
A estrutura psicológica dos personagens para uma forma acabada de melodrama limita
La muchacha del lunes como filme político. Os dados políticos sobram dos detalhes. Torre
Nilsson, mudando de tema, não perdeu o seu toque de cinema de atmosfera e sua linguagem,
por isto, continua carregada de símbolos abstratos que, sem apoio em realidades, se diluem
arbitrariamente. Mas, mesmo assim, este filme já possui uma flexibilidade maior do que os
outros: é mais aberto, mais dinâmico e agressivo. Em alguns momentos, de grande violência.
Mas até que ponto foi esta violência ou até que ponto a acusação se mantém? O filme não dá
resposta, embora o final possa parecer também violento” (ROCHA, 1997, p. 272-273). Nesse
mesmo ano Glauber publica uma matéria nos Cahiers du cinéma em que observa que “se
a literatura de Borges/Cortázar precede muitas experiências do nouveau roman, nem por
isto o tempo conseguiu se articular (ou não) nos filmes pré-resnaisianos. Solitário, o cinema
argentino descobriu o Estilo antes da História” e por isso pensava que qualquer personagem
de Torre Nilsson, “disciplinado num universo difuso em Bergman”, nada consegue além da
disciplina (ROCHA, 2004, p. 105). Por esse mesmo motivo, Glauber defendia, contra toda
corrente de esquerda iluminista, os filmes épicos de Nilsson, como Martín Fierro e até mesmo
o pedagógico El Santo de la Espada, a biografia de San Martín, da autoria aliás de Ricardo
Rojas, longínquo promotor dessa restauração nacionalista.
11
Em outra carta a Alfredo Guevara, datada de agosto de 1967, em Roma, Glauber Rocha
sintetiza a sua posição: “Creio que um filme POLÍTICO deve ser também um ESTÍMULO
CULTURAL E ARTÍSTICO. E para nós, latinos, que somos colonizados cultural e economicamente, o nosso cine deve ser revolucionário do ponto de vista político e poético, isto é, temos
de apresentar IDÉIAS NOVAS COM NOVA LINGUAGEM. America nuestra não pretende
ser um filme DIDÁTICO mas um COMÍCIO, UM FILME DE AGITAÇÃO, UM DISCURSO
VIOLENTO e também uma prova de que, no terreno da cultura, o homem latino, liberado da
opressão colonizadora, pode CRIAR. Tenho muita fé neste filme, é a única coisa que QUERO
E POSSO FAZER, acho que será uma contribuição para a Guerra geral das Américas e estou
disposto a assumir todos os riscos e conseqüências para fazê-lo. Procurarei Carpentier em
Paris” (ROCHA, 1997, p. 293).
12
“El inconsciente no es que el ser piense […] es que el ser, hablando, goce y no quiera saber
nada más.” (LACAN, 1981, p. 128).
13
Para a discussão sobre obsceno, abjeto e traumático, ver Foster (1996, em especial, p. 127-68).
Cf. ainda Maier (2005). Para uma discussão histórica da questão, ver Lahuerta (2004).
14
Josefina Ludmer (1985, p.47-54) analisou, pioneiramente, “Las tretas del débil”, ao ler a carta
de Soror Juana ao padre Vieira.
15
Para uma discussão literária do conceito ver Attridge (2004).
16
Diz Lacan, no seminário já citado, que a cópula “tan ausente está de la representación como
de la realidad a la que sin embargo sustenta con los fantasmas de los que está constituida”
(LACAN, 1981, p.138).
17
“Las obras no son sólo objetos (páginas web) sino también procesos (acciones en la red).
Como en las performances tradicionales, el tiempo es el tiempo de la acción. Luego quedan
registros en el gran archivo de Internet. Una serie de estas Ephemeral matches online se
organizó en México en 2002, un combate entre artistas mediáticos usando como arena el
espacio en red, sin reglas y en tiempo real. Algunos exploran las relaciones entre el cuerpo
y las nuevas tecnologías a través de diferentes interfaces cuerpo-máquina. El australiano
Sterlac invierte el proceso habitual de transmisión, el actor está conectado a sensores y sujeto
a los avatares del mecanismo sujeto a su cuerpo. Recientemente ha presentado una escultura
llamada Stomach que sólo puede verse a través de endoscopia” (COCCOZ, 2006, p. 132). No
campo do que ainda consideramos como literatura, relembremos que, em novembro de 2006,
o Museu de Arte Latino-americana de Buenos Aires (MALBA) organizou um debate, "¿Qué
hay de nuevo, viejo?", do qual participaram Rodolfo Fogwill, Martín Kohan, Daniel Link,
Damián Tabarovsky e Sebastián Hernaiz; recentemente, Washington Cucurto inaugurou
um blog (elcuranderodelamor.blogspot.com) concebido como forma de lançar seu último
60
Gragoata 22.indb 60
Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:04
O arquivo e o presente
livro, El Curandero del Amor, editado pela Emecé. Muitos blogs são pessoais (Daniel Link, Santiago Llach, Guillermo Piro) mas um dos espaços mais enigmáticos
(acerca da idade, condição e gender dos que nele escrevem) é o site El interpretador
(elinterpretador.net).
18
Como avaliar — pergunta-se ainda Vilma Coccoz — essas tentativas de atravessamento da lógica da representação, para mostrar aquilo que vela o fantasma? “¿Podemos conferir a esta búsqueda desesperada el valor de la denuncia, del clamor de
los cuerpos abandonados al desvarío, característico de la post-modernidad, según la
tesis de que lo corporal es político? ¿O estamos asistiendo, también, a un movimiento
de histerización de los significantes de la ciencia para ponerlos al servicio del arte,
de lo que, por tener como fin el goce, muestra que no sirve para nada? Frente a los
nuevos imperativos de eficiencia, a las nuevas normas de salud y a la oferta infinita
de objetos plus goce, el sujeto postmoderno, a la deriva de los acontecimientos que
sacuden cada día su precaria subsistencia, no puede orientarse en su relación a la
verdad. Horadada la verdad religiosa, sólo pervive la verdad científica, por definición
asubjetiva. Se siente culpable entonces de su cuerpo, que se manifiesta insurrecto
a la deseable armonía, inhibido ante las satisfacciones múltiples que el mercado
publicita. Razón por la cual el cuerpo puede volverse también persecutorio, por no
inclinarse ante la promesa de felicidad que ofrecen las pantallas publicitarias. El
sujeto hipermoderno, condenado a la soledad, sin conseguir alojarse en un discurso
que le suministre un orden verdadero con el que nombrar lo real, carga sobre sus
espaldas con el sentimiento de culpabilidad por su impotencia, sus incapacidades,
su fracaso en dominarlo con el mango, con el pensamiento. El cuerpo no se pliega
fácilmente al equilibrio de las cantidades, a las cifras de las tecnociencias. Los afectos
que lo conmueven y deleitan no se dejan atrapar en grillas psicológicas ni con las
fórmulas de los psicofármacos. En este difícil panorama que ofrece el estado actual
de los discursos, el arte y el psicoanálisis se perfilan como dos vías posibles para
tratar lo real. También como dos maneras de responder al discurso del amo actual
y a sus efectos mortificantes” (COCCOZ, 2006, p. 133-134).
Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 61
61
6/11/2007 14:26:05
Gragoata 22.indb 62
6/11/2007 14:26:05
Os discursos da mestiçagem:
interseções com outros discursos,
críticas, ressematizações.
Eurídice Figueiredo
Recebido 10, jan. 2007/Aprovado 29, mar. 2007
Resumo
Este texto propõe uma leitura cruzada dos discursos da mestiçagem em relação aos discursos da
transculturação, do hibridismo e da crioulização,
mapeando como foram conceitualizados ao longo
do século XX por alguns pensadores significativos
da América Latina — continente emblemático da
mestiçagem. Demonstra, em seguida, como eles
acabaram extrapolando o âmbito deste continente
para um uso mais generalizado tanto na América
do Norte quanto na Europa, tendo em vista o fluxo
de imigrantes, que cresce de maneira exponencial,
numa diáspora que muda a feição de países até
então considerados homogêneos, tanto étnica
quanto culturalmente, como a Grã-Bretanha, a
França, os Estados Unidos e o Canadá. Estudiosos de várias regiões passaram então a usar
de maneira indiscriminada estes quatro termos,
geralmente como sinônimos. Interessa refletir
sobre o caminho percorrido para restabelecer uma
certa historicidade e detectar como se deram estas
ressignificações.
Palavras-chave: mestiçagem; hibridismo, crioulização; transculturação.
Gragoatá
Gragoata 22.indb 63
Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:05
Gragoatá
Eurídice Figueiredo
Introdução
A tradução é minha
sempre que se tratar de
citações retiradas de livros que constam das
referências bibliográficas
em edição estrangeira.
2
Expressão que significa
que uma gota de sangue
negro torna a pessoa um
negro (ou afro-descendente).
3
Além do fenótipo, contam também para o branqueamento outros elementos tais como: classe
social, escolaridade.
1
64
Gragoata 22.indb 64
Os discursos da mestiçagem se cruzam e às vezes se confundem com os discursos da transculturação, do hibridismo
e da crioulização em diferentes regiões. Pode-se detectar um
processo muito complexo, em que se desliza do biológico para o
cultural, e deste, para processos mais especificamente literários
e lingüísticos. Pode-se também perceber que as palavras não são
inocentes, que certos termos se constituíram ao longo da história, ora tornando-se tabu, ora sendo incorporados ao discurso
da nação, ora se banalizando por um emprego indiscriminado.
Trata-se de um tema complexo, cujas implicações políticas e
ideológicas, associadas também aos afetos que estão em jogo,
penetram e intervêm na reflexão teórica. A mestiçagem e o
hibridismo sofreram enorme preconceito ao longo da história,
tendo chegado ao século XXI já ressemantizados de maneira
muito mais positiva e mais genérica. Já a transculturação e a
crioulização, neologismos de uso mais recente, foram criados e
divulgados no século XX.
A rejeição à mestiçagem e, portanto, ao surgimento do
híbrido, vinha da interdição do intercurso sexual barrado entre
o homem branco e a mulher subalterna (indígena ou negra),
com o nascimento do mestiço, fruto do pecado, filho bastardo,
ilegítimo, renegado por ambas as comunidades étnicas que o
originaram. Sylviane Albertan-Coppola, ao estudar a evolução
do conceito de mestiçagem através da análise dos dicionários
franceses do século XVIII, mostra que o dicionário funciona
como uma corrente de transmissão entre os escritos especializados e o grande público ao veicular os preconceitos existentes,
aparecendo assim como um espelho ideológico de seu tempo
que reflete a representação da sociedade. Ela demonstra que os
termos mestiço e mulato, por conta de sua origem, são empregados e dicionarizados de modo a realçar sua anormalidade, ou
até mesmo sua monstruosidade, associando-os a animais, frutas
e monstros, ou seja, considerando-os como anomalias da natureza por serem a resultante de cruzamento de raças diferentes
(ALBERTAN-COPPOLA, 1992, p. 42)1.
Peter Fry afirma que “raça” e “relações de raça” não têm
nada de natural. Tanto a “democracia racial” brasileira, fruto da
mestiçagem assimiladora, quanto a one drop rule2 norte-americana, são conceitos surgidos no bojo de um pensamento global que
moldou as duas sociedades (FRY, 2005, p. 178) e criou (ou não)
um entre-lugar para o mestiço: enquanto no Brasil um mestiço
pode tornar-se branco, dependendo de seu fenótipo3, nos Estados
Unidos prevalece a regra da hipodescendência, ou seja, não se
pressupõe a existência do mestiço porque quem tem sangue negro ou indígena pertence às comunidades negras ou indígenas,
sendo recusada sua admissão no universo dos brancos.
Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:05
Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações
Este texto propõe, inicialmente, uma leitura cruzada dos
discursos da mestiçagem em relação aos discursos da transculturação, do hibridismo e da crioulização, mapeando como foram
conceitualizados ao longo do século XX por alguns pensadores
significativos da América Latina — continente emblemático
da mestiçagem. Demonstra, em seguida, como eles acabaram
extrapolando o âmbito deste continente para um uso mais generalizado tanto na América do Norte quanto na Europa, tendo
em vista o fluxo de imigrantes, que cresce de maneira exponencial, numa diáspora que muda a feição de países até então
considerados homogêneos, tanto étnica quanto culturalmente,
como a Grã-Bretanha, a França, os Estados Unidos e o Canadá.
A intensificação do processo de globalização nos finais do século
XX acarretou o trânsito e a mobilidade de pessoas, intensificando o nível das comunicações sobretudo através da internet,
provocando novas mestiçagens, novos hibridismos, novas transculturações, novas crioulizações. Estudiosos de várias regiões
passaram então a usar de maneira indiscriminada estes quatro
termos, geralmente como sinônimos. Interessa refletir sobre o
caminho percorrido para restabelecer uma certa historicidade
e detectar como se deram estas ressignificações.
José Marti: a mestiçagem como ideologema
Como mostra Eve-Marie Fell (1994), ao longo do século XIX
a América Latina é vista por pensadores europeus, sobretudo
franceses, como um continente condenado à anarquia: Gobineau,
Spencer, Le Bon, Darwin, todos creditam à mestiçagem a situação
de desestabilidade política e econômica da região. A influência
desta concepção nas elites locais se faz sentir imediatamente
e vários escritores refletem este desprezo pelo mestiço: Carlos
Octavio Bunge, Alcides Arguedas, Francisco García Calderón,
Nina Rodrigues, são alguns dos autores de livros que afirmam
a degeneração da pátria por causa de patologias advindas dos
problemas raciais das populações mestiças.
Assim, quando José Martí (1853-1895), no clássico texto
“Nuestra América”, uma conferência proferida em Nova York em
1891, define a América Latina como sendo mestiça em oposição
à América anglo-saxônica, pode-se dizer que ele tem o projeto
de transformar a mestiçagem em um ideologema que busca dar
valor positivo àquilo que parecia fonte de conflito e de incômodo
para suas elites letradas. Segundo Martí, a diferença entre os
Estados Unidos e a América Latina residiria na maneira como
cada sub-continente tratou o seu Outro: os norte-americanos
praticaram o genocídio contra os índios e isolaram seus negros
em guetos enquanto os latino-americanos absorveram em seu
sangue este Outro. Segundo Amaryll Chanady, Martí vê a América mestiça como um exemplo de heterogeneidade integrada e
harmoniosa, enquanto ele considera a América do Norte como
Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 65
65
6/11/2007 14:26:05
Gragoatá
As elites brancas na
América Latina se definem como socialmente
brancas e não necessariamente brancas do
ponto de vista étnico,
na distinção de Costa
Pinto (1998, p. 59). Assim, pode-se afirmar
que nem todos os brancos latino-americanos
seriam con siderados
brancos (caucasianos)
nos Estados Unidos.
4
66
Gragoata 22.indb 66
Eurídice Figueiredo
uma sociedade que se caracteriza pela marginalização e por estruturas de poder hierarquizadas (CHANADY, 2000, p. 24). José
Martí não enfoca a mestiçagem por seu lado racial, opondo-se
assim, implicitamente, às correntes positivistas e darwinistas
que afirmavam a inviabilidade de raças mestiças que viviam
em zona tropical. Ele nega a existência de raças e de ódio racial;
para ele, a América Latina se caracteriza antes pela defasagem
existente entre as elites letradas e o povo, entre o campo e a cidade, entre pobres e ricos, entre os que andam “de perna nua”
e os que vestem “casaca de Paris” (MARTI, 2005, p. 18): as elites
estão voltadas para a Europa, enquanto o povo está mais perto
da natureza, com valores e concepções próprias. Não há dúvida
de que esta dicotomia passa também pelo recorte étnico ou racial
porque as elites crioulas são constituídas de brancos4 enquanto
os marginalizados de pernas nuas seriam os índios, negros e
mestiços. Martí se refere ao hibridismo e à heterogeneidade que
caracterizavam (e continuam caracterizando) a América Latina,
no sentido da coexistência de grupos socialmente e racialmente diferentes. Sua visão utópica tende a ver a realização deste
continente harmonioso em um devir, pois ele não pode ignorar
os problemas então existentes. Seu pensamento é precursor e
profético, o que explica sua importância estratégica na forma de
percepção da mestiçagem na América Latina e o fato de Martí
ser hoje uma unanimidade continental.
Eve-Marie Fell assinala que o legado positivista e darwinista começa a perder sua força nos anos 20 e 30 do século XX,
quando começa a surgir um novo tipo de definição nacionalista
na América Latina, baseado no aparecimento de mudanças básicas: 1. uma perspectiva pragmática e empreendedora substitui
a visão pessimista, que se acompanhava de lamentações sobre a
“degeneração” do continente; 2. um novo credo, que fundamenta
no povo, a despeito de sua origem étnica ou de seu preparo cultural, a coesão nacional, substitui a visão elitista, que identificava
o poder com a “aptidão” para o poder; 3. uma valorização da
região (correspondente ao interior ou às montanhas), na qual
vivia a massa da população negra, indígena ou mestiça, no suposto arcaísmo de suas tradições, em detrimento da capital, até
então hegemônica, com suas elites brancas e letradas. Neste caso,
Fell considera que se pode falar de um “nacional-regionalismo”
novo, decididamente anti-oligárquico (FELL, 1994, p. 589).
Os anos 20, 30 e 40 foram decisivos na formulação de análises científicas ancoradas em perspectivas transformadoras,
no campo da história, da antropologia e da sociologia, em que
se pode perceber uma preocupação em traçar a “formação”
histórica, econômica, cultural e literária dos diferentes países
da América Latina. Alguns deles são diretamente influenciados
pelo marxismo, enquanto outros, sem ser marxistas, admitem
ter sofrido influência do materialismo histórico. Como traço
Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:06
Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações
comum na maioria dos intelectuais latino-americanos da época, a estada na Europa ou nos Estados Unidos, a influência das
vanguardas, que privilegiavam a arte primitiva, o elemento
popular. Uma transformação de mentalidade permite mudar
a percepção da questão racial, que vai ser deixada de lado em
favor de uma visada mais cultural da contribuição dos povos
até então considerados inferiores.
José Vasconcelos e a raça cósmica
Para não alongar demais e, por outro lado,
para não simplificar as
análises, este artigo se
concentra nas discussões sobre a mestiçagem
no contexto da AfroAmérica, não tratando
da questão indígena. A
entrada de José Vasconcelos se explica porque
a área de criação da
raça cósmica engloba o
Brasil e outros países da
América do Sul.
5
A mestiçagem foi concebida de um ponto de vista racialista
por José Vasconcelos5 (1882-1959), autor de La raza cósmica [1925],
livro construído em torno do eixo que opõe a América Latina
aos Estados Unidos, tentando justificar uma superioridade da
América Latina em termos espirituais ou éticos para contrapor
à evidente supremacia econômica do país do norte. Como Martí,
ele condena os norte-americanos que destruíram e/ou recusaram
a miscigenação com os indígenas e os negros: eles “cometeram
o pecado de destruir essas raças, enquanto nós as assimilamos,
e isto nos dá direitos novos e esperanças de uma missão sem
precedentes na História” (VASCONCELOS, 1992, p. 96). “A colonização espanhola criou mestiçagem; isto assinala seu caráter,
fixa sua responsabilidade e define seu porvir” ao passo que a
destruição dos indígenas, encetada pela colonização inglesa, é o
“indício de sua decadência” (VASCONCELOS, 1992, p. 96). Assim, se definiram ao longo da História os sistemas que colocam
em campos sociológicos opostos as duas civilizações: “a que quer
o predomínio exclusivo do branco, e a que está formando uma
raça nova, raça de síntese, que aspira englobar e expressar todo
o humano em maneiras de constante superação” (VASCONCELOS, 1992, p. 97). Deste ponto de vista, ele se aproxima também
do ensaísta uruguaio José Enrique Rodó (1871-1917), autor de
Ariel [1900], que vê nos latinos uma superioridade espiritual;
Rodó “dá a Vasconcelos a perspectiva racial e continental que
acabaria por dar forma à mais ambiciosa de suas teorias: a raça
cósmica” (DOMINGUEZ MICHAEL, 1992, p.XXI).
Numa visão messiânica e utópica, Vasconcelos acredita
que a vocação do continente americano é de renovar o mundo.
Contrapondo-se à América do Norte, cuja missão foi realizada
muito rápida e eficientemente porque sua obra constitui uma
mera continuação da Europa, a América Latina ainda busca sua
realização por fazer uma obra muito mais ampla. Assim, além
das quatro raças existentes (branca, negra, vermelha e amarela),
ele profetiza o surgimento da “raça cósmica” como uma quinta
raça, ecumênica e superior às outras (VASCONCELOS, 1992, p.
96).
Para Vasconcelos, esta seria “a raça definitiva, a raça síntese
ou raça integral, feita com o gênio e com o sangue de todos os
povos e, por isto mesmo, mais capaz de verdadeira fraternidade
Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 67
67
6/11/2007 14:26:06
Gragoatá
Eurídice Figueiredo
e de visão universal” (VASCONCELOS, 1992, p. 99). Combatendo o positivismo e o darwinismo, que haviam imperado no
pensamento europeu do século XIX até o início do XX, e que
preconizavam um aperfeiçoamento das espécies pela luta do
mais forte para sobreviver, Vasconcelos imagina o aparecimento
da raça cósmica como conseqüência do amor e da confraternização universal. Em relação à teoria dos climas, que considera
os trópicos como inadequados para o desenvolvimento da civilização, ele afirma justamente o contrário, afirmando que as
grandes civilizações surgiram entre os trópicos e que, ademais,
o desenvolvimento tecnológico tratará de resolver os prejuízos
causados pelo calor, permitindo que os aspectos benéficos sejam
reforçados. O local que ele vislumbra como a terra de promissão
compreenderia o Brasil, a Colômbia, a Venezuela, o Equador,
parte do Peru e parte da Bolívia e a região norte da Argentina
(VASCONCELOS, 1992, p. 102).
No entanto, como ele não pode se desvencilhar da idéia de
que a raça branca é superior, ele supõe a predominância de suas
características na raça cósmica, que neste processo de síntese
eliminaria todo o que é feio, tanto no sentido físico quanto no
moral e espiritual. Ele afirma que na América Latina há poucos
negros, já que eles estão sendo embranquecidos pelo processo
de miscigenação; por outro lado, os indígenas são uma viga
mestra para a mestiçagem. Ao colocar ênfase neste processo de
eugenia pela seleção e pelo embelezamento (1992, p. 102), considero que Vasconcelos escorrega por um perigoso terreno, ao
conceber um processo de seleção de base darwinista, embora
sem violência e sem conflito, como se tudo pudesse se realizar
livre e espontaneamente.
Os tipos baixos da espécie serão absorvidos pelo tipo superior.
Desta maneira poderia se redimir, por exemplo, o negro, e
pouco a pouco, por extinção voluntária, as estirpes mais feias
irão cedendo terreno para as mais belas. As raças inferiores,
ao educar-se, se tornariam menos prolíficas, e os melhores
espécimes irão ascendendo em uma escala de melhoramento
étnico, cujo tipo máximo não é precisamente o branco, mas
esta nova raça, aquela que o próprio branco terá que aspirar
com o objetivo de conquistar a síntese. O índio, por meio do
enxerto da raça afim, daria um salto de milhares de anos que
separam a Atlântida e nossa época, e em umas quantas décadas
de eugenia estética poderia desaparecer o negro junto com os
tipos que o livre instinto de formosura vá assinalando como
fundamentalmente recessivos e indignos, por isto mesmo, de
perpetuação (VASCONCELOS, 1992, p. 102).
Pode-se depreender desta proposta um desejo de eliminação dos tipos considerados inferiores por um lento e consentido
processo de embranquecimento e depuração de traços belos. Ao
enaltecer o mestiço, Vasconcelos rechaça implicitamente o negro
e o índio no estado atual em que se encontram, embora reconheça
68
Gragoata 22.indb 68
Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:06
Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações
neles qualidades tanto físicas quanto espirituais. Uma contradição aparece no pensamento de Vasconcelos: despreza o indígena
mas considera positiva a mestiçagem iniciada pelos espanhóis.
Na avaliação de Dominguez Michael (1992), sem entender as
antigas culturas mesoamericanas, afastando-se dos indígenas,
que constituíam parte simbólica fundamental da nação mexicana pós-revolução, sua concepção da raça cósmica é inspirada
muito mais no pensamento e na realidade da América do sul do
que na história do México. Vasconcelos vislumbra no sonho de
Bolívar de unir os países sul americanos um “desejo de fundir
o humano em um tipo universal e sintético” (VASCONCELOS,
1992, p. 97).
Gilberto Freyre e o elogio da mestiçagem
O conceito de mestiçagem no Brasil está indelevelmente
ligado à obra de Gilberto Freyre, sobretudo a partir de Casagrande & senzala [1933], que não foge ao esquema contrastivo
entre os processos formadores da nação na América Latina e nos
Estados Unidos. O autor parte de uma premissa fundamental:
a distinção entre raça e cultura, aprendida com seu professor
Franz Boas, na Universidade de Columbia (Estados Unidos),
conforme ele afirma no prefácio à primeira edição.
Aprendi a considerar fundamental a diferença entre raça e
cultura; a discriminar entre os efeitos de relações puramente
genéticas e os de influências sociais, de herança cultural e de
meio. Nesse critério de diferenciação fundamental entre raça
e cultura assenta todo o plano deste ensaio. Também no da
diferenciação entre hereditariedade de raça e hereditariedade
de família (FREYRE, 1980, p. lviii).
Freyre, baseado em Spengler, destaca a influência do meio
físico na transformação dos imigrantes e afirma que o português, ao se adaptar ao novo meio, tornava-se quase uma nova
raça: “Distanciado o brasileiro do reinol por um século apenas
de vida patriarcal e de atividade agrária nos trópicos já é quase
outra raça, exprimindo-se noutro tipo de casa” (FREYRE, p. lxiii).
Assim, apesar da hegemonia do elemento europeu na formação
do país, Freyre demonstra que todos os povos colocados em contato começam a se modificar. Ao analisar a contribuição das três
“raças” (a portuguesa, a africana e a indígena) para a formação
do povo brasileiro, evoca sobretudo o papel desempenhado na
vida material assim como os elementos culturais de cada uma
delas. Apesar de uma certa imprecisão, porque os aspectos
biológicos insistem em aparecer, Benzaquen Araújo afirma que
ele não sucumbe nem às teorias francesas da época (Gobineau)
bem disseminadas no Brasil, segundo as quais a miscigenação
terminava na esterilidade (biológica e cultural), nem às teorias
positivistas brasileiras que viam no embranquecimento progressivo da população a redenção de Cam (título de um quadro
Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 69
69
6/11/2007 14:26:06
Gragoatá
Eurídice Figueiredo
de Modesto Brocos y Gomez de 1895). Todas as duas visões
partiam da assunção de que a herança negra era um fardo que
o país carregava. Portanto, em lugar de partir de uma idéia de
carência, de inacabamento, Freyre reconhece o caráter híbrido
da formação do povo brasileiro e concede tanta importância à
contribuição negra (e em medida menor, indígena) quanto à
contribuição portuguesa para a constituição de uma identidade
nacional. A mestiçagem para Freyre não é nem uma unicidade
nem uma síntese; ao contrário, ele deixa aberto o processo de
mutação tanto biológico quanto cultural (ARAÚJO, 1994).
Ao contrário da visão racialista de Vasconcelos, Freyre,
consciente da influência da economia na vida social, assinala
que não basta se pensar em eugenia biológica pois as questões
de saúde e de beleza corporal não são fruto da hereditariedade
só, elas estão também associadas à alimentação, às condições de
moradia, ou seja, às condições de vida.
A partir da obra de Gilberto Freyre, a imagem do mestiço
começa a passar por um processo de valoração, abrandando o
estigma que lhe era anteriormente atribuído. Segundo Freyre,
os filhos mulatos do senhor eram alforriados pelo pai à beira
da morte (FREYRE, 1980, p. 436), eram criados e educados na
casa-grande com e como os filhos legítimos (Freyre, 1980, p.
443), e, apesar da bastardia, eles muitas vezes chegavam a ter
uma educação superior, o que não era o caso dos filhos legítimos (FREYRE, 1980, p. 448). Assim, quando a aristocracia rural
começa a perder poder para as novas forças das cidades, as posições de mando são ocupadas por bacharéis e militares, muitas
vezes mulatos (FREYRE, 2003, p. 725). Ele fala do prestígio e
da beleza do mulato, seu sucesso junto às mulheres brancas, a
despeito de preconceitos de branquidade nas famílias de elite
(FREYRE, 2003, p. 733). Os séculos XIX e XX tiveram inúmeros
mulatos em posição de destaque, independentemente de sua
cor ou origem.
A partir dos anos 1950, tanto no Brasil quanto na América
Hispânica, “dá-se o reconhecimento da mestiçagem como o
nosso signo cultural”, segundo Irlemar Chiampi; com este ideologema, o discurso americanista assumia a “heterogeneidade
de sua formação racial, sem renunciar ao ambicionado universalismo”. Ele supunha também a existência de “uma diferença
que permitia contrastar a complexidade da nossa formação com
a homogeneidade dos Estados Unidos e os particularismos etnocentristas dos europeus” (CHIAMPI, 1988, p. 18).
A crítica da mestiçagem no Brasil
Desde os festejos do centenário da abolição da escravidão
(1988), percebe-se uma crescente crítica ao discurso da mestiçagem e da democracia racial no Brasil, feita por parte de acadêmicos e ativistas ligados a movimentos negros, que substituíram o
70
Gragoata 22.indb 70
Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:07
Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações
anti-racismo “universalista” pelo anti-racismo “diferencialista”,
por influência dos movimentos negros norte-americanos (MUNANGA, 2006, p. 137). Assim, o discurso da mestiçagem passa
por um movimento que vai de mito de fundação nacional para
ser encarado como um discurso ideológico que enaltece a fusão,
em benefício do embranquecimento e da homogeneização, e
que tem servido como política de exclusão social dos negros na
sociedade brasileira. Gislene Aparecida dos Santos (2005, p. 160)
considera que Gilberto Freyre “inventa uma cultura da mestiçagem, uma apologia da mestiçagem, que pode ser valorizada
ao se opor àquilo que é legitimamente negro”, ou seja, o negro
continuaria a desempenhar um papel subalterno. Já Kabengele
Munanga (2006, p. 88), apesar de reconhecer a importância de
Freyre por “ter mostrado que negros, índios e mestiços tiveram
contribuições positivas na cultura brasileira”, conclui que o mito
da democracia racial “encobre os conflitos raciais”, impedindo
que os membros das comunidades não-brancas tomem consciência dos “sutis mecanismos de exclusão da qual são vítimas na
sociedade” (MUNANGA, 2006, p. 89). Segundo ele, o discurso
da “mestiçagem como etapa transitória no processo de branqueamento constitui peça central da ideologia racial brasileira” e
acrescenta que a população negra no Brasil representa, “do ponto
de vista da elite ‘pensante’, uma ameaça ao futuro da raça e da
civilização brancas no país”. Para ele, o discurso da mestiçagem
contém um “ideal implícito de homogeneidade” que não contempla a existência da população negra, o que o leva a falar de
“etnocídio” (MUNANGA, 2006, p. 121).
Para alguns, a categoria do mulato atrapalha a luta política.
Eduardo de Oliveira e Oliveira tem um artigo com o sugestivo
título de “O mulato, um obstáculo epistemológico” (apud MUNANGA, 2006, p. 16). O norte-americano Michael Hanchard, em
seu livro Orfeu e o poder (edição em inglês 1994, tradução brasileira de 2001), afirma que “isto [a existência do mulato] poderia
explicar parcialmente as dificuldades da mobilização política e
social conjunta dos negros e pardos” (HANCHARD, 2001, p. 55.
Ênfase do autor), ou seja, o pardo não se junta à luta política dos
negros porque se sente diferente.
Esta posição política racializada tem recebido muitas críticas. O cantor e compositor Caetano Veloso, em artigo publicado no New York Times (2000), afirma que a visão de Hanchard
é uma simplificação da realidade brasileira que pode levar à
“intolerância racial”. Os sociólogos franceses Pierre Bourdieu e
Loïc Wacquant (1999) também atacaram o livro de Hanchard,
criticando a influência imperialista norte-americana tanto nos
estudos sobre questões etnoraciais do Brasil, levados a cabo
por norte-americanos ou por intelectuais treinados nos Estados
Unidos, quanto nos movimentos negros, o que estaria afetando a
auto-imagem do Brasil. Em publicação recente, Yvonne Maggie,
Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 71
71
6/11/2007 14:26:07
Gragoatá
Eurídice Figueiredo
Peter Fry e outros (2007) se insurgiram contra a implantação
de políticas públicas baseadas na raça.6 O escritor João Ubaldo
Ribeiro reforça esta posição contrária à importação de concepções dos Estados Unidos que põem em evidência o conflito e a
separação entre raças, alertando para o fato de que esta política
pode modificar a maneira como os brasileiros imaginam o país:
de nação mestiça, que se orgulha disto, para nação de raças estanques, compartimentadas, segregadas. Apesar de ninguém
negar a existência do racismo e a necessidade de combatê-lo,
os opositores desta visão racializada defendem o fato de que o
Brasil constitui exemplo único no mundo de uma mestiçagem
plenamente realizada (RIBEIRO, 2005, p. D3).
Vejo uma grande ironia na reivindicação racial da parte
dos negros porque a diferença humana baseada na “raça” foi
inventada pelos europeus como forma de dominação. Mas
acompanho o raciocínio de Kwame A. Appiah, segundo o qual
as identidades, complexas e múltiplas, nascem de uma oposição
a outras identidades, baseando-se em formações discursivas
imaginárias e não na razão (APPIAH, 1997, p. 245). No momento,
parece oportuno para alguns adotar posições racializadas para
lutar contra o racismo, mas este pode não ser o melhor caminho
porque pode induzir a visões de gueto.
Os discursos da transculturação
Não pretendo discutir,
no âmbito deste artigo,
questões de políticas
públicas como a implantação de cotas nas
universidades.
6
72
Gragoata 22.indb 72
Enquanto Gilberto Freyre destacava a importância da mestiçagem na formação do povo brasileiro, passando do biológicoracial para o cultural, em outros países da América Latina outras
construções identitárias se constituíam de modo a dar conta da
heterogeneidade da região. O antropólogo cubano Fernando
Ortiz (1881-1969) privilegiava o cultural no próprio termo empregado ao cunhar um neologismo para criar um novo conceito — o de transculturação — a fim de designar o processo de
transformação por que passam as sociedades devido ao contato
de povos diferentes. Em Contrapunteo cubano del tabaco y del azúcar
[1940], ele explica que o neologismo —transculturação — vem
substituir os conceitos que vigoravam até então (desculturação
e aculturação), rígidos e unívocos, inadequados para exprimir
a complexidade das transmutações ocorridas em todos os níveis: econômico, institucional, jurídico, ético, religioso, artístico,
psicológico, sexual e demais aspectos da vida (ORTIZ, 1963, p.
99). Ele destaca que os espanhóis, que provinham de diferentes
regiões e culturas, já desgarrados, entraram em contato com uma
natureza diferente e tiveram de se adaptar às novas realidades,
o mesmo acontecendo com os africanos, originários de várias
áreas e etnias, que tiveram de aprender nova língua e nova religião, numa situação de sincretismo. Além dos indígenas que
aqui estavam, outros povos vieram para Cuba (pode-se ampliar
Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:07
Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações
para toda a América), anglo-saxões, judeus, asiáticos, cada um
deles aportando seus hábitos culturais.
Através deste novo conceito de transculturação, Ortiz
pretendia demonstrar que todas as culturas assim colocadas em
contato se transformaram, ou seja, os europeus que vieram para
a América mudaram tanto quanto os africanos e os indígenas,
gerando novas formas culturais, novos sujeitos. Ele destaca que
o que levou 4 milênios na Europa, em Cuba levou 4 séculos, ou
seja, foi uma transformação extremamente rápida e violenta.
Como se pode perceber, apesar de um eurocentrismo inevitável
naquele momento histórico, que privilegiava a hegemonia da
cultura européia implantada nos novos territórios, tanto Ortiz
quanto Freyre insistem na idéia de mistura e de hibridismo
de todos os povos envolvidos no projeto de criação das novas
nações, sem desprezar nenhuma raça, sem deixar de levar em
conta nenhum aporte, por mais “primitivo” que ele fosse.
A transculturação evoluiu ao longo dos anos, dando origem
a novas ressematizações, novas formulações e desdobramentos,
dentre os quais se destacam pelo menos dois: o de transculturação narrativa, criada pelo crítico uruguaio Ángel Rama (19261983) e, mais recentemente, aquele introduzido no Quebec por
escritores de origem italiana na revista Vice Versa, publicada a
partir de 1983. Para Fulvio Caccia, a transculturação ou transcultura seria “como uma via de passagem que une os fenômenos
de exílio e de imigração pela realização de um choque cultural”
(apud HAREL, 2005, p. 78), ou seja, ela coloca em relação a condição do sujeito sedentário e a do migrante. Segundo Harel, os
escritores ítalo-quebequenses foram os primeiros a fazer o luto
de sua etnicidade a fim de promover um novo modo de representação do coletivo no Quebec. Para Harel, a transcultura não
é sinônimo de harmonia, de fusão, nem de reconciliação; ela
vai de encontro ao discurso apaziguador do multiculturalismo
ao dar conta da relação assimétrica e imperfeita que existe na
sociedade (HAREL, 2005, p. 75-76). O discurso transcultural não
é um pensamento de oposição e muito menos um discurso de
síntese dos contrários; ele escapa ao esquematismo das oposições, reivindicando antes um discurso paradoxal construído de
oxímoros a fim de melhor modificar ou deformar as oposições
binárias; ele tenta detectar as práticas intersticiais que caracterizam os atos de discursos inéditos. O discurso da transcultura
no Quebec, por emanar das comunidades étnicas ou culturais,
subverte tanto o nacionalismo patrimonialista do Quebec quanto
a ideologia multiculturalista do governo federal. A transcultura,
através da introdução do pensamento da diferença e do impuro,
questiona toda pretensão universalista e ao mesmo tempo introduz a categoria dos afetos e das emoções no âmbito das questões
políticas. Para Lamberto Tassinari, a transcultura é consciência
Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 73
73
6/11/2007 14:26:07
Gragoatá
Eurídice Figueiredo
de si; sua capacidade de simbolizar sua própria ferida age como
força fundadora da identidade, equilibrando assim a tentação
de escapar do passado ou de se afundar nele (TASSINARI apud
HAREL, 2005, p. 98)
Fulvio Caccia considera relevante a relação com a língua,
mais do que a relação com o território pois a língua é “habitada”
de maneira diferente segundo se está em sua terra natal ou em
outro espaço. Ele aborda a questão lingüística ao tratar do imigrante que escreve em uma língua que não é a sua; como Kafka,
ele faria um uso intensivo da língua, porque o imigrante, ao
aprender e escrever em francês (ou inglês), sofre interferências
tanto de sua língua de origem (italiano e seus dialetos) quanto
da outra língua falada no Quebec. Assim, o que caracteriza seu
texto é a impureza, a mescla.
A transculturação narrativa de Angel Rama designa o
processo de transformação do romance na América Latina, no
qual os escritores se apropriam de uma linguagem popular, a
fim de superar um certo regionalismo de corte naturalista, desterritorializando a língua espanhola ou portuguesa, sem cair na
armadilha de usar duas linguagens diferentes, a do narrador e
a dos personagens. Como os escritores migrantes do Quebec,
que recriam uma certa oralidade em que emerge uma mescla
lingüística, os romancistas da transculturação latino-americana
também usam uma estética da oralidade a fim de dar conta da
heterogeneidade da região. Os romancistas transculturadores
registram a perda do uso das linguagens dialetais e “abandonam muitos termos com os quais os ‘crioulistas’ salpicavam
seus escritos, limitando-se às palavras de uso corrente”. Por
outro lado, “compensam isso com a ampliação significativa do
campo semântico regional e da ordem sintática (RAMA, 2001,
p.219). Rama aplica seu conceito de transculturação narrativa
a escritores de diferentes países (Garcia Marquez, Juan Rulfo,
Guimarães Rosa), contudo detém-se mais na análise da obra do
peruano José Maria Arguedas, que tem um trabalho estilístico
ao transgredir a língua espanhola a partir da interferência do
quéchua: “Eu resolvi o problema criando uma linguagem castelhana especial, que depois foi empregada com horrível exagero
em trabalhos alheios” (ARGUEDAS, 1993, p. 215).
De modo homólogo à crítica da mestiçagem no Brasil como
discurso homogeneizador que apaga a diferença e mantém os
privilégios das elites “brancas”, alguns críticos nos Estados Unidos (Moreiras, 2001, Mignolo, 2007) consideram problemáticas
tanto a transculturação quanto outras noções homólogas, que
revelariam uma visão reconciliadora e eurocêntrica, que pretende integrar os povos subalternos à corrente modernizadora
representada pelo colonialismo europeu. Neste sentido, não
existiria propriamente transculturação mas ainda e sempre aculturação o que, em termos políticos, corresponde à dominação.
74
Gragoata 22.indb 74
Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:07
Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações
Beverly (1998) considera que a transculturação funciona, tanto
em Ortiz quanto em Rama, como uma teleologia, já que sua
visada é a da formação da cultura “nacional”. Assim, o discurso
da transculturação — como o discurso da mestiçagem — seria
uma ideologia cultural do devir da América nos diferentes projetos de nação, seguindo a onda modernizadora ocidental. Este
pensamento esbarra hoje na emergência de contra-discursos
dos movimentos negros e indígenas7.
Novos discursos da mestiçagem
e do hibridismo no mundo globalizado
Ver o artigo de Walter
Mignolo neste número
da Gragoatá, no qual ele
desenvolve a proposta
de desobediência epistêmica e desobediência
política.
7
O discurso da mestiçagem no fim do século XX, por um
deslizamento semântico que o esvazia de seu sentido biológico
original, entra na moda, servindo para designar novos fenômenos provocados pela imigração nas sociedades multiculturais da
América do Norte e da Europa, que vão do terreno da música até
a cozinha, passando naturalmente pela questão literária. Alexis
Nouss destaca a apropriação deste conceito pela indústria do
entretenimento, da moda e da publicidade, designando superficialmente todo efeito de mistura ou cruzamento de culturas.
Isto é mais visível no terreno da música, com todas as variações
da denominada world music: mistura de ritmos, instrumentos
ou sonoridades de música ocidental com tudo o que pode ser
visto como “étnico”. Curiosamente, o termo “étnico” designa
tudo o que não é branco (europeu ou norte-americano), como se
étnico se aplicasse apenas ao Outro da Europa. Assim a música
“mestiça” seria a mistura na qual entraria um pouco de música
africana, afro-brasileira, afro-jamaicana, afro-americana, indiana ou árabe.
François Laplantine e Alexis Nouss pretendem reinvestir
positivamente o conceito de mestiçagem a fim de tirar dele as
ressonâncias éticas para o mundo contemporâneo. Nouss (2005)
considera a mestiçagem como um fenômeno que caracteriza a
diáspora na Europa e na América do Norte, em que o sujeito
pertence a duas culturas ao mesmo tempo, sem querer abrir
mão de nenhuma delas, porque não recusa nenhuma identidade
que possui, aceitando, ao contrário, identidades plurais. Neste
sentido, pode-se dizer que o conceito de mestiçagem tal como
empregado por Nouss aproxima- se da visão do escritor senegalês Léopold S. Senghor (1906-2001), que se dizia um mestiço
porque nele coexistiam a herança africana e a educação francesa.
Para definir sua situação, Senghor (apud LÜSEBRINK, 1993, p.
96) usou uma expressão oriunda da área da botânica, enxerto
cultural (greffe culturelle). Recusando tanto a perspectiva estigmatizante da exclusão, que vem do contexto colonial, quanto
a recuperação comercial, no contexto da globalização, Nouss
aposta que a mestiçagem cria dispositivos de identificação e de
reconhecimento socioculturais com tal flexibilidade que podem
Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 75
75
6/11/2007 14:26:08
Gragoatá
Eurídice Figueiredo
funcionar como antídoto para as tentações de fechamento em
guetos e de essencialismos étnicos.
Este uso do conceito de mestiçagem me parece ser gerador
de ambigüidades por provocar um deslizamento semântico que
o esvazia de sentido, pelo menos tal como o entendemos na
América Latina. Compartilho da opinião do historiador Serge
Gruzinski (2001, p. 62), grande especialista da história do México,
segundo o qual estes fenômenos da contemporaneidade, que
ocorrem como fruto da diáspora de migrantes em direção aos países mais ricos, devem ser antes designados por conceitos como
hibridismo ou hibridação, deixando o conceito de mestiçagem
para as sociedades latino-americanas que foram constituídas
como fruto da dupla mestiçagem biológica e cultural. Gruzinski
afirma que este novo discurso da mestiçagem, no âmbito da
globalização, não é inocente; ele corresponde a uma carência de
novidade das elites que consumiam antigamente o exotismo e
que hoje querem estar “na moda” em tudo o que ainda pode
surpreender (GRUZINSKI, 2001). O hibridismo ou a hibridação
designaria mais adeqüadamente as misturas que ocorrem nas
sociedades multiculturais da Europa e da América do Norte, que
preservam seus grupos “étnicos” em sociedades mosaicos, ou
seja, a sociedade majoritária (branca) e hegemônica, que detém
os poderes políticos e econômicos, convive com as culturas dos
imigrantes. Vários aspectos da vida são atingidos pela entrada
em circulação de novos sons, odores, sabores, comidas, imagens,
cores, memórias, vindas de fora.
No mundo latino-americano é o antropólogo argentino
radicado no México, Néstor García Canclini, o autor que mais
tem divulgado esta noção, desde a publicação de Las culturas
híbridas, livro que foi amplamente traduzido e comentado. O
autor faz uma análise tanto sincrônica quanto diacrônica, dando
conta dos sincretismos, mestiçagens e hibridismos ao longo da
história latino-americana, e ao mesmo tempo fazendo estudos
de campo sobretudo nas zonas de contato entre hispânicos e
anglos. Ele demonstra a existência de cruzamentos culturais
operados pela diáspora e pelo exílio; explora também as diferentes temporalidades em comunidades indígenas e mestiças
no México, com formas culturais pré-modernas, modernas e
pós-modernas, simultaneamente; explora também os enlaces, às
vezes surpreendentes, de elementos de cultura tradicional e de
cultura de massa. Sua visada elimina qualquer vislumbre de uma
pretensa autenticidade ou originalidade; ele dá conta, ao contrário, da impureza, da mescla — caráter desde sempre presente
na história latino-americana — e sobretudo da impossibilidade
de se funcionar de maneira pura e monolítica. No livro Diferentes, desiguais e desconectados, García Canclini trata de escapar da
“exaltação indiscriminada da fragmentação e do nomadismo” (2005,
p. 27) característica do pensamento teórico pós-moderno, numa
76
Gragoata 22.indb 76
Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:08
Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações
crítica direta a Michel Maffesoli, que uniformizaria indiscriminadamente todos os viajantes, sejam eles membros de uma elite
cosmopolita, sejam eles pobres imigrantes.
O hibridismo de Homi Bhabha, principal responsável pela
divulgação e expansão do conceito no mundo de língua inglesa, tem uma inspiração literária pois ele o formula a partir
dos estudos de Mikail Bakhtin sobre o romance. A construção
híbrida é, para Bakhtin, “um enunciado que, de acordo com
seus índices gramaticais (sintáticos) e composicionais, pertence
a um só locutor, mas no qual se confundem, na realidade, dois
enunciados, duas maneiras de falar, dois estilos, duas ‘línguas’,
duas perspectivas semânticas e sociológicas” (BAKHTINE, 1978,
p. 125). Com o apoio do pensamento de Derrida, Bhabha amplia
a noção do híbrido para o terreno da história da colonização, recusando dicotomias e raciocínios binários, refutando, portanto, o
cenário de antagonismos férreos entre colonizador e colonizado,
opressor e oprimido, já que ele concebe um entre-lugar, um third
space, espaço intervalar que permite a negociação de valores e
de reconhecimentos.
O discurso da crioulidade e da crioulização
Edouard Glissant afirmava em L’intention poétique (1969)
que a mestiçagem é uma condenação e que o mestiço se considera um fracassado porque ele é objeto de escândalo, já que
existe vergonha de alguma coisa em sua origem, sua bastardia,
ou abandono do pai ou alguma impossibilidade de realização.
Para ultrapassar a vergonha, Glissant concebe a possibilidade de
resgatar o valor do compósito dentro da perspectiva da Relação
a fim de poder se chegar à mestiçagem. “A Relação carrega o
universo à fecunda mestiçagem” (GLISSANT, 1969, p. 219). Em
texto mais recente (1999), porém, Glissant salienta que a nova
concepção da mestiçagem — mais metafórica e mais próxima do
hibridismo — aboliu o mestiço (o bastardo). Como sua rejeição
à mestiçagem residia no mal-estar provocado pelo histórico
estatuto dúbio do mestiço, atualmente a mestiçagem lhe parece
menos indigesta. “Neste contexto, a mestiçagem não aparece
mais como atribuição maldita do ser, mas cada vez mais como
uma fonte possível de riquezas e de disponibilidades. Mas creio
que, à medida que a mestiçagem se generaliza, é a categoria do
mestiço que cai” (GLISSANT, 1999, p.49). A mestiçagem está
presente no pensamento de Glissant como algo incontornável
no Caribe mesmo quando a palavra não é nomeada. Assim, ele
retoma a idéia de simbiose de cultura com a junção das grandes
raças do mundo, diferentemente da Europa que conheceu uma
mestiçagem de povos igualmente brancos.
A mestiçagem também está embutida no conceito de
crioulidade, introduzido por Jean Bernabé, Raphaël Confiant
e Patrick Chamoiseau no livro Eloge de la créolité, cujo primeiro
Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 77
77
6/11/2007 14:26:08
Gragoatá
Eurídice Figueiredo
parágrafo — “Nem Europeus, nem Africanos, nem Asiáticos,
nós nos proclamamos Crioulos” (1989, p. 13) — remete à frase
de Glissant de que os antilhanos deveriam reivindicar “as virtudes e as tradições tanto negras quanto indígenas e européias”
(GLISSANT, 1969, p. 142) e evoca também uma frase de Simon
Bolívar, cuja construção sintática é bem semelhante: “Não somos europeus, não somos índios....somos um pequeno gênero
humano, possuímos um mundo a parte” (apud USLAR PIETRI,
1992, p. 82). Ao afirmar pela negativa, tanto Bolívar quanto os
signatários do Eloge parecem querer afastar a possibilidade de
existirem seres puros, europeus ou índios. Bernabé, Confiant e
Chamoiseau parecem anunciar que a crioulidade é homóloga
da mestiçagem (ao mesmo tempo biológica e cultural), ideologema que foi reivindicado pela América Latina como marca de
sua identidade. Entretanto, não aceitam esta associação porque
compreendem a mestiçagem como uma síntese, uma unicidade,
o que recusam para a crioulidade que seria “uma especificidade
aberta” (BERNABÉ, CHAMOISEAU, CONFIANT, 1989, p. 27). É
preciso observar que, quando os signatários do Eloge se referem
à zona das plantações, afirmam a mistura com o surgimento de
uma “humanidade nova”, fruto, portanto, da mestiçagem (que
eles denegam):
Durante três séculos, as ilhas e as partes de continente que
este fenômeno afetou foram verdadeiras usinas de uma humanidade nova, aquelas em que línguas, raças, religiões, costumes,
maneiras de ser de todas as faces do mundo, se encontraram
brutalmente desterritorializadas, transplantadas para uma
região onde elas tiveram que reinventar a vida. (BERNABÉ,
CHAMOISEAU, CONFIANT, 1989, p. 26. Grifo meu).
Mesmo do ponto de
vista estritamente genético os resultados da
miscigenação são imprevisíveis, conforme se
pode ver nas pesquisas
empreendidas pelo geneticista Sérgio Sena,
da UFMG. Causou uma
certa sensação o resultado do exame de DNA de
algumas celebridades
brasileiras. Neguinho
da Beija-Flor, por exemplo, que é negro, tem
67% de ancestralidade
européia.
8
78
Gragoata 22.indb 78
Glissant retoma o conceito de crioulidade, afirmando,
entretanto, preferir usar o termo de crioulização, mais apto a
conferir um sentido de processo, já que a crioulidade exprimiria
uma essência, como a latinidade, a francidade. Glissant opõe a
mestiçagem, concebida como uma síntese, à crioulização, que
seria “a mestiçagem sem limites, cujos elementos são multiplicados [e] os resultados imprevisíveis” (GLISSANT, 1990, p. 46). No
entanto, considero esta crítica improcedente pois a mestiçagem,
em seu duplo sentido biológico e cultural, é um processo muito
mais amplo e muito mais universal, que afeta toda a vida das
comunidades. Ao contrário do que afirma Glissant, o conceito
da mestiçagem pode ser encarado como um longo processo que,
não só não termina em uma síntese, como está em constante
devir, com resultados imprevisíveis8.
Se por um lado, a crioulização busca dar conta da transformação da sociedade, por outro, ela designa um fenômeno
lingüístico-literário. Apesar de algumas denegações, os termos
crioulidade e crioulização se baseiam na existência da língua
Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:08
Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações
crioula e da utilização estilística que é feita pelos escritores:
“Eu chamei este fenômeno de crioulização, naturalmente por
causa das línguas crioulas” (GLISSANT, 1999, p. 50). Assim, a
crioulização seria o processo de transformação da linguagem
na narrativa antilhana, que se nutre dos contos crioulos e adota
a economia da língua crioula no interior da língua francesa. A
crioulização, que se distingue do crioulismo, pretende engendrar
uma linguagem capaz de tecer as poéticas crioulas, barrocas,
presentes na oralidade tradicional, em contraste com a economia
da língua francesa, muito mais concisa, clara e clássica.
Conclusão
A crioulização, nesta acepção literária aplicada ao romance
antilhano, remete à transculturação narrativa (Ángel Rama), à
transcultura (Fulvio Caccia) e à construção híbrida de Bakhtin
que inspirou o hibridismo de Bhabha. Todas estas noções lidam com a concepção bakhtiniana da coexistência de duas (ou
mais) linguagens no romance. Constata-se uma flutuação e um
deslizamento de um termo para outro nos textos de diferentes
escritores. Até mesmo o conceito de mestiçagem — até recentemente tão vilipendiado — já deslizou para o terreno da literatura
e da língua, em um claro processo de eufemização. Assim, por
exemplo, Fulvio Caccia fala de “mestiçagem do francês” (apud
HAREL, 2005, p. 101) para se referir a Patrick Chamoiseau, que
usa uma linguagem particular ao empregar um francês contaminado pelo crioulo (que corresponderia, segundo o próprio Chamoiseau, à crioulidade). A romancista antilhana Maryse Condé
fala de literatura mestiça, considerando que “a mestiçagem do
texto se apóia no esforço do escritor de ser apreendido em sua
dupla dimensão cultural” (CONDÉ, 1999, p. 211). Ela dá exemplos
de alguns escritores africanos (Amadou Kourouma, Chinua
Achebe, Wilson Harris) que contaminam o francês ou o inglês
com línguas nativas, ou seja, a mestiçagem do texto de Condé
neste caso revela-se homóloga dos conceitos de crioulização e
de transculturação narrativa. Nos três casos é a própria forma
do romance europeu que se transforma em países pós-coloniais
pela incorporação de elementos que pertencem a outras tradições, fundamentalmente orais. Ao se referir a Proust, segundo
o qual “os belos textos são sempre escritos em uma espécie de
língua estrangeira” (apud CONDÉ, 1999, p. 214), Condé assinala
que o enfrentamento da língua não é prerrogativa de escritores
pós-coloniais pois o autor está sempre diante de uma língua que
ele deve transgredir, penetrar, violar, para criar nela um texto
literário. Ela evoca também Bakhtin, para quem o artista deve
utilizar palavras habitadas pelas vozes dos outros. A mestiçagem
do texto não é uma questão de etnicidade até porque todos se
tornam mestiços no mundo contemporâneo. “O desafio, segundo
Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 79
79
6/11/2007 14:26:09
Gragoatá
Estes dois autores são
citados com freqüência
(às vezes de segunda
mão); já Gilberto Freyre,
embora seu Casa-grande
& senzala ten ha sido
traduzido em francês
e inglês, é totalmente
ignorado.
10
“Reversi ng Marx’s
judgement, we could
say that many parts of
‘T h i rd World’ today
show Europe the image
of its own future. On the
positive side we could
list features such as the
development of multireligious, multi-ethnic
and multi-cultural societies, the cross cultural life models and
the multiplication of
sovereignties. On the
negative side we could
point to the spread of
the informal sector, the
flexibilization of labour,
the legal deregulation
of large areas of the
e c o n o my a n d wo rk
relations, the growth
of unemployment and
underemployment [...].
And as you say, radicalization of inequalities,
high rates of everyday
violence a nd cri me”
(BECK, 2007).
11
“En unas pocas centurias, the future will
belong to the mestiza.
Because the future depends on the breaking
down of paradigms, it
depends on the straddling of two or more
cultures. By creating a
new mythos — that is,
a change in the way we
perceive reality, the way
we see ourselves, and
the ways we behave —
la mestiza creates a new
consciousness”
9
80
Gragoata 22.indb 80
Eurídice Figueiredo
ela, consiste em aceitar este fato e integrar este pluriculturalismo em nossas existências, o que certos escritores já aceitaram e
integraram em seu texto” (CONDÉ, 1999, p. 217).
Assim, sem querer apagar as diferenças e sem cair em
amálgama simplificador, pode-se perceber que a transculturação
narrativa latino-americana, deve-se ressaltar a maneira pela qual
os novos discursos críticos, no âmbito do cultural e do político,
começam a se aproximar de teorizações latino-americanas e
caribenhas mais antigas (de Frantz Fanon, de Fernando Ortiz)9.
Assim, conceitos como mestiçagem, hibridismo ou hibridação,
transculturação ou ainda relações transculturais/interculturais
entram em circulação para dar conta de mudanças profundas no
centro dos grandes impérios ocidentais, que pareciam até então
imunes a um processo tão característico da América Latina e do
Caribe. É por isto que certos autores como Ulrich Beck (2007)
falam de “Brazilianization of the world”10: do lado positivo, mestiçagem, multiplicidade étnica e cultural, sincretismo religioso;
do lado negativo, heterogeneidade, desemprego, desigualdades
sociais, violência. Beck usa o Brasil como símbolo da mestiçagem que caracteriza as transformações globais, indo assim ao
encontro da afirmação de Glissant de que o mundo se criouliza.
De maneira mais poética, Gloria Anzaldúa diz o mesmo ao se
referir à figura da mestiça, numa visão profética: “En unas pocas
centurias, o futuro pertencerá à mestiza”.11 (ANZALDÚA, 1999,
p. 102).
Abstract
This text proposes a cross reading of discourses of
mestiçagem and other discourses of transculturation, hybridism and creolization, mapping the
ways they have been conceptualized throughout
XXth century by some important authors in Latin
America — continent emblematic of mestiçagem.
It demonstrates, afterward, how they extrapolated
this continent and have been used other contexts
as a consequence of the flew of immigrants, in a
diaspora that changes the aspect of countries such
as Great-Britain, France, the United States and
Canada, so far considered homogeneous, in ethnic
and cultural point of view. Writers from different
regions started to use these four terms, generally
as synonymous. The text offers a reflection on
the transit of these concepts in order to establish
their historicity and to detect how the ressemantizations occurred.
Keywords: mestiçagem; hybridism, creolization;
transculturation.
Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:09
Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações
Referências
ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La frontera: The new mestiza.
San Francisco: Aunt Lute Books, 1999.
APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai; a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro:Contraponto, 1997.
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Guerra e paz. Casa-Grande &
Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. S. Paulo: Editora
34, 1994.
ARGUEDAS, José Maria. Un mundo de monstruos y de fuego. Selección y introducción de Abelardo Oquendo. Mexico:Fondo de
Cultura Económica, 1993.
BAKHTINE, Mikhaïl. Esthétique et théorie du roman. Paris :Gallimard, 1978.
BECK, Ulrich. What is the Globalization ? Some Radical Questions. Disponível em http://www.tsd.unifi.it/jg/en/surveys/
wlgo/beck.htm . Acesso em 14/02/2007.
BERNABÉ, Jean, CONFIANT, Raphaël, CHAMOISEAU, Patrick.
Eloge de la créolité. Paris: Gallimard, 1989.
BEVERLY, John. Siete aproximaciones al “problema indígena”.
In: MORAÑA. Mabel (ed.). Indigenismo hacia el fin del milenio.
Homenaje a Antonio Cornejo-Polar. Pittsburgh:Universidad de
Pittsburgh, IILI, 1998.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte :Editora
UFMG, 1998.
BOURDIEU, Pierre, WACQUANT, Loïc. On the Cunning of
Imperialism Reason. Theory, Culture & Society. SAGE, London,
Thousand Oaks and New Delhi, vol. 16(1), 1999. p. 41-58.
CARRIZO, Silvina. Mestiçagem. In: FIGUEIREDO, Eurídice
(org). Conceitos de literatura e cultura. Juiz de Fora: Editora UFJF/
Niterói:EdUFF, 2005.
CHANADY, Amaryll. Nacional Reconciliation and Colonial
Resistance: The Notion of Hybridity in José Martí. Critical
Studies. Unforseeable Americas: Questioning Cultural Hybridity in
the Americas. Vol. 13. Ed. By Rita De Grandis and Zilá Bernd.
Amsterdam-Atlanta: Rodopi, 2000. p. 21-33.
CHIAMPI, Irlemar. Introdução. A História tecida pela imagen. In: LEZAMA LIMA, José. A expressão americana. São
Paulo:Brasiliense, 1988.
CONDÉ, Maryse. Le métissage du texte. In : KANDÉ, Sylvie
(dir). Discours sur le métissage, identités métisses. Em quête d’Ariel.
Paris: L’Harmattan, 1999.
COSER, Stelamaris. Híbrido, hibridismo e hibridização. In: FIGUEIREDO, Eurídice (org). Conceitos de literatura e cultura. Juiz
de Fora: Editora UFJF/ Niterói:EdUFF, 2005.
Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 81
81
6/11/2007 14:26:09
Gragoatá
Eurídice Figueiredo
DOMINGUEZ MICHAEL, Christopher. Prólogo In: VASCONCELOS, José. Obra selecta. Caracas :Biblioteca Ayacucho, 1992.
FELL, Eve-Marie. Primeras reformulaciones: del pensamiento
racista al despertar de la conciencia revolucionaria. In: PIZARRO,
Ana. Palabra, literatura e cultura. Vol. 2. Emancipação do discurso. S. Paulo:Memorial da América Latina/Campinas:Editora da
UNICAMP, 1994.
FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. Caliban e outros ensaios. São
Paulo:Busca Vida, 1988.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Formação da sociedade brasileira sob o regime da economia patriarcal. Rio de
Janeiro:José Olympio, Brasília:INL-MEC, 1980.
______. Sobrados e mucambos. Decadência do patriarcado rural e
desenvolvimento do urbano. S. Paulo:Global, 2003.
FRY, Peter. A persistência das raças. Ensaios antropológicos sobre
o Brasil e a África Austral. São Paulo:Civilização Brasileira,
2005.
______, MAGGIE, Yvonne, MAIO, Marcos Chor, MONTEIRO,
Simone, SANTOS, Ricardo Ventura (org). Divisões perigosas.Políticas raciais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro:Civilização
Brasileira, 2007.
GARCÍA CANCLINI, Néstor. Culturas híbridas. S. Paulo:EDUSP,
2006.
______. Diferentes, desiguais e desconectados. Rio de Janeiro:Editora
UFRJ, 2005.
GILROY, Paul. O Atlântico negro. Modernidade e dupla consciência. S. Paulo:Editora 34, Rio de Janeiro:UCAM, 2001.
GLISSANT, Edouard. Poétique de la Relation. Paris: Seuil, 1990.
______. Traité du Tout-Monde. Paris: Gallimard, 1997.
______. Métissage et créolisation. In: KANDÉ, Sylvie (dir).
Discours sur le métissage, identités métisses. Em quête d’Ariel. Paris:
L’Harmattan, 1999.
HALL, Stuart. Da diáspora. Identidades e mediações culturais.
Belo Horizonte:Editora UFMG, 2003.
HANCHARD, Michael. Orfeu e o poder. Movimento negro no
Rio de Janeiro e São Paulo (1945-1988). Rio de Janeiro:Ed. UERJ,
2001.
______. Acts of Misrecognition: Transnational Black Politics,
Anti-Imperialism and the Ethnocentrisms of Pierre Bourdieu
and Loïc Wacquant. Theory, Culture & Society. SAGE, London,
Thousand Oaks and New Delhi, vol. 20(4), 2003. p. 5-29.
82
Gragoata 22.indb 82
Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:10
Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações
LÜSEBRINK, Hans-Jürgen. « Métissage ». Contours et enjeux
d’un concept carrefour dans l’aire francophone. Etudes Littéraires. Métissages. Les littératures de la Caraïbe et du Brésil. Université
Laval, vol. 25, n. 3, Hiver 1992-1993.
MARTÍ, José. Nuestra América. Buenos Aires:Nuestra América
Ed, 2005.
MIGNOLO, Walter. Histórias locais/Projetos globais. Colonialidade,
saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte:Editora
UFMG, 2003.
MOREIRAS, Alberto. A exaustão da diferença: a política dos estudos culturais na América Latina. Belo Horizonte:Editora UFMG,
2001.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil.
Identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte :
Autêntica, 2006.
NOUSS, Alexis. Deux pas de danse pour aider à penser le métissage. In : TURGEON, Laurier (dir.). Regards croisés sur le métissage.
Québec : PUL, 2002.
______. Plaidoyer pour un monde métis. Paris :Textuel, 2005.
ORTIZ, Fernando. Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar.
(Advertencia de sus contrastes agrarios, económicos, históricos
y sociales, su etnografia y su transculturación). La Habana:
Consejo Nacional de Cultura, 1963.
PINTO, L. A. Costa. O negro no Rio de Janeiro. Relações de raças
numa sociedade em mudança. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1998.
RAMA, Ángel. Introducción. In: ARGUEDAS, José Maria. Formación de una cultura nacional indoamericana. México:Siglo XXI
editores, 1998.
REIS, Lívia. Transculturação e transculturação narrativa. In:
FIGUEIREDO, Eurídice (org). Conceitos de literatura e cultura. Juiz
de Fora: Editora UFJF/ Niterói:EdUFF, 2005.
RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. In: Caderno 2/
Cultura. O Estado de S. Paulo, 24 de abril de 2005. p. D3.
SANTOS, Gislene Aparecida. A invenção do ser negro (um percurso das idéias que naturalizaram a inferioridade dos negros). S.
Paulo:Educ/Fapesp; Rio de Janeiro:Pallas, 2005.
TURGEON, Laurier. Métissages, de glissements en transferts de
sens. In : TURGEON, Laurier (dir.). Regards croisés sur le métissage.
Québec : PUL, 2002.
USLAR PIETRI, Arturo. La creación del Nuevo Mundo. México:
Editorial Mapfre/Fondo de Cultura Econômica, 1992.
VASCONCELOS, José. Obra selecta. Caracas :Biblioteca Ayacucho,
1992.
Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 83
83
6/11/2007 14:26:10
Gragoatá
Eurídice Figueiredo
VELOSO, Caetano. Orpheus, rising from caricature. The New
York Times. Arts and Leisure; Section 2. 20 August 2000. Page
1, Column 1.
VILLANOVA, Roselyne, VERMÈS, Geneviève (dir). Le métissage interculturel. Créativité dans les relations inégalitaires. Paris :L’Harmattan, 2005.
84
Gragoata 22.indb 84
Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:10
“Nós Outros, Neo-Ibéricos”:
O Entre-Lugar da identidade nacional
no pensamento de Manoel Bomfim
Luiz Fernando Valente
Recebido 29, jan. 2007/Aprovado 19, mar. 2007
Resumo
A obra de Manoel Bomfim (1868-1932) demonstra
uma compreensão profunda e bastante avançada
para sua época do complexo e ambíguo relacionamento entre os paises ibéricos e, para usar as
próprias palavras do pensador sergipano,”nós
outros, neo-ibéricos,” terminologia que ele prefere
a “latino-americanos.” Bomfim define o singular
espaço ocupado pelo Brasil dentro da geografia
sócio-politico-cultural lusófona em termos de
uma dialética entre uma mentalidade consciente
da sua diferença, que poderíamos qualificar como
pós-colonial já no século XVII, e o persistente
“parasitismo” da herança ibérica, que teria “infectado” nosso corpo político e social, deixando
seqüelas das quais ainda não nos conseguimos
recuperar. Rejeitando as noções de síntese e harmonia caras ao pensamento oficial e codificadas no
século XIX pelos textos de von Martius, Bomfim
constrói a identidade brasileira como um “entrelugar,” configurando-a através de uma espécie de
psicomaquia entre de um lado um espírito independente, criativo e contestador, presente desde
o inicio da nossa formação, e do outro um corpo
(sócio-político) doente, contagiado pelo decadente
colonialismo português. Seus escritos prefiguram
muitas das idéias que seriam posteriormente
desenvolvidas pela nata da intelectualidade brasileira durante a primeira metade do século XX,
como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre
e Caio Prado, Jr, entre outros.
Palavras-chave: parasitismo, pós-colonial, identidade, entre-lugar, neo-ibérico
Gragoatá
Gragoata 22.indb 85
Niterói, n. 22, p. 85-98, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:10
Gragoatá
Neste sentido é importante ressaltar que
já em 1954 Dante Moreira Leite questionava
a noção de caráter nacional, que considerava
uma “ideologia”, isto
é, “descrição que nem
sempre se fundamenta
em observações cientificamente conduzidas”
(LEITE, 1959, p. 86).
2
Antes de escrever A
América Latina: males de
origem, Bomfim, médico
por formação acadêmica, havia publicado dois
trabalhos sobre zoologia
e botânica.
1
86
Gragoata 22.indb 86
Eurídice Figueiredo
Manoel Bomfim (1868-1932) foi ao mesmo tempo um
inovador, cujo brilhantismo revolucionário freqüentemente
nadava contra a corrente, e um homem do seu tempo, cuja obra
se encaixa perfeitamente na sua época. Não resta dúvida que
seus surpreendentes escritos antecipam diversos conceitos que
associamos à teoria da dependência e ao chamado pensamento
pós-colonial, e prefiguram muitas das idéias que seriam posteriormente desenvolvidas pela nata da intelectualidade brasileira
durante a primeira metade do século XX, como Sérgio Buarque
de Holanda, Gilberto Freyre, Paulo Prado e Caio Prado, Jr, entre outros, embora destes só Gilberto Freyre parece ter lido o
pensador sergipano. Ao mesmo tempo, contudo, sua reflexão
sobre a questão da identidade brasileira não só faz parte de uma
das tendências mais marcantes na nossa história intelectual a
partir da virada do século passado – Manoel Bomfim foi um
dos primeiros “intérpretes do Brasil” – como se escora também
numa crença na possibilidade de se definir um suposto caráter
nacional, bastante prevalente entre os modernistas, mas da qual,
influenciados pelos ventos pós-modernos, nos vimos afastando
há pelo menos três décadas.1 Impulsionado pela republicação
de seus livros, o ressurgimento do interesse pela sua obra, de
impressionante atualidade apesar de alguns inevitáveis resquícios de bolor intelectual, vem colaborando para restaurar a
centralidade de Manoel Bomfim no pensamento social brasileiro
do século XX.
Neste ensaio vamos nos deter nos livros A América Latina:
males de origem (1905) e O Brasil na América: caracterização da formação brasileira (1929) com algumas pequenas incursões por duas
outras obras, a saber, O Brasil na história: deturpação das tradições,
degradação política (1930) e O Brasil nação: realidade da soberania
brasileira (1931).
O primeiro dos livros não científicos de Manoel Bomfim2
parece, à primeira vista, destoar do resto de sua obra, na medida
em que ainda trabalha com o conceito de “América Latina”, terminologia que o autor rejeitará subseqüentemente, chamando,
antes, atenção para as diferenças entre a colonização portuguesa
e a castelhana, e acentuando a heterogeneidade das nações “neoibéricas”, termo que geralmente prefere a “latino-americanas”.
Uma leitura mais atenta de A América Latina: males de origem
não deixa dúvida, contudo, que se encontra aí o embrião do seu
pensamento, a ser aprofundado, antes que rejeitado, nos livros
posteriores. Nesse livro Bomfim não propõe prioritariamente
definir uma identidade latino-americana, na qual o autor nunca
parece ter acreditado, mas refletir sobre as interconexões entre
colonizadores e colonizados, revelar a formação dos laços de
dependência entre a Europa e a América, e conceitualizar a possibilidade de uma marcha das sociedades latino-americanas na
direção do progresso, apesar de todos os seus “males de origem”.
Niterói, n. 22, p. 85-98, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:10
Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações
É, portanto, no primeiro livro que Bomfim formula o teorema
sobre o Brasil que tentará provar ao curso de sua vida.
O livro foi escrito como resposta aos europeus que, apoiados no cientificismo naturalista e no chamado racismo científico, consideravam os povos da América Latina como inferiores,
incapazes de se auto-governar e condenados irremediavelmente
ao atraso político, social e econômico. Bomfim se levanta contra
essa ideologia, que, como sabemos, exercera enorme influência no
Brasil, inclusive em intelectuais contemporâneos seus, do porte
de Euclides da Cunha, Nina Rodrigues e Sílvio Romero.3 Rejeitando a exclusão dos latino-americanos pelos europeus como um
“outro”, Bomfim insere a América Latina dentro da civilização
ocidental, qualificando aquela, ao mesmo tempo, como vítima da
colonização européia, caracterização cuja ambigüidade constitui
um dos alicerces de seu argumento:
Embora hegemônica, essa ideologia será
contestada por alguns
outros poucos intelectuais além de Manoel
Bomfim, como Araripe
Jr, em sua introdução a
Esboços e fragmentos de
Clóvis Beviláqua (1899),
Antônio Torres em O
problema nacional (1914)
e Álvaro Bomilcar em
O preconceito de raça no
Brasil (1916). Para uma
discussão mais aprofundada desses “dissidentes”, consultar o terceiro
capítulo do livro Preto
no branco: raça e nacionalidade no pensamento
brasileiro de Thomas E.
Skidmore.
4
Ver meu ensaio “Literature and Citizenship:
From Euclides da Cunha
to Marcos Dias”, especialmente as páginas
15-17.
5
O termo ja havia sido
utilizado por Oliveira
Martins desde os anos
70 do século XIX para
desig nar uma forma
de vida improdutiva,
dependente do Estado.
Em Portugal e o socialismo, Oliveira Martins
ataca o “parasit ismo
aristrocrático-tolo dos
filhos da classe média
pela educação universitária” (MARTINS, 1953,
p. 30). Agradeço essa
referência ao Professor
Sérgio Campos Matos
da Faculdade de Letras
de Lisboa.
Mas, no nosso caso, participando diretamente da civilização
ocidental, pertencendo a ela, relacionados diretamente, intimamente a todos os outros povos cultos, e sendo ao mesmo tempo
dos mais atrasados, e por conseguinte dos mais fracos, somos
forçosamente infelizes. Sofremos todos os males, desvantagens e ônus fatais às sociedades cultas, sem fruirmos quase
nenhum dos benefícios com que o progresso tem suavizado
a vida humana. (BOMFIM, 2005, p. 53)
3
É a partir da interdependência histórica entre a Europa e a
América Latina que o autor construirá a dependência moderna
dos latino-americanos em relação aos europeus. Os fundamentos do problema repousam no parasitismo colonial, resultante da
atividade depredadora da Europa, marcadamente dos países
ibéricos, no Novo Mundo, com a conivência das elites locais.
Para Bomfim, o domínio português “só veio a diferenciar-se de
uma pirataria comum em ser uma rapina organizada por um
Estado político” (BOMFIM, 2005, p. 96). Surgem aí, portanto, as
raízes de uma verdadeira mentalidade pós-colonial, que será
retomada nos livros posteriores. Bomfim revela, assim, um
pensamento bastante avançado para a época, ainda ausente,
por exemplo, mesmo em um contemporâneo politicamente progressista e combativo como Euclides da Cunha. Diferentemente
de Bomfim, Euclides não entendia, conforme indiquei em outro
texto, que a trágica exclusão do sertão não advinha simplesmente
de uma espécie de falha moral das elites brasileiras, mas estava
intimamente relacionada com a posição do Brasil numa ordem
mundial, cuja dinâmica exige que alguns países exerçam um
papel periférico e dependente, compreensão que, como Roberto
Schwarz demonstrou em Um mestre na periferia do capitalismo,
Machado de Assis já possuía.4
Um dos grandes achados retóricos de Manoel Bomfim,
a metáfora do parasitismo,5 fundamental no pensamento do
autor, merece atenção especial. Médico e cientista por formação,
Niterói, n. 22, p. 85-98, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 87
87
6/11/2007 14:26:11
Gragoatá
Eurídice Figueiredo
Bomfim encontra inspiração para essa metáfora na biologia,
mais especificamente nas pesquisas sobre um curioso animal
marinho, o Chondracanthus gibbosus. Originalmente um crustáceo, esse animal se degrada num organismo semelhante a um
verme ao se tornar uma parasita. Fixado a um outro animal, seus
órgãos se atrofiam e o Chondracanthus perde praticamente toda
a sua atividade vital, degenerando-se num organismo inferior,
e impedindo que o animal que o nutre também se desenvolva.
Bomfim traça uma analogia entre a involução do Chondracantus
e a história dos países ibéricos, especialmente nas relações com
suas colônias. Apesar de um passado glorioso, marcado por
uma impressionante incorporação de povos, raças, tradições e
costumes, no início da Idade Moderna tanto a Espanha quanto
Portugal sucumbem à cupidez que acompanhou a expansão
ultramarina e passam a viver parasitariamente dos frutos das
suas conquistas. A colonização das Américas se faz, para a infelicidade das futuras nações neo-ibéricas, já durante a decadência
peninsular, marcada pela inércia do mercantilismo:
Quando começou a colonização da América, já as nações
peninsulares estavam viciadas no parasitismo, e o regime
estabelecido é desde o começo um regime preposto exclusivamente à exploração parasitária. Desde o início da colonização,
o Estado só tem um objetivo: garantir o máximo de tributos e
extorsões. Concedem-se as terras aos representantes das classes dominantes, e estes, aqui – pois não vêm para trabalhar –
escravizam o índio para cavar a mina ou lavrar a terra. Quando
ele recalcitra ou se extingue, fazem vir os negros africanos, e
estabelece-se a forma de parasitismo social mais completa, no
dizer de Vandervelde (BOMFIM, 2005, pp. 128-129).
Uso aqui o termo
alegoria no sentido que
lhe confere Walter Benjamin, incluindo suas
conexões com ruínas
e f rag ment ação, por
oposição à unidade do
símbolo. Ver As origens
do drama barroco. : “Enquanto no símbolo a
destruição é idealizada
e o rosto transfigurado
da natureza é fugazmente revelado sob a luz
da redenção, na alegoria
o observador é confrontado com a facies hippocratica da história, vista
como uma paisagem
petrificada e primordial” (BENJAMIN, 1977,
p. 166).
6
88
Gragoata 22.indb 88
Na alegoria6 de Bomfim, todas as classes sociais são infectadas, num círculo vicioso de degradação sistemática, resultado
do “parasitismo depredador” (BOMFIM, 2005, p. 106) institucionalizado pelos colonizadores ibéricos, gerador de vícios que se
perpetuariam por séculos:
O importante era recolher a riqueza e digeri-la. Todo o mundo
correu à obra, todas as classes se incorporaram ao parasitismo.
O Estado era parasita das colônias; a Igreja parasita direta das
colônias, e parasita do Estado. Com a nobreza sucedia a mesma
coisa: ou parasitava sobre o trabalho escravo, nas colônias, ou
parasitava nas sinecuras e pensões. A burguesia parasitava nos
monopólios, no tráficos dos negros, no comércio privilegiado.
A plebe parasitava nos adros das igrejas ou nos pátios dos
fidalgos. (BOMFIM, 2005, p. 119)
Da mesma forma que a parasita é inseparável do organismo que a alimenta, a mentalidade parasitária contamina tanto
a Metrópole quanto as colônias: “A colônia é parasitada; mas
mesmo dentro da colônia, o parasitismo se exerce. Em suma, a
vítima das vítimas é o escravo, e este é o único que não tem voz,
nem para queixar-se!” (BOMFIM, 2005, p. 131). Ao contrário das
Niterói, n. 22, p. 85-98, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:11
Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações
nações do norte da Europa, a Espanha e Portugal, paralisadas
em sua evolução pelo pernicioso sistema mercantilista, perdem
o bonde da modernidade:
Enquanto os outros povos, seguindo a evolução normal das
sociedades ocidentais, passavam do viver militar ao regime
industrial, e entravam, na fase verdadeiramente produtora, as
nações ibéricas transformavam-se definitivamente em parasitas sedentários; cerravam os olhos e tapavam os ouvidos ao
progresso científico, aferravam-se a esse viver que lhes parecia
o ideal – sugar! sugar! sugar!... E de decadência em decadência,
degenerando e retrogradando sempre, chegaram a perder todo
o caráter primitivo, toda a originalidade própria – estética e
filosófica. (BOMFIM, 2005, p.131)
Ao mesmo tempo e apesar de um certo anti-americanismo,
manifestado sobretudo nas suas veementes críticas à Doutrina
Monroe,7 Bomfim contrasta a triste situação das nações neoibéricas, especialmente o Brasil, com a situação bem mais positiva
dos Estados Unidos, duas nações aparentemente tão semelhantes
e no entanto tão diferentes. Assim, Bomfim inaugura a tendência na história intelectual brasileira de olhar para o Brasil e os
Estados Unidos como imagens especulares, tendência essa que
informará o pensamento de Oliveira Lima, e eclodirá na obra de
Gilberto Freyre, Érico Veríssimo, Vianna Moog, Richard Morse
e mais recentemente Roberto daMatta8:
Pa ra uma mel hor
compreensão deste aspecto do pensamento de
Bomfim, examinem-se
as páginas 48-51, inclusive as notas de rodapé,
de A América Latina:
males de origem.
8
Refiro-me a livros
como América latina e
América ingleza: a evolução brazileira comparada
com a hispano-americana
e com a anglo-americana
de Manuel de Oliveira Lima, Casa grande
e senzala de Gilberto
Freyre, Gato preto em
campo de neve e A volta
do gato preto de Érico
Veríssimo, Bandeirantes
e pioneiros de Clodomiro
Vianna Moog, O espelho
de Próspero de Richard
Morse e Tocquevillianas
de Roberto da Matta.
Na América do Norte, os estados do Sul estão, hoje, em situação
bem próspera, apesar da escravidão. É que as colônias inglesas
puderam organizar-se desde logo segundo convinha aos seus
próprios interesses, e não foram vítimas de um parasitismo
integral, como esse que as metrópoles ibéricas estabeleceram
para suas colônias. Aqui os maus efeitos da escravidão se
complicaram e se agravaram com as desastrosas conseqüências dos monopólios e privilégios – os exclusivos mercantis,
instituídos sobre o comércio colonial, as restrições fiscais, o
sistema bárbaro dos tributos, o embaraço, a proibição formal
às indústrias manufatureiras, tornando-se impossível qualquer esforço de iniciativa particular, pela interdicão de toda
inovação progressista. (BOMFIM, 2005, p. 150)
7
Ao utilizar a metáfora da parasita para explicar a formação e identificar as origens da situação atual das nações latinoamericanas, Manoel Bomfim realiza uma das críticas mais
eloqüentes das conseqüências nefastas do mercantilismo ibérico,
tais como a desvalorização do trabalho e a perpetuação do sistema escravocrata como entraves à modernização, prefigurando
o Sérgio Buarque de Holanda de Raízes do Brasil (1936) e o Caio
Prado, Jr. de Formação do Brasil contemporâneo (1942). Ao mesmo
tempo, assumindo uma postura liberal clássica, apesar de uma
tendência generalizada ao socialismo no seu pensamento, o
autor demonstra uma mentalidade afinada com o pensamento
econômico mais moderno, que, com a exceção de algumas poucas
Niterói, n. 22, p. 85-98, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 89
89
6/11/2007 14:26:12
Gragoatá
Eurídice Figueiredo
figuras como João Pandiá Calógeras (1870-1934) e Rui Barbosa
(1849-1923)9, era raro na jovem república brasileira do café com
leite, dominada pelo protecionismo governamental em prol dos
interesses rurais, especialmente os cafeeiros. Paradoxalmente,
contudo, Bomfim não deixa de ser um homem de seu tempo. A
metáfora do parasitismo está vinculada a uma concepção biológica da sociedade, bastante comum na época. Quando Bomfim,
para justificar a adequação dessa metáfora, escreve que “as sociedades existem como verdadeiros organismos, sujeitos como
outros a leis categóricas” (BOMFIM, 2005, p. 57), ouvimos uma
melodia claramente positivista malgrado os ataques de Bomfim
à filosofia positiva. Essa melodia reaparece na sua fé inabalável
no progresso, com base na reforma da sociedade, a ser atingida
especialmente através de suas propostas educacionais.10 O livro
tem um fecho que, com seu desbragado ufanismo e suas veleidades parnasianas, é digno de Afonso Celso e Olavo Bilac11:
Seria bom lembrar
que, apesar do paralelismo aqui traçado,
Manoel Bomfim tinha
pouca simpatia por Rui
Barbosa, tendo-se inclusive demitido de sua
posição de colaborador de A Nação, de que
era redator-chefe seu
grande amigo Alcindo
Guanabara, por ter esse
periódico publicado um
discurso de Rui Barbosa, cujo pensamento
católico Bomfim julgava
ser incompatível com a
proposta socialista do
jornal. Para uma narrativa documentada dessa
polêmica, consultar o
livro O rebelde esquecido:
tempo, vida e obra de Manoel Bomfim de Ronaldo
Conde Aguiar, pp. 261267.
10
Sobre a aversão de
Bomfim ao positivismo,
ver AGUIAR, 2000, pp.
141-146. Segundo Aguiar
os maiores pontos de
discordância seriam a
tendência positivista
a ver a educação como
meramente utilitária e o
descaso dos positivistas
pela educação elementar
generalizada, uma das
obsessões de Bomfim.
11
É bom lembrar que
Olavo Bilac foi amigo e
colaborador de Bomfim,
tendo os autores escrito
a quatro mãos o livro
Através do Brasil, destinado ao curso médio.
9
90
Gragoata 22.indb 90
Deixemos às gentes conservadoras e refletidas o condenar e
desprezar a utopia – Marthas, absorvidas na banalidade comum, que o uso já mecanizou; queiramos o que será a glória
de amanhã: uma América feliz, na clemência de seu clima,
no esplendor deste céu, inteligente, laboriosa e pacífica na
comunhão social, meiga e fraterna na expansão natural da
instintiva cordialidade, apartada dos egoísmos ferozes que
aviltam outras civilizações. Que “os mortos enterrem seus
mortos”; voltemo-nos para a ação fecunda, demos à vida toda
a nossa atividade, e ela nos levará para o progresso e para a
vitória, como leva a árvore para o alto e para a luz. (BOMFIM,
2005, p. 383)
Essa conclusão mal oculta, porém, um espinhoso problema
conceitual, ao qual Bomfim retornará em O Brasil na América:
como conciliar essa visão utópica de uma América Latina feliz
no porvir com os efeitos supostamente degenerativos do parasitismo. Sem maiores explicações, o autor propõe que a colônia
“não participa da degeneração integral que invade a metrópole”
(BOMFIM, 2005, p.342) e que a maior parte da colônia “protesta
logo contra o regime, põe-se em oposição a ele, resiste, por conseguinte, à marcha degenerativa” (BOMFIM, 2005, p.343). Ao
mesmo tempo Bomfim rejeita o determinismo característico das
concepções cientificistas da sociedade, sugerindo que “o parasitismo social não é irredutível como o parasitismo biológico”
(BOMFIM, 2005, p.343) e que o parasitismo se pode regenerar
desde que sejam reconhecidas as causas da degeneração. Ao
pretender identificar os “males de origem,” o livro de Bomfim
configura-se, portanto, como verdadeira arma de combate,
inserindo-se no processo educacional que o autor julga ser imprescindível para a transformação da sociedade:
Reclamando a difusão da instrução, a prática da ciência, como
o meio de curar os nossos males essenciais, e de avançar para
Niterói, n. 22, p. 85-98, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:12
Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações
o progresso, não queremos atribuir à cultura intelectual nenhuma virtude miraculosa, senão a importância que ela teve e
tem na história da civilização. Demos que a instrução não seja
o objetivo único do progresso; não se poderá negar, porém,
que é um dos seus objetivos, um dos fins e, ao mesmo tempo,
um meio – o meio principal (BOMFIM, 2005, p.363).
É importante ressaltar, todavia, que essa regeneração é
apresentada como dependendo igualmente de um suposto caráter nacional, intrínseco à identidade neo-ibérica. Em contraste
com sua análise do parasitismo, o autor aponta uma série de
caracteres potencialmente positivos, que teriam sido paradoxalmente transmitidos pelos ibéricos aos neo-ibéricos e que
contrabalançariam a influência do parasitismo, possibilitando
essa transformação. Prefigurando Sérgio Buarque de Holanda,
Bomfim destaca com orgulho a plasticidade ibérica, expressa
numa enorme capacidade de assimilação: “Este poder de assimilação deriva de uma grande plasticidade intelectual e de uma
sociabilidade desenvolvidíssima, qualidades preciosas para o
progresso, e mercê das quais estas nacionalidades seriam hoje
entre as primeiras do Ocidente, se não tivessem derivado para o
parasitismo que as degradou” (BOMFIM, 2005, p.259). Opondo-se
à ideologia dominante em sua época, Bomfim rejeita os conceitos
de raças superiores e inferiores, nega que a mistura de raças
conduza à degeneração, afirma a ausência de preconceito racial
no Brasil, e faz uma apologia da mestiçagem que só será retomada com a mesma eloqüência três décadas depois por Gilberto
Freyre. Todavia, apesar de sua compreensão bastante avançada
da relação entre colonizador e colonizado, o que Bomfim não
consegue entender, preso ainda ao essencialismo do conceito de
caráter nacional – e que, obviamente, o diferencia dos críticos
pós-coloniais contemporâneos – é que a capacidade de resistência que ele mostra existir desde o início da colonização provém
não do caráter nacional, mas sim das contradições inerentes à
própria situação colonial.
Essas questões são detalhadamente trabalhadas em O Brasil
na América. Enquanto o ponto de partida do livro de 1905 era
uma reflexão sobre a experiência neo-ibérica na sua totalidade,
o livro de 1929 focaliza no Brasil em suas relações com o resto da
América. Apesar dos traços comuns, Bomfim enfatiza as diferenças entre as nações neo-ibéricas, postulando, desde o prefácio, a
excepcionalidade do Brasil: “verificado o que é comum, torna-se
indispensável destacar o que possa distinguir o Brasil entre os
outros neo-ibéricos” (BOMFIM, 1997, p. 27). Com grande presciência, Bomfim propõe que os traços que supostamente unem
os “chamados latino-americanos são, tão-somente, conseqüências
necessárias de formação colonial” (BOMFIM, 1997, p. 33) e insiste
que o próprio termo América Latina mal esconde interesses neoNiterói, n. 22, p. 85-98, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 91
91
6/11/2007 14:26:12
Gragoatá
Eurídice Figueiredo
coloniais combinados a uma ignorância quanto às verdadeiras
condições da latinoamericanidade:
Expressão de tanto uso, essa América Latina deve servir, sensatamente, para designação geográfica – do grupo de nações
formadas por ibéricos, num regime colonial de subordinação
e dependência imediata, e que logo se degradou em parasitismo, despótico, antiprogressista. No mais, é designação nula,
própria somente para a tecnologia fútil dos que, aceitando a
divisão fácil do Ocidente em – latinos, germânicos, eslavos…
voltados para esse lado, concluem, que deve haver uma América Latina, para contrapor-se à América inglesa (BOMFIM,
1997, p. 32).
Bomfim estabelece a excepcionalidade brasileira através de
um sistema de diferenças históricas e culturais. A mais básica
destas, que será retomada por Sérgio Buarque de Holanda em
sua tipologia do semeador e do ladrilhador, remonta às nossas
origens peninsulares. Diferentemente dos castelhanos, o “gênio
português”, expressão utilizada freqüentemente por Bomfim,
manifesta-se na “relativa superioridade política, e uma acentuada tendência para a unificação nacional explícita” (BOMFIM,
1997, p. 45), na “tenacidade . . . a essência do temperamento português” (BOMFIM, 1997, p. 49), bastante diverso do cavalheirismo
espanhol (BOMFIM, 1997, p. 75), na sua modernidade pioneira
(“Portugal foi a nação em que primeiro se revelou esse espírito
moderno” BOMFIM, 1997, p. 53), na sua adaptabilidade, avessa “à
rígida intransigência e à sobranceiria do castelhano” (BOMFIM,
1997, p. 76), na “aparente moleza de atitudes do português,
apenas arrastadamente obstinado, quando o espanhol é rude e
arrogante” (BOMFIM, 1997, p. 76) e até mesmo na invenção da
própria noção moderna de Império:
Portugal, esse, teve a concepção de um Império em exploração
ultramarina; esboçou-o, lançou-lhe os alicerces, e tê-lo-ia realizado, se não se corrompesse pela grandeza mesma a que se
elevara. Decaiu; outros o imitaram, ao mesmo tempo que os
espoliavam, e coube à Inglaterra o papel de alcançar, em plenitude de efeitos, os bons proventos de um tal Império, antevisto
e preparado pelo gênio português (BOMFIM, 1997, p. 56).
Em grande parte devido ao seu caráter, os portugueses
criam na América uma “nova sociedade” (BOMFIM, 1997, p. 109)
bastante diferente daquelas estabelecidas pelos espanhóis. Essa
sociedade desde o início possui características que a unificam
e que, apesar das bases portuguesas da formação do Brasil,
distinguem desde cedo os brasileiros dos seus ancestrais lusitanos, como indica a utilização do nome próprio Brasil desde os
primórdios da história brasileira:
Exemplo único, por toda esta América, o Brasil é a nação que
existe para o mundo, no signo de um nome seu, muito antes de
poder possuir soberania própria. Quase toda a história colonial
92
Gragoata 22.indb 92
Niterói, n. 22, p. 85-98, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:13
Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações
se faz conduzida por esse nome, que, se existe, é porque corresponde à necessidade de indicar uma realidade – a unidade
ideal, superior às contingências e vicissitudes da colonização
(BOMFIM, 1997, p. 336).
Em outras palavras, o lusitanismo brasileiro ao mesmo
tempo é fator que diferencia os brasileiros dos outros povos
neo-ibéricos, e, dada as suas características únicas, permite,
paradoxalmente, que o Brasil logo se distinga da pátria mãe:
“desde cedo nos individualizamos, por evolução inconfundível”
(BOMFIM, 1997, p. 339).
Ao contrário das colônias hispânicas, que teriam reproduzido a Espanha no Novo Mundo, idéia que reaparecerá em
Sérgio Buarque de Holanda, “o Brasil não é apenas um Portugal
emigrado” (BOMFIM, 1997, p. 107), na medida em que a nova
sociedade criada pelos portugueses nos trópicos teria sido capaz
de integrar uma multiplicidade de elementos.: “O encontro de
povos, aqui, foi mais que o simples domínio, realizado nas colônias espanholas. Foi, desde logo, absorção dos naturais para a
formação da população colonial” (BOMFIM, 1997, p. 107). Apesar
de concordar com Carl Friedrich Philip von Martius e outros
que “Portugal terá sido o fator dominante, o determinante, na
formação do Brasil” (BOMFIM, 1997, p. 107), Bomfim detecta
no Brasil um hibridismo fundamental, muito mais profundo e
complexo que a mera mistura de raças.12 Esse hibridismo conduz
ao aparecimento de algo que, nas palavras de Bomfim, é “novo e
próprio” do Brasil, e que o autor condensa na expressão “gênio
brasileiro” (BOMFIM, 1997, p. 36), conceito que ao mesmo tempo
incorpora e se sobrepõe ao freqüentemente mencionado “gênio
português”:
“No Brasil, o povo
não poderia ser a simples soma de português
e índio, porque algumas
das mais sensíveis qualidades de caráter, num
e no outro, são valores
de antagonismo. Como,
porém, o produto se define numa combinação,
os próprios antagonismos prevalecem . . .”
(BOMFIM, 1997, p. 110).
13
Ao contrário de Gilberto Freyre, contudo,
Bom fim valoriza sobretudo o papel do indígena, negando que a
influência africana tenha sido tão importante
na formação inicial do
Brasil.
Tais dissertadores discorrem como se fora possível que tradições se encontrassem, conservando-se impermeáveis entre
si, sem reciprocidade de influxos, sem conseqüências na vida
social e intelectual que se originou deste encontro. Ora, em
vez disto, todos o sabemos: mais do que os sangues, caldeiamse as tradições logo que as raças diferentes se encontram.
Combinam-se as qualidades de espírito e completam-se as
respectivas manifestações, numa expressão vivamente nova
e original (BOMFIM, 1997, p. 36).
12
Essa posição, bastante mais radical que a dos comentaristas
que o precedem, resulta da própria concepção de raça na obra
de Manoel Bomfim. Antes de Gilberto Freyre, que geralmente
é apontado como o introdutor do culturalismo no pensamento
antropológico brasileiro, Bomfim já propunha que raça é inseparável de cultura: “A verdadeira ciência, a que se faz na observação
criteriosa e desapaixonada dos fatos, tem proclamado já que o
valor atual das raças é, apenas, valor de cultura” (BOMFIM,
1997, p. 196)13. Partindo do princípio de que não existe preconceito racial no Brasil, lugar comum no pensamento brasileiro
Niterói, n. 22, p. 85-98, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 93
93
6/11/2007 14:26:13
Gragoatá
Em Raízes do Brasil,
Sérgio Buarque de Holanda, descrevendo a
“plasticidade social” da
colonização portuguesa, aponta “a ausência
completa, ou praticamente completa, entre
eles [os colonizadores
portugueses], de qualquer orgulho de raça”
(HOLANDA, 1982, p.
22). Gilberto Freyre, logo
no primeiro capítulo de
Casa grande e senzala,
comenta que “o Brasil
formou-se, despreocupados os seus colonizadores da unidade ou pureza de raça” (FREYRE,
1992, p. 29).
15
Aqui, mais uma vez,
Manoel Bomfim prefigura Sérgio Buarque de
Holanda, que defendia
a tese de que o Brasil só
conseguiria tornar- se
uma nação verdadeiramente moderna livrando-se dos resquícios do
personalismo e do patrimonialismo ibéricos.
14
94
Gragoata 22.indb 94
Eurídice Figueiredo
da primeira metade do século XX14 e, ao mesmo tempo, se posicionando abertamente contra o arianismo de Oliveira Viana,
Bomfim caracteriza a sociedade brasileira como intrinsecamente
sincrética e postula a miscigenação como benéfica: “nos casos
da população brasileira, em vez de ser um mal, [a miscigenação] é uma vantagem” (BOMFIM, 1997, p. 167). Bomfim aponta
a mestiçagem como o fundamento da identidade brasileira,
resumindo seu pensamento racial na fórmula de que o Brasil
se individualiza por uma “caboclagem tinta de cristianismo”
(BOMFIM, 1997, p. 109).
O culturalismo de Bomfim, em que raça é mais alma do que
corpo, é consistente com a valorização dos elementos espirituais
na obra do autor sergipano. As qualidades do gênio português
constituem fator positivo na formação do Brasil. O que Portugal
introduz de negativo provém de fatores materiais: o parasitismo gerado pelo sistema mercantil e corporificado na Casa de
Bragança, que degrada o gênio português e degenera o corpo
brasileiro. À semelhança de Euclides da Cunha, Bomfim constrói
a imagem de um Brasil partido. Mas enquanto para Euclides o
Brasil estava fraturado entre o litoral e o sertão, para Bomfim o
Brasil está dividido pela sua dupla e contraditória herança de
uma tradição heróica, que remonta aos primórdios da nação
portuguesa, e da decadente tradição bragantina, perpetuada
pelas elites nacionais. O Brasil é resultado de uma espécie de
psicomaquia entre, de um lado, um espírito independente, criativo e contestador, presente desde o início da nossa formação, e,
de outro lado, um corpo sócio-político doente, contagiado pelo
decadente colonialismo português. A identidade brasileira se
configura, assim, como um entre-lugar, dividida pela dupla influência de um espírito benfazejo e de um corpo degradado:
O Brasil, esse teve de passar por toda uma luta íntima, do
organismo infectado, luta além dos simples embates sangrentos, para eliminar das gerações os feitos da infecção; luta que
se perpetua, porque a depuração é lenta, e porque a vitória
efetiva seria a formação de dirigentes doutra escola, que não
essa do Estado português-bragantino que nos ficou (BOMFIM,
1997, p. 384).
Vem daí o crescente pessimismo de Bomfim quanto ao futuro do Brasil. Apesar da aparente superioridade portuguesa no
processo de criação de uma nova sociedade nos trópicos, outras
nações neo-ibéricas foram adiante, em parte porque conseguiram
se livrar de grande parte da herança ibérica15:
Uma Argentina, um Chile, e mesmo outras, de gentes castelhanas, são verdadeiras nações modernas, enquanto que nós,
apesar de quanto trabalhemos e elevemos o espírito, continuamos a ser um povo possuído e levado por maus feitores,
espoliado em corpo e alma, sem direito, sequer, de esperar e
preparar o futuro, porque este se absorveu neles, nesses diriNiterói, n. 22, p. 85-98, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:13
Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações
gentes que esgotaram o próprio porvir, com empréstimos que
consomem e os desesperos e colapsos que semeiam (BOMFIM,
1997, p. 384).
O Brasil, entretanto, permanece suspenso entre as características benéficas e maléficas das nossas origens portuguesas
enquanto as elites brasileiras, herdeiras do parasitismo lusitano, permitiram que fôssemos relegados a uma situação neocolonial.
Esse amargurado pessimismo manifesta-se em livros
posteriores embora Bonfim nunca abandone completamente sua
utopia nacionalista. Em O Brasil na história Bomfim demonstra
como a história brasileira não só se fez como também foi escrita
para atender aos interesses dos dominadores em detrimento dos
dominados, reproduzindo em moto perpétuo as origens coloniais da formação brasileira. Interessado em mostrar que existe
uma outra história, Bomfim constrói sua versão em oposição a
Varnhagem, que, segundo o autor, não passa de um “brasileiro
de encomenda” e um “historiador mercenário” (BOMFIM, 1930,
p. 122) a serviço da Casa de Bragança e das elites brasileiras.
Diferentemente, Bomfim traz para o centro de sua historiografia
eventos geralmente considerados marginais ou secundários na
linha evolutiva da história oficial brasileira, como a Revolução
Pernambucana de 1817, que possam servir como exemplos de
possíveis transformações sociais e políticas.
Em O Brasil nação, Bomfim critica as elites políticas e militares, enquanto adota uma postura abertamente revolucionária,
bem diversa, portanto, do reformismo ilustrado do primeiro livro.
Fazendo questão de se distanciar do tenentismo e do getulismo,
no posfácio do volume, datado de 1931, Bomfim faz uma análise
impiedosa da Revolução de 30, ressaltando o continuísmo desta
com os ideais da Velha República, configurada como herdeira
do parasitismo colonial. Bomfim caracteriza a Revolução de 30
como uma disputa doméstica entre os oligarcas de Minas Gerais
e São Paulo, uma “agitação preparada no comum da politiquice
tradicional, e [que] assim tangida, não há que esperar nenhuma
renovação revolucionária” (BOMFIM, 1996, p. 583). Mantendo sua
fé no povo brasileiro, “plástico, facilmente adaptável, com essa
maravilhosa aptidão dos tangedores de rebanhos a desbravar
caatingas, e dos bandeirantes a galgar serras e transpor os rios”
(BOMFIM, 1996, p. 588), o autor propõe uma verdadeira revolução
que reformasse completamente a sociedade brasileira, e cujo programa incluiria a redistribuição de terras, a educação popular, a
reorganização do Banco do Brasil em uma espécie de banco de
desenvolvimento, o melhor aproveitamento do nossos recursos
agrícolas, de nossas reservas e do nosso potencial hidroelétrico, a
universalidade da saúde, higiene e moradia, e a justiça social. Essas transformações, destinadas a curar o infectado corpo social,
Niterói, n. 22, p. 85-98, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 95
95
6/11/2007 14:26:14
Gragoatá
Eurídice Figueiredo
econômico e político, desembocariam na realização última das
potencialidades embutidas no espírito nacional: “É este o caos
santo, donde surgirá o que, na sua hora, definirá explicitamente
a alma brasileira” (BOMFIM, 1996, p. 589).
Mesmo com seu espírito lutador, Manoel Bomfim não
conseguiu vencer a longa e penosa batalha com um câncer
de próstata, que finalmente o derrotou em 22 de abril de 1932
– coincidentemente, para esse inveterado nacionalista, o dia
em que se celebravam os quatrocentos e trinta e dois anos do
descobrimento do Brasil – e, portanto, não pôde testemunhar
como a modernização do Brasil iniciada na década de 30 realizaria alguns de seus sonhos sem, paradoxalmente, conseguir
se livrar completamente do parasitismo secular. No entre-lugar
em que continuamos a viver, o pensamento de Bomfim, apesar
de algumas inevitáveis marcas de envelhecimento, mantém sua
relevância e atualidade.
Abstract
The works of Manoel Bomfim (1868 1932) demonstrate a profound and forward-thinking understanding of the complex and ambiguous relationship
between the Iberian nations and “neo-Iberians,”
terminology that Bomfim prefers to “Latin Americans.” Bomfim denies the unique place occupied
by Brazil within the social, political, and cultural
landscape of the Lusophone world in terms of a
dialectic between a mentality conscious of its difference (qualified as post-colonial as early as the 17th
century) and the persistent “parasitism” of the Iberian heritage supposedly infecting our political and
social body, and leaving dire consequences from
which we have been unable to completely recover.
Rejecting notions of synthesis and harmony dear
to official thought and codified in the 19th century
writings of von Martius, Bomfim constructs Brazilian national identity as an “in-between space,”
configured as a kind of psychomachy between an
independent, creative, contestatory spirit on one
hand, and a diseased (socio-political) body, contaminated by the decadent Portuguese colonialism
on the other. Bomfim’s writings prefigure many
concepts that would be developed by the cream of
the Brazilian intelligentsia during the first half of
the 20th century, including such seminal thinkers
as Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre,
and Caio Prado, Jr., among others.
Keywords: parasitism; post-colonial; identity;
in-between space; neo-Iberian.
96
Gragoata 22.indb 96
Niterói, n. 22, p. 85-98, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:14
Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações
Referências
AGUIAR, Ronaldo Conde. O rebelde esquecido: tempo, vida e obra
de Manoel Bomfim. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000.
ARARIPE JR., Alencar. “Introdução”. Esboços e fragmentos de
Clóvis Beviláqua. Rio de Janeiro: Laemmert, 1899.
BENJAMIN, Walter. The Origin of German Tragic Drama. Trad.
John Osborne. 1928. London: NLB, 1977.
BILAC, Olavo e Manoel BOMFIM. Através do Brasil: livro de leitura
para o curso médio das escolas primárias. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1923.
BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. 1905. Rio de
Janeiro: Topbooks, 2005.
______. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira.
1929. 2 ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.
______. O Brasil na história: deturpação das tradições, degradação
política. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1930.
______. O Brasil nação: realidade da soberania brasileira. 1931. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
BOMÍLCAR, Álvaro. O preconceito de raça no Brasil. Rio de Janeiro:
Aurora, 1916.
DAMATTA, Roberto. Tocquevillianas: notícias da América. Rio:
Rocco, 2005.
FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala: introdução à história da
sociedade patriarcal no Brasil. 1933. 28ª ed. Rio de Janeiro: Record,
1992.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 1936. 15ª ed. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1982.
LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro: descrição das
características psicológicas do brasileiro através de ideologias e estereótipos. 1954. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras,
Boletim 230, Psicologia 7, 1959.
LIMA, Manuel Oliveira. A América Latina e a América Ingleza: a
evolução brasileira comparada com a hispano-americana e com a
anglo-americana. Rio de Janeiro: Garnier, 1915.
MARTINS, Joaquim Pedro de Oliveira. Portugal e o socialismo:
exame constitucional da sociedade portuguesa e sua reorganização
pelo socialismo. 1873. Lisboa: Guimarães & Cia, 1953.
MARTIUS, Carl Friedrich Philip von. “Como se deve escrever a História do Brasil.” Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
Janeiro 6, 1845 (24): 389-411. Reprinted in Cadernos do Centro de
Pesquisa Literárias da PUC-RS 1:2 (1995): 83-94.
Moog, Clodomir Vianna. Bandeirantes e pioneiros: paralelos entre
duas culturas. Rio de Janeiro: Globo, 1959.
Niterói, n. 22, p. 85-98, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 97
97
6/11/2007 14:26:14
Gragoatá
Eurídice Figueiredo
MORSE, Richard. O espelho de Próspero: cultura e idéias nas Américas. Trad. Paulo Neves. São Paulo, Companhia das Letras,
1988.
PRADO JR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 1942. 6ª ed.
São Paulo: Brasiliense, 1961.
PRADO, Paulo. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira.
1928. 6ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962.
SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado
de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990.
SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no
pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
TORRES, Alberto. O problema nacional brasileiro: introdução a um
programa de organização nacional. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1914.
VALENTE, Luiz Fernando. “Brazilian Literature and Citizenship:
From Euclides da Cunha to Marcos Dias.” Luso-Brazilian Review
38.2 (Inverno, 2001): 11-27.
VERÍSSIMO, Érico. A volta do gato preto. Rio de Janeiro: Globo,
1946.
______. Gato preto em campo de neve. 1941. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Globo, 1961.
98
Gragoata 22.indb 98
Niterói, n. 22, p. 85-98, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:14
Debates de 1920:
formas de pensar a tradição1
Silvina Carrizo
Recebido 29, jan. 2007/Aprovado 20, mar. 2007
Resumo
Este artigo examina as diferentes discussões em
torno do conceito da tradição que estabeleceram
intelectuais como Mariátegui, no Peru, e Freyre,
no Brasil, na década de 1920 do século passado. Ao
mesmo tempo, busca-se dialogar com as propostas
de alguns escritores da época, como Graciliano
Ramos, para analisar o alto grau de debate sobre
o tema em questão. Tanto o Indigenismo peruano
quanto o Regionalismo nordestino possibilitaram uma relação particular entre o regional e o
étnico, o cultural e o temporal, assim como entre
a linguagem e a memória ao colocar no centro
desta problemática universos culturais antes não
considerados.
Palavras-chave: Tradição; regionalismo; indi­­-
genismo; localidade cultural.
Este artigo, parte de
um dos capítulos da
minha tese de doutorado Uma nova consciência
regional. Apontamentos
para um diálogo possível
(2004), aparece aqui com
leves modificações.
1
Gragoatá
Gragoata 22.indb 99
Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:14
Gragoatá
Silvina Carrizo
a questão do arquivo não é, repetimos, uma questão do passado. Não se trata de um conceito do qual nós disporíamos
ou não disporíamos já sobre o tema do passado, um conceito
arquivável de arquivo. Trata-se do futuro, a própria questão
do futuro, a questão de uma resposta, de uma promessa e de
uma responsabilidade para amanhã. (DERRIDA, 2001, p.50)
Tradição, regionalismo, indigenismo, localidade cultural
É bom lembrar que
o ano de 1928 é exemplar para abordar esta
problemática, não apenas Mariátegui reúne,
escreve e publica seus 7
ensaios, mas no Brasil são
publicadas três obras
de alto conteúdo crítico: A Bagaceira, de José
Américo de Almeida, a
Revista de Antropofagia e
O Manifesto antropofágico
de Oswald de Andrade e
Macunaíma de Mário de
Andrade.
2
100
Gragoata 22.indb 100
Este trabalho tem como proposta resgatar certos sentidos
dados ao conceito de tradição, no marco da década de 1920. Ao
aproximarmos desse contexto, observa-se que a questão da tradição experimenta um certo recuo, impondo restrições cristalizadas
para um merecido debate, em especial quando pensado a partir
da ótica hegemônica do cosmopolitismo cultural e artístico. Um
horizonte ideológico variado, que tinha seu centro na ideologia
do internacionalismo, desenhada tanto pelo cosmopolitismo
quanto pelo marxismo, dominantes naquela época, pensava a
tradição como passado e reação contra a modernidade e a modernização. Nesse sentido, importa destacar que a discussão mais
árdua sobre a tradição foi balizada por aqueles intelectuais que
expressaram uma tensão maior ou ainda uma distância crítica
preferencial com o ideário internacionalista de então.
Há, na época, uma legião de intelectuais e artistas que se
debruçam perante o problema da tradição como questão sine
qua non do momento e oferecem uma rara seriedade no debate,
produzindo um alargamento de seu campo de significados.
Este fenômeno se dá a partir de vozes heteróclitas. Destacarei
dois tipos de intelectuais muito diversos, porém marcantes para
refletir desde nossa atualidade: José Carlos Mariátegui, no Peru,
e Gilberto Freyre, no Brasil, mas também farei menção a um
artista no seu momento de surgimento: Graciliano Ramos com
seu primeiro romance, Caetés.
Este tipo de discussão se dá nos finais da década de 1920,
antecipando de modo preferencial livros como Casa grande &
senzala de 1933, Siete ensayos de interprestación de la realidad peruana
de 1928 e Vidas secas de 1938; e, por sua vez, se opera no conflito
intelectual de refletir de uma maneira nova sobre “a região”.
Em 1925, Gilberto Freyre organiza e publica, por ocasião do
centenário do Diário de Pernambuco, o Livro do Nordeste no qual
aparecem, entre outros artigos, três da sua autoria. Este livro
vem inaugurar, junto com a realização do Congresso regionalista
de 1926, o conhecido “regionalismo nordestino”. Já, no mesmo
ano, Mariátegui redige “El problema primario de Perú”, e a
partir de 1926 faz circular com o primeiro número da Revista
Amauta — grande evento discursivo — o que será conhecido
como “indigenismo peruano”. Graciliano Ramos escreve Caetés2
entre 1928 e 1929, quer dizer ainda na década de 1920, embora
o romance seja publicado apenas em 1933. Resulta paradoxal
Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:15
Debates de 1920: formas de pensar a tradição
Como o re cupera
Gustavo Sorá, Rachel
de Queiroz descobriu
Caetés nas gavetas do
próprio Schmidt, que
em 1928 já tinha fundado a livraria que levava
seu nome e, no começo
dos anos 30, a editora.
A publicação de Caetés
se dá entre finais de 1933
e princípios de 1934 no
Rio de Janeiro. A editora
já tinha publicado em
1931 O pais do carnaval
de Jorge Amado (lido
previamente por Otávio
de Faria e Rachel de
Queiroz) e, em 1933, a
primeira edição de Casa
grande & senzala, fato que
lança luz sobre o valor
de precursor que Freyre
manteve num certo campo da cultura brasileira
para a época. Para um
maior aprofundamento sobre o incipiente
mercado editorial e a
promoção do social na
produção intelectual ver
SORÁ, Gustavo: “Livraria Schmidt: Literatura e
política. Gênese de uma
oposição elementar na
Cultura Brasileira”, pp.
131-46, em: Revista de
Novos Estudos Cebrap,
n.61, nov. 2001.
4
O anti-arquivo seria
assim a consciência do
inviável que trabalha
com o que Derrida chamou de “mal de arquivo”. Quer dizer, essa
dialética que se observa
no próprio arquivo entre
pulsão de conservação:
memorização, repetição,
reprodução, reimpressão, e pulsão de morte,
que tende a arruinar, a
queimar o arquivo como
acumulação e capitalização da memória sobre
algum suporte e um lugar exterior. A clausura
que tece João Valério é a
possibilidade concreta
de arruinar a forma de
arquivar e o seu conteúdo, fechando-se no seu
próprio “eu”. Isso que
está ali, que foi colocado
fora, está aqui, dentro
de cada sujeito. Assim
alinhava um limite, uma
exaustão e uma negativa
à repetição. É uma recusa ao arquivo “tradição”
que apaga a subjetividade em prol da “grande
história”. Cf. DERRIDA,
2001.
3
que este romance permanecera na gaveta da editora Schmidt,
“arquivado”, e que por acaso Rachel de Queiroz o encontra e
torna possível sua posterior publicação3.
O paradoxo se torna ainda mais interessante ao pensar que
o narrador de Caetés, João Valério, tem na sua gaveta algumas
páginas escritas de um futuro livro sobre os índios caetés, que
habitavam as vizinhanças da sua cidade e ainda no presente da
escrita continuavam ativos culturalmente. O narrador, na sua
pretensão de ser escritor, conta que guarda na gaveta essas páginas avulsas porque reconhece sua inaptidão para “arquivar” essa
tradição cultural. O romance pode ser lido, sob essa perspectiva,
como um momento de inflexão, abrindo para a questão de como
escrever sobre a tradição e nesse cruzamento seria possível inserir uma pergunta elementar: o que é a tradição?
A primeira estranheza desse narrador surge por sua antiheroicidade. Já não se trata do conquistador ou do viajante, nem
do letrado oitocentista, João Valério, um simples empregado de
comércio de uma cidade do interior de Alagoas, quer ser escritor.
Assim, em decorrência desta experiência, João Valério narra sua
vida em Palmeira dos Índios e monta, por sua vez, a narrativa
do estranhamento ao querer incorporar o outro, antes separado,
exterior a ele mesmo. Nesse sentido, isto contribui para refletir
sobre os começos da carreira do escritor, nesse caso não a de João
Valério, mas sim a de Graciliano Ramos e pensar esses começos
como metáforas de projetos literários, como laboratórios possíveis do ficcional, e no específico, a entrada da memória e da voz
do popular em algumas das narrativas de finais da década de
1920 e do começo de 1930, no continente.
A problematicidade estaria, então, em como escrever sobre
o “eu” na simultaneidade dos outros que nos habitam. Assim,
Caetés, mais que a história do fracasso de uma escrita possível
ou de um escritor, talvez desvendaria a exaustão de uma mesma
escrita, a escrita do outro, da repetição do mesmo, no caso os
índios Caetés.
É por isso que Caetés ressoa como um anti-arquivo e, ao
mesmo tempo que encerra e interdita esse arquivo — a tradição do discurso da tradição — volta-se para o eu4. O fracasso
do livro, nesse sentido, seria o fracasso do mesmo, e o fracasso:
o ponto final de uma linguagem que acha que está separada
do outro. O único ato heróico de João Valério é esse: saber-se,
também, um selvagem, portanto para que escrever sobre eles?
Como em duplicata, confirma e ilumina a estratégia de Menino
de Engenho, de José Lins do Rego, uma escrita voltada para o eu,
na intersecção do passado.
Não em vão, João Valério fala sobre os saberes requeridos para dar conta dos índios Caetés, “fabricar um romance
histórico sem conhecer história”(RAMOS, 1961, p.76), “Talvez
não fosse mau aprender um pouco de história para concluir o
Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 101
101
6/11/2007 14:26:15
Gragoatá
Silvina Carrizo
romance”(RAMOS, 1961, p.217); e, ao mesmo tempo, desprestigia
o trabalho de José de Alencar pela caricatura: “Nazaré falando
de Abraão...Isto me fez pensar em José de Alencar, que também
foi um cidadão excessivamente barbado” (RAMOS,1961, p.152)
ou pela negligência irônica do esquecimento: “Li, na escola
primária, uns carapetões interessantes no Gonçalves Dias e no
Alencar, mas já esqueci tudo”(RAMOS, 1961, p.76), passando em
revista assim a própria tradição que constrói o arquivo “tradição”,
colocando-se como um “arconte sui generis”, um guardião que
ironiza os interesses pelos quais escreve, “arranhando literatura”
(RAMOS, 1961, p.70), e o próprio material:
Embrenhei-me novamente nas selvas. Li a última tira e balancei a cabeça, desgostoso. Catei algumas expressões infelizes
e introduzi na floresta, batida pelo vento, uma quantidade
considerável de pássaros a cantar, macacos e sagüis em dança
acrobática pelos ramos (...)
De mais a mais a dificuldade era grande, as idéias minguadas recalcitravam, agora eu ia tentar descrever a impressão
produzida no rude espírito da minha gente pelo galeão de d.
Pêro Sardinha. Em todo caso apanhei os índios em alvoroço
no centro da ocara, aterrorizados, gritando por Tupã. (...) Pôr
no meu livro um navio que se afunda! Tolice. Onde vi eu um
galeão? E quem me disse que era galeão? Talvez fosse uma
caravela. Ou um bergantim. Melhor teria feito se houvesse
arrumado os caetés no interior do país e deixado a embarcação
escangalhar-se como Deus quisesse (RAMOS, 1961,p.98-9).
Dentre os artifícios do “diário íntimo”, Caetés compartilha
esse simulacro, essa dicção pelo íntimo, esse trabalho da memória como reserva consciente e como resistência, com Menino
de Engenho e algumas das narrativas de Agua, como é o caso de
“Warma Kuyay (Amor niño)” do escritor peruano José María
Arguedas. Mas o que acumula, o que registra essa passagem
entre memória e dicção íntima? Caetés parece se instalar na contramão, o “eu” mais insignificante, com a pretensão enorme, a de
re-escrever a tradição separada do eu, colocando o outro, outra
vez, distante, confinado a um arquivo que parece intocável, justamente pela sua oficialização discursiva. Esse avesso parece assinalar essa irrupção da subjetividade na narrativa. João Valério
diz: “A minha figura no espelho pareceu-me burlesca”(RAMOS,
1961, p.189). Se, como afirma Joel Pontes, “ele [Ramos] focaliza os
personagens em momentos de crise, quando examinam a vida
em busca de uma ordenação mental num ato que é também de
purgação de culpas”(PONTES apud BRAYNER, 1978, p.270), a
crise do narrador, crise existencial, se espalha como reflexão da
escrita não de uma obra de ficção per se, mas sobre uma discursividade que lida com a tradição. O texto, então, deixa aparecer
a tradição, não instaurada como “passado”, porém como traço
102
Gragoata 22.indb 102
Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:16
Debates de 1920: formas de pensar a tradição
cultural, popular ou não, presente e próximo. A presentificação
da escrita, que vai dificultar aos poucos a estratégia do racconto,
chega, num momento, até a encravar a “história” e a “geografia”
em camadas que se sobrepõem, deixando respirar o passado
latente como num presente fatal:
Para os lados do Chucuru, meia dúzia de luzes indecisas,
espalhadas. Aquilo há pouco tempo era dos índios. Outras
luzes na Lagoa, que foi uma taba. No tanque, montes negros
como piche. Ali encontraram, em escavações, vasos de barro
e pedras talhadas à feição de meia-lua. Negra também, a
Cafurna, onde se arrastam, miseráveis, os remanescentes da
tribo que lá existiu (RAMOS, 1961, p.267).
Inscrita nas margens de um discurso oficial e especializado, a discursividade sobre a tradição já não é mais a retórica da
etnografia nem da história, é a do sujeito na sua área cultural,
no seu local5. O outro arquivo é uma escrita já impossível, pois
deve-se primeiro atravessar a própria subjetividade. Sem essa
premissa, qualquer construção de arquivo parece impossível,
pois sem promessa não há possibilidade de arquivo, nem de
arquivamento. À irrupção da subjetividade e à concomitante
crise tematizada, deve-se somar a mudança operada na percepção desses outros, consignados doravante como tradição
cultural e/ou popular, de forma sintagmática, horizontalizada,
não mais paradigma de nada. Esse movimento se transforma
em dispositivo para fraturar a distância entre a voz pessoal
e a pública, entre a intimidade e a realidade exterior, esse irem-direção ao povo, povo que é o próprio João Valério, tanto
quanto significa refazer o contrato entre a palavra artística e os
discursos socializados, a rejeição da via de Gonçalves Dias, José
de Alencar, mas também da etnografia e da história. Mudança
que, portanto, deve afetar e afeta a configuração e a forma desse
novo arquivo, agora “consignado” — signos em reunião — num
eu que não mais pode ser afastado dos outros, porque tornou-se
o um. No entanto, é o “uno” sem poder simbólico, pois o eu é
o “anti-herói”. Nesse tramado e mescla que é Caetés, produz-se
uma disrupção da continuidade da escrita, à impossibilidade
da escrita de um arquivo já arquivável, o simulacro do diário
íntimo ganha enquanto relato existencial:
Milton Marques Júnior assinala que “João
Valério ao procurar escrever sobre os índios
termina escrevendo so­
bre a vida em Palmeira dos Índios” (1992,
p. 462).
5
Não ser selvagem! Que sou eu senão um selvagem, ligeiramente polido, com uma tênue camada de verniz por fora?
Quatrocentos anos de civilização, outras raças, outros costumes. E eu disse que não sabia o que se passava na alma de um
caeté! (...) Um caeté de olhos azuis, que fala português ruim,
sabe escrituração mercantil, lê jornais, ouve missas. É isto, um
caeté. Estes desejos excessivos que desaparecem bruscamente...
Esta inconstância que me faz doidejar em torno de um soneto
incompleto, um artigo que se esquiva, um romance que não
posso acabar... O hábito de vagabundear por aqui, por ali, por
acolá (...) Que semelhança não haverá entre mim e eles! Por que
Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 103
103
6/11/2007 14:26:16
Gragoatá
Silvina Carrizo
procurei os brutos de 1556 para personagens de uma novela
que nunca pude acabar? (RAMOS, 1961, p.266-8)6.
I nteressa nte é ob servar que, em 1935, o
escritor Jorge de Lima,
também alagoano, publica o seu roma nce
Calunga, tematizando
o primitivismo de um
povoado nordest i no,
cujas origens remontam
aos caetés. No entanto,
o romance se debruça
na tematização sobre a
geografia cultural, na
clivagem do binômio
civilização e barbárie,
colocando o protagonista, Lula Bernardo, como
aquele homem solitário,
à Robinson Crusoe, que
tenta refazer a história,
corrigi-la. Nesse sentido,
os protocolos estéticos
de Lima ao escrever o
romance apontam para
os questionamentos de
Caetés, trazendo maior
luz ao rico laboratório
de Ramos.
7
É importante frisar
que as metáforas naturais também formaram
parte dos discursos de
Mariátegui e Freyre, e
isso, justamente, devido
ao fato de suas textualidades estarem emoldu radas em per íodo
histórico de mudanças
de grande impacto. As
condições de possibilidade configuram o espaço de “transição”. Nesse
contexto de produção
e dada a produção de
ambos os intelectuais,
resgatam-se a vontade
e o impulso para achar
novos caminhos, em que
categorias como “ruína”,
“alicerces” e também
“resíduos” colocam em
crise e iluminam o resto
do vocabulário técnico
como incapaz de dar
os sentidos que se buscam.
6
104
Gragoata 22.indb 104
Caetés é assim o eco de um instante, de uma virada, de
uma ruptura, e portanto de uma promessa, mas sobretudo
resulta, ao mesmo tempo, na metáfora de uma impossibilidade
narrativa, um caminho de interdição que ilumina o percurso
narrativo impulsionado na época e dialoga com as teses de
Freyre e Mariátegui.
Essas teses, protocolos, ensaios, num certo sentido, estão
atravessados por uma apaixonante discussão sobre a tradição, e
o que é mais, numa época em que falar de tradição era abrir-se
à selva espessa das suspeitas e das polêmicas.
Freyre e Mariátegui concebem a tradição basicamente
numa dupla articulação. Num primeiro sentido diacrônico
delineiam, analisam e criticam o peso discursivo das suas
construções, como também o suporte que o discurso oficial e
hegemônico lhe outorgara, balizam uma certa genealogia, o seu
percurso discursivo-histórico, uma arqueologia que escava suas
formas discursivas. Num segundo sentido, já mais sincrônico,
sopesam o poder das ações, o poder dos aparatos culturais, dos
mecanismos de produção, de “invenção” (HOBSBAWM, 1997)
e se debruçam na tarefa de “refazer” — fazer de novo — esses
arquivos, discursivos e técnicos (eventos) através de um prisma
não hegemônico.
Freyre e Mariátegui se utilizam nos seus ensaios, em
grande medida, de metáforas estruturais e culturais, as “ruínas”
e os “alicerces”, respectivamente. Metáforas que explodem seus
sentidos perante aquelas em voga, tais como “caráter”, “raízes”,
“húmus”. Metáforas estas naturais, que fazem referência à natureza, à terra mãe e até a discursos sociologizados que vêm das
ciências7.
Essas metáforas estruturais assinalam o trabalho como
construção — escavação — tecendo aquilo que deve ser arquivável e, para tanto, rememorado, não como morto, mas como vivo,
atual e dinâmico: rememorar o atual. Abrem-se a significados
que dizem respeito àquilo que deve voltar para a realidade,
porque seqüestrado ou rapidamente esquecido — soterrado —,
porque presente e continuamente rejeitado — caso extremo das
culturas indígenas no Peru —, ou porque presente e arruinado,
apenas paisagem abandonada pelo ritmo da história, pelo abandono produzido perante a mudança de valores. O que deve voltar
para a realidade também marca o vestígio do contemporâneo,
numa inversão dos termos, dos signos. O que é e está aí cria laços
com o que era, transformando a oficializada tradição-museu em
luz que projeta a cultura popular enquanto expressividade do
povo (GRAMSCI, 1986), acarretando a “visibilidade” horizontalizada, sincrônica.
Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:16
Debates de 1920: formas de pensar a tradição
Nesse ponto a estratégia de Caetés viria iluminar a proliferação de textos produzidos por Freyre até o ponto de clivagem,
de amadurecimento que significa Casa grande & senzala. Pode-se
pensar este livro como a concentração desmedida, concertação e
apuramento dos trabalhos escritos na década anterior, protocolos
de uma nova consciência regional. Pois, no que diz respeito à
esfera discursiva, essa proliferação de textos funcionaria como
um arquivo vivo que se retro-alimenta constantemente da sua
matriz, gerando uma hibridização peculiar na própria escrita de
Freyre. Rama não hesita em perceber neles, na sua escritura, um
exemplo de “neo-aculturação”, destacando uma forma híbrida
(RAMA, 1987). Como isso, dentro da nova região artística, parece
um porvir dentro da narrativa, talvez a única que delineie esse
território seja Caetés, justamente pela recusa à escrita do mesmo,
pela mistura do arquivamento dos caetés, como outro livro, na
tessitura da narrativa íntima de João Valério. Nesse sentido, é
interessante frisar que se, como achava Adonias Filho, o romance
brasileiro não ultrapassa o documento — aquilo que é legitimado
como oral e popular —, e que seria a principal constante que responde pela tradição do romance brasileiro porém aceita-o para
devolvê-lo como depoimento, como testemunho (FILHO, 1969,
p.11-15), Caetés viria a confirmar que o romance como arquivo
já não mais pode ser da mesma forma, pois é a própria matéria
arquivável que mudou de percepção, de vontade de valor e de
uso, nas mãos dos guardiões-escritores.
A importância do evento cultural.
Um bom exemplo de construção de um evento cultural
que instaure a tradição enquanto cultura e deixe em aberto o
arquivo “patrimônio”, pode ser observado nas matérias do Diário
de Pernambuco que acompanharam o desenrolar do Primeiro
Congresso Regionalista de Recife, no qual Gilberto Freyre, na
qualidade de secretário do Centro Regionalista do Nordeste,
oficiou de presidente das sessões junto com Odilon Nestor e
Netto Campello. Embora o texto das matérias procure realçar
o sentido “à margem” de tamanha empreitada, o que se deve
destacar é que o Congresso congrega, em grande medida, figuras
públicas, oficiais. Entre a representação oficial, de profissionais
liberais, também encontra-se a marca patriarcal de vários dos
participantes, lembrando que Freyre reúne essas duas. O evento
não é de alcance “nacional”, no seu sentido pragmático, no entanto não é um evento separatista, “bairrista”. A questão regional
é ao mesmo tempo de interesse nacional, patriótico. Como no
discurso paranóico, defensivo — do qual o texto está cheio de
marcas —, é reforçado o tempo todo que esses “edifícios”, esses
“objetos”, esse “artesanato”, são tradição e cultura. Cultura atual,
ligada ao passado não apenas regional, re-transmitida no fazer,
na fala, etc.
Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 105
105
6/11/2007 14:26:17
Gragoatá
Nesse sentido entre
a voz retocada do Man i festo Reg ion a l i st a
de 1952 e os problemas
críticos decorrentes da
sua publicação, o sujeito
anônimo que redige as
matérias do jornal poderia ser visto como a “voz
pública” (um “nós” público) desses guar­diões,
até porque é o único
registro do Congresso.
8
106
Gragoata 22.indb 106
Silvina Carrizo
A “ação regionalista”, primeira unidade a construir, relaciona-se ao nacional, unidade maior que conecta o regional a esse
todo sem o qual não teria sentido. O regional seria cimento do
nacional e isso fica bem explícito: “unindo a todos pelo gosto,
pelos hábitos e pelas tradições” (QUINTAS, 1996, p. 138). Resulta
assim uma estratégia de duplo movimento, que se esforça para
não “parecer” separatista. A empreitada assegura uma nova
via: não há identidade possível sem a presença legitimadora do
Estado e de suas ações efetivas. Constitui-se assim o Congresso
como uma prévia da interação entre artistas e intelectuais com o
Estado, que se realiza de forma plena no ministério Capanema,
na década de 40. Nesse sentido, pode-se interpretar que estar às
margens significaria não se coadunar com o discurso dominante
das vanguardas e o cosmopolitismo.
O artigo que Freyre escrevera horas antes da inauguração
do Congresso, publicado no mesmo jornal, sob o título de “Acção Regionalista no Nordeste”, no dia 7 de fevereiro de 1926,
lança luz sobre os debates latentes. Freyre abre a sua matéria
perguntando se é possível, no Brasil, “sentir e crear regionalisticamente”. O Congresso, enquanto espaço simbólico de “ação”,
configura-se como proposta em andamento, como espaço de
pretensões e de discussões sobre a tarefa a encarar: “o primeiro
esforço no sentido de clarificar a acção regionalista, ainda mal
comprehendida e superficialmente julgada”[sic] (FREYRE, 1996,
p.109); fato que se ressignifica com o texto de encerramento do
mesmo: “[O presidente do Congresso] refere-se ao espírito regionalista como uma ancia ainda a clarificar-se, sem duro ou
definitivo contorno. O 1º Congresso Regionalista fôra o esboço
de um grande movimento a firmar-se, a definir-se, a adquirir
victorioso relevo”[sic] (QUINTAS, 1996, p.140).
Os sujeitos se auto-proclamam “guardiões” da tradição:
rememorar no presente, trazer à tona o que parece latente e não o
é8. Os representantes do evento confirmam o esforço do trabalho
criativo e pessoal de cada um deles, esforço para ser espalhado
e apoiado: “aquelles que estão silenciosamente, modestamente colhendo documentos históricos, conservando obra d’arte,
collecionando receitas de bolos, aproveitando velhos azulejos,
defendendo os velhos portões e as velhas arvores, reunindo e
enriquecendo o folck-lore (...)” [sic] (QUINTAS, 1996, p.138-9). A
marca discursiva desses representantes recria a história, ao nível
das propostas das ações, da configuração da “região cultural
nordestina” como espaço possível para refletir sobre a formação
moderna do conceito de localidade cultural.
Como já o apontara Antonio Dimas a respeito do texto
do “Manifesto Regionalista” de Freyre, as matérias que acompanham o Congresso, e que reproduzem em grande medida a
palestra de Freyre sobre a cozinha, centram-se no metonímico,
no particular, no concreto. Reconhece-se que a cultura negra não
Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:17
Debates de 1920: formas de pensar a tradição
ocupa, de forma direta, posição central, mas ela aparece através
da exaltação da cozinha. Ao enfatizar a significação social e
cultural dos valores culinários do Nordeste, dessacraliza-se a
noção de cultura (DIMAS, 1996, p.41). Essa via é alinhavada pelo
Congresso, através da intervenção de Freyre, de forma original,
dando lugar à entrada da cultura negra. Porém, quando cotejada
a apresentação de Freyre com as dos demais oradores, deve-se
salientar que perfilam-se, pelos menos, mais duas vias: uma, que
considera a tradição como linhagem — em direta conexão com o
passado colonial, eclesiástico e patriarcal e com o conceito mais
cristalizado de tradição — (QUINTAS, 1996, p. 138); e a outra,
que a considera como popular e que repara nas festas, nos jogos
e até em “Collecionar e cultivar a poesia simples do sertanejo, a
musica ingenua das suas violas, reviver as suas historias varonis,
é fazer tambem o bom, o melhor e mais sadio nacionalismo”[sic]
(QUINTAS, 1996, p. 138).
Como o Congresso é uma construção em andamento, vê-se
como essas três linhas em destaque expandem as perspectivas
da apresentação que fez Moraes Coutinho na inauguração das
sessões:
[Coutinho] deu o sentido de tradição – sentido vivo, creador,
desembaraçado do sentimentalismo como do formalismo que
tendem á estagnação ou á copia servil das formas do passado
(...) Há assim um passado com qualidades de permanencia,
uma tradição com qualidades de permanencia, que não é bem
um passado ou uma tradição morta, mas uma força, que se
renova e continua [sic] (QUINTAS, 1996, p.115-6).
Nesse ponto a tradição como cultura reúne
o passado no presente
e recria o território da
identidade. A cultura é,
ao mesmo tempo, identidade e campo de batalha
pelas hegemonias, não
uma questão asséptica.
Cf para isso a Introdução de Said (1994),
que retoma a discussão
colocada anteriormente
por Gramsci.
9
Percebe-se um alargamento de significado do conceito de
tradição, pois a valorização se dá, através da conservação, naquilo que é feito pelo homem — cultura — naquilo que até então
entraria no espaço simbólico do desprezo. Entre linhagem e o
popular, a tradição, enquanto conceito que vai sendo construído, significaria tornar “estético”, sensível, o que era apagado, as
tradições vistas como cultura já não mais como formação, herança; ou seja, as tradições culturais vindas do povo; no entanto,
também, aquilo que está sendo apagado — essa linha colonial,
eclesiástica e patriarcal —, seja pelos conflitos reais, de que os
termos “arrasar”, “arruinar”, “destruir” dão conta, seja pelos
embates simbólicos que, de forma latente, aparecem colocados9.
Por outro viés, a tradição é entendida como dinâmica e as ações
de conservação, de preservação, devem, então, ter o mesmo
formato, justamente para não asfixiá-la, para não torná-la um
museu. Devem-se criar condições inovadoras de conservação,
quer dizer, de “consignação”. Segundo as reflexões de Derrida,
o arquivo é hipomnésico, quer dizer, é um suplemento, um
representante auxiliar e exterior, é acumulação e capitalização
da memória, ocupando o lugar da falta de memória original
(DERRIDA, 2001, pp.20-3).
Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 107
107
6/11/2007 14:26:17
Gragoatá
Também com Derrida, pode-se apontar
que “o arquivo, como
impressão, escritura,
prótese ou técnica hipom nésica em geral,
não é somente o local de
estocagem e de conservação de um conteúdo
arquivável passado. (...)
a estrutura técnica do
arquivo arquivante determina também a estrutura do conteúdo arquivável em seu próprio
surgimento e em sua
relação com o futuro.
O arquivamento tanto
produz quanto registra
o evento”(DERRIDA,
2001, p. 28).
10
108
Gragoata 22.indb 108
Silvina Carrizo
Discute-se, também, o descaso com os investimentos —
sempre referidos à esfera pública — para “a guarda e conservação de toda a archeologia do Brasil” [sic](QUINTAS, 1996, p.126),
assim como o discurso que sustenta essas ações e as variadas
formas de consignação.
O que se observa nos textos é o senso de uma fundação
cultural — a do patrimônio — cuja base está na captação do
temporal, em confronto, como a contrapelo, com a localidade,
que alguns escritos paulistas imprimem, ocupados na fundação
horizontal, no seu sentido geográfico, do Brasil, pela ação das
bandeiras (VIDAL e SOUZA, 1997, p.40-8). Daí que ecoe a idéia
de “arqueologia” como o latente, uma topologia do temporal,
que ressignifica o lugar de ruína, dando-lhe estatuto e peso
simbólico regional e nacional.
O discurso que sustenta a necessidade de consignar essas
tradições, esse patrimônio, é o de criar um sentimento, uma
sensibilidade, ou seja, toda uma “estética” perante a história e o
tradicional (QUINTAS, 1996, p.127). Observa-se como não é apenas o objeto a ser arquivável, mas também o que se pensa como
arquivo, os que se estruturam conjuntamente. Um moldando o
outro de maneira constante10. Assim a consciência crítica não
instrumentaliza a razão utilitária, mas uma estética.
Entre as formas de consignação, entram em destaque a
criação de uma jurisprudência em urbanismo para controle das
ações sobre os edifícios históricos e o sentido das remodelações
no âmbito das cidades, assim como a criação de suportes para
a educação. Isso em decorrência de as tradições culturais selecionadas poderem se adaptar à vida moderna, revitalizando a
idéia de tradição como aquilo que passa de geração em geração, e
aqui no próprio sentido de cultura tangível, concreta, entretanto
balizando a idéia de que conservar não é incompatível com o
progresso. Se isso, de um lado, configura o ideário das “ações”
regionalistas, do outro, salienta o lado defensivo das propostas,
para que não sejam entendidas como reacionárias. Mas também
aponta que é só através da experiência do “progresso” e das
ações novas que dele emanam como possibilidade em cerne que
se pode pensar em re-consignar os ícones culturais-tradicionais.
No que diz respeito à educação, são as instituições do saber que
devem ser reformuladas, pois elas começariam a funcionar, no
caso da escola, como âmbito de retransmissão do intangível e
cotidiano, as festas, os jogos. Para tanto, pensa-se na “formação
cívica de um povo, para além do livro”(QUINTAS, 1996 p.126)
e na “promoção da educação estética social”(QUINTAS, 1996,
p.127). Quanto ao ensino superior, pensa-se em centros de pesquisa e divulgação, chegando até a se propor uma “cadeira de
estudos nordestinos na universidade”(QUINTAS, 1996, p.128).
A concepção de Derrida ilumina o fato dessas condições de
arquivamento, de consignação, ao mesmo tempo que esboçam
Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:18
Debates de 1920: formas de pensar a tradição
um registro de passado, procuram trabalhar em um movimento
de promessa ou de futuro (DERRIDA, 2001, p.43).
Destacam-se, entre as diversas propostas, mais uma vez, a
de Freyre que, ao se referir à estética e às tradições da cozinha
nordestina, imagina modos atualizados de preservação, modos
pelos quais a cultura se espalharia e se conservaria, ao mesmo
tempo, virando viva, aproveitável, degustada. Os próprios locais
concebidos para essa consignação seriam locais onde a cultura
se refaz, se experimenta, se apreende e aprende. Freyre pensa
em cafés e restaurantes, na escola — ensinando aos meninos
cursos de cozinha —, e na sistematização em livro de receitas
da região (QUINTAS, 1996, p.120-1).
Dimas, ao se referir ao Livro do Nordeste, ressalta que este
criou as “condições para a percepção nova de um largo trecho
do país, até então imerso na retórica bachaleresca, no ressentimento ou na autopiedade. O Livro do Nordeste, em vez de chamar
a atenção para o centenário do periódico, preferia demarcar os
limites de uma cultura regional (...)” (DIMAS, 1996, p.23) e o
fazia através de uma discursividade multidisciplinar e de uma
flexibilidade intelectual, que tinham o propósito comum de
“inventariar, de modo orgânico, uma dada produção cultural
em vias de extinção”(DIMAS, 1996, p. 25). Na dialética entre
conservação e mudança, vê-se que o Livro do Nordeste, enquanto legítimo manifesto, e as “ações regionalistas” propostas no
decorrer do Congresso, a despeito do que é percebido “em vias
de extinção”, trazem à luz um modo de captar, compreender,
inventariar e conservar o que diz respeito ao atual, e ainda
mais: ao popular e à questão da cultura negra. Ações e discursos
que procuram através desse conceito que instrumentalizam,
“estetizar a cultura”, quebrar as barreiras entre arte, linhagem
patriarcal e cultura popular. O livro e o evento alinhavavam
três vias, congregando-as como fato irrecusável da consciência
crítica da própria fundação cultural nordestina. Nesse sentido,
balizando o sentido crítico sobre o presente e o passado, o peso
da memória e da responsabilidade, preparavam as condições
pretendidas como dinâmicas, multidisciplinares para o arquivo vivo da cultura nordestina, re-criando uma agenda cultural
inovadora.
O peso do discurso da tradição.
Depois de um ano do estopim que significou a fundação
da Revista Amauta, evento cultural que marcaria profundamente escritores como Ciro Alegría e José María Arguedas, entre
tantos outros, em 1927, José Carlos Mariátegui debruça-se na
empreitada de desconstruir e “refazer” o conceito de tradição e
o faz em seus dois artigos: “Heterodoxia de la tradición” e “La
tradición nacional”.
Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 109
109
6/11/2007 14:26:18
Gragoatá
Mariátegui, de outro
lado, também conhecia
muito bem os usos que o
fascismo na Itália fazia,
numa direção contrária,
da tradição como sendo
perigosa, das promessas
de regeneração do vigor
nacional baseadas no
espontaneísmo da cultura camponesa. Para
uma historicidade dos
usos do “vigor nacional”
vinculados ao mundo
rural, ver: ZANETTI
(1994). Na mesma linha
de Mariátegui, mas por
imponderáveis da história, publicado muito
tempo depois, ver GRAMSCI (1986). Para captar
o problema político da
“tradição” em Mariátegui, ver: MELIS (2002).
Para o debate no interior
da literatura italiana
ver: GUGLIELMINO
(1971).
12
Para além das críticas já conhecidas sobre
esse artigo introdutório de Hobsbawm, este
trabalho compartilha
a idéia de “tradições
inventadas” enquanto
tradições construídas
pelo Estado liberal moderno, apropriando-se
de tradições como forma
de preencher um vazio
social. Porém, é claro
que o conceito que se
enfatiza, para o caso,
é o de construídas no
espaço discursivo. Também é necessário esclarecer que, no caso dos
indigenistas socialistas,
essa construção, esse
refazer da tradição, é
um trabalho paralelo à
oficialidade do Estado
ditatorial da época. Resulta, assim, uma possibilidade outra, diferente
do regionalismo nordestino, pois é construída
às margens do Estado
e de forma marginal,
quer dizer: subversiva
no plano ideológico e
de valores. Nesse sentido assume ainda mais
sentido de “promessa”.
11
110
Gragoata 22.indb 110
Silvina Carrizo
Em “Heterodoxia de la tradición”, o autor, com a pretensão
de se apropriar do conceito de tradição, constrói um discurso
polarizando dois extremos, que cristalizariam as posições e
os usos perante a tradição, resultando como verdadeiro alvo a
tentativa de legitimar o liame entre tradição e revolução: “Toda
doctrina revolucionaria actúa sobre la realidad por medio de
negaciones intransigentes que no es posible comprender sino
interpretándolas en su papel dialéctico” (MARIÁTEGUI, 1983,
p.162). As negações, as rupturas, o calendário zero pregados pelos
movimentos revolucionários e vanguardistas devem ser lidos
para além do literal, eles implicam as forças criadoras, mas de
modo algum um desconhecimento do passado e um trabalho
fora da história. Se o revolucionário cria sua força da superação
do presente é porque imagina o futuro, e só poderá fazer isso
se já imaginou o passado.
O problema com a tradição é de perspectiva, pois quem
concebe a tradição como museu, múmia, como alguma coisa morta ou fixa, fato reconhecível, segundo Mariátegui, na
perspectiva tradicionalista conservadora peruana, não pode
pretender a nenhuma mudança, é dominado por uma idéia
de tempo fechado, enclausurado: “Porque se obstina interesadamente en definirla como un conjunto de reliquias inertes y
símbolos extintos. Y en compendiarla en una receta escueta y
única”(MARIÁTEGUI, 1983, p.163). Nesse sentido, Mariátegui
também descortina um debate caro ao comunismo das décadas
de 1920 e 1930, surgido na Rússia revolucionária a propósito do
problema camponês, na linha dos que, aferrados ao racionalismo
do progresso, se espantam perante qualquer intento de falar
sobre a tradição, vista como uma realidade reacionária. É nesse
viés que aponta para os percalços de uma leitura equívoca da
ruptura revolucionária11.
Mas a tradição é alguma coisa lábil, que não pode ser
apreendida numa fórmula hermética e muito menos ortodoxa;
ela é heterogênea, contraditória nos seus componentes, viva e
móbil. Ademais, lida na perspectiva histórica, é força, energia,
criação contínua. Passando em revista essas discussões, Mariátegui articula o debate a partir do que está em disputa nos
conceitos dos grupos que a operacionalizam, que fragmentam
a visão da tradição, pois a “invenção” das tradições responde
também a interesses políticos e de classe. Nesse aspecto, e enquanto luta simbólica, à reivindicação no plano político e econômico proposta pelos indigenistas socialistas, devia-se pensar
no plano da construção das tradições, pois como argumenta
Hobsbawm: “as tradições inventadas são sintomas importantes
e, portanto, indicadores de problemas que de outra forma poderiam não ser detectados nem localizados no tempo. Elas são
indícios”(HOBSBAWM, 1997, p.20)12.
Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:18
Debates de 1920: formas de pensar a tradição
Esse debate se reorienta ainda mais no artigo subseqüente, “La tradición nacional”, traçando um panorama no que diz
respeito ao Peru. Segundo Mariátegui, os interesses políticos
e de classe da consciência nacional crioula tinham deixado de
fora da história e da tradição oficial todo o passado indígena,
reduzindo a tradição nacional à visão de mundo dos crioulos e
mestiços. O que, por outro lado, estava firmado no descaso em
relação à maioria da população de origem indígena:
Se puede decir del Perú lo que Waldo Frank dice de Norte
América: que es todavía un concepto por crear. Mas ya sabemos, definitivamente, en cuanto al Perú, que este concepto no
se creará sin el indio. El pasado incaico ha entrado en nuestra
historia, reivindicado no por los tradicionalistas sino por los
revolucionarios. (...) La revolución ha reivindicado nuestra más
antigua tradición (MARIÁTEGUI, 1983, p.168).
É claro que para a época não era a primeira vez que se fazia
uma “reivindicação” do passado incaico, mas deve-se frisar que
todo o pensamento mariateguiano está balizado no componente
indígena vivo, ele com a sua própria história e nele contida a
história do Peru13:
Um claro exemplo do
movimento contrário foram as propostas de José
de la Riva Agüero, que
mantin ha uma visão
exótica e negativa sobre
o passado incaico, mas
rasurava o tema quando
pensado no presente,
levantando, por sinal,
a ideologia da mestiçagem. Cf. CORNEJO POLAR (1980). Também é
importante a referência
de Melis a respeito da
operação iluminadora de Mariátegui, que
afirma não poder ser
confundida “nem com
o huma n itarismo da
Pró-indígena, nem com
o milenarismo animado
por acentos nietzscheanos e spenglerianos do
amigo Luis E. Valcárcel”
(MELIS, 2002, p.70).
14
A citação pertence a
“Princípios programáticos do Partido Socialista”, redigido em 1928
por ocasião da fundação
do Partido socialista
peruano.
15
Para uma análise detalhada do pensamento
do Mariáteg ui sobre
a tradição e a Modernidade como filosofia
surgida na Ilustração e
em função da “razão”e
do projeto liberal ver:
TRONCOSO (1999).
13
Mas isto, do mesmo modo que o estímulo que se presta ao livre
ressurgimento do povo indígena, à manifestação criadora de
suas forças e espírito nativos, não significa em absoluto uma
romântica e anti-histórica tendência de reconstrução ou ressureição do socialismo incaico, que correspondem a condições
históricas completamente superadas e do qual somente restam,
como fator aproveitável dentro de uma técnica de produção
perfeitamente científica, os hábitos de cooperação e socialismo
dos camponeses indígenas (MARIÁTEGUI apud BELLOTO,
1982, p.78)14.
O movimento assim é inverso e não implica na negação
da história e das tradições do país, pois a tradição se amplia,
configurando uma tradição tríplice, a qual, por sua vez, está
inserida e articulada na abrangente tradição ocidental que o
internacionalismo do capitalismo fomenta15:
La tradición nacional se ha ensanchado con la reincorporación
del incaísmo, pero esta reincorporación no anula, a su turno,
otros factores o valores definitivamente ingresados también
en nuestra existencia y nuestra personalidad como nación.
Con la conquista, España, su idioma y su religión entraron
perdurablemente en la historia peruana comunicándola y
articulándola con la civilización occidental. El Evangelio,
como verdad o concepción religiosa, valía ciertamente más
que la mitología indígena. Y, más tarde, con la revolución de
la Independencia, la República entró también para siempre en
nuestra tradición (MARIÁTEGUI, 1983, p.169).
A tradição é assim um fenômeno de coesão, de reintegração
espiritual, mas também profundamente revolucionário, pois
pela primeira vez seria a ação e a discursividade colocadas às
Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 111
111
6/11/2007 14:26:19
Gragoatá
Silvina Carrizo
margens dos dispositivos do Estado que a estariam legitimando e
operacionalizando, leia-se inventando: refazendo16. Alinhavando
o campo reflexivo que religa a tradição à história — e a história
como superação —, que vê a tradição repetir-se, transmitir-se e
transformar-se, Mariátegui procura demonstrar a desnaturalização de certas tradições vivenciadas como naturais, tanto como
objetiva a sua relação com a superestrutura, com a ideologia.
Como enfatiza Hobsbawm, tal manipulação não guarda necessariamente relação com aquilo que fora conservado realmente na
memória popular, mas com aquilo “que foi selecionado, escrito,
descrito, popularizado e institucionalizado por quem estava encarregado de fazê-lo” (HOBSBAWM, 1997, p.21). Aquilo que está
no cerne da memória popular seria justamente aquele “aspecto
ideal — que es el fecundo como fermento o impulso de progreso
o superación”, que Mariátegui reconhece como fato inerente à
tradição, sua possibilidade de promessa. Não estranha então que
Mariátegui em Siete Ensayos reflita sobre o modelo da literatura
e da cultura argentinas pois, segundo ele, o movimento cultural
nesse país representaria uma força vigorosa justamente por ter
sido permeado pelo sentimento popular:
Para o caso é até interessante lembrar que a
revista Amauta num primeiro momento ia ser
chamada “Vanguardia”,
num projeto somente referido às artes e que deixava de lado aquilo que
não se relacionasse com
a vanguarda. Amauta
como nome e proposta
atingiu formas e expressões muito mais abrangentes que o que teria
sido a primeira idéia. Cf.
MARIÁTEGUI (1959),
texto de uma entrevista
de Vegas, publicada en
Variedades, Lima, 6 de
junho de 1925, em que
diz: “Preparo la edición de dos selecciones
de mis artículos y ensayos últimos. Vuelvo
a un querido proyecto
detenido por mi enfermedad: la publicación
de una revista crítica,
Vanguardia. Revista de
los escritores y artistas
de vanguardia del Perú
y de Hispano-América”,
pp.145.
16
112
Gragoata 22.indb 112
En la república del sur, el cruzamiento del europeo y del
indígena produjo al gaucho. En el gaucho se fundieron perdurable y fuertemente la raza forastera y conquistadora y la
raza aborigen. (...) Los mejores literatos argentinos han extraído
del estrato popular sus temas y sus personajes. Santos Vega,
Martín Fierro, Anastasio el Pollo, antes que en la imaginación
artística, vivieron en la imaginación popular (MARIÁTEGUI,
1979, p.217).
No emblemático artigo de 1925 “El problema primario
del Perú”, Mariátegui já apontava, no bojo da procura por uma
solução social para o problema do indígena, a importância dos
Congressos indígenas, que vinham acontecendo como um nicho
de identidade e de resistência: “Lo trascendente, lo histórico es el
congreso en sí mismo. ����������������������������������������
El congreso como afirmación de la voluntad de la raza de formular sus reivindicaciones” (MARIÁTEGUI,
1983, p.45). A este respeito, resume Cornejo Polar:
Todo esto indica que cuando Mariátegui finca el cimiento de
la nacionalidad en el componente indígena está subrayando
algo que aunque tiene facetas de variada índole – culturales,
lingüísticas, raciales, etc. – tiene sobre todo un contenido y una
proyección sociales. De aquí se desprende que la segunda asociación, entre lo nacional y lo indígena, debe sobreimprimirse
dentro del marco de la asociación primera, entre lo nacional y
popular (CORNEJO POLAR, 1980, p.58).
O Peru ainda é um conceito a criar porque o seu próprio
arquivo está em andamento, ele deve ser heterodoxo, amplo, vivo,
móbil, em direção ao povo. Daí a demanda: peruanizar o Peru,
quer dizer, indigenizar a nação, não como anulação do outro,
Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:19
Debates de 1920: formas de pensar a tradição
mas como legítima incorporação do apagado, do soterrado, do
excluído. No conceito a criar, está contido todo o outro arquivo da
“tradição”, aquele que fora operacionalizado na Colônia e durante
a República, um arquivo cheio de passagens e interferências.
Em paralelo com a inserção do popular no conceito heterodoxo de tradição que remaneja Mariátegui, abre-se a possibilidade da inversão dos termos de “nacional x exótico”. Uma
discussão mais abstrata era colocada no seu artigo de 1924 “Lo
nacional y lo exótico”, no qual Mariátegui desmascara a ideologia
nacionalista:
La realidad nacional está menos desconectada, es menos independiente de Europa de lo que suponen nuestros nacionalistas.
El Perú contemporáneo se mueve dentro de la órbita de la
civilización occidental. La mistificada realidad nacional no es
sino un segmento, una parcela de la vasta realidad mundial.
Todo lo que el Perú contemporáneo estima lo ha recibido de esa
civilización que no sé si los nacionalistas a ultranza calificarán
también de exótica. Existe hoy una ciencia, una filosofía, una
democracia, un arte, existen máquinas, instituciones, leyes, genuina y característicamente peruanos? El idioma que hablamos
y que escribimos, el idioma siquiera, es acaso un producto de
la gente peruana? (MARIÁTEGUI, 1983, p.36).
Já, quatro anos mais tarde, no seu “Proceso a la literatura
peruana”, voltaria sobre as mesmas idéias dentro do âmbito
cultural e étnico, para o que recolocaria o debate em função de
uma leitura crítica das propostas de Riva Agüero, que, segundo
Mariátegui, veria como “exotismo” — no sentido do exterior, do
que é trazido de fora, o contrário do autóctone — a intenção de
reivindicação do passado incaico, sendo uns dos seus principais
argumentos o fato de eles não terem deixado nenhuma literatura
escrita, e de eles terem sido europeizados pela educação. Embora
Mariátegui reconheça a força que impôs o castelhano enquanto
língua do conquistador, e em seguida, como língua nacional, isso
não implicaria fechar os olhos ao dualismo quéchua-espanhol,
que foge ao âmbito restrito da letra. Para além da letra, estaria
toda a cultura e a cosmovisão indígena ainda vivas, assim como o
quéchua como língua falada e transmitida, o que Mariátegui chama de “la prosodia del pueblo” (MARIÁTEGUI, 1979, p.218).
De idêntica maneira, Mariátegui repõe as “forças vitais” de
alguns escritores, como é o caso do romântico Ricardo Palma,
ou o de Melgar, forças que sobrevivem a despeito das cópias de
modelos espanhóis:
En la trama de las Tradiciones no se descubre en seguida la
hebra del chispeante y chismoso medio pelo limeño? Esta es
una de las fuerzas vitales de la prosa tradicionista. Melgar,
desdeñado por los académicos, sobrevivirá a Althaus, a Pardo
y a Salaverry, porque en sus yaravíes encontrará siempre el
pueblo un vislumbre de su auténtica tradición sentimental y
de su genuino pasado literario (MARIÁTEGUI, 1979, p.218).
Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 113
113
6/11/2007 14:26:19
Gragoatá
Silvina Carrizo
A releitura que fornece sobre o lugar de “El Inca Garcilaso”,
de “Ricardo Palma”, dentro da tradição literária peruana, ou a
localização da obra de González Prada como ponto de virada
e entrada na abertura para o cosmopolita e o popular, colocam
sob suspeita toda a armação com que se tece a tradição literária
e cultural do Peru.
No entanto, é a leitura que faz de César Vallejo, enquanto
artista contemporâneo, que vale a pena apontar. O poeta se apresenta ante Mariátegui como a possibilidade na arte da conjunção
de tradições várias — poeta e obra “signo” da etapa cosmopolita
e revolucionária —, que por esse mesmo fator, resultaria numa
poesia nova e peruana: “En Vallejo se encuentra, por primera
vez en nuestra literatura, sentimiento indígena virginalmente
expresado” (MARIÁTEGUI, 1979, p.280). O
�������������������
que permite a Mariátegui ler o simbolismo em chave peruana: “El simbolismo, de
otro lado, se presta mejor que ningún otro estilo a la interpretación del espíritu indígena. El indio, por animista y por bucólico,
tiende a expresarse en símbolos e imágenes antropomórficas o
campesinas” (MARIÁTEGUI, 1979, p. 281). Mariátegui encontra
na sua poesia que elementos de várias tradições se tecem de
forma original:
Vallejo no recurre al folklore. ��������������������������������
La palabra quechua, el giro vernáculo no se injertan artificiosamente en su lenguaje; son en
él producto espontáneo, célula propia, elemento orgánico (...)
Vallejo no se hunde en la tradición, no se interna en la historia,
para extraer de su oscuro substractum perdidas emociones.
(...) El sentimiento indígena obra en su arte quizá sin que él lo
sepa ni lo quiera (MARIÁTEGUI, 1979, p. 281-2).
A nostalgia da poesia vallejiana ligada ao sentimento indígena aparece como protesto sentimental ou metafísico, rasgando
seu uso abusivo enquanto mera retrospectiva de época. Vallejo
representa para Mariátegui essa possibilidade de precursor do
novo espírito, da nova consciência, um poeta da “alma matinal”
(MARIÁTEGUI, 1979, p.287).
Assim, juntar o popular à tradição nacional, inverter os
termos do que seria o exótico — o acadêmico x o popular —, imprimindo as primeiras linhas que rasgam essa mesma inversão
proposta, abrir-se para o mundo para além da letra e inserir-se
nas várias tradições que brotam do Ocidente — o internacionalismo — seria a forma de congregar o novo signo heterogêneo
e heterodoxo da tradição cultural integral do Peru novo.
Conclusão
A crítica à construção das tradições e uma discussão em
torno do próprio conceito de tradição estimulou um metaarquivo teórico-ensaístico e ficcional — no caso do narrador/
escritor, João Valério/Ramos, —, almejando nessa encenação
114
Gragoata 22.indb 114
Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:20
Debates de 1920: formas de pensar a tradição
a crítica e a crise do lugar “oficial” dessas tradições, arquivos
sem mais futuro, museus como monumentos mortos, já sem
funcionalidade. Essa colocação em crise, portanto, assinala o
instante de construção de um novo arquivo, os seus protocolos,
cuja força, energia dinâmica primeva está colocada no futuro.
Nesse espaço crítico, prenuncia o valor simbólico da localidade
cultural, instaurando a discursividade da localidade da tradição,
compreendida doravante como cultura, viva e móbil.
Caetés, nesse sentido, pode ser pensado como um intento
de captar a demanda da nova região artística, marcado pela
pesquisa na concentração das possibilidades da subjetividade
— tanto no que diz respeito à sua representação quanto à sua
forma de enunciação —. Esse projeto escritural funcionaria como
uma metáfora do debate em torno da possível convergência entre
a necessidade da intimidade do eu — inclusive até como novo
verossímil — e a procura de um relacionamento diferente e até
íntimo com os outros, o povo, que se operacionalizou, de formas
diferentes, em muitos dos narradores da época.
Esse espaço de convergência reduplica, na esfera dos produtos simbólicos, as questões salientadas no evento do Primeiro
Congresso Regionalista do Nordeste, pois significam modos de
imaginar condições inovadoras de conservação da identidade
subjetiva e cultural. Instauram, por sua vez, uma sensibilidade
diferente perante a tradição, agora já não mais fora da própria
subjetividade.
As três vias que foram salientadas nesse Congresso de
1926 como caminhos possíveis de trabalho com a tradição — a
da entrada da cultura negra, a da tradição como linhagem, a
da entrada do popular — somadas à multidisciplinaridade já
apontada sobre o Livro do Nordeste configuram, também, as várias
vias assinaladas por Mariátegui nos seu artigos tanto como o
evento cultural que representou a revista Amauta.
As versões que se espalham e que lutam pelo lugar no
campo simbólico de remanejamento de Estado no Brasil do
período — os protocolos: mineiro, paulista, nordestino e sulino
—, assim como a marginalidade — a respeito do Estado liberal
e ditatorial — da peruanidade indigenista socialista, são signos
de diversas formas performáticas de relacionar a tradição ao
discursivo e ao ato, evento de construção delas. Mas também
resultam num leque de estratégias perante formas diferentes de
crises de Estado e de relacionamento imaginado ou fatual com
ele. O que, por outro viés, reconfirma a liberdade e a resistência
cultural que esses novos arquivos inscreveram na história turbulenta do século XX.
Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 115
115
6/11/2007 14:26:20
Gragoatá
Silvina Carrizo
Abstract
Variations on the concept of tradition as established in the 1920´s by José Carlos Mariátegui´s
Peruvian indigenism, and Gilberto Freyre´s
Brazilian north-eastern regionalism, as well as
by the fictional literary proposals of Graciliano
Ramos, which include cultural universes previously neglected, are examined as a possibility of
establishing special relationships between region
and ethnicity, culture and time, language and
memory.
Keywords: Tradition; regionalism; indige-
nism; cultural locality.
Referências:
BELLOTTO, Manoel e CÔRREA, Anna M. (orgs) José Carlos Mariátegui: política. São Paulo: Atica, 1982.
BOURDIEU, Pierre. “L´identité et la représentation”. Actes de la
Recherche en Science Sociales, n.35, novembre 1980 pp.63-72.
CORNEJO POLAR, Antonio. “Apuntes sobre la literatura nacional en el pensamiento crítico de Mariátegui”, IN: VV.AA.
Mariátegui y la literatura. Lima, 1980 p.49-60.
DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo. Uma impressão freudiana.
Trad. Cláudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2001.
DIMAS, Antonio. Um manifesto guloso, IN: FREYRE, Gilberto:
Manifesto Regionalista. 7ª. ed. Org. Fátima Quintas. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 1996. pp.23-44.
FILHO, Adonias. O romance de 30.Rio de Janeiro: Bloch Editores,
1969
FREYRE, Gilberto: Manifesto Regionalista. 7ª. ed. Org. Fátima
Quintas. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 1996.
______. Livro do Nordeste. 2ª ed. Arquivo Público Estadual de
Pernambuco, 1979.
FREUD, Sigmund. El malestar en la cultura y otros ensayos. Madrid:
Alianza Editorial, 1996.
GRAMSCI, Antonio. Literatura y vida nacional. 2ª ed. México:
Juan Pablos Editor, 1986.
GUGLIELMINO, S. Guida al Novecento.Roma: Principato, 1971.
HOBSBAWM, Eric y RANGER, Terence (orgs.) A invenção das
tradições. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra. 1997.
116
Gragoata 22.indb 116
Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:20
Debates de 1920: formas de pensar a tradição
LIMA, Jorge de. Calunga. Porto Alegre: Globo, 1935.
MARIÁTEGUI, José Carlos. Siete ensayos de interpretación de la
realidad peruana. México: Ediciones Era, 1979 (1ª ed. 1928)
______. Lo nacional y lo exótico (1924), pp.35-40, El problema
primario del Perú (1925), pp.41-6, Heterodoxia de la tradición
(1927), pp.161-5 y La tradición nacional (1927), pp.167-74, em Peruanicemos el Perú. 8ª ed. Lima: Biblioteca Amauta, 1983.
______. Qué prepara Ud.? IN: ______. La novela y la vida. Lima:
Biblioteca Amauta, 1959.
MARQUES Jr., Milton. “Caetés e A ilustre casa de Ramirez.
Caminhos para uma análise comparada”, pp.459-63, vol 2, em:
Limites. Anais do 3º. Congresso ABRALIC, 2 vol, Niterói, 1992.
MELIS, Antonio. Tradição e Modernidade no Pensamento de
Mariátegui, IN: AMAYO, Enrique y SEGATTO, José Antonio
(orgs): J.C. Mariátegui e o marxismo na América Latina. Araraquara:
UNESP, FCL, Laboratório Editorial; São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2002. pp.65-80.
QUINTAS Fátima (org. e apresentação) FREYRE, Gilberto: Manifesto Regionalista. 7ª. ed. Org.. Recife: Fundação Joaquim Nabuco;
Editora Massangana, 1996
RAMA, Angel. Transculturación narrativa em América latina. 3ª ed.
México: Siglo XXI Editores, 1987 (1ª ed. 1982)
SAID, Edward W. Culture and imperialism, New York: Vintage
Books, 1994.
SORÁ, Gustavo. Livraria Schmidt: literatura e política. Gênese
de uma oposição elementar na cultura brasileira. Revista Novos
Estudos CEBRAP, n.61, nov. de 2001. pp. 131-46.
TRONCOSO, H.C.: Mariátegui entre la modernidad y la tradición: para una lectura hermenéutica de su discurso. IN:
__________. (org) Nuevas perspectivas teóricas y metodológicas de
la Historia intelectual de América Latina. Vervuert: Ediciones de
Iberoamericana, 1999.
VIDAL e SOUZA, Candice. A pátria geográfica. Sertão e litoral no
pensamento social brasileiro. Goiânia: Editora UFG, 1997.
ZANETTI, Susana. Modernidad y religación: una perspectiva
continental, vol.2, IN: PIZARRO, Ana (org) América Latina: palavra, literatura e cultura. São Paulo: Memorial; Campinas: UNICAMP, 1994, pp.491-534.
Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 117
117
6/11/2007 14:26:20
Gragoata 22.indb 118
6/11/2007 14:26:20
A América Latina no Suplemento
Literário do Minas Gerais (1969-1973)
Haydée Ribeiro Coelho
Recebido 29, jan. 2007/Aprovado 29, mar. 2007
Resumo
A interlocução entre o Brasil e os países hispanoamericanos ocorreu de várias maneiras nos anos
60 e 70. O Suplemento Literário do Minas Gerais
(cuja primeira edição data de 1966), buscava romper o isolamento do Brasil em relação aos demais
países da América Latina, publicando literatura e
crítica hispano-americanas. Diante do volumoso
material, selecionei, para esse estudo, entrevistas,
textos panorâmicos sobre a literatura hispanoamericana, destacando também as resenhas que
permitissem refletir sobre a indicação de obras aos
leitores do Suplemento, propiciando ao estudioso
de hoje reconstituir aspectos do diálogo do Brasil
com a América Latina e da recepção crítica tanto
a partir de um olhar do Brasil ou vice-versa.
Palavras-chave: Suplemento Literário do Minas Gerais; interlocução latino-americana; anos
60-70
Gragoatá
Gragoata 22.indb 119
Niterói, n. 22, p. 119-131, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:21
Gragoatá
Haydée Ribeiro Coelho
A interlocução entre o Brasil e os países hispano-americanos ocorreu de várias maneiras nos anos 60 e 70. O Suplemento
Literário do Minas Gerais (cuja primeira edição data de 1966),
buscava romper o isolamento do Brasil em relação aos demais
países da América Latina, publicando literatura e crítica hispanoamericanas. Recentemente, o periódico mineiro foi revisitado
pela comemoração de seus quarenta anos e diversos de seus
momentos históricos foram relembrados na edição de dezembro
de 2006.
Os marcos teóricos, enunciados no título, decorrem de inúmeras razões, como será visto mais adiante. Uma delas é o fato
de possibilitar a continuidade de um trabalho de pesquisa que
realizo, seguindo, sob certos aspectos, uma periodicidade que
não se fecha, mas que vai sendo balizada pelos acontecimentos
históricos ocorridos no Brasil como a ditadura militar e o exílio
de muitos intelectuais latino-americanos que estabelecem outros
diálogos, além do crítico e literário.
Embora publicado dois anos depois do golpe militar de
1964 e vinculado à Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais,
o Suplemento Literário do Minas Gerais como outros das décadas
de 60 e 70, representou um “local para o debate e a discussão de
idéias e de resistência à ditadura então vigente como nenhum
outro locus jornalístico poderia ser.” (HOHLFELDT, 1966, p. 61).
Em consonância com o que ocorria em termos literários e críticos
em Minas, no Brasil e em outras plagas, o periódico mineiro acolhe textos do chamado “boom literário”, conceito relacionado à
renovação da narrativa hispano-americana, “a partir de meados
do século XX” (TROUCHE, 2005, p. 85).
Enfocando a América Latina no periódico mineiro, entre
1969 e 1973, é importante situar como a publicação vai dialogando com a literatura hispano-americana desde 1966, ano em que
aparecem traduzidos, no Suplemento, fragmentos de textos do
escritor argentino Aníbal Ponce, retirados do livro Ambición y
angustia de los adolescentes.
A partir de 1967, inicia-se a publicação de ensaios de escritores brasileiros sobre autores da América Hispânica como
aquele de Henriqueta Lisboa intitulado “Alfonso Reyes, ensaísta
e poeta”. A escritora mineira ressaltava as atividades culturais
do autor mexicano, incluindo aquela de embaixador de seu país
no Brasil em 1930.
Affonso Ávila, ainda em 1967, traduziu dois poemas de
Vicente Huidobro. Na apresentação do poeta chileno, dava destaque ao teórico do “Creacionismo” e a convivência do autor de
Vientos contrarios com “poetas, escritores e artistas como Tristan
Tzara, Pierre Reverdy, Paul Eluard, Philippe Soupault, André
Malraux, Arp, Braque, Chagall, Léger, Miró, Juan Gris e Picasso, tendo mantido também amizade e contato literário com os
principais poetas de sua geração (ÁVILA, 1967, p. 1).
120
Gragoata 22.indb 120
Niterói, n. 22, p. 119-131, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:21
A América Latina no Suplemento Literário do Minas Gerais (1969-1973)
Miguel Ángel Asturias, cuja apresentação é realizada em
um dos editoriais do Suplemento, aparece enfocado ainda na
série “Roda Gigante” com o subtítulo: “Asturias: Invenção e
participação.” A tradução do conto “O boi” por Iris Barbosa
Mello confirmava o caráter renovador da narrativa do escritor
guatemalteco residente em Paris.
O artigo “Rubén Darío e o modernismo hispano-americano” situava o poeta nicaragüense no contexto de busca de
autonomia latino-americana. Maria José de Queiroz, ao comentar o livro de Mário Mendes Campos, publicado pela Imprensa
Oficial do Minas Gerais, cujo título era o mesmo do já mencionado estudo, divulgava trabalho sobre autor hispano-americano
editado em Minas.
Em 1968, Vicente Huidobro é contemplado com dois artigos
de José Afrânio Moreira Duarte que, dentre outros aspectos,
salienta que “um literato do tamanho vulto e mérito, embora
bastante popular na Europa, a ponto de ali ser incluído em antologias poéticas, é muito pouco ou quase nada conhecido dos
leitores brasileiros” (DUARTE, 1968, p. 3).
No mesmo ano, Laís Corrêa de Araújo traduz o conto “Todos os fogos o fogo”, primeiro texto de Julio Cortázar, publicado
no Suplemento Literário do Minas Gerais. A autora de Cantochão
lamenta o fato de a obra do escritor argentino “tão famosa na
Europa” não ter sido traduzida no Brasil. (ARAÚJO, 1968, p. 1)
e de ser comentada ou lida somente “após ter inspirado o filme
de tanto sucesso, ‘Blow Up’.” (ARAÚJO, 1968, p. 1)
No decorrer da década de 60 a 70, a presença de textos sobre
a América Hispânica (poemas, ensaios, traduções, entrevistas,
estudos panorâmicos sobre a literatura latino-americana, estudos comparatistas, o desenvolvimento de trabalhos de críticos
nacionais sobre a literatura latino-americana e vice-versa) tende,
no Suplemento, a ocorrer, de forma mais intensa, acompanhando
as tendências literárias e teóricas predominantes no Brasil e em
outros países.
Mapeando a crítica hispano-americana no periódico mineiro, podemos observar que há estudo de autores da literatura
hispano-americana realizada por críticos brasileiros; crítica
hispano-americana sobre a produção hispano-americana e
outros artigos realizados por críticos estrangeiros sobre autor
latino-americano. Em relação a esse último aspecto, assinalo a
colaboração de estudiosos que, nos Estados Unidos, refletiam
sobre a literatura latino-americana.Para ilustrar, menciono o
estudo de William Myron Davis que escreveu sobre o mito
sagrado maia-quitché, com base no romance El señor Presidente,
de Miguel Angel Asturias.
Panoramas mais gerais sobre a literatura hispano-americana, trabalhos comparatistas entre autores brasileiros e autores
hispano-americanos destacam-se nesse quadro geral, além das
Niterói, n. 22, p. 119-131, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 121
121
6/11/2007 14:26:21
Gragoatá
Haydée Ribeiro Coelho
resenhas que divulgavam traduções realizadas no Brasil. Roteiros de leituras, de revistas literárias, publicadas no Brasil e no
exterior, tinham a função de cartografar a cultura e a literatura
hispano-americanas.
Diante do volumoso material, selecionei, para esse estudo, entrevistas, textos panorâmicos sobre a literatura hispanoamericana, destacando também as resenhas que permitem
refletir sobre a indicação de obras aos leitores do Suplemento,
propiciando ao estudioso de hoje reconstituir alguns aspectos
do diálogo do Brasil com a América Latina e a recepção crítica
tanto a partir de um olhar do Brasil como vice-versa.
As entrevistas oferecem um panorama importante sobre
variados assuntos, recuperando o olhar do entrevistador sobre
um tema abordado seja ele relativo ao passado ou presente. Constituindo um importante objeto de estudo, além do texto teórico
e do literário, oferece ao leitor caminhos para reflexões de várias
ordens como aquelas relativas à produção, à recepção de obras e
tendências críticas do momento em que a entrevista está sendo
gravada, para depois ser registrada em livro ou artigo.
A poeta Laís Corrêa de Araújo tem um papel fundamental
no Suplemento. Além da série literária “Roda Gigante” para a
qual escreveu entre 1966-1969, como ensaísta publicou outros
textos críticos; poemas; fez entrevistas com eminentes escritores
como Michel Butor, Tzvetan Todorov, Ana Hatherly e Haroldo de
Campos e muitas traduções das quais destaco duas entrevistas
que passo a comentar.
“Conversando com Vargas Llosa”, de Carlos Cortínez, com
nota explicativa e bibliográfica da tradutora, é uma entrevista
decorrente de uma reunião anual, realizada em Nova Iorque,
chamada “Modern Language Association”, e da mesa-redonda
convocada paralelamente pelo “Center for Interamerican Relations”.
As perguntas, dirigidas ao escritor peruano, eram em torno de seus textos; de seu posicionamento diante dos romances
sociológicos; da distinção entre o “nouveau roman” e o “novo
romance latino-americano”. As razões do florescimento literário
do novo gênero romanesco também constituíam matéria de interesse do entrevistador. Vargas Llosa, mostrando-se favorável ao
romance de ação, mantinha-se distanciado do “nouveau roman”.
Para ele, a literatura não podia “ser avaliada por comparação
com a realidade” (CORTINEZ, 1969, p. 2). Quando o escritor
escreve, “não está propondo problemas, conflitos de tipo social,
histórico, político ou sociológico (CORTINEZ, 1969, p. 2). Para
ele, o escritor “exorciza certos demônios que tem em si, certas
experiências que o marcaram mais profundamente que outras,
de que não se pode libertar e que se converteram em demônios”
(CORTINEZ, 1969, p. 2).
122
Gragoata 22.indb 122
Niterói, n. 22, p. 119-131, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:21
A América Latina no Suplemento Literário do Minas Gerais (1969-1973)
Em relação ao novo romance latino-americano, ressalta que
há “na origem de tudo uma rebelião frente à realidade” (LLOSA, 1969, p. 3). No que se refere à aproximação entre as novas
tendências na América Latina e o “nouveau roman”, menciona
Severo Sarduy cuja obra representa essa afinidade.
No que diz respeito ao florescimento do escritor latinoamericano, o autor de La ciudad y los perros destaca os seguintes
aspectos: a literatura não tem uma importância secundária;
aumento do número de editoras; a corrupção na América Latina
como “melhor alimento para os romancistas”; libertação do complexo de inferioridade que “o escritor latino-americano sempre
tinha para com o europeu” e a libertação do “academismo”,
ocorrido em língua espanhola.
Na entrevista de Severo Sarduy, concedida a Efraín Hustado, divulgada na revista Actual (publicação venezuelana) e
traduzida no Suplemento, o escritor cubano recusa uma perspectiva realista de literatura. Contrário à narração de estórias, diz
que a magia está no branco da página, colocando-se na defesa
do trabalho com a linguagem. Nesse sentido, salienta a importância da crítica do grupo Tel Quel para a produção literária na
América Latina.No que se referia à literatura de Cuba, destacava
Paraíso, da autoria de Lezama Lima que “Como Martí devolveu
a língua a seu fundamento, dando a nosso idioma a categoria e
a majestade dos clássicos” (HURTADO, 1970, p. 2).
Em “Conversa com Gunther Lorenz”, o famoso entrevistador de Guimarães Rosa revela o interesse dos europeus pela
literatura latino-americana. Segundo ele, isso ocorria porque “a
Europa está cansada da automação, da desumanização, de ver
o homem apenas como uma peça da engrenagem da vida moderna, do meio jogo de palavras dessa literatura de experimento
pelo experimento (repudio, por exemplo, o ‘nouveau roman’)”
(ARAÚJO, 1971, p. 4).
A reportagem, realizada por Zilah Corrêa de Araújo, com
base nas informações do crítico alemão, esclarecia que até aquele
momento (julho de 1971) tinham sido “traduzidas para o alemão
250 obras sul-americanas das quais 60 brasileiras”. Considerando
as entrevistas comentadas, vê-se que enquanto Severo Sarduy
demonstrava a importância do grupo francês Tel Quel para as
inovações do romance latino-americano e afinidade literária
com o “nouveau roman”, segundo Vargas Llosa; Gunther Lorenz
testemunhava o cansaço europeu pela “literatura de experimento
por experimento”.
No Suplemento, Michel Butor é um escritor bastante
prestigiado. Vem a Minas e é entrevistado por Laís Corrêa de
Araújo. O interesse da ensaísta e poeta pelo “nouveau roman”
é demonstrado ainda pela resenha do livro O novo romance francês, de Leyla Perrone-Moysés e pela tradução de “Chaves para o
romance” de Georges Paillard.
Niterói, n. 22, p. 119-131, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 123
123
6/11/2007 14:26:22
Gragoatá
Haydée Ribeiro Coelho
Textos de críticos nacionais e estrangeiros focalizavam a
literatura latino-americana, em seus aspectos mais gerais: superação do regionalismo (Bella Jozef e Luis Harss); periodização
literária, considerando a realidade social (Gustav Silverman) e
realismo mágico (Terezinha Alves Pereira).
No artigo “O romance brasileiro e o ibero-americano na
atualidade”, a autora de História da Literatura hispano-americana
destaca diferentes fases da narrativa hispano-americana. A
primeira constitui-se como “continuidade passiva da visão dos
colonizadores, com algumas tentativas de interpretação da nova
terra nos reduzidos núcleos cultos” (JOZEF, 1973, p. 6) e a segunda apresenta “certa resistência às possibilidades aprendidas nas
escolas européias” (JOZEF, 1973, p. 6).
O século XIX “inaugurou uma literatura essencialmente
polêmica”, havendo uma tomada de consciência com tendências
nacionalizantes”. Uma outra fase do romance é inaugurada com o
aparecimento de novos recursos técnicos e a aquisição de “significação universal do regionalismo”. Nesse contexto, Bella Jozef se
reporta às “técnicas cinematográficas” e à “exclusão do romance
psicológico (...), postulados do ‘nouveau roman’ (JOSEF, 1973, p.
6). “Em outra passagem do texto, esclarece que: “Os princípios do
‘nouveau roman’ foram mais fielmente seguidos pelo romance
espanhol que na Hispano-América” (JOZEF, 1973, p. 6).
Relacionando o romance brasileiro com os demais produzidos na América Hispânica, a ensaísta brasileira elege Grande
Sertão: Veredas, tendo em vista o fato de os críticos colocarem
“no mesmo plano de valor Guimarães Rosa e alguns vultos da
Literatura Hispano-Americana” (JOZEF, 1973, p. 7). No que tange
à comparação entre o autor de Grande Sertão: Veredas e outros
escritores latino-americanos, a ensaísta mostra como Rômulo
Gallegos e Guimarães Rosa poderiam ser aproximados “pelos
procedimentos temáticos estilísticos semelhantes” (JOZEF, 1973,
p. 7) e de que maneira Julio Cortázar e Miguel Ángel Asturias
podiam ser confrontados pela renovação da linguagem. O aspecto estético seria outro ponto de semelhança entre o autor
mineiro e Jorge Luis Borges.
Em “Os nossos”, de Luis Harss, traduzido por Waldimir Diniz, são evidenciadas tendências gerais e específicas que ocorrem
na ficção latino-americana do momento. Em relação às primeiras,
observem-se: a busca de novos rumos, além das diferenças do
regional e do urbano; a superação de que “o autêntico tinha de
ser local ou regional” (HARSS, 1970, p. 2); a descoberta da “universalidade de nossa tradição” (HARSS, 1970, p. 2); o “surgimento
de uma literatura mais intuitiva, mais dona de si mesma, mais
forte em suas entranhas, mais íntegra e voraz” (HARSS, 1970,
p. 2); com a superação das “velhas polêmicas” (segundo o autor)
em torno da definição dos escritores de “sua posição artística ou
política” e a separação entre ativismo político e arte.
124
Gragoata 22.indb 124
Niterói, n. 22, p. 119-131, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:22
A América Latina no Suplemento Literário do Minas Gerais (1969-1973)
O aumento de pólos culturais como o México e Buenos
Aires, além de Paris, capital da América Latina, onde “nossos
escritores podiam se encontrar, geralmente exilados ou em missões diplomáticas” e a internacionalização das editoras (Fondo
de Cultura Econômica do México) e a “Casa de las Américas”,
de Cuba, criavam “uma nova solidariedade”.
No que diz respeito ao Brasil, salienta “novas barreiras
culturais e lingüísticas que continuavam de pé” (HARSS, 1970,
p. p. 2). A exclusão do Brasil no artigo, traduzido no Suplemento,
constitui uma prova evidente da ausência do diálogo cultural
entre brasileiros e hispno-americanos. O exílio dos brasileiros
em outros países da América Latina criará de fato “uma nova
solidariedade”, fundamentada em reflexão político-cultural sobre
a América Latina, como ocorreu pela profícua interlocução entre
Darcy Ribeiro e Ángel Rama no Uruguai e em outras plagas.
Uma das críticas feitas ao livro de Luis Harss pode ser encontrada pelo leitor do suplemento na entrevista (já comentada)
de Carlos Cortinez a Mario Vargas Llosa. O escritor peruano diz
que não se reconhece no capítulo que o autor argentino escreveu
sobre ele pelo método empregado, “resultado de longas entrevistas, que misturou e cortou” e porque Harss “é romancista e
não crítico”. O aspecto, aqui ressaltado, não tem como objetivo
destacar a crítica em si sobre o livro de Harss, mas evidenciar
como é possível estabelecer um diálogo entre a recepção dos
autores latino-americanos e seus críticos com base em diversos
textos, incluindo as entrevistas.
Gustav Siebenmann, professor convidado pelo Goethe Institut
e pela Universidade Federal de Minas Gerais, pronuncia, em
Belo Horizonte, uma palestra sobre Filologia Românica e sobre
os novos rumos da moderna literatura hispano-americana. No
Suplemento, é publicada a tradução de seu artigo, intitulado
“Romance hispano-americano como reflexo na situação social”
que tinha como objetivo estudar o romance da América Latina
pelo relacionamento entre o literário e o social.
O contraste entre civilização e barbárie, considerado por
Domingo Faustino Sarmiento (Vida de Juan Facundo Quiroga,
1815), é um dos aspectos que norteia o crítico que, ao apresentar
o panorama do romance hispano-americano, aborda o período
entre os anos 20 e 1960. Para isso, distingue três fases. Na primeira, ocorre o florescimento do romance latino-americano e há
o “conflito homem-natureza ou também civilização-barbárie”. La
vorágine (1924) de José Eustáquio Rivera (Colômbia), Don Segundo
Sombra de Ricardo Güiraldes (Argentina) e Doña Bárbara (1929),
de Rômulo Gallegos (Venezuela) exemplificam esse momento.
Na segunda, não “há uma luta épico-heróica com a natureza inimiga” e idéias políticas e crítico-sociais, formuladas por
Haya de la Torre, Mariátegui e outros “despertaram a consciência
social dos intelectuais e escritores latino-americanos” (SIEBENNiterói, n. 22, p. 119-131, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 125
125
6/11/2007 14:26:22
Gragoatá
Haydée Ribeiro Coelho
MANN, 1970, p. 2) e o “ herói do romance não é uma” vítima da
natureza mas de circunstâncias sociais”. (SIEBENMANN, 1970,
p. 2). Sob essa perspectiva são mencionados Huasipungo (1934),
de Jorge Icaza; El mundo es ancho y ajeno (1941), de Ciro Alegria
e El señor presidente, Prêmio Nobel, de Miguel Angel Asturias,
iniciado em 1930 e publicado em 1946.
A terceira fase, que abrange os anos 50 e sessenta, volta-se
para a grandeza do sentido trágico da vida e o “romancista deixa
de se ocupar com a realidade social no sentido de um realismo
de protesto e passa antes a descobrir nela o motivo e simultaneamente a manifestação sempre presente de uma condição humana
que já não conhece qualquer esperança certa.” (SIEBENMANN,
1970, p. 2.). Para o crítico, Juan Rulfo; Carlos Fuentes; Eduardo
Mallea; Alejo Carpentier, José María Arguedas e Augusto Roa
Bastos ilustram esse período.
Ernesto Sábato; Julio Cortázar; Mario Vargas Llosa e Gabriel García Márquez, segundo o artigo, eram representativos
da nova narrativa hispano-americana. Diante da complexidade
desse novo romance latino-americano, havia “uma perda de
público considerável”.
A literatura latino-americana, focalizada em fases, excluía
mais uma vez a literatura brasileira. Uma das razões alegadas
pelo autor do artigo “deve-se ao seu diferente ritmo evolutivo
que viria complicar nossa exposição” (SIEBENMANN, 1970, p. 2).
Como em outros textos aqui revisitados, a menção ao “nouveau
roman” era inevitável. Gustav Siebenmann, considerando a nova
narrativa latino-americana, diz que há “processos semelhantes,
mas sem a esterilidade e o ar de laboratório do ‘nouveau roman’
francês” (SIEBENMANN, 1970, p. 3) como em Sobre heroes y tumbas (1961), de Ernesto Sábato.
Terezinha Alves Pereira, ensaísta e escritora, residia nos
Estados Unidos, quando publica, no suplemento, três artigos
sobre o realismo mágico na ficção latino-americana. Inicia a
série com um comentário sobre a Antologia del Realismo Mágico,
organizada por Dale Carter Jr. que reunía “oito contos hispanoamericanos”. Com base no prólogo da mencionada publicação,
Terezinha Alves Pereira evidenciava que a “primeira obra que
deu força ao movimento do realismo mágico na América Hispânica foi a Antologia da Literatura fantástica, organizada por Jorge
Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Slvina Ocampo” (PEREIRA,
1970, p. 11) e que o realismo mágico ocorria além da Argentina,
no México e em Cuba.
O prólogo, realizado pelo crítico americano, permite à
autora dos artigos, publicados no suplemento, “traçar uma
linha mágica entre três escritores portenhos que representam
três gerações literárias subseqüentes: Leopoldo Lugones, Jorge
Luis Borges e Julio Cortázar” (PEREIRA, 1970, p. 11). Embora
esses autores sejam nucleares para sua exposição, estende suas
126
Gragoata 22.indb 126
Niterói, n. 22, p. 119-131, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:22
A América Latina no Suplemento Literário do Minas Gerais (1969-1973)
observações para Alejo Carpentier e Juan Rulfo.
No suplemento, foram resenhados vários livros de literatura latino-americana. Veneno da madrugada, A propósito de
Cândida Erêndira, de sua desalmada avó,de Gabriel de Garcia Márquez; Boquinhas pintadas, de Manuel Puig e, ainda, 62-Modelo
para amar, Bestiário, e Cronópios e Famas e Todos os fogos o fogo, de
Julio Cortázar ilustram os textos resenhados, com base nas traduções existentes em português. Los funerales de Mamá Grande,
de García Márquez; Conversación en la Catedral, de Mario Vargas
Llosa; Inventando que sueño, de José Augustín; Los Reyes, de Julio
Cortázar; La jaula, de Javier Villafañe, El siglo de las luces, publicado por Alejo Carpentier e “Hasta no verte Jesus mio”, livro de
Elena Poniatowska, são alguns dos textos comentados a partir
da língua original em que foram escritos.
Em “Um roteiro da América hispânica”, Carlos Roberto
Pellegrino, ao salientar o interesse do público pela literatura
hispano-americana, se reporta à Coleção Revista da Cultura, da
Editora Vozes, especialmente, ao sétimo número, organizado
pela professora Bella Jozef. A publicação permitia conhecer
algumas revistas estrangeiras que divulgam a literatura hispano-americana. Nesse sentido, percorro a cartografia cultural,
oferecida pelo colaborador do suplemento.
El Cuento era uma revista de contos, publicada na cidade do
México; Imagem era editada pelo Instituto Nacional de Cultura e
Belas Artes da Venezuela; Los Libros, revista argentina, apresentava a “mais completa resenha bibliográfica do mês” e, em “seu
número 20 trazia ‘na íntegra’ a resposta polêmica de 61 intelectuais a Fidel Castro, em razão das torturas a escritores cubanos”.
Também nessa revista, Julio Cortázar publicou pequeno ensaio
“político-literário” e o periódico Cuadernos hispano-americanos,
editado na Espanha pelo “Instituto de Cultura Hispânica”
publicava, “mensalmente, artigos de crítica literária, além de
contos e poemas de autores consagrados em todo o mundo”
(PELLEGRINO, 1972, p. 11).
Gustavo da Veiga, outro crítico do Suplemento, em “A
narrativa na América Latina” tratava do primeiro aniversário
da Nueva Narrativa Hispanoamericana, revista editada por Helmy
Giacoman nos Estados Unidos.A novidade era que o Brasil tinha
sido incluído no número comemorativo do primeiro aniversário
da revista, graças a Gregory Rabassa que era o “grande responsável pela expansão dos conhecimentos sobre a narrativa brasileira nos Estados Unidos”. Nesse mesmo texto, o colaborador do
suplemento inclui o comentário de Gregory Rabassa que realçava
o papel do periódico mineiro, como se pode ler na citação:
Entretanto o aparecimento da nova narrativa na América
Hispânica despertou o interesse pela comunidade irmã pela
primeira vez no Brasil, e a maioria dos autores têm sido traduzidos, lidos e estudados. O Suplemento Literário do Minas
Niterói, n. 22, p. 119-131, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 127
127
6/11/2007 14:26:23
Gragoatá
Haydée Ribeiro Coelho
Gerais, em particular, publica um grande número de artigos
e resenhas, muitas escritas por Carlos Roberto Pellegrino,
que em seus próprios contos mostra certa influência de Julio
Cortázar (VEIGA, 1972, p. 10).
A respeito da recepção do Suplemento, além das fronteiras
de Minas, é importante lembrar o que escreveu Humberto Werneck, por ocasião dos quarenta anos do Suplemento:
Minas, aliás, é preciso que se diga, era onde o semanário de
Murilo Rubião fazia menos sucesso. Julio Cortázar lia em
Paris o suplemento que em Belo Horizonte era ignorado pela
pequenez liliputiana de escribas provincianos (WERNECK,
2006, p. 5)
O escritor e jornalista,
autor de O desatino da
rapaziada relembrou, na
edição comemorativa,
o momento em que o
Suplemento Literário do
Minas Gerais esteve sob a
direção do escritor Murilo Rubião (1966-1968).
2
Para maior esclarecimento sobre a vinda de
Cortázar a Minas, Cf.
LUCAS, Fábio. Presença
de Cortázar, mencionada na bibliografia.
1
128
Gragoata 22.indb 128
Ao resenhismo crítico bastante praticado no Suplemento,
acrescentem-se os informes sobre o II festival de Teatro Latinoamericano, promovido pela Difusão Cultural (Departamento de
Teatro da Universidade Autônoma do México),1 o que confirma
o interesse do Suplemento para além da literatura, em conformidade com as orientações do periódico que desde seu início
incluía outras artes.
A presença de Cortázar em Minas, comentada por Fábio
Lucas,2 em artigo de 24 de fevereiro de 1973, é um acontecimento
da maior importância, instaurando, no plano real e metafórico,
o encontro da América Latina com Minas, o Brasil e o Barroco.
A posição do autor de A mais bela história do mundo reiterava a
posição de muitos dos críticos do Suplemento: o engajamento
na luta do Terceiro Mundo, sem abdicar da técnica narrativa na
construção do romanesco.
O estudo da América Latina no Suplemento do Minas Gerais demonstra como o local buscava se inserir no âmbito das
tendências literárias e críticas, predominantes nos anos 60 e 70,
nos países hispano-americanos. Pela tradução de diferentes textos (ensaios e entrevistas) e pela divulgação da crítica brasileira
sobre a literatura produzida na América Latina, o suplemento
propiciou ao leitor brasileiro tomar contato com textos pouco
divulgados entre nós, quebrando barreiras lingüísticas e culturais.
Diante dos artigos panorâmicos sobre a literatura hispanoamericana, o leitor pode acompanhar a recepção da literatura
e da crítica realizadas naquele momento a que já me referi,
lançando-se para o estudo de outros suplementos e revistas,
responsáveis por outras formas de diálogo e integração latinoamericana.
Em um primeiro momento, achei que de nenhuma forma
tinha ocorrido uma comunicação entre Marcha (semanário uruguaio) com o qual veio trabalhando e o Suplemento Literário
do Minas Gerais. No entanto, de forma indireta, pude ver que o
texto “A literatura ibero-americana na URSS” trazia uma nota
importante do seu tradutor, mostrando justamente o inverso.
Niterói, n. 22, p. 119-131, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:23
A América Latina no Suplemento Literário do Minas Gerais (1969-1973)
Joaquim de Montezuma de Carvalho, o tradutor, observa
que o poeta mineiro Tomás Antonio Gonzaga tinha sido traduzido em russo em 1826 por Pushkin. Essa informação tinha sido
recolhida do artigo de Venedict Vinogradov (Latinoamericanos
en la Unión Soviética), publicado no Semanário Marcha, n. 1571,
26 nov. 1971, Montevidéu.
Flora Sussekind, ao mostrar de que forma se originou “o
perfil do crítico moderno no país”, aborda a trajetória da crítica
feita no jornal e as transformações que ocorreram nas décadas
de 60 e 70, “anos universitários”.3
Em relação ao comparativismo brasileiro nos anos 80 e 90,
Sandra Nitrini afirma:
Na década de 80 tomam impulso cursos de literatura comparada em níveis de graduação e pós-graduação com desdobramentos em trabalhos monográficos e teses de doutorado
voltados para as relações entre a literatura brasileira e africana,
entre a portuguesa e a africana, entre a literatura canadense,
entre a brasileira e hispano-americana, ampliando, portanto,
seu objeto de interesse no campo das relações interliterárias e
em consonância com o movimento geral dos estudos literários
que abrem espaço para as chamadas literaturas não-canônicas.
(NITRINI, 1997)
As observações das duas ensaístas subsidiam o que vai
ocorrer no periódico mineiro. A partir de 1975, o Suplemento
abarca outras vozes acadêmicas além daquelas de especialistas
em literatura hispano-americana (Maria José de Queiroz, Bella
Jozef e Ilka de Carvalho) que já figuravam no período entre
1966-1973.
Abstract
A propósito desse
aspecto, veja-se SUSSEKIND, Flora. Rodapés, tratados e ensaios:
a formação da crítica
brasileira moderna. In:
Papéis avulsos. Rio de
Janeiro: UFRJ, 1993. p.
13-33.
3
Niterói, n. 22, p. 119-131, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 129
Interactions between Brazil and Spanish-American countries took place in various ways during
the 60s and 70s. The Literary Supplement of the
daily newspaper Minas Gerais (first published in
1966) published Spanish-American criticism and
literature in an effort to eliminate Brazilian isolation from other Latin American countries. In the
face of a vast material extant, this study chooses
from interviews and panoramic texts to highlight
reviews that give food for reflection on the works
recommended to readers of the Supplement. As
a result, scholars today can reconstruct aspects of
the interaction between Brazil and the rest of Latin
America and the critical reception from both the
Brazilian and other points of view.
Keywords: Literary Supplement of Minas Gerais; Latin American interaction; 60s and 70s.
129
6/11/2007 14:26:23
Gragoatá
Haydée Ribeiro Coelho
Referências
ARAÚJO, Laís Corrêa de. Asturias: invenção e participação.
Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 69, dez. 1967. Suplemento Literário, p. 7.
ARAÚJO, Laís Corrêa de. Entrevista com Michel Butor. Minas
Gerais, Belo Horizonte, n. 37, maio 1967. Suplemento Literário,
p. 3.
ARAÚJO, Zilah Corrêa. Conversa com Gunther Lorenz. Entrevista. Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 253, 3 jul. 1971. Suplemento
Literário, p. 4.
ASTURIAS, Miguel Angel. O boi. Trad. Iris Barbosa Mello.
Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 69, 23 dez. 1967. Suplemento
Literário, p. 4-5.
ÁVILA, Affonso. A poesia de Vicente Huidobro. Minas Gerais,
Belo Horizonte, n. 49, 5 ago. 1957. Suplemento Literário, p. 1.
COELHO, Haydée Ribeiro. O suplemento literário: 1969-1981.
Suplemento, Belo Horizonte, Secretaria do Estado da Cultura,
n. 1297, p. 6-9, dez. 2006.
CORTÁZAR, Julio. Todos os fogos o fogo. Trad. e nota de Laís
Corrêa de Araújo. Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 111, 1 jul.
1968. Suplemento Literário, p. 1-3.
CORTINEZ, Carlos. Conversando com Vargas Llosa. Trad. e
notas de Laís Corrêa de Araújo. Minas Gerais, Belo Horizonte, n.
139, 26 abr. 1969. Suplemento Literário, p. 2-3.
DUARTE, José Afrânio Moreira. Acerca de Vicente Huidobro I.
Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 109, 28 set. 1968. Suplemento
Literário, p. 3.
FESTIVAL de teatro na cidade do México. Minas Gerais, Belo
Horizonte, n. 291, 25 mar. 1972. Suplemento Literário, p. 11.
HARSS, Luis. Os nossos (fragmento). Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 217, out. 1970. Suplemento Literário, p. 2-3.
HOHLFELDT, Antonio. Jornalismo cultural: uma perspectiva.
Continente Sul Sur: Revista do Instituto Estadual do Livro, Porto
Alegre, n. 2, p. 57-63, nov. 1966.
HURTADO, Efrain. Entrevista com Severo Sarduy. Trad. Laís
Corrêa de Araújo. Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 190, abr. 1970.
Suplemento Literário, p. 2.
JOZEF, Bella. O romance brasileiro e o ibero-americano na
atualidade. Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 377, 17 nov. 1973.
Suplemento Literário, p. 6-7.
LISBOA, Henriqueta. Alfonso Reyes, ensaísta e poeta. Minas
Gerais, Belo Horizonte, n. 22, 28 jan. 1967. Suplemento Literário,
p. 4.
130
Gragoata 22.indb 130
Niterói, n. 22, p. 119-131, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:23
A América Latina no Suplemento Literário do Minas Gerais (1969-1973)
LUCAS, Fábio. Presença de Cortázar. Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 339, 24 fev. 1973. Suplemento Literário, p. 2-3.
MYRON DAVIS, William. Mito sagrado maia-quitché num romance de Asturias. Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 175, jan.
1970. Suplemento Literário, p. 9-11.
NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: história, teoria e crítica
: São Paulo EDUSP.1997.
PEREIRA, Terezinha Alves. A ficção latino-americana e o realismo mágico - I. Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 257, 31 jul. 1971.
Suplemento Literário, p. 11.
PEREIRA, Terezinha Alves. A ficção latino-americana e o realismo mágico - II. Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 258, 7 ago.
1971. Suplemento Literário, p. 4.
PEREIRA, Terezinha Alves. A ficção latino-americana e o realismo mágico - III. Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 254, 14 ago.
1971. Suplemento Literário, p. 10.
QUEIROZ, Maria José de. Rubén Dario e o modernismo hispanoamericano. Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 101, 3 ago. 1968.
Suplemento Literário.
RAILLARD, Georges. Chaves para o ‘romance novo’? Trad. Laís
Corrêa de Araújo. Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 48, 29 jul.
1967. Suplemento Literário, p. 2.
SARAIVA, Paulo. Ambição e angústia de um adolescente. Minas
Gerais, Belo Horizonte, n. 13, 26 nov. 1966. Suplemento Literário,
p. 4.
SIEBENMAN, Gustav. Romance hispano-americano como reflexo na situação social. Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 184, mar.
1970. Suplemento Literário, p. 6-7.
SUSSEKIND, Flora. Rodapés, tratados e ensaios: a formação da
crítica brasileira moderna. In: Papéis avulsos. Rio de Janeiro:
UFRJ, 1993. p. 13-33.
TROUCHE, André. Boom e Pós-Boom. In: FIGUEIREDO, Eurídice (Org.). Conceitos de literatura e cultura. Juiz de Fora: UFJF,
2005. p. 82-102.
VEIGA, Gustavo da. A narrativa na América Latina. Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 294, 15 abr. 1972. Suplemento Literário,
p. 10.
WERNECK, Humberto. Meu suplemento inesquecível. Suplemento, Belo Horizonte, Secretaria do Estado da Cultura, n. 1297,
p. 3-5, dez. 2006.
Niterói, n. 22, p. 119-131, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 131
131
6/11/2007 14:26:23
Gragoata 22.indb 132
6/11/2007 14:26:23
Modernismo brasileño y vanguardia
Argentina: filiaciones y homenajes
(Macedonio y Mário:
un diálogo ficticio)*
Mónica Bueno
Recebido 29, jan. 2007/Aprovado 20, mar. 2007
Resumo
As relações entre a literatura brasileira e a literatura argentina apresentam, em primeiro lugar,
a sedução da diferença de línguas. Da mesma
maneira, o modernismo brasileiro é, como a vanguarda argentina, uma polifonia que os críticos
tentam delimitar. Na América Latina, o romance
tem sido um gênero particularmente privilegiado
para marcar a forma irreverente da margem cultural. Na Argentina, Macedonio Fernández é o
ponto de virada na história do romance, alterando
consideravelmente os fundamentos epistêmicos da
representação. No Brasil, é justamente Mário de
Andrade quem põe em crise o marco do gênero.
Palavras-chave: Vanguarda; Modernismo;
Romance; Margem; Alta cultura; Cultura de
massas.
Neste artigo, excepcionalmente, as notas de
texto, por serem extensas, aparecem no final.
*
Gragoatá
Gragoata 22.indb 133
Niterói, n. 22, p. 133-144, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:24
Gragoatá
Mónica Bueno
“¿Qué quiere decir lo argentino-brasileño1?, se pregunta Raúl Antelo. “Es imposible pensar ese guión, ese espacio
común, el entre-lugar argentino-brasileño, sin una referencia a
una memoria de la modernidad a través de sus marcos mayores: el conflicto entre razón y tradición o la tensión entre razón
y evolución”, concluye el crítico argentino que vive en Brasil
(ANTELO, 2003, p. 97).
En esa forma de la modernidad que Antelo reconoce
—razón y tradición / razón o evolución— la vanguardia ocupa
un lugar preferencial porque pone en la superficie las formas
del conflicto: la vanguardia como respuesta política, como
respuesta a la tensión “alta cultura / cultura de masas” y como
cuestionamiento de la tradición. Estos tres puntos que definen
la vanguardia tienen una respuesta particular según el contexto
en donde surge. En América Latina, los imaginarios nacionales
en la década del veinte diseñan diferentes formas de problematizar la relación con la tradición propia y ajena, de resignificar
las vinculaciones entre la alta cultura y la cultura de masas; en
definitiva, de construir la utopía de un nuevo lugar social del
arte. El grupo martinfierrista dibuja una forma, “criolla”; los
escritores del modernismo brasileño son lectores atentos a esa
forma literaria.
Vanguardia y modernismo: las formas de lo nuevo
Las relaciones entre la literatura brasileña y la literatura
argentina presentan en primer lugar la seducción de la diferencia
de lenguas. Por otra parte, el modernismo brasileño es, como la
vanguardia argentina, una polifonía que los críticos intentan
delimitar. Así parece entenderlo el artículo en español que sale
publicado en el número 5 de la célebre revista brasileña Verde,
firmado con el seudónimo “Peregrino Junior”, con la promesa
incumplida de editarse en Argentina, en la revista Martín Fierro.2
“El movimiento moderno en el Brasil fue un grito de alegría y
entusiasmo. Fue el grito de la gente nueva. Un grito que encontró repercusión en todos los rincones de la tierra brasileña”. De
esta manera comienza una suerte de panorama celebratorio
de “lo nuevo” en Brasil. Hablábamos antes de las lenguas que
densifican el guión de la ecuación argentino-brasileño. Llaman
la atención en la edición del texto algunos errores ortográficos.
Una reseña musical de Mário de Andrade escrita en francés
completa el tono plural de la revista.
En la Argentina, estos años muestran un campo intelectual
complejo donde el gesto parricida hacia los viejos retratos de los
escritores consagrados (Gálvez, Rojas y Lugones) se dinamiza
con el debate acerca de las operaciones para instalar lo nuevo
como categoría cultural. Los dos grupos, Florida y Boedo, ensayan gestos que responden a diferentes objetivos: “nuevas formas de arte” para Florida; “nuevas formas de vida” para Boedo
134
Gragoata 22.indb 134
Niterói, n. 22, p. 133-144, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:24
Modernismo brasileño y vanguardia Argentina: filiaciones y homenajes (Macedonio y Mário: un diálogo ficticio)
define con acierto Castelnuovo. “Lo nuevo” ajeno es, para la
mirada del extranjero, un punto de inflexión del modo de leer
los experimentos artísticos de la vanguardia. La extranjería
de la lengua, de la cultura se conjuga con la proximidad del
margen.3
Mário y la vanguardia argentina
Las cinco notas críticas que Mário de Andrade publica en
el Diário Nacional entre 1927 y 1928 indican el modo de lectura
de un escritor atento a la literatura argentina (ANTELO, 1986,
p.163).4
Como señala Raúl Antelo, “[p]or volta de 1925, Mário de
Andrade encontrava-se empenhado em elaborar um conceito
de vanguarda que [reunisse] a liberdade estética e a responsabilidade do intelectual” (ANTELO, 1986, p. 26). Estos requisitos
indispensables para Mário en su definición de literatura fueron
una tensión en toda su obra, una necesidad de experimenta­
ción y búsqueda constante. De Macunaíma a O café, por citar dos
textos emblemáticos de Mário, esa tensión aparece resuelta de
modo diferente en cada caso. El contacto con la revista Martín
Fierro se produce en 1925 a partir del número 20 y su interés
parece centrarse en tres escritores: Borges, Girondo y Francisco
Luis Bernárdez. Sin embargo, la admiración de Mário por la
producción de Güiraldes muestra otra zona de legibilidad entre
la particular relación que la vanguardia, tanto en Brasil como en
Argentina, tiene con la tradición nacional y con un programa
cultural de identidad. 5
Si el brasileño reconoce en Borges (y lo reitera) una aristocracia que se educó en la sobriedad, está apuntando, evidentemente, a ese linaje nacional del culto a los libros que señalara
Ricardo Piglia. Sin embargo, la marca de lo nuevo aparece identificada en Mário con el reconocimiento de cierta extrañeza acerca
de las ideas de Borges. Mário lee la extrañeza en el marco de una
tradición que se construye en el criollismo de Martín Fierro y
que fusiona con su propio concepto de lo nacional como propio,
irreverente y peculiar. Mário, como Borges, intenta desprenderse
de “um nacionalismo desbragado” (ANTELO, 1986, p.166) que
abunda en Brasil.
En “El tamaño de mi esperanza”, Borges reclama un
criollismo conversador de Dios y del mundo, definiendo los
límites de una identidad que se separa (o pretende) del nacionalismo liberal.6 Borges lee la literatura argentina como un texto de identidad. Pero también comienza a dibujar la escena, a
imaginar la forma de contar el destino. Una procedencia y una
matriz de sus ficciones.7
Niterói, n. 22, p. 133-144, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 135
135
6/11/2007 14:26:24
Gragoatá
Mónica Bueno
En el margen del género: Mário y Macedonio
En literatura, el marco genérico es un campo de experimentación fructífero en los años veinte. Particularmente la novela
en América Latina ha sido un género privilegiado para marcar
la forma irreverente del margen cultural.8 Es posible pensar en
una suerte de origen o procedencia que polemice con las convenciones históricas y taxonómicas del género; en Argentina,
Macedonio Fernández es el punto de viraje en la historia de la
novela, alterando considerablemente los fundamentos epistémicos de la representación. En Brasil, es justamente Mário de
Andrade quien pone en crisis el marco del género. No se conocieron; ni siquiera hay referencias de uno en los escritos del otro.
Sin embargo, construyen una poética del género que pone en
crisis la noción de referencia y de verosímil. En otras palabras,
la genealogía del “libro extraño” que comienza con Facundo de
Sarmiento en la Argentina frente a la tradición del “romance
malandro” en Brasil.
Publicada en 1928, en una tirada de apenas ochocientos
ejemplares (Mário de Andrade no conseguirá editor), Macunaíma
constituye para toda la crítica brasileña un texto de renovación
del lenguaje literario nacional. En este punto, el “precursor” de
Borges y el modernista se encuentran, mejor dicho, coinciden
en una poética de la novela.
Museo de la novela de la Eterna es la primera novela buena.
Así la llama su autor para distinguirla de su última novela
Adriana Buenos Aires. Según explica Macedonio en uno de los
múltiples prólogos de la “novela buena”, un viento ocasional
confundió para siempre las hojas de los dos manuscritos y ya
no está seguro de haber logrado separarlas correctamente.
Museo se escribe durante cincuenta años. Es una suerte de
work in progress donde arte y vida logran una alianza productiva
que solo concluye con la muerte de su autor. La novela se publica
póstumamente en 1967.
Convengamos que la experiencia en la sociedad moderna
en la época de la reproductibilidad técnica, tal cual la ve Benjamin, se transforma en una marca generalizada, estándar y, de
alguna manera, manipulada. Si la experiencia es el conocimiento
individual que un sujeto tiene de lo real, esa posibilidad, para
Benjamin, está en crisis. Museo de la Novela de la Eterna intenta
la conquista de la ciudad de Buenos Aires desde una estancia,
donde se construirá el complot para lograr una ciudad sin
muerte, habitada por hombres no idénticos. Por su parte, como
señala Eneida Maria de Souza, “Macunaíma, o grande desconstrutor de linguagens, ao voltar de canoa para o Uraricoera, traz
na mala o contrabando de signos de diferentes origens e, entre
os mais visíveis, um casal de galinhas Legorne, um revólver
Smith Weson e um relógio Pathek Philipe” (SOUZA, 1999, p. 3).
136
Gragoata 22.indb 136
Niterói, n. 22, p. 133-144, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:24
Modernismo brasileño y vanguardia Argentina: filiaciones y homenajes (Macedonio y Mário: un diálogo ficticio)
La experiencia con lo real se metaforiza en ese trazo de ambivalencia de Macunaíma, situado en el límite entre la civilización
y la barbarie. Macunaíma (mal que le pese y lo rechace Mário)
es la obra que mejor concretiza las propuestas del movimiento
de Antropofagia, creado por Oswald de Andrade, “como um
antropófago, comer o que mereça ser comido”.9
En Museo los nombres de los personajes funcionan como
concreciones subjetivas de abstracciones universales. Al reemplazar el nombre propio por estas descripciones generalizadas
y funcionales (la Eterna, el Viajero, el Presidente), Macedonio
selecciona elementos olvidados de la tradición que remiten sobre
todo a la alegoría medieval. La vuelta de tuerca que diferencia el
modo alegórico en Museo se da en la ausencia de una totalidad
que la forma del medioevo pone de manifiesto. En la novela hay
restos, fragmentos de esa totalidad definitivamente perdida. En
Macunaíma, “la rapsodia” establece la multiplicidad y fuga de
sentidos que se diseminan a lo largo del libro, las condiciones
vanguardistas que le permiten a Mário establecer una relación
nueva entre cultura popular y alta cultura y establecer un modo
inestable, ambiguo de un relato de identidad (un héroe sin ningún carácter). “O que procurei caracterizar mais o menos foi a
falta de caráter do brasileiro que foi justamente o que me frapou
quando li o tal ciclo de lendas sobre o herói taulipangue. […]
Macunaíma também não é indio propriamente: é um ente de
lenda” (ANDRADE, 1988, p. 395), declara su autor al respecto.
Mário de Andrade reelabora literariamente temas de mitología
indígena y visiones folclóricas de la Amazonia y del resto del
país. Cavalcanti Proença afirma que Macunaíma se aproxima
a la epopeya medieval, porque tiene en común con aquellos
héroes lo sobrenatural y lo maravilloso. Está fuera del espacio
y del tiempo. Por ese motivo puede realizar aquellas fugas espectaculares y asombrosas. Las dos novelas eligen materiales
perdidos, olvidados (la alegoría, la epopeya) y los ponen a funcionar en el marco de la novela. El género permite una relación
irreverente con la tradición y busca un sentido nuevo de experiencia literaria, artística.
Esta noción del arte que se funde en la vida de una manera
inédita (“reconducir el arte a una nueva praxis vital” dice Bürger
(1995, p. 45) se manifiesta de distintos modos. La noción de crisis
de la experiencia se une para Benjamin con su teoría acerca de
la novela. La noción de experiencia, sea individual o colectiva,
tiene como contexto pertinente el de la tradición en tanto memoria de aquello que llega como experiencia. Las posiciones de
los dos autores muestran una relación corrosiva con el sentido
de experiencia individual y colectiva. El saber previo es el que
constituye un texto en literario. La conciencia de que es necesario luchar para constituir ese saber previo es un elemento muy
importante en la poética de las vanguardias. Antes la tradición
Niterói, n. 22, p. 133-144, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 137
137
6/11/2007 14:26:25
Gragoatá
Mónica Bueno
establecía un valor trascendente de la obra; la inestabilidad del
valor es un punto de la vanguardia. Si Mário debió defenderse
frente a las acusaciones de plagio que no entendían el gesto
irónico del uso de los materiales, Macedonio decide diseñar el
origen de la “novela buena”, que permita cuestionar la forma
del género.
La tesis central del ensayo de Borges “El escritor argentino
y la tradición” (1989, p. 154) es que las literaturas secundarias
y marginales, desplazadas de las grandes corrientes europeas,
tienen la posibilidad de un manejo propio, “irreverente” de las
tradiciones centrales. Por su parte, Silviano Santiago define en
su artículo “Apesar de dependente, universal” (1982, p. 13-24)
que la conciencia de la diferencia determina, por un lado, la
posibilidad de entrar en una relación particular con el conjunto
de la cultura europea y, por otro lado, la posibilidad de fundar
un origen y una tradición propia a partir de los usos locales y
de la especificidad de la situación de lectura.
Las nociones de autor y propiedad privada, los conceptos
de escena y relato, las relaciones “traidoras” con la tradición, el
uso de la lengua, las operatorias retóricas y los protocolos intertextuales resultan zonas de intersección que permitan reconocer
nuevos parámetros de lectura; estos, por su parte, responden a
contextos sociales que reclaman construcciones utópicas. Así,
por ejemplo, tanto Mário de Andrade como Macedonio utilizan
una técnica cinematográfica de cortes bruscos que imprime
velocidad, simultaneidad en la continuidad narrativa.
Ambas novelas diseñan las condiciones de una poética
que establece una nueva figura de lector. Entran de este modo
en el debate tradicional sobre “lo novelesco”, entendido como
tensión nunca resuelta entre el arte y la vida, entre la forma y
la experiencia, entre la verdad y la ficción. Las cuestiones más
relevantes acerca de la vanguardia entendida como respuesta política, en primer lugar; como respuesta a la tensión “alta
cultura / cultura de masas”, en segundo lugar; y como tensión
con la tradición nacional, en tercer lugar, pueden ser analizadas
comparativamente en las dos poéticas. Es en este sentido que la
apuesta más fuerte se diseña en la figura de un nuevo lector,
a partir de ese uso irreverente de la tradición local, nacional y
universal, que define una arquitectura de lo nuevo y que establece resignificaciones entre las diferentes zonas de la cultura.
La irreverencia de la que hablaba Borges produce, por un lado,
en las dos poéticas, la posibilidad de entrar en una relación
particular con el conjunto de la cultura europea y, por otro lado,
la posibilidad de fundar una genealogía y una tradición propia
a partir de los usos locales y de la especificidad de la situación
de lectura. Macedonio y Mário son vanguardistas porque ponen
en cuestión la tradición.
138
Gragoata 22.indb 138
Niterói, n. 22, p. 133-144, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:25
Modernismo brasileño y vanguardia Argentina: filiaciones y homenajes (Macedonio y Mário: un diálogo ficticio)
Mário y el modernismo brasileño muestran explícitamente
su irreverencia frente a la tradición. La ficción torna posible la
construcción, en el marco del género, de un nuevo lugar del
intelectual frente a las culturas populares. Macunaíma prueba el
modo de una síncresis cultural y tempo-espacial en el modo de
resolver las tensiones entre subjetividad y objetividad, ciudad y
campo, civilización europea y cultura nacional. Es en el modo
de leer los materiales de una tradición y también los dispositivos
epocales y las estrategias teóricas que Andrade y Macedonio
se disponen contra el verosímil realista. “Invirtiendo la mirada
etnográfica”, como señala Alejandra Mailhe10, en la brecha entre lo imposible y lo posible, ambas novelas hacen emerger la
ficción. (La carta a las Indias que no leen parodia el otro lado de
las cosas, como buscaba Macedonio en su belarte). En la novelarapsodia, como en la primera novela buena argentina, se busca
construir un nuevo verosímil. Esta ambigüedad identitaria se
comporta también, tanto en Museo como en Macunaíma, como
complementariedad entre los elementos negativos y positivos
del personaje. Las dos novelas debilitan la tradicional oposi­
ción civilización y barbarie y establecen conexiones imposibles
desde lo real. Ensayan la estrategia de opacar la representación,
de hacerla paradójica —principio vanguardista— para afirmar
todas las contradicciones.
Se podría pensar entonces, a partir de Museo y Macunaíma, una poética utópica que construye en el género un complot
contra la representación realista y, al mismo tiempo, establece
nuevos pactos de lectura. Las dos novelas desarman la falacia
de las identidades absolutas y autorreferenciales que conlleva
al desconocimiento de la naturaleza relacional y abierta hacia la
alteridad, y que a su vez comporta que esas mismas identidades
terminan negándose a sí mismas. Por lo tanto, podemos decir
que tanto la tendencia hacia una homogeneización de la cultura,
como la proliferación de particularismos absolutos, tienen en
común el desconocimiento de la diferencia concebida en términos relacionales. En otras palabras, en toda identidad, sea esta
subjetiva o colectiva, existe siempre una relación de implicación
con una alteridad que de alguna manera la sustenta, la define y
posibilita como tal. Antonio Candido vaticinó el carácter futuro
de Macunaíma. Esa definición utópica de la novela evidentemente
la emparienta con Museo, escrita para lectores por venir.
Niterói, n. 22, p. 133-144, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 139
139
6/11/2007 14:26:25
Abstract
The relations between Brazilian and Argentine literature present the seduction of the difference of languages. Brazilian modernism is, like the Argentine
vanguard, a polyphony that the critics try to delimit.
Particularly, the novel in Latin America has been a
privileged genre to mark the irreverent form of the
cultural margin. In Argentina, Macedonio Fernández
is the turning point in the history of the novel, considerably altering the bases of the representation. In
Brazil, it is Mário de Andrade that puts the frame of
the novel in crisis.
Keywords: Avant-garde; Modernism; Novel; Margin; Brazil; Argentina; Experience; Tradition; High
culture; Mass culture.
Referencias
ADORNO, Theodor W. Teoría estética. Buenos Aires: Hyspamérica, 1983.
ANDRADE, Oswald de. Do pau-Brasil à antropofagia e as utopias.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
ANDRADE, Mário de. Macunaíma o héroi sem nenhum caráter.
Florianópolis: [s.n.], 1988. (Col. Arquivos)
ANTELO, Raúl. De dares e tomares. In: ______. Confluencia,
literatura argentina por brasileños, literatura brasileña por argentinos.
Buenos Aires: Centro de Estudios Brasileños, 1982. p. 9-23. (Colección Iracema)
______. El guión de extimidad Sociedad. Revista de la Facultad
de Ciencias Sociales de la UBA, [S.l.], n. 22, p. 97-109, primavera
2003.
______. Na ilha de Marapatá: Mário de Andrade lê os hispanoamericanos. São Paulo: Ed. Hucitec, 1986.
ARFUCH, Leonor. Identidad, Diferencia, (des)Igualdad: encrucijadas de la escena global. In: LARRETA, E.R. Identity and
difference in the global era. Rio de Janeiro: UNESCO: UNICAMP,
2002. p. 75-96.
ATHAYDE, Tristão de. Macunaíma, vida literária. O Jornal, Rio
de Janeiro, 9 set.1928.
AVILA, Affonso (Org.). O modernismo. São Paulo: Perspectiva,
1975.
BOPP, Raul. Movimentos modernistas no Brasil, 1922-1928. Rio de
Janeiro: Livraria São José, 1966.
Gragoata 22.indb 140
6/11/2007 14:26:25
Modernismo brasileño y vanguardia Argentina: filiaciones y homenajes (Macedonio y Mário: un diálogo ficticio)
BORGES, J. L. El escritor argentino y la tradición (Discusión,
1932). In: ______. Obras completas. Buenos Aires: Emecé Editores, 1989. Tomo I.
BRANCO, Carlos H. Castello. Macunaíma e a viagem grandota. São
Paulo: Quatro Artes, 1970.
BRITO, Mário da Silva, História do modernismo brasileiro: antecedentes da Semana de Arte Moderna. São Paulo: Saraiva, 1958.
BUENO, Mónica. Conversaciones imposibles con Macedonio Fernández. Buenos Aires: Corregidor, 2001.
______. Macedonio Fernández: historia literaria de una vida. In:
FERRO, Roberto. (Dir.). Historia Crítica de la Literatura, Macedonio.
t. 8.
______. Macedonio Fernández: transgresión y utopía en la
vanguardia del Río de La Plata. Revista de Estudios Hispánicos,
Puerto Rico, ano 21, p. 37-43, 1994.
______. Macedonio Fernández: un escritor de fin de siglo. In:
______. Genealogía de un vanguardista. Buenos Aires: Corregidor,
2000.
BURGER, P: Teoría de la vanguardia. Barcelona: Gedisa, 1995.
CANCLINI, Nestor García. Globalizar-se ou defender a identidade: como escapar dessa opção. In: ______. A globalização
imaginada. São Paulo: Iluminuras, 2003. p. 19-40.
CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Presença da
literatura brasileira. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968.
v. 8.
CASCUDO, Luis da Câmara. Coisas que o povo diz. Rio de Janeiro:
Bloch, 1968.
DASSIN, Jean. Política e poesia em Mário de Andrade: São Paulo:
Duas Cidades, 1978.
DE LERY, Jean. Viagem à terra do Brasil. São Paulo: Martins,
1960.
DUARTE, Paulo Mario de Andrade por ele mesmo. São Paulo:
Edart, 1971.
ENZENSBERGER, Hans Magnus. Las aporías de la vanguardia.
Sur, [S.l.], n. 285, nov./dic. 1963.
FERNANDES, Florestan. Investigação etnográfica no Brasil e outros
ensaios. Petrópolis: Vozes, 1979.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da
língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.
GONZÁLEZ, Horacio. Brasil e Argentina: um jogo de espelhos.
Revista Margens/Márgenes, Porto Alegre, n. 3, p. 72-81, jul. 2003.
HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1976.
Niterói, n. 22, p. 133-144, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 141
141
6/11/2007 14:26:25
Gragoatá
Mónica Bueno
JITRIK, Noé: La ‘novela futura’ de Macedonio Fernández. In:
______. El fuego de la especie, ensayos sobre seis escritores argentinos.
Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 1971. p.151-188.
LIMA, J. de. Todos cantam sua terra...: dois ensaios. Maceió: C.
Ramalho, 1929.
LINDSTROM, Naomi. Macedonio Fernández. Nebraska: Society
of Spanish and Spanish American Studies, 1981.
LOPEZ, Telê Porto Ancona. Um projeto de Mário de Andrade:
questão: o popular. Arte em Revista, São Paulo, v. 3, mar. 1980.
MONTALDO, Graciel et al. Yrigoyen entre Borges y Arlt. Buenos
Aires: Contrapunto,1990.
MORAES, Eubem Borba de. Lembrança de Mário de Andrade: 7
cartas. São Paulo: Digital Gráfica, 1979.
MOURÃO, R. R. de Freitas. Os astros de Macunaíma. Jornal do
Brasil, Rio de Janeiro, v. 17, n. 24, out./ nov. 1979.
NUNES FILHO, Augusto. Macunaíma: origem do discurso,
discurso da origem. O Eixo e a Roda, Belo Horizonte, n. 2, p.
98-104, 1984.
NUNES, Benedito. Cultura e ficcão. A interiorização do carnaval
na literatura moderna. O Estado de São Paulo, São Paulo, 22 set.
1974.
PIGLIA, Ricardo. Memoria y tradición. In: CONGRESSO ABRALIC, 2., 1990, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: [s.n.], 1990.
v.1: literatura e memória.
______. Notas sobre Macedonio Fernández en un Diario. In:
______. Prisión perpetua. Buenos Aires: Sudamericana, 1988. p.
87-97.
_______. Poéticas de la novela en América Latina. Macedonio
Fernández. Compar(a)ison, Berna, p 21-27, 1997.
______. Sobre Borges: entrevista de Horacio González y Víctor
Pesce. Barcelona: Anagrama, 2001.
RELA , Walter. Fuentes para el estudio de la nueva literatura brasileña,
de las vanguardias a hoy. Montevideo: [s.n.],1990.
SANTIAGO, Silviano. Apesar de dependente, universal. In:
_______. Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
SARLO, Beatriz. Borges, un escritor en las orillas. Buenos Aires:
Ariel, 1993.
SCHWARZ, Roberto. O psicologismo na poética da Mário de
Andrade. In: ______. A sereia o desconfiado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
SOMMER, Doris. Amor e pátria na América Latina: uma especulação alegórica sobre sexualidade e patriotismo. In: HOLLANDA,
Heloísa Buarque de. Tendências e impassses: o feminismo como
crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 158-183.
142
Gragoata 22.indb 142
Niterói, n. 22, p. 133-144, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:26
Modernismo brasileño y vanguardia Argentina: filiaciones y homenajes (Macedonio y Mário: un diálogo ficticio)
SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.
WILLIAMS, Raymond: Marxismo y literatura. Barcelona: Península, 1980.
Notas
¿Hay algo que tendría la cualidad de lo propio y entonces se podría enorgullecer y reivindicar para sí ser más argentino-brasileño que otro? ¿Qué sería lo argentino-brasileño por
antonomasia? “. Cf. ANTELO, Raúl. El guión de extimidad Sociedad. Revista de la Facultad
de Ciencias Sociales de la UBA, [S.l.], n. 22, p. 97-109, primavera 2003.
2
El artículo titulado “ El vanguardismo en el Brasil ” se empeña ser abarcativo y plural. Al
final, en portugués y entre paréntesis se anuncia la publicación de ese texto en la revista
Martín Fierro.
3
La experimentación es, sin duda, el dispositivo que permite la búsqueda de lo nuevo. Experimentar implica abandonar la continuidad de la experiencia histórica, dejar de lado las
formas emergentes de la tradición y seleccionar otras formas, otros materiales.
4
En la primera, fechada el 30 de octubre de 1927 se refiere a Exposición de la Actual Poesía
Argentina de Pedro Vignale y César Tiempo. A modo de reseña, y luego de un párrafo
donde el brasileño teoriza sobre los defectos y dificultades de una antología, Mário reconoce
en esta las mejores cualidades del género y subraya el carácter de “inteligencia nova “ de
los compiladores. “Na Exposición tem um dilúvio de metáforas mas todas elas aparecem em
função de um movimento lírico interior mais sério e verdadeiro” En las zonas de legibilidad
que Mário encuentra particularmente en los martinfierristas se puede ver un punto de ensamblaje en su propia poética de escritor vanguardista. De la misma manera que Peregrino
Junior en Verde, intenta dar cuenta de la multiplicidad de la vanguardia argentina. Una larga
enumeración de las revistas vanguardistas, incluyendo expresiones rosarinas, cordobesas y
platenses. Asimismo, dedica una análisis pormenorizado a Claridad y los boedistas.
5
Es interesante observar la evaluación que Mário hace de los textos de Guiraldes: parece leerse
en clave con el formulado criollismo del joven Borges. El brasileño llama “nacionalismo” esa
forma peculiar que el argentino describe en esa estrategia de universalizar lo propio. Las
zonas de legibilidad que Mário lee en la vanguardia argentina soportan su propia poética
y determinan las huellas de su relación con los tres puntos de la relación vanguardia/vida
que definiéramos.
6
Ricardo Piglia ha sostenido (y ya es un clásico) la constitución dual de los dos linajes en
Borges como una matriz precisa de su literatura: el culto a los libros y el culto al coraje dos
emblemas que recorren su obra y refuncionalizan su textualidad. El culto de lo escrito, civilizado frente a la fascinación por la voz y el tono de la voz (bárbara, orillera). Su lectura de los
libros de la literatura argentina está sesgada por esta impronta. Encuentra en esa dimensión
una clave y un modo que quiebra el lugar común de lo propio y determina la forma de la
voz. La poesía gauchesca y, por supuesto, el Martín Fierro, le mostrarán el modo particular
y propio del relato que seduce a Borges. En los años de juventud, Borges llamará a esta
manera “criollismo”. En Inquisiciones de 1925 comienza a configurar un plan que logra en
su libro siguiente su ejecución más acabada.
7
Su sentido último se encuentra en la consonancia con las cosas de la vida de este país. Beatriz Sarlo lo explica con claridad: “Borges rescata el medio tono, la media voz, la oralidad,
las formas preliterarias, los géneros menores, las palabras usadas con intención irónica o
poética en la vida cotidiana” (SARLO, 1993, p. 121).
8
Señala Piglia, “Alejo Carpentier sistematiza la poética de lo real maravilloso que mantiene
una serie de relaciones con la obra de García Márquez, de Asturias, con el realismo mágico,
etc. Esta tradición rastrea los orígenes del género en América Latina y su condición formal no
en la tradición clásica de la novela europea sino en los escritos de los cronistas españoles y en
los relatos de la conquista. Construye de ese modo una genealogía propia y un origen para
la novela, centralmente en el área del Caribe, que define un estilo y un modo de narrar.
9
Por su parte, Arguedas ha definido la historia de la novela en la región andina a partir del
anclaje del género en la gran tradición narrativa prehispánica. En ese origen se ha elaborado
otra hipótesis sobre la historia específica del género y sobre su diferencia.” 10 Cf Macedonio
Fernández: Vanguardia y novela, de Mónica Bueno, Colectivo 12, en prensa. (Es imprescindible aclarar que si bien esta ponencia fue leida por mí en Mercedes., en el marco de las
Jornadas del ILH, la autoría es del grupo de investigación y, sobre todo, del director, que
pacientemente ordenó nuestras discusiones y nos llevó con maestría a conclusiones impensables desde nuestro limitado punto de partida. Con el estilo de la conversación macedoniana (“Como ustedes sabrán”) logró una dinámica apasionante y , algo poco frecuente, un
trabajo intelectual en equipo. Por lo tanto, yo sólo soy un copista, una especie de Per Abbat
posmoderno, que trata de trasladar a esta convención académica dilatadas tardes de charla
amena y eficaz) Cf PIGLIA, Ricardo. Poéticas de la novela en América Latina. Macedonio
Fernández:pPoéticas de la novela en América Latina. Compar(a)ison, Berna, p. 21-27, 1997.
1
Niterói, n. 22, p. 133-144, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 143
143
6/11/2007 14:26:26
Gragoatá
Mónica Bueno
Nos referimos ala ponencia presentada por Alejandra Mailhe “Fábulas de la tansculturación en Macunaíma. Una lectura crítica del modernismo brasileño”(UNLP-UNER) en las
Jornadas de la cátedra de Historia Americana del Depto. de Historia, Fac. de Humanidades
UNMdP, agosto de 2004.
11
Para Benjamin, la vanguardia trabaja con la gran consigna de unir el arte y la vida. En
este intento, opera con un concepto de tradición en ruinas y establece una relación sinuosa
que anula la continuidad. Se trata de una crítica a un tipo de circulación de sentido, a las
relaciones entre las construcciones sociales del sentido y las construcciones artísticas.
12
Nos referimos ala ponencia presentada por Alejandra Mailhe “Fábulas de la tansculturación en Macunaíma. Una lectura crítica del modernismo brasileño”(UNLP-UNER) en las
Jornadas de la cátedra de Historia Americana del Depto. de Historia, Fac. de Humanidades
UNMdP, agosto de 2004.
10
144
Gragoata 22.indb 144
Niterói, n. 22, p. 133-144, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:26
Visões da morte no indigenismo
de Darcy Ribeiro e Jorge Icaza
Paulo Sérgio Marques
Recebido 9, jan. 2007/Aprovado 29, mar. 2007
Resumo
O objetivo deste estudo comparativo entre duas
cenas de morte presentes em Maíra, do brasileiro
Darcy Ribeiro, e Huasipungo, do equatoriano
Jorge Icaza, é mostrar as diferentes concepções da
morte, da cultura branca européia e do indígena
americano, apresentadas nos dois romances indigenistas, e como elas expressam uma cosmovisão
peculiar a cada uma dessas culturas, a cristã e a
pagã, a colonizadora e a colonizada. Enquanto em
Jorge Icaza a morte descrita pelo olhar do colonizador serve de objeto de hierarquização e separação,
a morte pelo olhar indígena de Maíra revela-se
como um processo de comunhão e participação.
Utilizamos, para a comparação, elementos da
crítica arquetípica e antropológica, a partir das
teorias de Humberto Maturana, Gilbert Durand
e Joseph Campbell, dentre outras.
Palavras-chave: Literatura brasileira; Literatura hispano-Americana; Indigenismo; Mito e
Narrativa.
Gragoatá
Gragoata 22.indb 145
Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:26
Gragoatá
Paulo Sérgio Marques
O brasileiro Darcy Ribeiro e o equatoriano Jorge Icaza
são representantes de uma literatura que, no século XX, buscou
denunciar o extermínio cultural e racial dos povos indígenas
sul-americanos. Em Maíra e Huasipungo, respectivamente, os
autores retratam as conseqüências letais para o indígena do
processo civilizador. Daí a morte como tema presente e significativo nos dois romances. Em Icaza, ocupado em denunciar o
extermínio dos quíchuas, a imagem da morte é coordenada pela
visão expansionista do colonizador; em Ribeiro, ela assume as
conotações do imaginário indígena, que a sacraliza e afirma-a
contra a ideologia dominadora patriarcal.
Bella Jozef aponta Jorge Icaza como o principal representante do movimento indigenista hispano-americano iniciado
em 1930. Em Jorge Icaza, como em Ciro Alegría e José María
Arguedas,
o “costumbrismo” superficial e a tradição indianista ao gosto
romântico são suplantados por um indigenismo de realismo
brutal, que constrói atmosfera tensa. É caracterizado pelo propósito de crítica social e política, principalmente no Equador,
Peru e Bolívia, contra a exploração do índio e a dominação
estrangeira, que queria expulsar os índios de seu próprio
ambiente. (JOZEF, 1986, p. 121)
A questão indígena também se verifica na realidade social
brasileira. Em princípios do século XX, ocorre uma nova investida do crescimento econômico para o interior, mobilizada pelo
projeto republicano de levar ao país o “progresso”, o que provoca
novos conflitos entre brancos e índios:
Nos primeiros vinte anos de vida republicana nada se fez para
regulamentar as relações com os índios, embora nesse mesmo
período a abertura de ferrovias através da mata, a navegação
dos rios por barcos a vapor, a travessia dos sertões por linhas
telegráficas, houvessem aberto muitas frentes de luta contra os
índios, liquidando as últimas possibilidades de sobrevivência
autônoma de diversos grupos tribais até então independentes.
[...] O extermínio dos índios era não só praticado mas defendido, e reclamado como o remédio indispensável à segurança
dos que “construíam uma civilização no interior do Brasil.
(RIBEIRO, 1982, p. 127-128)
Entretanto, variam os modos de representação do choque
cultural na ficção brasileira e na hispano-americana. Nosso realismo crítico concentrou-se, na década de 30, na questão rural
e regionalista, sem abordar diretamente o problema indígena,
enquanto o indigenismo mais significativo encontra-se no Macunaíma, de Mário de Andrade, em que o mito e a narrativa mágica
rompem com o discurso realista, e a crítica social se faz pela via
alegórica. O Brasil não conhece, pois, a perspectiva puramente
realista-social do indigenismo hispano-americano da década
de 30. Apenas quarenta anos mais tarde, a ficção de Darcy Ri146
Gragoata 22.indb 146
Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:26
Visões da morte no indigenismo de Darcy Ribeiro e Jorge Icaza
beiro e Antonio Callado desenvolverá a crítica social direta que
pautou a literatura indigenista andina anterior. Por isso Moacir
Werneck de Castro saúda a publicação de Maíra como “uma
obra que, provavelmente, marcará a segunda metade do século
XX na literatura brasileira assim como Macunaíma, de Mário
de Andrade, marcou a primeira metade” (2001, p. 391). Para ele,
a ficção de Darcy Ribeiro, embora fosse publicada quase dez
anos após o Quarup, de Callado, abria “uma nova vertente na
literatura brasileira”, rompendo, de um lado, com o indianismo
romântico e, de outro, com o relato mítico iniciado com Mário de
Andrade e prosseguido em obras como o Manuscrito holandês,
de Manoel Cavalcanti Proença, publicado em 1960.
No Brasil, contudo, a crítica social do novo indigenismo
aparece matizada pelo mesmo elemento mágico característico
da narrativa hispano-americana da segunda metade do século.
Portanto, o que Antonio Cornejo Polar descreve para o indigenismo andino posterior à geração de 30 serve em parte para a
obra de Darcy Ribeiro no Brasil:
Una década más tarde comienzan a aparecer textos que, aunque entroncados en la tradición indigenista, se distancian de
ella por muchos conceptos: nuevas perspectivas, más antropológicas que sociales; difuminación, pero no abandono, del tono
denunciatorio y reivindicativo; empleo de nuevas técnicas y
usos narrativos, más tarde emparentados con los del realismo
mágico, etc. (POLAR, 1993, p. 736)
É importante lembrar, nesse caso, que Darcy Ribeiro exilouse em país andino e foi em Lima, capital peruana, que redigiu a
terceira e última versão de Maíra.
Por tudo isso, embora um pouco distantes no tempo, existem qualidades temáticas e estilísticas que aproximam as obras
de Darcy Ribeiro e de Jorge Icaza, como de outros indigenistas
andinos. Ángel F. Rojas afirma que os autores andinos de 30
não fortalecem a individualização de suas personagens, mas
concebem-nas como “homem-massa”, personagens e caracteres
coletivos (apud JOZEF, 1986, p. 122). Essa característica é mais
forte em Icaza do que em Alegría ou Arguedas, como também é
mais presente em Darcy Ribeiro do que em outros indigenistas
brasileiros. De Huasipungo, Polar afirma que “las caracterizaciones en bulto y los diálogos sin emisor determinado tendrían
que leerse como formas especialmente apropiadas para desubjetivizar la problemática andina y para poner en primera línea
su índole colectiva” (1993, p. 731-732). Em Darcy Ribeiro, por sua
vez, é principalmente a multiplicidade de vozes e focalizações
nos capítulos do romance que dificultam a individualização da
trama:
Embora encontremos em mais da metade dos 66 capítulos a
presença de um narrador onisciente, [...] ao lado do “eu” do
narrador, sujeito do discurso, a narrativa se fragmenta em
Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 147
147
6/11/2007 14:26:26
vários “eus”, compondo-se num caleidoscópio em que dos
vários ângulos vai surgindo a imagem do todo. Uma imagem
semovente, plural, ambígua. (MARIA, 2001, p. 402)
O discurso indireto livre, em ambas as obras, permite que
se revelem a perspectiva, os sentimentos, os pensamentos e a
linguagem dos participantes do conflito, o civilizador branco e
o autóctone. Na caracterização dessas personagens, em Maíra
ocorre o mesmo que Bella Jozef observa em Huasipungo: “A crítica deriva para a ironia e para o grotesco, como acontece com a
personagem-tipo do latifundiário. Os que têm humanidade são
os índios” (JOZEF, 1986, p. 123). Mostram, com isso, como o contato de uma cultura indígena com a civilização branca desencadeia uma crise no cosmo da comunidade indígena, uma invasão
generalizada de forças caotizantes externas poderosíssimas. “A
história das nossas relações com os índios é, em grande parte,
uma crônica de chacinas e sobretudo, de epidemias”, comenta
Darcy Ribeiro (1982, p. 208), cujo Maíra, como o Huasipungo, de
Jorge Icaza, fala da extinção de um povo e de uma cultura, por
isso o tema da morte é expressivo nas duas obras.
Huasipungo, em quíchua, é o nome que se dá à porção de
terra cedida aos índios pelo proprietário, em troca de trabalho no
latifúndio. O livro de Icaza narra o conflito entre o latifundiário
Don Alfonso Pereira, que, depois de explorar a mão-de-obra
indígena na expansão da fazenda, estende os seus domínios
aos huasipungos da comunidade, retirando ao indígena tudo o
que ainda mantinha sua sobrevivência. Como caso individual
de exploração, aparece a história de Chiliquinga, cuja mulher,
Cunshi, pressionada pela fome como toda a comunidade, morre
depois de comer carne apodrecida.
O episódio em que a morte figura mais diretamente é o
do cerimonial fúnebre de Cunshi. Enquanto o corpo está sendo
velado, Chiliquinga combina com o vigário o sepultamento da
mulher, e o sacerdote conduz o índio num passeio pelo cemitério
cristão, que é descrito como um latifúndio: “¡Mira! – insistió el
cura observando el camposanto con codicia de terrateniente –
según las malas lenguas aquello era su latifundio” (ICAZA, 1975,
p. 163). Proprietário da morte, o vigário trata-a como mercadoria:
“Arrimándose plácidamente al tronco de un ciprés, continuó
ponderando las excelencias de su mercadería con habilidad de
verdulera” (ICAZA, 1975, p. 164). E exibe todas as habilidades
de um bom negociante: “Al notar el religioso que el indio bajaba
los ojos como si tuviera vergüenza de que la mercadería factible
a sus posibilidades sea tratada mal, el buen Ministro de Dios se
apresuró a consolar” (ICAZA, 1975, p. 164-165).
À maneira da terra dividida entre patrões e empregados,
aos primeiros as melhores e mais férteis e, aos segundos, os
huasipungos ribeirinhos, expostos ao risco das enchentes, o ce-
Gragoata 22.indb 148
6/11/2007 14:26:27
Visões da morte no indigenismo de Darcy Ribeiro e Jorge Icaza
mitério apresenta-se como uma plantação de cruzes, a lavoura
do vigário, “una especie de sementera de tumbas, toda florecida
de cruces, que se extendía a la culata del templo” (ICAZA, 1975,
p. 163). A mitologia cristã combina-se, então, a um discurso
agrícola para classificar os mortos:
– Éstos... Los que se entierran aquí, en las primeras filas,
como están más cerca del altar mayor, más cerca de las
oraciones, y desde luego más cerca de Nuestro Señor
Sacramento [...], son los que van más pronto al cielo, son
los que generalmente se salvan. [...] Mira bien – insistió
el sotanudo señalando al indio alelado las cruces de la
primera fila de tumbas a cuyos pies crecían violetas,
geranios, claveles. [...] Avanzó por un pequeño sendero,
y continuó su sermón ante las cruces de las tumbas que
se levantaban en la mitad del camposanto:
– Estas cruces de palo sin pintar son todas de cholos e indios pobres. Como tú puedes comprender perfectamente,
están un poco alejadas del santuario, y los rezos llegan a
veces, a veces no. La misericordia de Dios, que es infinita
[...], les tiene a estos infelices destinados al purgatorio. [...]
Es como los rosales que ves aquí: un poco descuidados,
envueltos en maleza, pero... Mucho les ha costado llegar
a liberarse de las zarzas y de los espinos... Mas, al fin y
al cabo, un día florecieron, dieron su perfume. [...]
El indio se metía por unas tumbas mal cuidadas, derruídas, cubiertas de musgo húmedo y líquenes grises. [...]
El señor cura, con mirada de desdén y asco, señalando
hacia el rincón final del cementerio, donde no se veía
sino cruces apolilladas, donde las hortigas, las moras
y los espinos habían crecido en desorden de cabellera
desgreñada de bruja, donde un zumbar continuo de
abejorros y zancudos escalofriaba el ánimo. [...]
– Allí... Los distantes, los olvidados, los réprobos. [...] Los
del... [...] ... ¡infierno! (ICAZA, 1975, p. 163-166)
Nota-se que o cemitério cristão reproduz o escalonamento
da sociedade capitalista, e o espaço da morte recebe daqui o
seu princípio normatizador. O enterro na primeira fileira do
cemitério é o mais caro; as últimas covas são as mais baratas,
mas ali “sólo habitan los demonios” (ICAZA, 1975, p. 166). Certamente Chiliquinga só tem dinheiro – se o tiver – para pagar
uma cova no “inferno” do campo santo, à margem do sistema
civilizador.
A morte é um elemento de ordenação cultural, pois comunica com o sobrenatural e o sagrado, que é o ponto de referência para a organização cultural (ELIADE, 2001, p. 25-26). Em
Huasipungo, há uma penetração do material no sagrado, uma
profanação da morte pelas leis do capital, pela qual a morte se
torna elemento de separação e hierarquização, concebida da
Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 149
149
6/11/2007 14:26:27
Gragoatá
Paulo Sérgio Marques
perspectiva do dominador branco, europeu, patriarcal e expansionista. Na mesma imagem, a morte, que deveria devolver
o indivíduo ao estado coletivo do morto sem nome, mantém o
individualismo da sociedade de classes, enquanto o espaço natural é geometrizado como um campo para cultivo e exploração
de riquezas. A atitude ilegítima desse espírito mercantil que
perverte a morte aparece na própria indignação do vigário, que
ironicamente condena o ato de ver as coisas “celestiais” como
“transações terrenas”, quando Chiliquinga lhe pede para fiar o
pagamento do enterro:
¿Entrar al cielo al fío? No faltaba otra cosa. ¿Y si no me paga
el indio aquí en la tierra quién le saca a la difunta de allá
arriba?”, pensó el párroco verdaderamente indignado. Luego
continuó:
– No se puede. Eso es una estupidez. Mezclar las burdas transacciones terrenales con las cosas celestiales. ¡Dios mío! ¿Qué
es lo que oigo? ¿Qué ofensa tratan de inferirte Señor? [...] En el
otro mundo todo es al contado. (ICAZA, 1975, p. 167)
Em Maíra, por sua vez, o tema da morte é tão presente, que
Maria Luiza Ramos chega a defender que ele constitui o leitmotiv
do romance (2000, p. 159). Já os primeiros capítulos da trama
mostram duas mortes, a da branca Alma e a do índio Anacã.
Enquanto a primeira aparece fatalizada no cadáver encontrado
na mata e denuncia seu poder nulificador pelo título inominado
de “A morta”, a morte do chefe mairum é preparada e ritualizada,
de forma a perder seus contornos trágicos, e o capítulo leva o
nome próprio do tuxaua que, imortalizado, não o perderá. Como
afirma Maria Luiza Ramos, “ao contrário da morte violenta da
mulher branca, na exuberância de seus prováveis trinta anos,
a morte do tuxaua representa a saturação do exercício de uma
vida que, atingindo a idade avançada, deve se extinguir” (2000,
p. 142). É, portanto, uma morte necessária e desejada.
Para os mairuns e sua cosmovisão antipatriarcal, morte é,
paradoxalmente, vida; e, ao contrário, o que se pensa ser vida,
revela-se em verdade morte. Por isso Anacã deseja sua própria
morte: “Preciso morrer para que surja e cresça o tuxaua novo”.
É que a morte, concebida no interior da própria vida, não é sua
negação, mas a conseqüência de sua intensidade: “Já dancei
muito Coraci-Iaci. Já cantei muito maré-maré. Já comi muito
pacu. Já bebi muito cauim. Fodi bastante. Já ri demais. Estou
velho. Chegou minha hora, vou acabar” (RIBEIRO, 2001, p. 37).
Quando, então, recebem o comunicado do tuxaua, os mairuns
contemplam o pôr-do-sol “quase com alegria”, pois o que define
o momento não é um sentimento de fim, mas de transição: “Já
não é dia e ainda não é noite” quando surgem as mulheres com
água da Lagoa Negra para fazer, na cova de Anacã, o barro da
150
Gragoata 22.indb 150
Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:27
Visões da morte no indigenismo de Darcy Ribeiro e Jorge Icaza
vida. Então, “Anacã está sepultado. Logo morrerá. A vida deve,
agora, renascer” (RIBEIRO, 2001, p. 40).
Os ritos fúnebres nada têm da desesperança do passeio
de Chiliquinga pelo cemitério. O exercício de cavar a cova de
Anacã assemelha-se a rituais de fertilidade, em que, sobre uma
fenda no chão, os celebrantes introduzem as mãos ou varas de
madeira para imitar o ato sexual: “Os homens de todas as famílias da banda azul-ouí se revezam abrindo, no chão duro de
bate-pé do pátio de danças, a cova de Anacã. Trabalham devagar, com paus de ponta endurecida a fogo, que ressoam ao ferir
a terra, marcando um ritmo lúgubre” (RIBEIRO, 2001, p. 39). É
que cova e ventre, nessa visão eufemista da morte, participam
da mesma função: “[Jaguar] usava a palavra oco e apontava a
minha xota, dizendo que é o oco da vida e tem o mesmo nome
de certo patuá não sei de quê, cheio de ossos emplumados, que
é o oco da morte”, conta Alma. “Por um se nasce aqui neste
mundo, dizia ele, por outro se nasce lá no outro mundo. Por isso,
dizia, o defunto daqui é o bebê de lá e o bebê daqui é o defunto
de lá, e são chamados também pela mesma palavra” (RIBEIRO,
2001, p. 345). Ao final, a rega de Anacã traz a exuberância e o
colorido do verão e as festas e danças dos mairuns. Ao redor de
sua cova se celebrará a festa de Jurupari e o ritual de passagem
dos adolescentes da tribo: “Tudo rola ao redor do umbigo do
mundo: esse pátio mairum com o tuxaua Anacã plantado no
meio” (RIBEIRO,2001, p. 100).
Anacã, portanto, não morre, como insiste o mundo civilizado em dizer de Alma. Quando ele decide morrer, torna-se,
em verdade, um “morto-vivo” (RIBEIRO, 2001, p. 38). Como
observa Maria Luiza Ramos, sua morte é “predeterminada”: “O
chefe decide que vai deitar-se para dormir e não mais acordar.
Já viveu bastante e é preciso que se afaste para que a vida de seu
povo se renove; não há sepultamento nem cremação, nada que
faça desaparecer o cadáver por motivos éticos ou metafísicos”
(RAMOS, 2000, p. 168). Exposta no enredo, como diz Antonio
Candido, “por etapas” (2001, p. 384), a morte de Anacã é uma
morte experimentada, uma morte vivida.
A morte do tuxaua é, portanto, um ato consciente, por isso
não cai no não-ser absoluto, mas num modo de ser absolutamente,
pois, com a morte, o indivíduo se integra ao natural e invade os
interstícios do mundo, o que se inscreve no texto pelo impregnante miasma de Anacã tomando conta da tribo:
Anacã [...] apodrece e fede com uma catinga doce, penetrante, terrível. Sua presença já se sente conforme sopre o vento,
desde as dunas do Iparanã até o oco da mata. Não é um fedor
de carniça de bicho morto ou de defunto desenterrado. É um
cheiro agudo como ponta de flecha, leve como penugem, cortante como lasca de taquara. E sempre eternamente presente
no nariz de cada um. Até no meio da mata, caçando, fugindo
Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 151
151
6/11/2007 14:26:27
Gragoatá
Paulo Sérgio Marques
dele, ele cheira; levado na pele, nos cabelos, sabe-se lá onde.
(RIBEIRO, 2001, p. 55)
Maturana utiliza o
termo “matrístico” para
“conotar uma situação
cultural na qual a mulher tem uma presença
mística, que implica a
coerência sistêmica acolhedora e liberadora do
maternal fora do autoritário e do hierárquico”, isto é, num sentido
oposto ao de “matriarcal”, referente a uma
cultura onde a mulher
teria papel dominante
(MATURANA, 2004, p.
25).
1
152
Gragoata 22.indb 152
Morrer é, então, viver plenamente: “Nunca Anacã, o tuxaua, esteve tão presente e dominador” (RIBEIRO, 2001, p. 67).
A onipresença de Anacã é simbolizada ainda em seu prolixo
sepultamento, que percorre as imagens dos quatro elementos
materiais: primeiro enterrado e regado com a água da Lago Negra, depois seus restos são pendurados ao vento sobre o leito da
lagoa, mas não sem antes ter os ossos enfeitados com “plumas
de cores” como “pássaros vivos”, figura que remete ao fogo e à
fênix que o simboliza, célebre imagem da eternidade e do poder
de ressurreição. Seu enterro nas águas confere-lhe também a
divindade tribal, uma vez que “o lugar de Maíra”, deus máximo
dos mairuns “fica nas águas” (ZANNONI, 2000, p. 171).
No capítulo da exumação do tuxaua, intitulado “Manon”,
que é a palavra mairum para o espírito presente do morto,
durante a cerimônia fúnebre e antes do sepultamento final,
os ossos de Anacã são distribuídos aos clãs (RIBEIRO, 2001, p.
121). Ainda nesse capítulo, parágrafos atrás, o tuxaua era descrito como aquele que “juntou os mairuns”, “fundiu os clãs”,
que antes viviam dispersos (RIBEIRO, 2001, p. 119). Daí o papel
aglutinador de Anacã, que ele agora cumpre ainda na morte.
Então, as imagens relacionadas à transformação da morte em
vida seguem. A certa altura do ritual, os presentes escarificam a
pele: “Quando o sarjador desce dilacerando, o que se vê primeiro
são simples linhas brancas. Mas elas prontamente escurecem,
depois brilham de repente em tons rubros e afinal jorram sangue
pela cara, pelos peitos, pelos braços” (RIBEIRO, 2001, p. 121). Do
branco ao escuro ao vermelho, a pele dos mairuns transita pelas
três cores alquímicas do branco e preto, afirmação e negação,
para o vermelho final, de união dos opostos, quando então jorra
o líquido representativo da vida animal.
Maria Luiza Ramos vê no próprio ato de superdominação
do cadáver de Anacã um “ato canibalesco” e “incestuoso”, a condição de “um-só-corpo da relação mãe-filho”, pois, enquanto é
absorvido pela respiração, o miasma de Anacã passa a fazer parte
de outro corpo, desrespeitando “os limites do domínio corporal
do outro”. Então, “a função paterna cede lugar à função materna,
ao estágio dual em que o corpo assume um papel predominante.
Não a pele, em que a lei se escreve, mas o próprio corpo, em que
a catinga de Anacã se inscreve” (RAMOS, 2000, p. 169-170).
Temos, portanto, em Huasipungo e em Maíra, visões opostas
da morte, uma marcada pelo imaginário patriarcal e outra por
um imaginário, por assim dizer, feminino.
O biólogo e historiador das culturas Humberto R. Maturana, da Escola de Santiago, explica que o patriarcado e a cultura
pré-patriarcal, que ele chama “matrística”1, caracterizam-se por
Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:28
Visões da morte no indigenismo de Darcy Ribeiro e Jorge Icaza
“modos diferentes de viver as relações humanas” (2004, p. 35).
Maturana e Verden-Zöller (2004, p. 18-21) afirmam que, quando
a humanidade nasceu, há mais ou menos três milhões de anos,
vivia, de forma natural e sem reflexões ou artificialismos, em
redes de conversações que “envolviam a colaboração dos sexos
na vida cotidiana, por meio do compartilhamento de alimentos,
da ternura e da sensualidade”. No mundo matrístico, “é crível
que as conversações de tal rede fossem de participação, inclusão,
colaboração, compreensão, acordo, respeito e co-inspiração”
(MATURANA; VERDEN-ZÖLLER, 2004, p. 42). O pensamento
não distingue as coisas entre si, mas as concebe integradas num
todo harmônico. Na cultura matrística “o pensamento humano
talvez tenha sido naturalmente sistêmico, lidando com um
mundo em que nada existia em si ou por si mesmo, no qual tudo
era o que era em suas conexões com tudo mais” (MATURANA,
2004, p. 46).
A cultura pré-patriarcal foi destruída por povos pastores
indo-europeus. Maturana explica que, dentre os povos paleolíticos de há mais de 20 mil anos, alguns foram “sedentários, coletores e agricultores”, e outros seguiram as migrações de animais
selvagens. No rastro desses animais, aparece, em determinado
momento, a necessidade de proteger os grupos perseguidos
do ataque de outros predadores. Na opinião de Maturana, a
cultura do pastoreio surge justamente “quando os membros de
uma comunidade humana, que vive seguindo alguma manada
específica de animais migratórios, começa a restringir o acesso
a eles de outros comensais naturais, como os lobos” (MATURANA, 2004, p. 52-53). Ocorre, a partir dessa nova atividade, um
emocionar diferente, e uma das primeiras emoções modificadas
diz respeito à relação do sujeito com a morte.
Nas sociedades matrísticas, o mundo era a deusa e a terra
era a mãe universal, dotada dos atributos femininos de proteção e nutrição. Como afirma Campbell (2002b, p. 115), “há uma
estreita e evidente correspondência entre a atitude da criança
com relação à mãe e a do adulto com relação ao mundo material
circundante”. A vida é um processo em que cada criatura vive
em função da morte de outra, num fluxo contínuo de transferência de energia de um ser a outro, que mantém a eternidade
do universo. O caçador primitivo, quando matava um animal
para se alimentar, entendia que praticava um ato sagrado, integrado à harmonia do cosmo, segundo a qual a morte existe
para gerar a vida.
Com a apropriação dos rebanhos e o estabelecimento de
fronteiras entre o espaço central de ação humana e o espaço
periférico da ação de outros predadores, os grupos pastoris
tiveram certamente que matar os rivais na caça. Caçar para
alimentar-se “e matar um animal restringindo-lhe o acesso a
seu alimento natural – e agir assim de modo sistemático – são
Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 153
153
6/11/2007 14:26:28
Gragoatá
Paulo Sérgio Marques
ações que surgem sob emoções diferentes”, comenta Maturana
(2004, p. 54). “No segundo caso, aquele que mata o faz dirigindose diretamente à eliminação da vida do animal que mata”, isto
é, a vida do animal não serve a outra vida, mas é, ao contrário,
dispensada, expurgada, eliminada, para que um outro sujeito
exerça sua supremacia sobre o mundo e as coisas. “Essa matança
não é um caso no qual uma vida é tirada para que outra possa
prosseguir”, observa o autor. “Aqui, uma vida é suprimida para
conservar uma propriedade, que fica definida como tal nesse
mesmo ato.”
As emoções despertadas por um e outro ato são, portanto,
opostas. No caso do caçador, o animal caçado é um ser sagrado,
divino como qualquer parte de uma natureza divina, que é sacrificado para manter o equilíbrio da existência e desperta, por
isso, no caçador um sentimento de gratidão e de respeito pela
morte; contudo, para o pastor, matar constitui antes um puro
assassinato, para manter, não uma harmonia natural, mas uma
ordem artificial, edificada no ato da delimitação e apropriação de
um espaço natural, o rebanho: “Na ação de caça o animal caçado
é um amigo, enquanto que na ação de matar o animal morto é um
inimigo”. Na origem do pastoreio surge, portanto, o antagonista
mítico, “aquele cuja vida a pessoa que se torna um pastor quer
destruir para assegurar a nova ordem que se instaura por meio
desse ato, que configura a defesa de algo que se transforma em
propriedade nessa mesma atitude de defesa” (MATURANA,
2004, p. 56). Assim, se o caçador respeitava e aceitava a morte
como uma condição mútua de sobrevivência entre duas espécies,
a partir da experiência pastoril, ao contrário de um bem que
traz a vida, a morte é vista como um mal, que conduz à perda
e ao fim. No emocionar do caçador, se o animal pode ser morto
para alimentá-lo, também é natural que um caçador o seja ocasionalmente, para a manutenção do equilíbrio cósmico; na visão
do pastor, o Outro, animal predador ou homem de outro clã, é
um inimigo que ameaça, e o imperativo é matá-lo antes de ser
morto. A morte, que na visão matrística iguala as criaturas, no
patriarcado submete-se, então, a um conceito hierárquico.
Por outro lado, como o emocionar e a ação dos desejos
nunca se limitam a apenas uma esfera da existência, mas estão
sempre lá onde está o sujeito, se as conversações de apropriação
e hostilidade surgem e são aprendidas no trabalho do pastoreio,
logo se estendem a todas as demais atividades da vida social,
como o trato da terra e o domínio das idéias e das crenças, estabelecendo três outras mudanças: “o desejo constante por mais,
numa interminável acumulação de coisas que proporcionavam
segurança; a valorização da procriação como forma de obter
segurança mediante o crescimento do rebanho ou manada; e o
temor da morte como fonte de dor e perda total” (MATURANA,
2004, p. 59-60). O homem da cultura pastoril e patriarcal sente,
154
Gragoata 22.indb 154
Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:28
Visões da morte no indigenismo de Darcy Ribeiro e Jorge Icaza
assim, desejo de aumentar as fronteiras artificialmente demarcadas para cada vez mais eliminar os riscos periféricos – é lei
da geometria: reduz-se a periferia aumentando as margens do
centro. A cultura patriarcal européia surge, pois, “como uma
alteração na configuração do emocionar” de onde “resultou uma
mudança” nas formas de pensar, agir, desejar ou relacionar-se
(MATURANA, 2004, p. 12). Trata-se de uma cultura que “valoriza a guerra, a competição, a luta, as hierarquias, a autoridade, o
poder, a procriação, o crescimento, a apropriação dos recursos e
a justificação racional do controle e da dominação dos outros por
meio da apropriação da verdade” (MATURANA, 2004, p. 37).
Existem, pois, no imaginário antropológico, duas posturas
diferentes diante da morte, conforme ela surja de um emocionar
patriarcal ou de um emocionar matrístico. Campbell (2002a, p.
91) define a postura das culturas pastoris, própria dos povos
civilizadores, como “negativa em relação à morte e positiva em
relação ao ego” e a das sociedades agrícolas ou dos “plantadores
tropicais”, característica dos povos ameríndios, como “negativa
em relação ao ego e positiva em relação à morte”. Para este, a
morte está na vida; para o outro, a vida exige a morte.
As imagens benfazejas da morte compõem o que Gilbert
Durand denominou o “Regime Noturno” do imaginário, caracterizado por uma inversão da hostilidade própria do herói solar
do Regime Diurno. No Regime Noturno, o mal instituído pela
visão separatista de um ego acentuado converte-se em bem e
o sujeito repousa num modelo materno da morte (DURAND,
2002, p. 197-198). A queda é vista como descida, num processo
que Bachelard chamou “complexo de Jonas”, aludindo ao profeta
bíblico que passou três dias no ventre da baleia e foi vomitado
vivo. Por meio desse complexo, a urna funerária converte-se em
ventre: “Sair do ventre é nascer, sair de um sarcófago é renascer.
Jonas, que permanece no ventre da baleia três dias como Cristo
permanece no túmulo, é pois uma imagem de ressurreição”,
comenta Bachelard, para quem a essa imagem associa-se o
“tema da Morte maternal”, o “tema da crisálida”, isto é, a urna
de carne, o ventre. As imagens da crisálida e do sarcófago “têm
o mesmo centro de interesse: um ser encerrado, um ser protegido, um ser escondido, um ser restituído à profundidade de seu
mistério. Este ser sairá, este ser renascerá. Há aí um destino da
imagem que exige essa ressurreição” (BACHELARD, 2003, p. 139,
grifos do autor).
Por isso, enquanto a imaginação diurna e patriarcal quer
limpar o indivíduo, purificá-lo de todos os resíduos de sua
mortalidade terrena, a matrística e noturna quer, ao contrário,
misturá-lo à terra, torná-lo ao barro imemorial de onde a vida
sempre ressurge. “Debía ir al viaje eterno limpia como llegó a
la vida”, diz o narrador de Huasipungo do cadáver de Cunshi,
descrevendo a preparação do corpo para o velório (ICAZA, 1975,
Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 155
155
6/11/2007 14:26:28
Gragoatá
Paulo Sérgio Marques
p. 163). Aqui o indivíduo deve separar-se do mundo para viver
puro na eternidade. Anacã, ao contrário, deve fundir-se à Terra
Mãe, sua cova é regada como um canteiro e sua “alma” é o barro
que anuncia nova vida:
O aroe [...] estende então os dois braços em toda a extensão para
os lados, os aproxima depois lentamente, um do outro, junta as
mãos espalmadas e as baixa, simultaneamente, afundando-as
na terra mole da cova. As enterra juntas, devagar, e começa a
afastar a crosta de barro para os lados. Descobre, assim, por
debaixo, uma camada de lama mole escura, de onde sai um
cheiro intensíssimo, terrível. Trabalha, agora, com as mãos
retirando aquela lama debaixo e escorrendo com uma cuia o
líquido verde, espesso, gordo, em que se desfizeram as carnes
de Anacã. A caveira começa a aparecer cinzenta, sobre o fundo
da cova, brilhando à luz da manhã. (RIBEIRO, 2001, p. 120)
Para o narrador da exumação de Anacã, importa mais
sentir nas mãos o húmus vital em que se transformou a carne
do tuxaua, cujo crânio surge do barro verde da cova, reluzindo
na manhã como um sol nascente. Da mesma forma, enquanto,
em Huasipungo, “la muerta, en cambio, con su olor nauseabundo
pedía sepultura a gritos” (ICAZA, 1975, p. 168), isto é, conclamava a urgência de separar-se dos vivos, o cheiro de Anacã, como
vimos, é “doce” e, na morte, está “eternamente presente”.
Essas diferenças nas imagens da morte veiculadas nos dois
romances devem-se à predominância, em um ou outro, da visão
patriarcal ou matrística, respectivamente do civilizador ou da
cultura tropical. No romance de Icaza, a cultura do civilizador
é hegemônica também no enredo, e os indígenas permanecem
como que sem voz. Na representação do conflito entre o projeto
civilizador e os anseios indígenas, estes aparecem esmagados
e subsumidos pela cultura dominante e sobressaem-se “a ignorância, a ingenuidade e o primitivismo dos índios em relação
à esperteza do latifundiário, que incentiva o modus-vivendi do
indígena, com rasgos animalescos, repugnantes, explorado por
todos os poderes” (JOZEF, 1986, p. 123). Daí a predominância
da caricatura, a aparência grotesca de muitas cenas, como a da
mercantilização do cemitério, e a ausência de elementos culturais
autóctones que tantas vezes se criticou no autor. Tudo o que se
apontou como falha em Icaza é, na verdade, recurso estilístico
para servir “a la representación de una realidad atroz” (POLAR,
1993, p. 731). Se a cultura indígena está pouco manifesta, é porque
os valores colonizadores são onipresentes:
El lector siempre quedará insatisfecho por la falta de profundidad del conjunto de la representación narrativa. Tal se
advierte, en especial, en la ausencia de contenidos culturales
en la caracterización del pueblo indígena [...] y en la captación
de su accionar en términos fundamentalmente reactivos, casi
como pura respuesta a la brutal agresión de los poderosos.
[...] Huasipungo describe e condena el estado de opresión que
156
Gragoata 22.indb 156
Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:28
Visões da morte no indigenismo de Darcy Ribeiro e Jorge Icaza
sufren los campesinos indios, explica y también condena el
sistema que ejerce la explotación, y los mecanismos que usa,
avala la justicia de la rebelión indígena, que propone como
solución al problema de la discriminación y la expoliación
que soportan los indios, pero su mundo interior, los valores
de su cultura, quedan difuminados y en algunos casos hasta
puestos en cuestión, como si el dominio social que los oprime
hubiera también liquidado sus modos de entender el mundo
y la vida, incluyendo la propia. (POLAR, 1993, p. 732)
O episódio do cemitério é, pois, eloqüente com respeito à
dominância do imaginário civilizador no livro de Icaza: é o homem branco que ordena este mundo, por isso a morte é concebida
na hierarquia. Para o indígena, a morte no patriarcado é absoluta,
pois ele está relegado à margem do sistema estratificado. Então,
o leitor de Huasipungo “siente indignación frente a los abusos de
los terratenientes, que el narrador condena una y otra vez, pero
con respecto al pueblo indígena es poco probable que sienta
otra cosa que piedad y conmiseración. Parece destruido para
siempre” (POLAR, 1993, p. 729). Por isso, para Polar, apesar de
sua estratégia política “endeudada del positivismo”, com vistas
a “condenar la crueldad de los terratenientes”, o romance de
Icaza é o “que comprende mejor la índole del problema andino”
(POLAR, 1993, p. 731).
Enquanto, porém, Huasipungo é o relato de um extermínio,
numa batalha à qual apenas uma cultura poderá sobreviver,
Maíra narra a transformação cultural para esta mesma sobrevivência e sua trama mostra a transfiguração étnica do povo
mairum para adaptar-se à situação de conflito desencadeada
pelo encontro com uma cultura mais agressiva.
Darcy Ribeiro defendia que, às comunidades indígenas
cabem três formas de reação à invasão civilizadora: a “fuga para
territórios ermos”, num adiamento do combate frontal; a “reação
hostil aos invasores”, que envolve a vida tribal num estado de
guerra contínua; ou a “aceitação do convívio”, uma “fatalidade
inelutável” a que, mais cedo ou mais tarde, todas as tribos se
conformam (RIBEIRO, 1982, p. 220). Estas três reações são as que
freqüentemente se vêem representadas no romance indigenista
do século XX. A primeira reação é a da comunidade de Rosendo
Maqui, no romance de Ciro Alegría, O mundo é grande e estranho;
a segunda figura na conclusão do Huasipungo, de Jorge Icaza; a
terceira, finalmente, constitui o tema do Maíra, de Darcy Ribeiro.
É que o terceiro problema talvez tenha tomado maior relevo aos
olhos dos brasileiros do século XX.
Quando, diante da nova investida republicana para o
interior, o indígena reage, a sociedade urbana divide-se ao
posicionar-se diante dos dois lados do conflito. Com a literatura
romântica de José de Alencar e Gonçalves Dias, o índio tinha
passado a fazer parte do “sentimento de uma nacionalidade
Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 157
157
6/11/2007 14:26:29
Gragoatá
Paulo Sérgio Marques
brasileira” (GOMES, 2000, p. 26). A população urbana, cuja visão
da questão indígena era vista através dos olhos daqueles autores,
não se identificava com os interesses dos novos colonizadores e
não aceitava o tratamento hostil às tribos:
Abria-se um abismo entre a mentalidade das cidades e a dos
sertões. Enquanto, para os primeiros, o índio era personagem
idílico de romances no estilo de José de Alencar ou dos poemas
ao gosto de Gonçalves Dias, ou ainda, o ancestral generoso e
longínquo, que afastava toda suspeita de negritude; para o
sertão, o índio era a fera indomada que detinha a terra virgem;
era o inimigo imediato que o pioneiro precisava imaginar feroz
e inumano, a fim de justificar, a seus próprios olhos, a própria
ferocidade. (RIBEIRO, 1982, p. 128-129)
Nesse momento surge o Serviço de Proteção aos Índios e
Localização de Trabalhadores Nacionais (SPI), criado juridicamente pelo Decreto nº 8.072, de 20 de julho de 1910, e inaugurado
em 7 de setembro do mesmo ano. Com a criação do SPI, são
fixadas novas linhas para a política indigenista brasileira, cujo
princípio era “o respeito às tribos indígenas como povos que
tinham o direito de ser eles próprios, de professar suas crenças,
de viver segundo o único modo que sabiam fazê-lo: aquele que
aprenderam de seus antepassados e que só lentamente podia
mudar” (RIBEIRO, 1982, p. 138). A medida foi tão inovadora
que, segundo Darcy Ribeiro, a 39ª Conferência Internacional do
Trabalho, realizada em 1956, em Genebra, inspirou-se em grande
parte na legislação brasileira para orientar políticas indigenistas
de outros países (RIBEIRO, 1982, p. 141).
O que Darcy Ribeiro e seus companheiros do SPI propunham não era nem extinção nem isolamento, mas condições de
convivência nas diferenças: “O indigenismo brasileiro, superando essas atitudes extremadas, propugna por medidas que, resguardando o índio da extinção, o preparem paulatinamente para
interagir em igualdade de condições com os demais brasileiros”
(RIBEIRO, 1982, p. 195). Por isso a recusa da assimilação, que não
pode ser admitida porque a sociedade assimiladora ocidental
não é modelar, é exclusivista e segregacionista (RIBEIRO, 1982,
p. 197). Huasipungo é um romance da assimilação: ali, o povo
quíchua já aparece integrado ao sistema econômico capitalista,
na qualidade de mão-de-obra servil.
Por outro lado, enquanto Huasipungo concentra-se mais
sobre a questão material da terra, Maíra discorre sobre os efeitos culturais do conflito. Darcy Ribeiro observa que o encontro
das duas culturas resulta sempre na “marginalidade sóciopsicológica das tribos indígenas”, cuja cultura organizada é
sobrepujada pela dominante e relegada às margens desta como
elemento alterizado. Dentre as causas desta marginalização, o
autor aponta duas principais:
158
Gragoata 22.indb 158
Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:29
Visões da morte no indigenismo de Darcy Ribeiro e Jorge Icaza
– o engajamento compulsório dos índios em nosso sistema
econômico, para cuja competição não estão preparados e
que só lhes pode assegurar um padrão de vida ainda mais
miserável que o dos mais pobres seringueiros, lavradores
ou vaqueiros; isto é, condições de vida que dariam cabo
de qualquer população;
– a traumatização da cultura tribal ao impacto com uma
sociedade dotada de equipamento material esmagadoramente superior, que assume tamanho prestígio aos olhos
dos índios que determina um colapso no corpo de crenças
e de valores através dos quais eles explicam o mundo e
seu lugar nele e encontram motivo para viver e amar a
existência. (RIBEIRO, 1982, p. 212-213)
O romance de Jorge Icaza detém-se principalmente sobre
a primeira causa e aborda os problemas da assimilação; o de
Darcy Ribeiro concentra-se na segunda e tematiza o processo
de transfiguração étnica, conceito com o qual o autor define a
luta de uma etnia pela sobrevivência ao contato com sociedades
nacionais hegemônicas, através da alteração contínua de sua
biologia e cultura, para adaptar-se à condição de convívio.
No Brasil, mais do que a assimilação, “o que prevalece é
uma acomodação penosa que concilia certa participação na vida
nacional com a perpetuação da identidade étnica discrepante”
(RIBEIRO, 1982, p. 428). Por isso, enquanto a narrativa de Icaza
fala de uma morte absoluta, a do índio marginalizado pela
assimilação ao sistema hegemônico civilizador, o romance de
Ribeiro aponta para uma morte relativa, uma morte escolhida
como a de Anacã, na tentativa de fazer sobreviver algo maior.
Daí as posições opostas em que a morte aparece em cada uma
das estruturas narrativas: em Huasipungo, a cena do cemitério
antecede o conflito final entre o civilizador e os quíchuas, apontando para a morte como conclusão da trama; mas em Maíra ela
surge nos capítulos iniciais, como um pressuposto do enredo, de
maneira que a impressão final do romance é a de uma vitória
sobre a morte. Em Icaza a morte é absoluta e restritiva, porque a
situação retratada só permite a visão civilizadora; já em Ribeiro,
onde o indígena ainda tem voz, a morte revela sua qualidade de
processo integrador das diferenças.
É característica da literatura indigenista, brasileira ou andina, tentar o relato da civilização pelos olhos do Outro, pela
recusa e denúncia do caráter excludente de toda ordem, da vontade de negar que move o sujeito civilizador. Em Huasipungo, o
latifúndio do campo santo é o mundo hierarquizado onde vale
mais o que está ordenado pela mão do homem; para gozar do
privilégio de pertencer a esta ordem, o indivíduo precisa pagar
um preço. Este é o princípio da alteridade: toda ordem é má,
porque é excludente; a ordem é um exercício do poder; depois
de servi-la, os índios são afastadas de seu gozo. É que, na cosmoNiterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 159
159
6/11/2007 14:26:29
Gragoatá
Paulo Sérgio Marques
visão patriarcal, a morte do Outro é condição para a sobrevida
do sujeito; para o índio, a morte é antes uma passagem ao corpo
cósmico e coletivo: morrer é viver no Outro.
Abstract
One objective of this comparative study between
two scenes of death in the indigenous novels Maíra, by Brazilian Darcy Ribeiro, and Huasipungo,
by Ecuadorian Jorge Icaza, is to disclose differing
notions of death: the white European culture’s and
the American native’s. Another objective is to
show the way they expresses a peculiar weltanschuung to each culture: the Christian and pagan,
and the settlers and settled. The settlers’ views
about death in Icaza’s Huasipungo perform as
objects of separation and hierarchy, while the natives’ views in Ribeiro’s Maíra appear as processes
of communion and participation. Comparisons
between each conception make use of anthropological and archetypal criticism methodologies
from the theories of Humberto Maturana, Gilbert
Durand, and Joseph Campbell, among others.
Keywords: Brazilian Literature; HispanicAmerican Literature; indigenous; myth and
narrative.
REFERÊNCIAS
BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios do repouso: ensaio
sobre as imagens da intimidade. Tradução de Paulo Neves. São
Paulo: Martins Fontes, 2003.
CAMPBELL, Joseph. Mitologia na vida moderna.. Tradução de Luiz
Paulo Guanabara. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2002a.
______. O herói de mil faces. Tradução de Adail Ubirajara Sobral.
7. ed. São Paulo: Cultrix : Pensamento, 2002b.
CANDIDO, Antonio. Mundos cruzados. In: RIBEIRO, Darcy.
Maíra: um romance dos índios e da Amazônia. 14. ed. Rio de
Janeiro: Record, 2001.
CASTRO, Moacir Werneck de. Um livro-testemunho. In: RIBEIRO, Darcy. Maíra: um romance dos índios e da Amazônia. 14.
ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. Tradução de Hélder Godinho.
3. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2001.
160
Gragoata 22.indb 160
Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:29
Visões da morte no indigenismo de Darcy Ribeiro e Jorge Icaza
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Tradução de Rogério
Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
GOMES, Mércio Pereira. Darcy Ribeiro. São Paulo: Ícone, 2000.
ICAZA, Jorge. Huasipungo. 10. ed. Buenos Aires: Editorial Losada,
1975.
JOZEF, Bella. Romance hispano-americano. São Paulo: Ática,
1986.
MARIA, Luzia de. O triunfo da vida. In: RIBEIRO, Darcy. Maíra:
um romance dos índios e da Amazônia. 14. ed. Rio de Janeiro:
Record, 2001.
MATURANA, Humberto R. Conversações matrísticas e patriarcais. In: ______; VERDEN-ZÖLLER, G. Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano. Tradução de Humberto Mariotti e
Lia Diskin. São Paulo: Palas Athena, 2004.
______; VERDEN-ZÖLLER, Gerda. Amar e brincar: fundamentos
esquecidos do humano. Tradução de Humberto Mariotti e Lia
Diskin. São Paulo: Palas Athena, 2004.
POLAR, Antonio Cornejo. El indigenismo andino. In: PIZARRO,
Ana (org.). América Latina e cultura: a situação colonial. São Paulo:
Memorial; Campinas, SP: Unicamp, 1993. v. 1, p. 719-738.
RAMOS, Maria Luiza. As escrituras da morte. In:______. Interfaces: literatura, mito, inconsciente, cognição. Belo Horizonte:
UFMG, 2000.
RIBEIRO, Darcy. Maíra: um romance dos índios e da Amazônia.
14. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.
______. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1982.
ZANNONI, Cláudio. O imaginário Tenetehara no mito dos
gêmeos Maíra-ira e Mucura-ira. In: COLÓQUIO NARRATIVA
E IMAGINÁRIO, 2000, Araraquara. Anais... Araraquara: Unesp,
2000.
Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 161
161
6/11/2007 14:26:29
Gragoata 22.indb 162
6/11/2007 14:26:29
Saberes performáticos nas ficções
de Haroldo Conti*
Graciela Ravetti
Resumo
Este ensaio aborda questões relacionadas com o
transgênero performático. Tomando como objeto
a ficção de Haroldo Conti, Mascaró, el cazador
americano, pesquisa, a partir da compreensão de
como performance e escrita se interligam, uma
chave crítica e teórica que permita novas perspectivas de análise cultural.
Palavras-chave: Literatura Argentina; Performance; Narrativa; Ficção contemporânea.
Neste artigo, excepcionalmente, as notas de
texto, por serem extensas, aparecem no final.
*
Gragoatá
Gragoata 22.indb 163
Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:30
Gragoatá
Graciela Ravetti
“Me interesa reflexionar un momento sobre cómo y por qué
la búsqueda de la identidad, que suele estar asociada a la
construcción de imágenes de espacios sólidos y coherentes,
capaces de enhebrar vastas redes sociales de pertenencia y
legitimidad, dio lugar al desasosegado lamento o la inquieta
celebración de nuestra configuración diversa y múltiplemente
conflictiva”
(Antonio Cornejo Polar. Escribir en el aire)
Pensar o transgênero performático1 implica decifrar arquivos que contêm performances que estão aí para nos desafiar, que
nos chamam e nos cominam a tornar inteligível parte do que não
pode ser formulado explicitamente pela escrita. Não se trata de
anular o que de movimento tem a performance, embora, às vezes,
quando a relacionamos de maneira intensa com a escrita, possa
dar a impressão que pretendemos imobilizar o que deve sempre
circular, de que tencionamos consolidar aquilo do que perdura,
por definição, seu caráter incorpóreo. Flexibilidade, leveza, mas
ao mesmo tempo continuidade e preservação, são os termos do
desafio ao crítico e ao teórico da literatura quando esta apresenta
seu viés de performática. Minha hipótese é que podemos reler
e reescrever a história da literatura de América Latina da perspectiva do transgênero performático, e com isso, revelar outros
saberes e competências, deslindar saberes culturais e poéticos.
Poderia, assim, iniciar-se a descrição e o movimento de outro
tipo de arquivo, para fundar uma nova autoridade no manejo
desse arquivo. Neste ensaio trata-se de pensar entre épocas,
para utilizar a feliz expressão de Nicolás Casullo (2004), com as
dificuldades e impossibilidades que isso implica, ainda mais em
se tratando dos anos 60 e 70 na Argentina — e por extensão em
toda América Latina — em que o ideário da revolução armada
enfrentou ditaduras e exércitos pseudo oficiais e a literatura foi
umas das arenas onde os imaginários sociais se digladiaram.
Pensando que a modernidade, mais do que um conceito, seria,
como propõe Raúl Antelo (2006, p. 82 et seq.), uma categoria
narrativa e que o que nos desafia é, na verdade, uma série de
relatos de modernidade, podemos trazer à tona narrativas que
foram sendo ocultadas por uma dinâmica de desaparecimento
do problemático, mas que esses esquecidos voltam. Como afirma
Rancière (1995, p. 238)
A época que declarou terminadas as formas da aparência e
do litígio do povo, que expulsou do visível até os “mitos” da
fábrica e do operário e proclamou o reino do con-senso indiferente, vê reaparecer brutalmente a diferença do in-diferente.
O operário “mito”, “mítico” reaparece sob a forma inominável
do outro absoluto, do imigrante, que ocupa tanto mais espaço no
real quanto ele perdeu, junto com seu nome de operário, seu
lugar na aparência do povo.
164
Gragoata 22.indb 164
Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:30
Saberes performáticos nas ficções de Haroldo Conti
Um dos relatos perdidos é o da revolução socialista que,
da teoria e da prática, no século XX, impulsionou e foi gerado
por estruturas argumentativas nítidas cuja estabilização e permanência nos paradigmas hegemônicos não teve lugar. Esses
movimentos de militância política, intelectuais e artísticos
acabaram ocupando um lugar ambíguo e tranqüilizador na história, o das utopias fracassadas por impossíveis, ficaram como
discursos e práticas museificados e estudados como fragmentos
e ruínas exemplares do desvio, considerados como ruínas sem
potencial para a revitalização do presente e que tendem a voltar
com uma roupagem romantizada de glamour cinematográfico
e histórias açucaradas de aventuras. A literatura, em particular,
funciona, nesses casos, como um repertório de projetos descartados que tiveram seu momento — fugaz — de experimentação.
Nestes tempos de reinado do mercado, os resíduos que exigem
restituição podem vir a ser despidos de sua conceitualização de
anacrônicos e pensados novamente, na simples tentativa de entender. A escrita performática dá subsídios para essa tentativa.
O performático encontra-se com facilidade em muitas obras
dos antigos gêneros e produtos das distintas escolas históricas e,
ao destacar essa característica, minha percepção dos gêneros e
das modalidades se modifica. O que passa a ter relevância para
uma classificação de tipo genérico são as variantes derivadas
da presença ou não da performance, das maneiras como essas
formas são registradas e trabalhadas, sem que por isso desapareça o que caracteriza os gêneros. Ou seja, os textos podem
continuar sendo estudados como romances, poemas, peças de
teatro – dos períodos romântico, barroco, clássico, etc. – se for
da necessidade do pesquisador, só que agora pensados a partir
da performance.
A intenção da mistura e da contaminação é muito evidente
na noção de transgênero, não apenas por incluir formas e conteúdos diversos, mas por trazer signos provenientes de outras
linguagens convocadas, de tecnologias não escriturais que se
introduzem de algum modo na escrita, de vozes e de ritmos,
de dança, de magia, de mitologias orais e de formas artísticas
não lingüísticas, como, no caso de Mascaró, el cazador americano,
o romance de Haroldo Conti, que, como resíduo vivo, resiste a
seu momento de criação — anos 70 — e nos permite o encontro
com projetos e práticas que foram-se dissolvendo no esquecimento e nos rótulos que (des)potencializam: de criações artísticas populares circenses e de performances políticas e culturais.
O transgênero performático privilegia a voz, quer mostrar o
movimento, registrar a ação e produzir efeitos de sensações2
que, de algum modo, produzem uma convergência de aspectos
irredutíveis do passado, aspectos que nenhum documento pode
atualizar em sua integralidade.
Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 165
165
6/11/2007 14:26:30
Gragoatá
Graciela Ravetti
Sintoma de nossa época, o comportamento performático
nas artes em geral e na literatura em particular restaura abismos
pela própria teimosia em estar aí, fora do tempo e do espaço
prefixados, e por obrigar o indivíduo a deparar-se com os mitos
que o constituem e o ligam a uma ou a mais de uma comunidade,
a um tempo-memória que funciona como um duplo do tempo
linear e homogêneo e o convida a render-se à interpretação e ao
entendimento da força de ações, cerimônias e rituais que podem
entregar novos sentidos ou ajudar a criá-los. A princípio, as
práticas performáticas são geradoras de contextos e os contextos
são efeitos de transformações e movimentos gerativos de outros
contextos. Os contextos são produzidos por práticas discursivas
e não discursivas e os elementos que os compõem e integram
são explícitos e implícitos, visíveis e invisíveis, conscientes ou
não, e tudo isso exige uma teoria da cultura onde a performance
tem reservado um lugar de importância ainda não quantificado
nem ponderado devidamente. Por sua natureza (pelo menos
de acordo com minha própria definição e descrição) a performance revela experiências que fazem o percurso do pessoal ao
comunitário e vice-versa. Esse trânsito está fortalecido por um
impulso de resistência à dissolução de componentes culturais e
ideológicos que atuam como resíduos culturais que integram as
pessoas a uma região, a uma paisagem, e que passam a ser pele,
olhos, roupa, gestos, fala, em partituras que se percebem como
restos de algo maior e irrecuperável, reproduzível e passível de
ser reescrito, mas que de alguma forma deve ser restituído a
um passado e, ao mesmo tempo, transmitido ao futuro e relido
no presente.
Pode-se pensar que cada performance, de algum modo, implica outras performances, anteriores (do passado) e sincrônicas
(do presente). Por um lado, a cada efêmera prática — efêmera,
mas nem por isso aleatória ou sem sentido para a história e a
memória — emerge um significante novo (outra possibilidade
performática) com o qual é possível que os grupos se identifiquem. E esse significante novo, transcriado, vai inscrevendo a
performance em novos saberes históricos, transbordando os nacionalismos e tribalismos fundamentalistas. Constrói-se, assim,
uma história que tenderá não à amnésia, como advertia Adorno
falando da fossilização da memória histórica oficializada e imobilizada, mas à procura de novos saberes que promovem uma
constante recuperação e apresentação do passado com vistas à
comunidade por vir.
Qual é, então, a economia de leitura que se pode derivar
das estratégias performáticas de misturar os signos e transformar o texto em registro de ações visualizáveis, pela descrição
de ações corporais espetaculares, do mundo do trabalho e da
militância política própria dos anos 60 e 70, especialmente a
guerrilha? Tomando a performance como chave de leitura abor166
Gragoata 22.indb 166
Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:30
Saberes performáticos nas ficções de Haroldo Conti
damos os romances de Haroldo Conti, em especial Mascaró, el
cazador americano3 e a primeira constatação que fazemos é que
seus narradores pertencem a um tipo de conhecedor daqueles
de quem fala Walter Benjamin (1987, p. 197-221): sabem tanto dar
conselhos quanto expressar opiniões a partir da substância viva
da experiência. São narradores que exercitam a arte de contar
histórias de que foram testemunhas diretas ou se apresentam
como mediadores do testemunho de outros, precisamente como
o autor, que conjugou uma maneira de viver com uma de escrever e de morrer4. É evidente que se trata de uma escrita na qual
prevalece o desejo de relacionar o concreto e material do vivido
criando vetores que apontam não só para o político, mas também
para o poético narrativo, que é visto como uma das ferramentas
articuladoras de novas formas epistemológicas e heurísticas de
pensar e entender o mundo. Os romances de Conti, atravessados
por outros saberes, resgatam práticas performáticas populares
que passam, via a escrita, a fazer parte de arquivos que dependem dos consignatários — representantes ou depositários —
para serem decodificados e atualizados, quer dizer, aguardam
pelas miradas e leituras que a crítica e a criação contemporâneas
possam realizar de um passado esfumado. Não se trata de falar
a língua dos mortos e sim de não matar o que ainda vive.
O que denomino performance neste trabalho responde a novas
reflexões sobre o assunto, que venho trabalhando há algum tempo já.5
Nossos modos de saber, escrever e fazer arte e política estão imbricados em complexas redes de vozes e gestualidades que excedem a
linguagem — o arquivo foucaultiano6 — dos quais só conhecemos e
identificamos, até então, algumas. A performance pode ser entendida
como algo que se percebe no âmago da tensão contemporânea entre a
singularidade (o performático, a memória) e a representação consensual
e disseminada da cultura (a tradição, a história): sem a singularidade
que se debate a contrapelo do mainstream oficial e/ou consensual não
existe palavra nova, e sem a absorção dessas palavras novas não pode
haver continuidade. A singularidade, quando consegue ser (re)conhecida como representação e testemunho7, é deglutida pela cultura que
familiariza, divulga e domestica.8
Talvez na Idade Média e na época que precede a eclosão
da modernidade (esse mar de histórias), a tranqüila sensação de
compreender e ser compreendido por uma totalidade universal
tornava desnecessária a reflexão sobre a performance, tão dentro
do modo de ser humano ela estava e tão constitutiva do que significava ser-no-mundo. Inclusive o aparecimento da dissonância,
esse estado de inquietação da cultura que percebe Luckács no
seu célebre ensaio sobre o romance moderno, e o conseqüente
paradoxo instalado na consciência de dilaceramento do eu e
da angústia provocada pela percepção da distância entre o eu
e o mundo, não deu margem a uma reflexão sobre o tema (no
sentido em que estamos pensando performance hoje) já que são
Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 167
167
6/11/2007 14:26:30
Gragoatá
Graciela Ravetti
outros os caminhos de reflexão hegemônicos, vias que passam
muito mais por desvendar as disparidades entre construtos
como alma e corpo, pensamento e ação, espírito e matéria, arte
e representação, arte e sociedade, arte e nação. Esses condicionamentos do pensamento não arrefeceram a inquietação pelo não
visível, o sombrio e o incompreensível que sempre perturbou
as pessoas e que vai desaguar nos conhecidos sentimentos de
fragmentação, solidão e incompletude que se desenvolveram
nos últimos séculos até chegar a sua eclosão, no final do século
XX, e que deram feição ao que, para dar um nome, acabamos
denominando pós-modernidade. As narrativas performáticas e
a própria performance colocam-se como resistência à melancolia
e à sensação de impotência derivadas daquela dissonância.
Benjamin afirma que foi a difusão da informação que socavou a paciência artesanal e demorada que estava na origem da
arte de narrar. Nos romances de Conti, sem didatismo moralista,
recopilando histórias de homens e mulheres ignorados, dessa
nação “abstrata” que é a Argentina para o autor9, os narradores
e os personagens — quando são interpelados pela narração ou
nos momentos em que tomam a palavra — preenchem vazios,
dão voz aos que nunca a tiveram na cultura letrada, apresentam
tipos que não tinham sido descritos nem narrados até então,
inscreve agenciamentos individuais e coletivos em lugares no
mapa cultural latino-americano que hoje constituem topografias
do terror. A narrativa cumpre assim dois papéis: informação,
por um lado, e formação, por outro, enquanto transforma as
percepções e a imaginação apresentando novas bases e acepções
a noções antigas. A Argentina é, também, esse mundo raro e
oculto que Conti apresenta.
Como o Leskov de Benjamin, Conti considerava-se um artesão, e os vestígios de sua experiência estão à vista: os detalhes
com que descreve seus amigos moradores das ilhas, vagabundos,
viajantes, seus diários de viagens, as leituras, os amigos escritores, os artistas de circo, os guerrilheiros.
Se, como afirma Jameson (JAMESON, 1991, p. 96), o lugar
último dos subtextos é o da contradição social, observamos que
precisamente um dos desafios dos processos de produção de
sentido na ficção de Conti é elaborar um texto ficcional a partir
de um material de extrema riqueza e complexidade: os homens
imersos nas relações de poder, confrontando-se em suas posições
de classe, confiando suas vocações mais íntimas às ínfimas possibilidades que o sistema, às vezes, deixa em aberto. Tipos como os
inventores, neste universo, aparecem como pilares da sociedade
a que pertencem o escritor e seus leitores; surgem como imagens
acreditáveis que podemos analisar como esquemas simbólicos
do imaginário social dos anos 60 e 70, colados aos dados sobre
o crescimento do país, a sua industrialização, a sua realização
como parte de um mundo ao qual a Argentina só poderia se in168
Gragoata 22.indb 168
Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:31
Saberes performáticos nas ficções de Haroldo Conti
tegrar como observadora marginal, salvo se exercesse a rebeldia
radical a que estava sendo chamada nesse momento histórico.
Ou os loucos desvairados que são, no romance, os que trazem
à tona a força da imaginação e dos sonhos que a sociedade não
pode aceitar embora, paradoxalmente, não possa abandonar as
esperanças de inventar um mundo novo no qual viesse a existir,
além do trabalho e das obrigações, a felicidade do tempo à toa,
da liberdade criativa, da igualdade e, sobretudo, da fraternidade.
Afirma Conti naqueles anos:
A esta altura de las cosas la literatura se me aparece como un
destino (no un fin en sí mismo), mi particular manera de vivir
y consistir. Por lo menos he tratado de que sea así, buscando
juntar la vida y la literatura, hacer una sola cosa. No aquí la
vida y allí la literatura. Tal vez en ese sentido el viejo Hemingway dijo que el talento reside en cómo uno vive la vida [...]
Por supuesto, como vida, esto es, como totalidad, no se reduce
al solitario hecho de escribir sino a una actitud general, una
especie de revelación, por mi lado, y por el otro, el del lector
y aun el del mero espectador, a un tipo de participación que
curiosamente me lleva a un despojamiento cada vez mayor
de lo personal [...] para que los demás asuman mis historias,
como actos más que como relatos, cual si fueran propias, las
participen, que es algo más que leer, y las incorporen a sus
vidas. Así, a través de mis personajes soy yo el que me vivo.
Me vivo en historias que fueron o pudieron ser, no importa su
correspondencia efectiva en el tiempo porque después de todo
el tiempo sin nosotros es nada. Y todo lo que pretendo, porque
queda por ver si efectivamente lo he logrado, es que otros, la
mayoría de los cuales no llegaré a conocer, se vivan a partir
de esa minúscula sucesión de signos que mientras alguien no
los anima, apenas son un trazo de tinta. (Apud RESTRITIVO,
SANCHEZ, 1986)
Nesses desdobramentos é que se elabora o espaço literário
dos romances de Conti. Suas experiências pessoais lhe forneciam elementos de pesquisa lingüística e cultural que podem
ser avaliados em toda sua obra e permitem uma reflexão sobre
os processos de transposição literária do real à literatura, assim
como dão lugar para se pensar como essa obra é testemunha
do tempo em que foi escrita, no qual o debate sobre a função
da literatura e do intelectual foi crucial. Nos 60 e 70, parte da
esquerda na América Latina acreditou encontrar uma síntese
entre a revolução cubana, o 68 francês, a revolução chinesa e
a noção de Terceiro Mundo, e tudo isso deu fôlego aos movimentos de liberação nacionais e internacionalistas ao compasso
de revoluções terceiro-mundistas de outros territórios, não só
americanos. Movimentos que, entre outras coisas, trouxeram
a legitimação da violência política, a crença na violência como
forma de alcançar a liberdade, a igualdade, outra fraternidade
(CASSULLO, 2004, p. 34). Nesse marco procuraram-se novas
formas de relação entre a cultura e a política, valorizou-se a
Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 169
169
6/11/2007 14:26:31
Gragoatá
Graciela Ravetti
cultura popular e se estabeleceram redes de comunicação entre
intelectuais e setores populares através de trabalhos em bairros
pobres, funções teatrais para e com o povo, circo, teatro campesino, cinema de liberação, e, ao mesmo tempo, as novidades do
que podemos chamar a “cena performática”.
Neste contexto, nas décadas de 60 e 70, a performance foi
uma ferramenta cujas características a faziam adequada aos
lemas e aos programas de forte impacto da época: intangível,
não deixava pegadas e não podia ser vendida ou comprada, ao
mesmo tempo em que reduzia a alienação entre intérprete e
espectador. O body art e suas variadas manifestações levaram à
produção de uma linha de obras de tipo autobiográfico já que
o conteúdo dessas performances utilizava aspectos da história
pessoal do performer. Essa reconstrução da memória privada
teve seu complemento na obra de muitos artistas que começaram a trabalhar a memória coletiva (rituais e cerimônias, ritmos,
fazeres artesanais, modos tradicionais de cultivar a terra e de
criar animais, modos de transformar a natureza em alimento,
o tratamento “natural” do corpo, etc.) na qual eram recuperadas formas esquecidas pela história oficial. Outra característica
importante do uso político da performance foram as estratégias
que conduziram à participação ativa do público, que era obrigado a pensar, por exemplo, nos limites da arte, na relação da
vida cotidiana com o imaginário, no simbólico popular e na
política, nas linhas de força que iam da filosofia à vida e à arte
e, sobretudo, em questões relacionadas com o desejo de emancipação. Assim, uma performance do silêncio e da negatividade,
instaurada pelos que acreditaram numa forma de luta contra o
sistema, integrou-se à performance do nomadismo que, em suas
variadas formas, implodiu os tradicionalismos ferrenhos. Só à
guisa de exemplo podemos citar o filme de Fernando Solanas
La hora de los hornos (1969) e Tucumán arde, instalação coletiva
de arte (1968), as performances do grupo chileno C.A.D.A., a
influente teoria e prática de Augusto Boal, assim como a ênfase
no procedimento teatral conhecido como criação coletiva. A
respeito, explica Sara Rojo:
O teatro dos anos sessenta, na América Latina, acompanhou as
mudanças democráticas que se produziam no mundo, procurou encontrar-se com as problemáticas sociais e aproximar-se
de um público popular. Dessas grandes transformações, surge
uma metodologia que revolucionou o processo produtivo de
uma montagem: a criação coletiva. Essa prática expandiu-se
por toda a América latina e foi propiciada pelos criadores,
como os colombianos Enrique Buenaventura [...] e Santiago
García [...] Essa forma de trabalho vinculava-se, diretamente,
a uma perspectiva ideológica de ver o mundo, que buscava
uma maneira democrática par realizar a produção do evento
artístico com o objetivo de gerar, até mesmo em forma de
construção, uma sociedade em que ocorresse o mesmo. (ROJO,
170
Gragoata 22.indb 170
Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:31
Saberes performáticos nas ficções de Haroldo Conti
2005, p. 98)
As duas famílias de narradores de que fala Benjamin
aparecem na narrativa contiana: os que andam pelo mundo e
possuem saberes de terras distantes e os sedentários que ficam
como sentinelas dos saberes do passado, convertidos já em tradição. Seu entrecruzamento define óticas e objetos modificados
ao longo do tempo, tal como aconteceu com as perspectivas de
vida e militância de Conti, com as relações de produção e os
modos de conformação da sociedade na Argentina e, por conseqüência, com os imaginários sociais, com os quais Mascaró...
possui uma profunda dívida e aos quais acrescentou elementos.
Os nômades trazem a boa nova da revolução e os sedentários
podem falar de tradições libertárias das comunidades que ficaram no esquecimento. Cada canto do país tem sua história de
heróis, de mártires e de filósofos populares que deixaram sua
marca na areia da memória coletiva, rememorada e reinventada
a cada dia.
Haroldo Conti nasceu em Chacabuco, uma cidade pequena do interior da província de Buenos Aires. Foi seminarista,
motorista de caminhão, professor de latim. Gostava de viajar;
adorava o Delta do Río de la Plata, a região do Tigre, as viagens por
mar percorrendo a costa pouco explorada do litoral argentino,
uruguaio e brasileiro. De cada lugar, seu interesse privilegiava
as pessoas e seus modos de sobrevivência: como viviam, trabalhavam, divertiam-se. Fazia amigos entre os moradores das
ilhas e sempre voltava para compartilhar experiências, conversar
com eles, pegar de algum modo seu fazer performático. Assim,
foi conhecendo todo tipo de pessoas especiais, raras, diferentes,
que foram a base da construção dos personagens de seus contos,
romances e trabalhos jornalísticos. Esses excêntricos, na verdade,
foram parte fundamental de tudo aquilo que permaneceu oculto
nas representações da nação e que, no mundo de Mascaró, é um
espaço povoado por sujeitos e suas práticas, homens e mulheres,
seus trabalhos e ofícios, seus sonhos e projetos, seus pensamentos e esperanças, mas que como não foram privilegiados nas
representações literárias, acabaram sendo, por isso, lidos como
estranhos, diferentes, engraçados.
Entretanto, as práticas performáticas, como defendemos
neste ensaio, quando se articulam umas com as outras, conseguem alcançar o status de fatores de historização — ou seja,
vão-se inscrevendo no conjunto maior e exterior do local, tanto
devido ao que a performance tem de resistência ao efêmero
através de seu aspecto de execução ritualizada quanto pelo que
a performance tem, precisamente, de efêmero, por ter, cada realização, caráter único e irreproduzível. Por um lado, revela-se
uma gênese, uma origem de origens, às vezes a ficção de uma
origem e, por outro, essa articulação traz o mistério do arcano,
Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 171
171
6/11/2007 14:26:31
Gragoatá
Graciela Ravetti
do que vem de antes, de um espaço residual, delineado pela memória corporal e afetiva, emocional, espaço convocado pela memória performática, atávica e sempre atualizada. A genealogia
performática na qual inscrevo a obra de Haroldo Conti permite
vislumbrar outros escritores da mesma tradição, amorosa em
seu trato com o popular como resistência ao estabelecido como
norma: Roberto Arlt, Manuel Puig, Jorge Luis Borges, Juan L.
Ortiz e Juan José Saer, dentre outros.
O circo: Treme o mistério!10
O fato de o circo — que ocupa um lugar central em Mascaró,
el cazador americano — ter como característica básica o encontro
concreto entre pessoas, de ser um tipo de experiência cultural
não mediada, possibilita refletir sobre as diferenças de experiência estética entre o que produz a imagem projetada — no cinema,
por exemplo — que só pode jogar imagens do passado, feitas
antes, em qualquer tipo de tela, e o embate corpo a corpo sob a
tenda do circo que parece inclinar-se a combater a reificação da
vida moderna, a desumanização do cotidiano, a monadização
que caracterizam as relações sociais do capitalismo tardio. A
prática de atos improvisados e, portanto, irreproduzíveis, atos
únicos, característicos do circo, permitem elaborar conceitos
inesperados e desenvolver imagens sobre possibilidades de mudanças. O tipo de práxis que lemos em Mascaró... corresponde à
desenvolvida por um circo pobre, pelos caminhos do interior, nos
anos 70, no qual o espectador oferece-se a si mesmo como parte
do espetáculo deixando de ser um mero observador. Este simples
fato é de enorme importância porque permite a desconstrução,
em cadeia, de outras séries interdependentes, que alinhavam a
lógica em vigor: pode-se começar a pensar de outro modo, já que
é possível atuar de outro modo. Viver é fazer e fazer é possível.
O que consagra a festa pública, o encontro vivo entre pessoas,
é a proximidade e a presença transformadoras.
Enquanto a trupe que protagoniza o romance trilha as
rotas do interior, a areia obnubila o olhar, o deserto está povoado de figuras amedrontadas, que vivem quase sepultadas.
De algumas das cidadezinhas sobrou só o nome: Esquecimento,
Morte. A toponímia da pobreza é também a que baliza o percurso tanto da troupe circense, dirigida pelo Príncipe, quanto o do
grupo guerrilheiro, orientado por Mascaró. Nessa paisagem, as
únicas palavras-chave são: ruína e decadência, os despojos da
civilização, onde o que se vê pode ser uma miragem. A distorção da percepção estabelece uma nova relação entre realidade
e fantasia, entre verdade e ficção. No deserto, espaço ao qual
nada chega, a presença, primeiro da troupe do circo, mais tarde
a dos guerrilheiros e, finalmente, a das forças do governo, chega
a beirar o fantástico. Os povoados e os seres fantasmagóricos
172
Gragoata 22.indb 172
Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:32
Saberes performáticos nas ficções de Haroldo Conti
descobrem nova vida, novas expectativas nascem, novas ações,
novas palavras. O que está escondido nas dunas de areia, no
meio do vazio desértico não é a barbárie, é a vida mesma em
toda sua riqueza.
Trazer à literatura a teatralidade popular, no sentido de
produzida e consumida pelo povo, como é o uso do circo em
Mascaró, responde a um esforço maior do programa estético
de Conti, que é a apresentação literária de formas de cultura
popular para integrá-las em um projeto que é, ao mesmo tempo, uma proposta estética e um postulado ideológico do autor,
envolvendo um projeto de resolução de conflitos sociais. O
conceito de cultura popular que se manejava nos anos em que
Conti escreve este romance derivava fundamentalmente dos
escritos de Gramsci, para quem o popular não é simplesmente
um critério quantitativo — a cultura multiplicada, aquilo amplamente divulgado e conhecido —e sim o que a cultura tem a
ver com uma qualidade ativa de coordenação e de ordem intelectual e moral. O popular tinha também o sentido de luta pela
construção de uma cultura. Refiro-me, com a palavra cultura, à
interpretação desse desenho incorpóreo, dessa figura maior na
qual se expressam simbolicamente os conteúdos que têm a ver
com a comunidade por vir, essa comunidade que é sempre um
projeto de realização iminente e que se constitui no motor de
atos coletivos à procura de novas formas de convivência.
Como se sabe, os grupos de poder têm tido especial cuidado em conter e, inclusive em exterminar movimentos que
carreguem germes de transformação. Geralmente, a história
não tem prestado muita atenção aos cômicos ambulantes que
são reconhecidos ambiguamente como pertencentes a algum
compartimento ingênuo e inofensivo da teatralidade popular.
É por isso que acaba sendo um ângulo de visão interessante
focalizar os pontos de contato entre os modos de teatralidade
popular e o referencial político-social, no caso deste romance, dos
anos 60-70 na América Latina. Pesquisando a vida dos homens
pobres, marginalizados pelo centro, Conti encontra e focaliza
espaços onde podem vir a ter lugar instáveis e conflitivas relações povo- instituições governamentais – arte, como é o caso do
circo de Mascaró onde coincidem cidadãos marginais sedentários
e artistas nômades perseguidos pelas forças institucionais. As
perguntas são: em que medida o circo se opõe à cultura oficial?
como contribui com uma construção diferente da comunidade?
de que maneira o circo e sua influência afetam os imaginários
individuais e o conjunto maior dos imaginários sociais? Lembremos que o circo foi, desde épocas imemoriais, considerado
um espaço de diversão sem maiores compromissos com a arte
e com a política, e muito menos com representações realistas
ou simplesmente verossímeis. Seu reino foi sempre um espaço
difícil de precisar e, por esse motivo, permaneceu a salvo dos
Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 173
173
6/11/2007 14:26:32
Gragoatá
Graciela Ravetti
discursos racionalizadores oficiais. Esse não comprometimento
com o real e o verossímil tem permitido certa liberdade, que o
tornou escorregadio para os censores até pelo fato de falar uma
linguagem menos codificada que o teatro, mais performática.
Marginal como expressão, marginais seus atores e seu público.
Não chega às cidades para educar ou difundir uma moral ou
um espírito de ordem. Pelo contrário, o circo estimula rupturas
com os comportamentos ditos civilizados, cria um espaço simbólico de ação onde o imaginário se relaciona com o real com
leis próprias embora sua linguagem responda, em grande parte,
a práticas performáticas milenares: o equilibrista, o palhaço,
os dançarinos, os cantores, os animais e suas destrezas, os trapezistas, o homem de borracha, os ilusionistas, os ginastas, os
apresentadores.
A produção e a recepção da teatralidade popular, sobretudo
em ambientes realmente pobres e carentes de infra-estrutura,
pode pensar-se no marco de uma resposta de setores culturalmente postergados frente aos setores dominantes. Essa resposta
é produto de uma necessidade: afirmar a identidade para evitar
a destruição da dignidade pessoal e dar forma aos próprios
princípios do prazer e do desejo, ainda que essa afirmação da
identidade implique processos de reinvenção continuada de
formas de identificação.
No momento em que, no romance, Mascaró, o líder popular,
decide entrar no circo para se esconder de seus perseguidores
e se apresenta como Joselito Bembé, el cazador americano, fazendo
um número de tiro ao alvo, a política invade o circo. Quando os
integrantes da trupe do circo decidem abandonar suas funções e
se dedicar em cheio à política e utilizar suas destrezas na guerrilha, então é a arte que se desloca em direção à política.
Mascaró pode ser lido a partir de alguns dos sentidos mais
característicos da modernidade: o nomadismo e a metamorfose.
Não se trata de fazer proselitismo nem de aberta politização. A
questão é resgatar novos modos de produzir cultura, tornando
visível o que está subsumido ou oculto, o que se considerava
perdido ou inexistente, focalizando as práticas performáticas
que sustentam a forma pela qual essa nova produção se apresenta. Por essa via são transgredidos os limites disciplinários
e as estruturas hierárquicas dentro das quais o conhecimento
e a experiência são organizados e se concretiza a possibilidade
de cooperação entre os seres humanos e de novas formas de
cultura. O lazer, que se torna valor e não um mero desperdício,
faz parte da revolução da consciência que concede relevância
ao poder da imaginação e da fantasia de minar o sistema que
oprime e escraviza as classes espoliadas.
Quando o circo chega, no romance, a uma cidadezinha
ínfima, Tapado, revela-se a imagem da terra dormida sob a areia,
como se o deserto, longe de ser um espaço despovoado, fosse
174
Gragoata 22.indb 174
Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:32
Saberes performáticos nas ficções de Haroldo Conti
o lugar do escondido, mas que pode ser manifestado. Como se
pela simples presença do circo, com suas artimanhas, o povo de
repente adquirisse o poder de levantar vôo, de se elevar da terra
para assumir um ponto de observação privilegiado do qual as
pessoas, agora sim, poderiam ver, enxergar, ter acesso a uma
percepção diferente de como tinham sido até então suas vidas.
El Príncipe, que a esa hora revivía y se llenaba de humores,
mandó encender las luces y el pueblo de Tapado se detuvo un
momento, dejó de envejecer, porque la carpa se iluminó por
dentro y todos vieron que era algo hermoso sobre la tierra,
aunque no pasara nada más que eso y estuviese allí encendida toda la noche, mera figura, a ratos sacudida por una brisa,
como si consistiera viva y fuese a remontar vuelo igual que un
globo, y todos, tan livianos, despegaran también de aquella
tierra dormida bajo la arena y pudiesen ver desde arriba, medio
pajarito, ese agujero en el desierto donde había transcurrido
su vida. (Conti, 1984, p. 158)
Como podemos ver, a simples presença do circo já é uma
via de reflexão, produz uma suspensão do tempo produtivo. A
chegada do circo cria, primeiro, a inquietação das pessoas que
querem ver o novo, observar os mistérios que o circo sugere.
Depois, chega a possibilidade de participação e o desejo de
mudar bruscamente os rumos da vida particular ou até as das
comunidades. Todos sentem a fascinação dos artistas e se altera
profundamente o ritmo da vida diária.
A arte como performance — como mito, imaginação criadora, memória comunitária, delírio, alucinação, paródia — é
vista em Mascaró como uma celebração da vida, que leva a
descobrir seu sentido último; assim como a guerra, a guerrilha
é um modo de representação social e como tal carregada de
simbologia. O circo é o curso de uma prática social; uma práxis
que se apresenta como equação para resolver dilemas que a
oposição política-cultura impunha na época. A situação inicial
do romance apresenta o personagem protagonista, Oreste, sem
rumo, perdido, mas com uma única obsessão: o caminho. A cena
final traz um Oreste que acaba de reconhecer “seu” caminho e
esse caminho já não é vago e indeterminado: é o da luta armada
e essa é a proposta que o romance coloca como via de saída de
toda uma comunidade.
Esse movimento de desconstrução do esquema sociológico
vigente até então pretende se colocar na perspectiva dos pobres,
no sentido de serem grupos humanos, comunidades, totalmente
afastadas dos centros de poder, sem meios genuínos de subsistência, sem possibilidades de trabalhar conjuntamente com a
sociedade urbana no desenho de um país mais coerente. Esses
desaparecidos do discurso e da representação social voltam por
seus direitos. Revelam-se problemas específicos do mundo dual
em que se transformou a sociedade dos países rotulados, na
Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 175
175
6/11/2007 14:26:32
Gragoatá
Graciela Ravetti
época, de “terceiro mundo”, nos quais, junto a problemas típicos
de sociedades capitalistas desenvolvidas, coexistem problemas
típicos das sociedades arcaicas, de base agrária e colonial, extremamente dependentes dos centros hegemônicos e corroídos
pelos males do latifúndio.
Fica, para a crítica do século XXI, o desafio do que Nicolás
Casullo chamou “pensar entre épocas”, fazer o esforço de tentar
entender um momento histórico que, como todo passado, teima
em se ocultar e não se revela de todo. Que subjetividade foi essa
das vanguardas revolucionárias, cujo tempo íntimo entrou em
dissolução há muito tempo e que foi nomeado como “utópico”
quando, na verdade, falava-se de projetos de cuja possibilidade
não se duvidava, nunca de utopia, se é que utopia nomeia o que
não pode realizar-se? Por que chamar de utópica uma batalha
perdida?, poderíamos perguntar-nos. Por que rotular de utópico um movimento que tentou uma operação de reconciliação
entre política e estética com vetores tanto em direção de uma
politização da arte quanto de uma estetização de política? O
romance de Haroldo Conti é subsidiário tanto da romantização
do universo político que coloca a arte como o braço que tem a
força inatingível e incorpórea, performática, de produzir a revolução quanto da
politização da arte.
Abstract
This essay addresses questions related to the performatic transgenre, considering a piece of fiction
by Haroldo Conti, Mascaró, el cazador americano.
From an understanding of how performance and
writing interrelate themselves, the essay researches a critical and theoretical clue that allows for
new perspectives of cultural analysis.
Keywords: Argentinian Literature; Performance; Narrative; Contemporary fiction.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Lo que queda de Auschwitz: el archivo y el
testigo: Homo Sacer III. Valencia: Pre-Textos, 2005.
ANTELO, Raúl. (Org.). Crítica e ficção, ainda. Florianópolis: Pallotti, 2006.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
1998.
176
Gragoata 22.indb 176
Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:32
Saberes performáticos nas ficções de Haroldo Conti
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Rouanet. São Paulo:
Brasiliense, 1987.
CASULLO, Nicolás. Pensar entre épocas: memória, sujetos y
crítica intelectual. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2004.
CONTI, Haroldo. Alrededor de la jaula. Buenos Aires: Editorial
Sudamericana, 1967.
______. En vida. Barcelona: Barral, 1971.
______. Mascaró, el cazador americano. Buenos Aires: Nueva Imagen, 1984.
______. Sudeste. Buenos Aires: Compañía Fabril, 1962.
FOUCAULT. L’Archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 1969.
JAMESON, Fredric. Ensayos sobre el posmodernismo. Buenos Aires:
Imago Mundi, 1991.
________. O inconsciente político: a narrativa como ato socialmente
simbólico. Trad. Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Editora Ática,
1992.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio históricofilosófico sobre as formas da grande épica. São Paulo: Duas
Cidades: Ed. 34, 2000.
RAVETTI, Graciela. Ficción y performance en escritores latinoamericanos contemporáneos. Diálogos latinoamericanos, Aarhus,
v. 4, 2001a.
______. O corpo na letra: o transgênero performático. In: CARREIRA et al. Mediações performáticas latino-americanas. Belo Horizonte:
UFMG, 2003.
______. Performances autoficcionais. Margens / Márgenes, Belo
Horizonte, n. 1, maio 2001b. Caderno de cultura.
______; ARBEX, Márcia (Org.). Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte: Departamento de
Letras Românicas, UFMG, 2002.
RAMA, Ángel. Los gauchipolíticos rioplatenses: literatura y sociedad. Buenos Aires: Calicanto, 1976.
RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Trad. Raquel Ramalhete.
Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.
RESTIVO, Néstor; SÁNCHEZ, Camilo. Haroldo Conti, con vida.
Buenos Aires: Editorial Nueva Imagen, 1986.
ROJO, Sara. Trânsitos e deslocamentos teatrais: da Itália à América
latina. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005.
ROMANO, Eduardo. Narradores argentinos de hoy. v. 1. Buenos
Aires: Kapelusz: G.O.L.U., 1971.
Notas
1
Desenvolvi esse conceito em Ravetti (2003).
Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 177
177
6/11/2007 14:26:33
Gragoatá
Graciela Ravetti
Melendez (2001, p. 542), citando Vanden Heuvel, diz que o discurso da performance “tenta
rebelar-se contra a visão fechada do texto, procura quebrar as distinções tradicionais entre
arte e vida, defende a primazia do ator/performer frente ao autor, e deseja privilegiar a voz
humana sobre a palavra escrita”. (“intenta rebelarse contra la visión cerrada del texto, procura quebrar las distinciones tradicionales entre arte y vida, defiende la primacía del actor/
performer frente al autor, y desea privilegiar la voz humana por sobre la palabra escrita”).
3
Haroldo Conti, escritor argentino. Os romances de nosso corpus são: Sudeste, Alrededor
de la jaula, En vida e Mascaró, el cazador americano.
4
Haroldo Conti foi seqüestrado por forças parapoliciais. Desaparecido, foi dado como morto
em 1976 em Buenos Aires. Testemunhas detalharam horrendas torturas às quais Conti foi
submetido, que nós, hoje, não podemos senão assimilar à situação do “muçulmano” dos
campos de concentração na Alemanha. Ver sobre o tema Agamben (2005).
5
Na bibliografia constam algumas referências a tais trabalhos: Ravetti (2001a, 2001b, 2002).
6
Agamben (2005, p. 150). Foucault llama “archivo” a la dimensión positiva que corresponde
al plano de la enunciación, al “sistema general de la formación y de la transformación de
los enunciados” [Foucault, p. 171] ¿En qué forma debemos concebir esta dimensión, si no
corresponde al archivo en sentido estricto — es decir, al depósito que cataloga las huellas de
lo ya dicho para consignarlas a la memoria futura — ni a la babélica biblioteca que recoge el
polvo de los enunciados para permitir su resurrección bajo la mirada del historiador?
En cuanto conjunto de reglas que definen los acontecimientos de discurso, el archivo se sitúa
entre la langue, como sistema de construcción de las frases posibles — o sea, de la posibilidad de decir — y el corpus que reúne el conjunto de lo ya dicho, de las palabras que han
sido efectivamente pronunciadas o escritas. El archivo es, pues, la masa de lo no semántico
inscrita en cada discurso significante como función de su enunciación, el margen oscuro que
circunda y delimita cada toma concreta de palabra. Entre la memoria obsesiva de la tradición,
que conoce sólo lo ya dicho, y la excesiva desenvoltura del olvido, que se entrega en exclusiva
a lo nunca dicho, el archivo es lo no dicho o lo decible que está inscrito en todo lo dicho por
el simple hecho de haber sido enunciado, el fragmento de memoria que da olvidado en cada
momento en el acto de decir yo.
7
Para o testemunho performático acho interessantes as contribuições de Agamben (2005).
Entre outras fundamentais reflexões Agamben coloca: ...podemos decir que testimoniar
significa ponerse en relación con la propia lengua en la situación de los que la han perdido,
instalarse en un alengua viva como si estuviera muerta o en una lengua muerta como si
estuviera viva, mas, en cualquier caso, fuera tanto del archivo como del corpus [...] Significa
más bien que la palabra poética es la que se sitúa siempre en posición de resto, y puede, de
este modo, testimoniar. Los poetas — los testigos — fundan la lengua como lo que resta, lo
que sobrevive en acto a la posibilidad — o a la imposibilidad de hablar (p. 168).
8
Em outro artigo sobre o tema, defino esses termos da seguinte forma: “Haveria, então,
duas expressões complementares: “narrativas performáticas” e “vínculos performativos”.
As primeiras — as narrativas performáticas — poderiam vir a ser decisivas no momento
do questionamento e da resistência aos segundos — os vínculos performativos — nascidos
a instâncias do poder estabelecido. Acredito que encontramos estes critérios anunciados já
em Freud, quando ele dizia que um sujeito é o efeito de um conjunto de marcas materiais
e não uma entidade espiritual que se debate entre os enganos dos sentidos. E, ainda, que o
sujeito se constitua em uma atribuição respeito de essas marcas. Considero performativa a
narrativa que apresenta um cenário no qual um (ou mais) sujeito(s) aparece(m) em processos
de atribuição, com referentes explícitos à realidade material, sendo, por isso, identificáveis,
mas nas quais os comportamentos narrados (afinal trata-se de comportamentos sociais) são,
no mínimo, transgressores quanto à norma social vigente.
O poder performativo do discurso oficial, assim como o das teorias culturais de qualquer
signo — sobretudo quando estas alcançam um lugar legitimado e se fazem escutar — reside,
por um lado, na faculdade que esses discursos têm de definir, com antecipação, a condição de
existência dos sujeitos de uma sociedade dada: definem, por exemplo, o que é efetivamente
o latino-americano, o feminino, etc. Neste caso, a sobredeterminação dos discursos obstaculiza a possibilidade de assumir posições identitárias não condicionadas de antemão pelo
poder, ou seja, impede atos de emancipação efetiva. Entretanto, podemos trabalhar com a
hipótese de que a tomada de consciência sobre a existência dessa faculdade performativa
do discurso do poder, da qual os sujeitos são objeto, é já um passo no caminho de assumir
novas estratégias, dentre as quais observo: os atos performativos ilocutórios — sérios, no
sentido da teoria dos atos de fala —, dirigidos e conscientes, públicos ou privados; e os atos
performativos paródicos (aos que se referem, entre outros e de diferentes maneiras Judith
Butler, Bhabha e Fanon). Esses dois tipos de atos performativos possuem um alto valor de
eficiência para encontrar e assinalar pontos de fuga do círculo oclusivo da imposição de
identidades e, conseqüentemente, de comportamentos. Um dos lugares privilegiados para
“programar” esses atos é a literatura” (RAVETTI, 2OO2, p. 31-32).
9
“Toda esa Argentina que creo constantemente, porque para nosotros la Argentina todavía
es una abstracción”. Haroldo Conti em entrevista à revista Atlántida, citada em Restivo;
Sánchez (1986, p. 169).
10
Rama (1976, p. 151), aplica o ditado do flamenco (Tiembla el misterio) à situação em que se
produz o encontro entre atores e público no teatro.
2
178
Gragoata 22.indb 178
Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:33
Romances híbridos e crítica
ficcional na narrativa
contemporânea latino-americana:
o caso de Roberto Bolaño
Rafael Eduardo Gutiérrez Giraldo
Recebido 10, jan. 2007/Aprovado 9, abr. 2007
Resumo
O artigo apresenta uma tendência da narrativa
latino-americana contemporânea que consiste na
mistura de gêneros e no uso da crítica literária
ficcional na construção de romances e livros de
contos híbridos. Tomando como estudo de caso
a obra do escritor chileno Roberto Bolaño (19532003), o artigo mostra as principais características
deste tipo de narrativa e faz um paralelo com
outros exemplos recentes de escritores da América Latina. Finalmente propõe algumas hipóteses
teóricas para tentar situar o fenômeno na tradição
literária latino-americana, e analisa sua relação
com as transformações recentes no campo das
humanidades e das ciências sociais.
Palavras-chave: Literatura latino-americana
contemporânea; Roberto Bolaño; Romances híbridos; Crítica ficcional.
Gragoatá
Gragoata 22.indb 179
Niterói, n. 22, p. 179-190, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:33
Gragoatá
Rafael Eduardo Gutiérrez Giraldo
“Bolaño compartía con Nabokov la idea de la escri-
turacomo simulacro que acepta las condiciones de
lo real sólo en la medida en que puede reinventarlas”
(Juan Villoro)
1. Auxilio Lacouture, poeta uruguaia que fica presa nos
banheiros da Universidade Autônoma de México durante o
“masacre de Tlatelolco”1, é a protagonista do romance Amuleto, de
Roberto Bolaño, publicado em 1999. Na parte final do romance,
Auxilio fala com uma misteriosa voz, que parece ser a voz de seu
anjo da guarda. Ela sonha com profecias e a voz lhe pergunta
sobre o que pode ver: “El futuro”, lhe diz Auxilio, “puedo ver
el futuro de los libros del siglo XX” (BOLAÑO, 1999, p. 133). A
partir desse momento, Auxilio começa a fazer conjecturas sobre
os mais diversos autores:
Vladimir Maiakovski volverá a estar de moda allá por el año
2150. James Joyce se reencarnará en un niño chino en el año
2124. Thomas Mann se convertirá en un farmaceútico ecuatoriano en el año 2101... César Vallejo será leído en los túneles
en el año 2045. Jorge Luis Borges será leído en los túneles en
el año 2045. Vicente Huidobro será un poeta de masas en el
año 2045... Arno Schmidt resurgirá de sus cenizas en el año
2085. Franz Kafka volverá a ser leído en todos los túneles de
Latinoamérica en el año 2101. Witold Gombrowicz gozará de
gran predicamento en los extramuros del Río de la Plata allá
por el año 2098. (BOLAÑO, 1999, p. 134-135)
No dia 2 de outubro
de 1968 uma passeata
pacífica de estudantes
na praça de Tlatelolco
em México D.F. terminou de forma violenta
quando as forças militares do governo de
Díaz Ordaz dispararam
de forma indiscriminada contra a multidão.
Nunca houve uma investigação ou explicação
convincente por parte
das autoridades civis ou
militares sobre a tragé1
180
Gragoata 22.indb 180
Em tom sério ou burlesco, às vezes sarcástico, às vezes
demolidor, uma forma particular de crítica literária aparece de
forma constante na obra ficcional de Roberto Bolaño. Grande
parte da obra deste escritor chileno tem como tema central a
própria literatura. Suas histórias são habitadas por poetas, escritores, editores, leitores compulsivos e professores de literatura.
Assim, não é estranho que um tipo de crítica literária também
faça parte integral de sua ficção. Mas, quais são as principais
características desse tipo de crítica ficcional, e o que se esconde
por trás desse procedimento? E, por outro lado, a que tradição
se vincula e como relacioná-la com a obra de outros escritores
latino-americanos contemporâneos?
2. Existem, no conjunto da obra de Bolaño, textos de crítica literária concebidos fora de sua obra ficcional, e outros que
aparecem no interior de seus textos de ficção, embora as diferenças entre eles sejam muito tênues, quase invisíveis. Os textos
propriamente críticos foram recopilados por seu amigo Ignacio
Echavarría, e publicados postumamente em um livro intitulado
Entre paréntesis (2004). O livro reúne artigos de jornal, prólogos
dispersos, os discursos e conferências pronunciados por Bolaño
ao longo de sua vida, assim como sua última entrevista, concedida à edição mexicana da revista Playboy e publicada em julho
de 2003. Nestes textos é possível perceber uma das principais
Niterói, n. 22, p. 179-190, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:33
Romances híbridos e crítica ficcional na narrativa contemporânea latino-americana: o caso de Roberto Bolaño
Livro que continua a
tradição latino-americana iniciada com “Los
raros” de Ruben Darío em 1905, seguida
por Alfonso Reyes com
seus “Relatos reales o
imaginarios”, por Jorge
Luis Borges com sua
“Historia universal de la
infamia” e pelo próprio
Bolaño em “La literatura nazi en América”
(1996).
2
características da escrita de Bolaño: sua mobilidade entre gêneros, sua busca permanente de uma escrita sempre literária,
inclusive no campo da crítica. Essa mobilidade que aparece na
obra de Bolaño parece confirmar a hipótese de Derrida, segundo
a qual “um texto não pertence a algum gênero. Todo texto participa
em um ou vários gêneros” (DERRIDA, 1992, p. 230, grifos do
autor, tradução própria). Alguns dos textos críticos de Bolaño,
por exemplo, aparecem com poucas modificações dentro de sua
obra ficcional, como o conto “Jim”, escrito originariamente como
uma crônica de jornal e incluído, posteriormente, em seu livro
de contos El gaucho insufrible (2003). Com poucas exceções, todos
seus textos críticos tratam de literatura e estão escritos da mesma
forma que muitos de seus relatos de corte mais autobiográfico,
como “Carnet de baile”, ou “Encuentros con Enrique Lihn”, contos
que fazem parte do livro Putas asesinas (2001).
3. No prólogo de Entre paréntesis, Ignacio Echavarría faz um
paralelo entre este livro de Bolaño e outros dois livros recentes: Formas breves (2000), do argentino Ricardo Piglia, e El arte de la fuga
(1997), do mexicano Sergio Pitol. O que caracteriza estes livros é
uma certa mistura entre crítica e autobiografia, ou de crítica e ficção.
Precisamente Piglia, em Formas Breves, afirma que “a crítica é a
forma moderna da autobiografia” (PIGLIA, 2000, p. 117). O próprio Bolaño, comentando o livro do espanhol Enrique Vila-Matas,
Bartleby & Compañía (2000), escrevia que “tal vez estamos ante
una novela del siglo XXI, es decir una novela híbrida, que recoge lo
mejor del cuento y del periodismo y la crónica y el diario de vida”
(BOLAÑO, 2004, p. 287). Essas obras híbridas fazem parte também
do repertório de outros autores latino-americanos contemporâneos,
como o colombiano Fernando Vallejo, que faz a biografia do poeta
José Asunción Silva, Chapolas negras (1995), misturando os dados
de uma exaustiva pesquisa com as opiniões sarcásticas do próprio
narrador; e o argentino César Aira, numa obra como Las tres fechas
(2001), catálogo de escritores raros2 que explora a relação entre vida e
obra, ou história e literatura, como fazia notar recentemente Graciela
Montaldo (MONTALDO, 2005, p. 151). Essa tendência à hibridez,
por outro lado, não é exclusiva de autores hispano-americanos, sendo
possível encontrá-la nas obras de escritores contemporâneos de outras
latitudes como o alemão W.G. Sebald, por exemplo, que combina elementos da crônica, da fotografia e do ensaio em obras como Os anéis
de Saturno (1999) ou Austerlitz (2001); ou o triestino Claudio Magris,
que usa formas da história e da análise cultural para narrar a vida do
rio Danúbio, da nascente até a foz, no romance Danúbio (1986). No
contexto brasileiro, Marilene Weinhardt (1998) destaca a presença de
um conjunto de narrativas contemporâneas que: “optam pelos recursos da tendência que se vem chamando de pós-modernista, calcada
no reaproveitamento e no deslocamento de personagens históricas e/
ou ficcionais, questionando, pela paródia, o estatuto do ficcional e do
histórico” (WEINHARDT, 1998, p. 104).
Niterói, n. 22, p. 179-190, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 181
181
6/11/2007 14:26:34
Gragoatá
Rafael Eduardo Gutiérrez Giraldo
A tendência analisada por Weinhardt, com exemplos como
Em liberdade, de Silviano Santiago, ou Boca do inferno, de Ana
Miranda, embora diferente do movimento que procuro analisar,
encontra um ponto de ligação ao tratar-se de obras que usam a
literatura -neste caso os próprios escritores- como personagens
ficcionais e como base central de seu discurso narrativo, questionando também, como ela afirma, as fronteiras tradicionais
entre o ficcional e o histórico ou real.
4. No último livro de contos de Bolaño, El gaucho insufrible,
aparecem duas de suas conferências sobre literatura: “Literatura
+ enfermedad = enfermedad” e “Los mitos de Cthulhu”. A primeira,
uma reflexão sobre as relações entre doença e criação literária,
relação que Bolaño conhecia bem, pois ele mesmo sofreu uma
grave doença hepática no final de sua vida; a segunda, uma
invectiva sarcástica, comum nos escritos de Bolaño, contra a
situação da literatura latino-americana contemporânea. Reproduzidas sem nenhum anúncio prévio, as conferências se juntam
aos contos numa tentativa de fazer desaparecer os limites entre
crítica e ficção dentro de um mesmo livro, misturando os gêneros e deslocando seus lugares tradicionalmente separados. Essa
tentativa não é nova na obra de Bolaño, já se insinuava em seus
primeiros escritos e aparece de forma clara em “La literatura nazi
en América” (1996), livro de difícil classificação, que se apresenta
como um dicionário de escritores do continente americano que
tiveram alguma relação com o nazismo e o fascismo. O livro
inclui 30 biografias de escritores e escritoras, além de um “Epílogo para monstruos” (BOLAÑO, 1996b, p. 201-227) que contém a
relação de outros personagens da literatura nazista na América;
uma lista de revistas e periódicos que publicavam seus escritos;
assim como uma extensa lista com os títulos que fazem parte
desta tradição literária. Sem a indicação que aparece na contracapa
do livro, neste caso a edição da Biblioteca Breve de Seix Barral,
o leitor não poderia ter certeza de que se trata de um romance.
Nesse sentido, Derrida se pergunta: “Pode-se identificar um trabalho de arte, de qualquer tipo, mas especialmente um trabalho
de arte discursiva, se ele não sustentar a marca de um gênero, se
ele não sinalizar ou mencionar isto de algum modo?” (DERRIDA,
1992, p. 229, tradução própria).
5. Um dos aspectos interessantes deste romance, que o
torna ainda mais inclassificável dentro de um gênero fechado,
encontra-se no último verbete do dicionário, que corresponde
ao chileno “Carlos Ramírez Hoffman”, apelidado de o infame. Em
princípio, a biografia do escritor é similar às outras do dicionário, com uma breve apresentação do personagem e sua história
literária. Porém, um pouco mais adiante e de forma imprevista,
aparece o narrador em primeira pessoa como participante da
história de Hoffman. O narrador, que até aquele momento se
182
Gragoata 22.indb 182
Niterói, n. 22, p. 179-190, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:34
Romances híbridos e crítica ficcional na narrativa contemporânea latino-americana: o caso de Roberto Bolaño
ocultava por trás de uma prosa aparentemente objetiva e enciclopedista, entra na história de forma subjetiva:
En aquellos días, mientras se desmantelaba la pobre estructura
de poder de la Unidad Popular, caí preso. Las circunstancias
que me llevaron al centro de detención son banales, cuando
no grotrescas, pero me permitieron presenciar el primer acto
poético de Ramírez Hoffman, aunque por entonces yo no sabía
quien era Ramírez Hoffman. (BOLAÑO, 1996b, p. 180)
O nome Bolaño ou
a inicial B., usada pelo
narrador em muitos dos
contos e romances de
Bolaño, criam também
um “efeito de realidade”,
gerando no leitor a sensação de estar sempre
no espaço da autobiografia.
4
Histórias e personagens que pulam de um
livro a outro são parte
característica da obra
de Bolaño. A história
de Auxilio Lacouture,
por exemplo, aparece na
segunda parte de Los detectives salvajes, e posteriormente se transforma
no romance Amuleto; um
poema visual que é elemento central na trama
de Los detectives salvajes,
já havia aparecido em
outro romance Amberes
(2002); e o título de seu
romance póstumo 2666
(2005) havia sido sugerido na parte final do
romance Amuleto.
3
A partir desse momento, o dicionário de escritores se
transforma em outra coisa (conto, trecho de um romance, autobiografia?). A história de Ramírez Hoffman se confunde com a
história do próprio narrador, que também se chama Bolaño3, e
se prolonga por 23 páginas até o final do livro. Essa mesma história será recontada com maior fôlego e densidade num romance
posterior de Bolaño, Estrella distante (1996a), aparecerá de forma
breve no romance Los detectives salvajes (1998) e também no conto
“Joana Silvestri” do livro Llamadas telefónicas (1997)4.
6. “1. Mi madre nos leía a Neruda en Quilpué, en Cauquenes, en Los Ángeles. 2. Un único livro: Veinte poemas de amor y
una canción desesperada” (BOLAÑO, 2001, p. 207). Assim começa
o conto “Carnet de baile”, do livro Putas asesinas. Escrito em forma
autobiográfica, o conto descreve a relação, primeiro apaixonada
e depois conflituosa, entre o narrador e a obra de Neruda. Essa
história literária se mistura à história de vida do narrador durante o início da ditadura chilena. História de coragem juvenil
e, ao mesmo tempo, história de formação literária. A literatura
funciona neste conto, como em quase toda a obra de Bolaño,
como catalizador, como fio condutor da narrativa. O conto desenha o trajeto de leitura do narrador Bolaño, começando com
Neruda e depois passando por Vallejo, Huidobro, Borges, De
Rokha, Girondo, até chegar a Nicanor Parra, que será uma de
suas influências mais marcantes. A citação de escritores é comum
em Bolaño e vai construindo uma cadeia de influências e gostos
literários que o próprio escritor revela e que serve de ponte para
aproximar-se a sua obra ficcional e crítica. Também sua poesia
se insere neste movimento de relações literárias; o exemplo mais
evidente seria o poema “Un paseo por la literatura”, incluído em
seu livro Tres (2000), definido por Alejandro Zambra como uma
“extravagante serie de instantáneas cuyo tema probablemente
sea la promiscua cohabitación de autores y lecturas en la cabeza
del escritor” (ZAMBRA, 2002, p. 187). No poema, o personagem
Bolaño visita Alonso de Ercilla, reúne-se com Gabriela Mistral
numa aldeia africana, tem um affaire com Anaïs Nin e Carson
McCullers e trabalha para Mark Twain num caso estranho: salvar
a vida de um homem sem rosto. A obra poética de Bolaño transita também, e de forma natural, pelas fronteiras entre gêneros
literários, confundindo e apagando seus falsos limites.
Niterói, n. 22, p. 179-190, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 183
183
6/11/2007 14:26:34
Gragoatá
Rafael Eduardo Gutiérrez Giraldo
7. No final de “Carnet de baile”, escreve Bolaño:
59. Preguntas para antes de dormir. ¿Por qué a Neruda no le
gustaba Kafka? ¿Por qué a Neruda no le gustaba Rilke? ¿Por
qué a Neruda no le gustaba De Rokha? 60. ¿Barbuse le gustaba? Todo hace pensar que sí. Y Shólojov. Y Alberti. Y Octavio
Paz. Extraña compañía para viajar por el purgatorio. 61. Pero
también le gustaba Éluard, que escribía poemas de amor. 62. Si
Neruda hubiera sido cocainómano, heroinómano, si lo hubiera
matado un cascote en el Madrid sitiado del 36, si hubiera sido
amante de Lorca y se hubiera suicidado tras la muerte de éste,
otra sería la historia. (BOLAÑO, 2001, p. 215)
Este é um exemplo do tipo de crítica literária que aparece na
obra ficcional de Bolaño. Uma crítica que não se refere de forma
direta à obra de um escritor, neste caso à obra do poeta chileno
Pablo Neruda, mas que elabora um discurso crítico através das
próprias eleições literárias do autor. Esse procedimento mostra
que, para Bolaño, como para seu grande antecessor, Jorge Luis
Borges, a leitura precede e é mais importante que a escrita.
Bolaño compartilha a idéia de que, em sentido estrito, a escrita
não tem originalidade, sendo na realidade uma modulação
particular das leituras prévias do escritor. Assim o confirma
uma breve declaração que fez durante a entrega do Prêmio Rómulo Gallegos, por seu romance Los detectives salvajes, em 1999,
na Venezuela: “Soy mucho más feliz leyendo que escribiendo”
(BOLAÑO, 2004b, p. 20), declaração que lembra as palavras de
Borges, que se orgulhava mais dos livros que havia lido do que
dos livros que havia escrito (BORGES, 1974, p. 289).
8. Outra das formas em que a crítica literária se apresenta
nos textos ficcionais de Bolaño é através da elaboração de teorias
por parte de seus personagens. Assim, por exemplo, Amalfitano,
professor de filosofia e protagonista da segunda parte de 2666
(2004a), depois de conversar com um jovem farmacêutico mexicano sobre seus gostos literários, diz:
Escogía La metamorfosis en lugar de El proceso, escogía Bartleby
en lugar de Moby Dick, escogía Un corazón simple en lugar de
Bouvard y Pécuchet, y Un cuento de navidad en lugar de Historia
de dos ciudades o de El club Pickwick. Qué triste paradoja... Ya
ni los farmacéuticos ilustrados se atreven con las grandes
obras, imperfectas, torrenciales, las que abren camino en lo
desconocido. (BOLAÑO, 2004a, p. 289)
As palavras de Amalfitano poderiam funcionar perfeitamente para descrever os romances de Bolaño, Los detectives
salvajes e 2666, eles mesmos imperfeitos, torrenciais e que abrem
caminho para o desconhecido. Como diz Piglia: “Escrever ficção muda o modo de ler, e a crítica que um escritor escreve é o
espelho secreto de sua obra” (PIGLIA, 2000, p. 117).
Da mesma forma que Amalfitano, Joaquin Font, uma das
vozes da segunda parte de Los detectives salvajes, elabora suas
184
Gragoata 22.indb 184
Niterói, n. 22, p. 179-190, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:35
Romances híbridos e crítica ficcional na narrativa contemporânea latino-americana: o caso de Roberto Bolaño
próprias teorias literárias na clínica para tratamento de doentes
mentais “El reposo”, situada na periferia da Cidade do México,
onde se encontra internado. Entre outros achados teóricos,
Joaquin faz uma classificação das obras literárias segundo os
estados de ânimo do possível leitor:
Hay una literatura para cuando estás aburrido. Abunda.”, disse
Font, “Hay una literatura para cuando estás calmado. Ésta es
la mejor literatura, creo yo. También hay una literatura para
cuando estás triste. Y hay una literatura para cuando estás
alegre. Hay una literatura para cuando estás ávido de conocimiento. Y hay una literatura para cuando estás desesperado.
(BOLAÑO, 1998, p. 201)
Alter ego de Roberto
Bolaño.
5
A última classificação corresponde, segundo Font, à literatura feita por Arturo Belano5 e Ulises Lima, poetas protagonistas do romance. Ela corresponde também, a meu ver, a grande
parte da literatura feita pelo próprio Bolaño: uma literatura do
mal, do horror, situada sempre no limite do abismo. Assim, novamente, Bolaño parece deixar as pistas do enigma de sua obra
nas elaborações teóricas e na crítica literária que fazem seus
personagens ficcionais.
9. Literatura da literatura, literatura sobre a própria literatura, história literária escrita como se fosse ficção, mistura de
gêneros: a que obedece esse procedimento estético usado por
Bolaño e por muitos outros escritores contemporâneos? Como
surgem essas obras híbridas e a que tradição se vinculam?
Parece-me que várias respostas e linhas de análise são possíveis.
Na própria tradição literária podemos encontrar múltiplos antecedentes de obras que misturam diversos gêneros. No clássico
Guerra e Paz, por exemplo, Tolstoi já mistura a história ficcional
com seus comentários e propostas políticas e sociais; Robert
Musil, em O homem sem qualidades, constrói uma obra que usa
o ensaio científico como forma narrativa; mais recentemente,
Milan Kundera propõe histórias que se misturam a reflexões
filosóficas, em romances como A insustentável leveza do ser ou
A imortalidade. No contexto latino-americano, Borges é uma
referência central, talvez o escritor que levou mais longe as
possibilidades da própria crítica literária como instrumento da
escrita ficcional e como “metáfora da realidade” (JOZEF, 1974,
p. 38). Não por acaso, Borges é um dos escritores preferidos de
Bolaño e, para ele, o centro do cânone latino-americano.
10. A literatura da literatura, que incorpora a crítica dentro de
seus artefatos ficcionais, além de pertencer a uma linha específica da
tradição literária ocidental moderna, está relacionada, em minha opinião, a dois movimentos importantes: 1. O grau de autonomia alcançado pela arte a partir do alto modernismo; 2. As mudanças recentes
no campo das ciências, especialmente das ciências humanas.
Niterói, n. 22, p. 179-190, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 185
185
6/11/2007 14:26:35
Gragoatá
Rafael Eduardo Gutiérrez Giraldo
Com relação ao primeiro aspecto, Michel Foucault, em
As palavras e as coisas (1987) e em Isto não é um cachimbo (1989),
mostrou as mudanças apresentadas nos diferentes regimes de
representação desde a Renascença até o modernismo e o alto
modernismo. Os diferentes regimes partiram, em linhas gerais,
de uma representação baseada na semelhança entre realidade
e signo — como na Renascença com Da Vinci, Bosch e Brueguel, por exemplo — e progressivamente foram abandonando
as referências externas para, por um lado, pôr em evidência o
próprio processo de representação -como no famoso quadro As
meninas, de Velásquez- e, por outro, fazer da própria linguagem
artística o campo privilegiado da arte, concedendo-lhe um grau
total de autonomia; processo que começa, para Foucault, com
Paul Klee e alcança seu auge com o Magritte de Isto não é um
cachimbo. Magritte, segundo Foucault, faz uma ruptura total com
os dois princípios centrais do regime de representação dos 500
anos anteriores: 1. A separação entre imagem e palavra; 2. A
procura de semelhança entre realidade e signo.
A partir do alto modernismo, a semelhança deixa seu lugar
central para a similitude, onde não existe dicotomia entre original e cópia; a obra de arte não remete a uma realidade exterior,
mas às representações anteriores, num mundo serial onde não
há hierarquias: o mundo do simulacro. A literatura também se
insere nesta mudança de paradigma: abandonando a pretensão
de ser uma cópia da realidade, procura seu próprio desenvolvimento a partir de outros signos, a partir da própria literatura,
criando um mundo autônomo que não remete, necessariamente,
a uma realidade exterior. Penso que nesse movimento de autoreferencialidade — que não é uma auto-referencialidade como
em Hamlet ou Dom Quixote, pois nestes textos ainda existe uma
realidade que pode ser alterada pela ficção —, é possível inserir o elemento de crítica ficcional, presente na obra de Roberto
Bolaño e de outros escritores contemporâneos. A literatura se
volta sobre si mesma, suas referências já não se encontram em
uma suposta realidade objetiva, mas nas próprias representações literárias: é o livro que vira ‘realidade’ e não a realidade
transformada num livro.
11. Entre as múltiplas transformações das ciências sociais nas
últimas décadas, interessa-me, no contexto deste trabalho, destacar
somente dois aspectos: a. A recuperação do eu e da subjetividade; b.
A problematização da linguagem.
a.Reconhece-se atualmente que o conhecimento da realidade absoluta, independente de qualquer cognição, não
existe para o ser humano. Por essa razão é impossível
alcançar ‘objetividade’ no sentido de um acesso direto
aos objetos ou fatos, sem qualquer mediação. O que podemos fazer é estabelecer intersubjetividades baseadas no
186
Gragoata 22.indb 186
Niterói, n. 22, p. 179-190, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:36
Romances híbridos e crítica ficcional na narrativa contemporânea latino-americana: o caso de Roberto Bolaño
Acredito que Bolaño
ficaria feliz se seu livro,
“La literatura Nazi en
América”, fosse colocado na estante da biblioteca correspondente aos
manuais de história literária, e com isso, Borges
ficaria orgulhoso de seu
discípulo.
6
paralelismo de nossas estruturas, operações e domínios
cognitivos, e exigir a formação de esferas consensuais.
Consequentemente, a ‘verdade’, em sentido absoluto, é
humanamente impossível. O conhecimento científico
depende necessariamente do sujeito. Sua ‘objetividade’
e intersubjetividade não são funções de sua adequação à
‘realidade’, mas produtos da homogeneidade cultural dos
cientistas, que chegaram a um consenso em relação a determinadas categorias destinadas a julgar as construções
consideradas científicas e que outros indivíduos socializam no mesmo sentido. Essa necessária subjetividade
do conhecimento e da ‘realidade objetiva’ desestabiliza
o lugar e a distância tradicional existentes entre objeto
e sujeito, confundindo as fronteiras do que, no contexto
literário, seriam a realidade e a ficção. Se, em sentido
estrito, não há uma realidade objetiva fora da percepção
subjetiva, o que pode diferenciar a história literária escrita por um historiador da literatura, da história literária
escrita por um escritor dentro de seus livros de ficção?6.
b. Anteriormente, a linguagem era considerada unívoca,
pensava-se que cada palavra tinha somente um significado, o que seria a base de uma transmissão precisa das
mensagens. A linguagem era considerada representacional e se constituía em veículo para comunicar alguma
coisa que estava fora, o objeto da ciência. Atualmente, a
linguagem é uma coisa muito diferente, a univocidade
desapareceu, a linguagem já não representa o mundo mas
o constitui, o cria. A função primordial da linguagem
não é transmitir mensagens de um lugar a outro, mas
construir a realidade. Por este caminho, a nova ciência
se aproxima do romance, que tem conservado, na sua
vertente mais afastada do realismo, a idéia da linguagem
como geradora da realidade romanesca. A ciência, então,
especialmente a ciência social contemporânea, começa a
se constituir ela mesma como uma história, como uma
narração, como um romance. A ficção se parece com a
história literária, e a história literária começa a parecerse com a ficção. O próprio Bolaño considerava a crítica
como um gênero literário entre outros, fato evidente nos
textos que fazem parte de seu livro Entre paréntesis, assim
como em grande parte de sua obra ficcional —escrita, ela
mesma, à maneira da crítica e da história literária. No
mesmo sentido, Emir Rodríguez Monegal, em sua análise
da obra de Borges, afirma: “Borges já demonstrou seu
enfoque: todo julgamento é relativo, e crítica é também
uma atividade tão imaginária quanto a ficção e a poesia”
(RODRÍGUEZ MONEGAL, 1980, p. 80)
Niterói, n. 22, p. 179-190, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 187
187
6/11/2007 14:26:36
Gragoatá
Rafael Eduardo Gutiérrez Giraldo
12. Quero deixar, como outra hipótese de trabalho, para explicar essa ‘volta à literatura’ que se observa em certos escritores
contemporâneos da América hispânica, assim como de outros
países, a possibilidade de uma reação contra a “volta do real”
(FOSTER, 1996), que se evidencia, no campo literário, pelo boom
de biografias, autobiografias e diversas narrativas testemunhais,
escritas sobretudo por pessoas normalmente excluídas do meio
literário (criminosos, prostitutas, presos etc.), assim como no
sucesso de uma literatura sobre crimes, violência, ou aspectos
marginalizados da sociedade, que estariam mostrando, segundo
alguns, a “verdadeira realidade”7. Se o boom latino-americano
dos anos 60 e 70 foi uma resposta ao realismo e ao naturalismo
de finais do século XIX e começos do XX, dando prioridade ao
uso de elementos mágicos e fantásticos na narrativa, a ‘volta à
literatura’ dos últimos anos seria uma reação contra um realismo exacerbado, traumático, que vem aparecendo de forma forte
no cenário literário, e que é motivado também pelos interesses
econômicos da indústria cultural globalizada. Se, por um lado,
a tendência do real se afasta de forma radical do mundo literário,
inclusive adquirindo um tom e uma linguagem mais próximos
do jornalístico, o movimento contrário mergulha de forma profunda na própria literatura. Na obra de Bolaño, por exemplo, os
personagens são, quase sempre, escritores, ou leitores, ou críticos; as histórias se constroem em torno de mistérios literários: a
procura de um escritor ou escritora desaparecida, ou de algum
manuscrito perdido; escritores reais e imaginários aparecem
nos sonhos de narradores e personagens; inclusive sua crítica
literária parece ficção e, com freqüência, aparece dentro de sua
ficção, e às vezes, sua ficção se escreve como crítica ou história
literária. Finalmente, como diria Bolaño, ou Piglia, ou Vila-Matas,
ou algum de seus personagens: tudo é literatura.
Abstract
Penso em romances
recentes como Satanás,
do colombiano Mario
Mendoza, sobre a história “verdadeira” de um
famoso assassino bogotano, ou romances como
Cidade de Deus de Paulo
Lins e Estação Carandiru
de Drauzio Varella.
7
188
Gragoata 22.indb 188
This article presents a tendency in contemporary
Latin-American literature to mix genres and use
fictional literary criticism in the construction of
hybrid novels and short stories. With Chilean
writer Roberto Bolaño (1953-2003) as an exemplar, the article presents the main elements of this
type of narrative, and establishes a parallel with
other contemporary writers from Latin America. Finally, on offer is a theoretical hypothesis
designed to explain this tendency in relation to
the Latin-American literary tradition and the
recent transformations in the Humanities and
Social Sciences.
Niterói, n. 22, p. 179-190, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:36
Romances híbridos e crítica ficcional na narrativa contemporânea latino-americana: o caso de Roberto Bolaño
Keywords: Contemporary Latin-American Literature; Roberto Bolaño; Hybrid novels; Fictional
criticism.
Referências
BOLAÑO, Roberto. 2666. Barcelona: Anagrama, 2004a.
______. Amuleto. Barcelona: Anagrama, 1999.
______. El gaucho insufrible. Barcelona: Anagrama, 2003.
______. Entre paréntesis. Barcelona: Anagrama, 2004b.
______. Estrella distante. Barcelona: Anagrama, 1996a.
______. Llamadas telefónicas. Barcelona: Anagrama, 1997.
______. La literatura nazi en América. Barcelona: Seix Barral,
1996b.
______. Los detectives salvajes. Barcelona: Anagrama, 1998.
______. Os detetives selvagens. São Paulo: Companhia das letras,
2006.
______. Putas asesinas. Barcelona: Anagrama, 2001.
______. Tres. Barcelona: Acantilado, 2000.
BORGES, Jorge Luiz. Prólogo à primeira edição de “Historia
Universal de la Infamia”. In: ______. Obras completas. Buenos
Aires: Emecé, 1974.
DERRIDA, Jacques. The law of genre. In: ATTRIDGE, Derek (Ed.).
Acts of literature. New York: Routledge, 1992. p. 221-252.
FOSTER, Hal. The return of the real. Cambridge: London, 1996.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins
Fontes, 1987.
______. Isto não é um cachimbo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
JOZEF, Bella. Borges: linguagem e metalinguagem. In: ______.
O espaço reconquistado: linguagem e criação no romance hispanoamericano contemporâneo. Petrópolis: Vozes, 1974. p. 38-49.
MONTALDO, Graciela. Una literatura que lo puede todo. In:
RESENDE, Beatriz (org.). A literatura latino-americana do século
XXI. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2005. p. 141-155.
PIGLIA, Ricardo. Formas breves. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
RODRÍGUEZ MONEGAL, Emir. Borges: uma poética da leitura.
São Paulo: Perspectiva, 1980.
WEINHARDT, Marilene. Quando a história literária vira ficção.
In: ANTELO, Raul et al. (Org.). Declínio da arte, ascensão da cultura.
Florianópolis: Abralic, 1998. p. 103- 109.
Niterói, n. 22, p. 179-190, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 189
189
6/11/2007 14:26:37
Gragoatá
Rafael Eduardo Gutiérrez Giraldo
ZAMBRA, Alejandro. La montaña rusa. In: MANZONI, Celina
(Ed.). Roberto Bolaño: la escritura como tauromaquia. Buenos
Aires: Corregidor, 2002. p. 185-188.
190
Gragoata 22.indb 190
Niterói, n. 22, p. 179-190, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:37
El sueño de la razón...
Olga Valeska
Recebido 10, jan. 2007/Aprovado 9, abr. 2007
Resumo
Este ensaio faz uma reflexão sobre o lugar da poesia e da literatura no atual contexto de mudança
epistemológica. Dentro desse campo de discussão,
o presente texto focaliza a obra ensaística do poeta
mexicano, Octavio Paz, colocando-a em diálogo
com discursos advindos de diversos campos do
conhecimento.
Palavras-chave: Octavio Paz; Poesia; Crise da
razão; Cosmologia; Tecnologia; Ciência.
Gragoatá
Gragoata 22.indb 191
Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:37
Gragoatá
Olga Valeska
“Houve um tempo em que os sábios sabiam; um tempo em
que Marcelin Berthelot, por exemplo, do alto a pirâmide social
escrevia (em 1887): ‘o universo não tem mais mistério’. Essa
certeza está morta.” (AUDOUZE)
1
Em Novais (1999).
192
Gragoata 22.indb 192
Mas o que busca o sábio? Quem seria o sábio na atualidade? Ele existiria no mundo contemporâneo? Na verdade,
estas interrogações convergem em uma única indagação que
se refere à crise dos discursos autorizados, legitimados com a
aura do saber/poder. A ciência clássica, consolidada no século
XIX, concebia a realidade como uma instância constituída por
objetos diferenciados e regidos por sólidas leis de causa e efeito.
Nessa perspectiva, caberia ao sujeito buscar um conhecimento
imanente ao próprio objeto: descobrir e explicitar as leis existentes na natureza. Atualmente, essa concepção de realidade
entra em crise e o próprio conceito de “conhecimento objetivo” é
problematizado. Como afirma o roteirista de cinema Jean-Claude
Carrière, em um diálogo com os astrofísicos Jean Audouze e
Michel Cassé: “O conhecimento aprendeu uma coisa sobre si
mesmo: que é, antes de tudo, movimento. No mesmo instante a
estátua do sábio desmoronou” (AUDOUZE, 1991, p. 19).
Na atualidade, as certezas apoiadas pelo racionalismo estão sendo questionadas em todos os campos do conhecimento,
gerando um quadro que alguns autores chamam de “crise da
razão”. Para Bento Prado Júnior (1999), em Erro, ilusão, loucura1,
a idéia de razão surgiu na Grécia, já em crise, juntamente com
a idéia de filosofia. Assim, crise e razão são duas instâncias
inseparáveis: “Crisis perennis ou crise datada? Se datada, de
quando? É certo que razão e filosofia nascem juntas, na Grécia,
já em crise. Um pouco como se o verme fosse co-natural à maçã”
(p. 111). Dessa maneira, pode-se dizer até que a palavra “razão”
já estaria, por definição, ligada ao sentido etimológico da palavra
“crise” que, derivada do verbo “krino”, significa decidir, escolher,
julgar, separar, distinguir, etc.
De fato, os períodos em que predominou o culto à dimensão racional da humanidade são períodos de intensa crítica a
todas as verdades instituídas. Assim, para observar os traços
da atual crise da razão, é necessário observar a maneira como a
razão é posta em exame na atualidade, juntamente com todas as
nossas concepções de mundo e de homem, passando por nossas
idéias de tempo, espaço e sociedade.
Mediante a importância de se refletir sobre as questões
apresentadas acima, proponho, neste ensaio, uma discussão
sobre o lugar da poesia e da literatura no atual contexto de
mudança epistemológica. Dentro desse campo de discussão,
focalizo a minha análise na obra ensaística do poeta mexicano,
Octavio Paz, colocando-a em diálogo com outros discursos.
Essa escolha se deve ao fato de que uma parte significativa da
Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:37
El sueño de la razón...
obra desse autor está empenhada em uma discussão sobre as
questões do conhecimento na atualidade e sobre o lugar da poesia dentro dessas questões. Esse autor, na verdade, lida como
poucos com a relação entre a poesia e a sociedade, dialogando
sempre de maneira explícita com as inquietações que movem
os discursos tanto filosóficos, quanto científicos. Pode-se dizer
até que o pensamento paziano representaria uma voz, talvez
uma das mais eminentes, que responderia a tais inquietações a
partir do lugar da poesia. Como afirma o filósofo colombiano,
Javier Gonzáles (1990):
Paz es consciente de la difícil tarea del poeta en las actuales
condiciones de banalización y agotamiento de la razón. En
nuestros días los temas cruciales de la condición humana y del
destino del Universo vuelven a formar parte de la imaginación
artística. De acuerdo con Nietzsche, el poeta mexicano afirma
que “en nuestro tiempo lo que cuenta es el arte [y la poesía] y
no la verdad. (p. 33)
Cf. RAZÃO. In: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São
Paulo: Martins Fontes,
1998; LALANDE, André. Vocabulário técnico
e crítico da filosofia. São
Paulo: Martins Fontes,
1999.
2
Nessa perspectiva, no presente trabalho, eu analiso o
lugar do discurso poético diante dos diversos discursos que
tentam refletir sobre o atual contexto de crise da razão. Ora, a
palavra “razão”, ao longo da história da filosofia moderna, teve
diversos significados2. Dentre eles selecionei três que me interessam de perto: o primeiro apresenta a razão em sua dimensão
ética, como guia da conduta humana no exercício de sua vontade: “força que permite a liberação dos apetites que o homem
tem em comum com os animais, submetendo-os a controle e
mantendo-os na justa medida” (ABBAGNANO,1998, p. 824).
Este primeiro sentido associa-se a uma idéia de homem que, separado do mundo animal, teria, na razão, uma ancoragem para
a liberdade moral de superar seus próprios instintos. A segunda
concepção, mais abrangente, apresenta a razão associada ao
intelecto humano: uma razão analítica, vinculada à capacidade
humana de compreender e analisar o mundo e agir segundo o
seu próprio discernimento: “força que liberta dos preconceitos,
do mito, das opiniões falsas e das aparências, permitindo estabelecer um critério universal ou comum para a conduta humana em
todos os campos” (ABBAGNANO, 1998, p. 824). Derivada desta
última, pode-se observar um tipo de razão cientificista que se
centra na separação sujeito/objeto, buscando um conhecimento
objetivo do mundo e o controle da natureza.
Não cabe aqui uma discussão muito ampla acerca do
conceito de razão. Basta, para meus propósitos, ressaltar que
esse conceito, de uma maneira geral, apresenta uma imagem
universalista de homem: “homem como ser racional”, além de
apontar a faculdade da razão como uma referência confiável para
guiar a conduta do homem no mundo, ancorando o seu entendimento e a sua ação na sociedade e frente à natureza. Um dado
interessante seria que, a partir desses conceitos universalistas
Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 193
193
6/11/2007 14:26:37
Gragoatá
Olga Valeska
de razão, foi possível conceber uma imagem de natureza como
um sistema lógico dotado de uma ordem necessária. A natureza, sábia, evoluiria em uma progressão que visaria a um fim e
a um sentido. E a história, que seria fruto de uma ação racional
do homem, chegaria, no futuro, a um desenvolvimento ideal da
sociedade, ainda que atravessando dificuldades e crises.
Observa-se, assim, que a idéia de necessidade no devir do
mundo e da história fica atrelada à idéia de justiça: as coisas não
só têm causas lógicas, mas essas causas obedecem a critérios
justos. Justiça e razão são aproximadas, não só quando a razão é
pensada como guia do homem no mundo, mas também quando
a ordem cósmica é pensada como algo racional e provido de
um fim.
Essa visão otimista3 do devir da natureza e da história está
associada a uma idéia de tempo progressivo e a uma perspectiva evolucionista de mundo. Porém, essa perspectiva, segundo
Octavio Paz, abre espaço, no decurso da história, para uma
identificação entre progresso e tecnologia. E a razão, que antes
ocupava um lugar central na definição de homem e era apontada
como um guia universal de conduta, passa a ser identificada,
cada vez mais, com um racionalismo vinculado a uma função
utilitária: o desenvolvimento tecnológico. A razão, paulatinamente, afasta-se do seu papel ético e moral para ser um meio
de aquisição de tecnologia.
Nesse contexto, existe uma identificação clara entre o
progresso de uma cultura e o desenvolvimento tecnológico, incluindo, claro, a tecnologia bélica. O domínio da técnica marcaria
de maneira positiva uma cultura que seria, assim, considerada
avançada, desenvolvida. Essa identificação coloca em evidência o discurso científico que é, na modernidade, cada vez mais
valorizado como detentor de saber/poder, passando a ocupar
um lugar central também na explicação do funcionamento do
universo. Como afirma o poeta mexicano:
Importa ressalta r
que essa perspectiva
otimista frente ao devir
da história não constitui
uma unanimidade. Ao
longo da história, vários
filósofos adotaram uma
visão cética frente às
cosmologias construídas a partir da idéia de
“ordem necessária” e
frente à idéia de razão
como guia ético e definidora da condição humana. Cf. As filosofias do
mundo, de David Cooper
(2002).
3
194
Gragoata 22.indb 194
el mundo es mi mundo: esto se manifiesta por el hecho de que
los límites del lenguaje significan los límites de mi mundo...
Yo soy mi mundo”. Sólo que ese “yo soy” no es el cuerpo sino
mi lenguaje – el lenguaje. Un lenguaje que cada vez es menos
mío: es de la ciencia. (PAZ, 1996, v. 10, p.183)
Porém, o papel da ciência na configuração dessas cosmologias é contraditório: de fato, sempre existiu um interesse do
discurso científico em observar e analisar o mundo, e isso o
aproximaria do discurso filosófico. Porém, a intensa valorização
da ciência e da perspectiva tecnicista da razão ajuda, e muito, a
aprofundar o quadro da atual crise da razão: “Nada nos puede
decir la técnica sobre todo esto. Su virtud filosófica consiste, por
decirlo así, en su ausencia de filosofía” (PAZ,1998, p. 265).
Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:38
El sueño de la razón...
Em resumo, segundo Paz, a concepção de homem como
ator da história leva à situação atual de radicalização dessa
função: o homem transforma a natureza abrindo espaço para a
tecnologia que, por sua vez, é incapaz de dar sentido ao mundo
porque constitui-se como uma atividade cujo fruto está destinado
à sua própria negação. O poeta mexicano chamou esse quadro
conjuntural de “perda da imagem do mundo”:
Para la técnica el mundo no es ni imagen sensible ni un modelo
cósmico: es un obstáculo que debemos vencer y modificar. El
mundo como imagen desaparece y en su lugar se levanta la
realidad de la técnica, frágil a pesar de su solidez ya que están
condenadas a ser negadas por nuevas realidades. (PAZ, 1999,
v. 1, p.303)
O período moderno,
para esse autor, tem início no século XVIII e se
encontra, atualmente,
em sua fase final ou em
um período de renovação: “La modernidad
está herida de muerte:
el sol del progreso desaparece en el horizonte
y todavía no vislumbramos la nueva estrella
intelectual que há de
guiar a los hombres. No
sabemos siquiera si vivimos un crepúsculo o un
alba.” (OC.,v.1, p.514)
4
Para Octavio Paz, o cosmos, em culturas mais tradicionais,
era provido de imagens estáveis. Os mitos narravam a história
do universo, povoando-o de deuses. Essas cosmologias, além de
dar um desenho para o mundo, ainda justificavam a existência
humana, dando a ela uma função dentro do universo, uma
função mais preservadora que transformadora do cosmos: “En
la Antigüedad el universo tenía una forma y un centro; su movimiento estaba regido por un ritmo cíclico y esa figura rítmica
fue durante siglos el arquetipo de la ciudad, las leyes y las obras”
(PAZ, 1998, p. 260).
O período que Octavio Paz chama de moderno4, por outro lado, se caracterizaria por uma crítica sistemática à religião
e às mitologias. As cosmologias que passaram a predominar,
nesse contexto, estariam ligadas à idéia de progresso e à razão.
E o homem, pensado como “sujeito da história”, assume uma
dimensão abstrata: uma humanidade incorpórea, que teria uma
função transformadora do mundo. O tempo histórico, em seu
aspecto teleológico e evolucionista, projeta para o futuro uma
imagem utópica de mundo, um futuro ideal que poderia ser
pensado como paradisíaco.
A perda da imagem do mundo, na atualidade, coincide,
para Paz, com o fim das utopias e com a crítica da concepção
de tempo histórico, progressivo. O futuro estaria marcado pela
possibilidade iminente da catástrofe. “Pensar que el mundo se
puede acabar en cualquier momento y perder la fe en el futuro,
son rasgos no-modernos y que niegan los presupuestos que
fundaron a la edad moderna en el siglo XVIII.”(PAZ, 1999, v. 1,
p. 308)
Para esse autor, se a catástrofe nas sociedades tradicionais
tinha um papel de “renovatio”, na modernidade ela também
poderia ser pensada dentro da perspectiva da “revolução”
transformadora da sociedade. Porém, na atualidade, a catástrofe
estaria destituída de qualquer sentido, ela seria um simples fruto
da contingência da ação humana ou um fato determinado pelo
Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 195
195
6/11/2007 14:26:38
Gragoatá
5
Em Novais (1999).
196
Gragoata 22.indb 196
Olga Valeska
Acidente: “[...] para nosotros la imagen de la catástrofe cósmica
asume la forma a un tiempo atroz y grotesca del Accidente.”
(PAZ, 1999, v. 1, p. 309)
Nesse contexto, existe uma relação interessante entre o
procedimento crítico da razão, o tempo linear e a entropia. O
devir do tempo não se apóia, como acontecia nas sociedades
tradicionais, em uma preservação do mundo, mas em sua mudança. Atualmente, a visão da entropia como resultado da ação
humana no mundo leva à crítica de todas as utopias ligadas à
visão de um tempo progressivo, de todas as idéias evolucionistas da história e da própria eficácia da razão como condutora
da humanidade.
Assim, a perda da imagem do mundo estaria associada à
crítica da história, do humanismo e da própria razão humana.
Conseqüentemente, associa-se também a uma crítica das construções de imagens de mundo elaboradas pelo homem e que
legitimaram suas ações e deram sentido ao devir da história nos
últimos séculos. Nesse aspecto, pode-se dizer que, para Octavio
Paz, as imagens de mundo, na atualidade, encontram-se em um
impasse: caos e cosmos coincidem de maneira desconcertante.
E uma pergunta parece atravessar grande parte de sua obra:
“es posible edificar algo sobre las perpetuas arenas movedizas
del presente?” (PAZ, 1999, v. 1, p. 316) Frente a essa indagação, o
poeta mexicano é otimista e contesta: “¿Por qué no?”
Observando o contexto da “crise da razão”, Sergio Rouanet, em um artigo intitulado “A deusa razão”5, analisa a obra de
Goya “El sueño de la razón produce monstruos”. Nessa análise,
Rouanet, explorando a ambigüidade da palavra “sueño” em espanhol (que significa tanto sono quanto sonho), faz uma crítica
dos “sonhos” do racionalismo, que criaram monstros de pesadelo
em sua escalada na história. Muitos exemplos poderiam ser
citados, desde o Terror do período revolucionário francês até o
sonho nazista de uma sociedade perfeita.
Na verdade o lugar da razão na história da humanidade é
ambíguo. Como já foi dito, a relação razão/ética pressupõe que
a ação livre do homem visa ao bem e à ordem. Nesse sentido, a
razão humana, respaldando uma visão universalista de homem,
teria a função de proteger a ordem do universo da violência
da aleatoriedade e do niilismo ético. Por outro lado, a idéia da
existência mesma de uma Razão universal pode resultar em uma
visão totalizadora da verdade. E esta última situação serviria
para justificar um tipo de hegemonia que poderia esmagar outros tipos de verdade: “La razón crea cárceles más oscuras que
la teología. El enemigo del hombre se llama Urizel (la Razón),
el dios de los sistemas, el prisionero de sí mismo.” (PAZ, 1998,
p. 237)
Nessa perspectiva, é possível observar uma outra contradição no que se refere ao papel da ciência no quadro de crise
Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:38
El sueño de la razón...
que marca a atualidade: a razão científica, ligada a uma visão de
tempo linear e progressivo, fica atrelada a um desenvolvimento
tecnológico, que se diferencia do racionalismo discriminativo,
normativo e ético. A perda da imagem do mundo, assim, somase a uma crise de ordem ética bastante complexa: a razão passa
a ser pensada como uma faculdade mecânica, desumanizada,
porém livre de uma idéia de Verdade absoluta que supostamente
poderia organizar o mundo humano, em sua totalidade. A razão
também se liberta de sistemas de pensamento fechados, como
alguns sistemas metafísicos. Em contrapartida, essa liberdade
traz em seu rastro um aprofundamento da reificação do mundo
e do homem que já estava em curso em períodos anteriores. Em
outras palavras, a ordem do mundo, que se referia ao humano,
à razão humana, passa a ser estabelecida pela chamada razão
instrumental, utilitária, mecânica. E, se a técnica libera o mundo da opressão das metafísicas ortodoxas, seria somente para
gerar outros tipos de relação de poder, não menos opressores.
Saber e poder interagem, nesse contexto, como instâncias inseparáveis.
Segundo Octavio Paz, os monstros sonhados pela razão,
na atualidade, não têm imagem. A complexidade do mundo
atual, espaço dilatado pelo excesso tecnológico e pela amplitude da rede de comunicação e informação, torna a tarefa de dar
sentido ao mundo cada vez mais árdua. Além disso, como já foi
observado, a razão, quando ligada ao desenvolvimento tecnológico, deixa de ocupar um lugar central na ética e na própria
definição de humano para desempenhar um papel utilitário no
processo de produção. A técnica não mantém, como o artesanato, os vestígios do gesto criativo, pessoal, de seu criador, mas
é, ela mesma, vestígio da ação humana no mundo, um gesto
desprovido de sentido simbólico: molda o mundo a partir de
um objetivo utilitário, sem concebê-lo como imagem:
La técnica no es ni una imagen ni una visión de mundo; no es
una imagen porque no tiene por objeto representar o reproducir a la realidad; no es una visión porque no concibe al mundo
como figura sino como algo más o menos maleable para la
voluntad humana. Para la técnica el mundo se presenta como
resistencia, no como arquetipo: tiene realidad, no figura. Esa
realidad no se puede reducir a ninguna imagen y es, al pie de
la letra, inimaginable. (PAZ, 1998, p. 262)
Assim, o dado sensível se desprende, paradoxalmente,
também da cosmologia materialista configurada pela razão
mecanicista, porque a ciência constitui um mundo de abstrações
que tiram de foco a forma e a qualidade associadas à matéria
sensível. Para Octavio Paz, o mundo, nesse contexto, acaba por
se configurar a partir de um tipo paradoxal de “materialismo
abstrato”:
Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 197
197
6/11/2007 14:26:38
Gragoatá
Olga Valeska
Para conocer a la naturaleza – en realidad: para dominarla- la
hemos cambiado; ha cesado de ser presencia corpórea para
transformarse en una relación. La naturaleza se ha vuelto,
hasta cierto punto, inteligible; también se ha vuelto intangible.
Ya no es cuerpo es equación. (PAZ, 1996, v. 10, p.182-3)
A visão do mundo material como objeto de estudos e controle tem seu similar na visão científica do corpo humano, que
é estudado como matéria inerte. Assim, não só o mundo perde a
sua imagem e se mantém como um espaço a ser compreendido
para ser melhor dominado, como também o corpo é colocado
sob controle diante do olhar analítico da ciência, que o fragmenta em partes e o separa do seu contexto sócio-cultural. Essa
visão desencarna também a história, para transformá-la em um
conjunto de fatores abstratos, alheios ao próprio homem em sua
“corporeidad”. Assim, juntamente com a perda da imagem do
mundo, a imagem do homem também se perde.
Cambios en la genealogía del hombre: primero criatura de
Dios; después, resultado de la evolución de las células primigenias; e ahora mecanismo. La inquietante ascensión de la máquina como arquetipo del ser humano dibuja una interrogación
sobre el porvenir de nuestra especie. [...] La persona humana
sobrevivió a dos totalitarismos: ¿sobrevivirá a la tecnificación
del mundo? (PAZ, 1996, v. 10, p. 338-9)
Em resumo, para o poeta mexicano, a separação corpo/
não-corpo, empreendida pela metafísica ocidental, tem ecos
importantes no contexto do mundo atravessado pela tecnologia.
Essa situação é denominada por ele de “materialismo abstrato”,
um materialismo que, tomando a natureza como objeto a ser
estudado e utilizado, cria, no entanto, uma configuração abstrata,
incorpórea, do mundo e do homem.
De qualquer maneira, a perda da imagem do mundo, apontada por Paz, estaria vinculada a todo um contexto em que predomina uma perspectiva racionalista associada à técnica. Essa
visão contamina toda a cosmologia configurada em períodos
recentes, obrigando a um alijamento da imaginação humana,
seja mítica ou poética. Para Octavio Paz, a lógica utilitarista da
razão é problemática por vários motivos, mas, principalmente,
porque contamina a postura do homem diante da natureza, de
si mesmo e também diante da própria linguagem. Ora, essa
perspectiva concebe a linguagem como meio de representação
(objetiva) da realidade: a palavra, transparente, torna-se um
veículo incorpóreo que transmite um sentido afastado da experiência do mundo físico. Assim, Octavio Paz assinala a cisão
da palavra entre o uso prosaico e o poético:
Todas nuestras versiones de lo real – silogismos, descripciones,
fórmulas científicas, comentarios de orden práctico, etc. – no
recrean aquello que intentan expresar. Se limitan a representarlo o describirlo.[...] El verso la frase-ritmo evoca, resucita,
198
Gragoata 22.indb 198
Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:39
El sueño de la razón...
despierta, recrea. O como decía Machado: no representa, sino
presenta. (PAZ, 1998, p. 109)
Surge, dessa forma, um terceiro protagonista no quadro
atual da crise da razão: o discurso poético que também participa,
juntamente com o discurso filosófico e científico, da conjuntura
que enfrenta, atualmente, a perda da imagem do mundo. Nesse
contexto, a poesia definida por Paz como “geradora de imagens”,
ocupa um lugar paradoxal: “Pues bien, la poesía se enfrenta
ahora a la pérdida de la imagen del mundo. Por eso aparece
como una configuración de signos en dispersión: imagen de un
mundo sin imagen” (PAZ, 1999, v. 1, p. 302).
O lugar da poesia, no quadro descrito acima, merece uma
explicação mais detalhada: como já foi afirmado, para Octavio
Paz, a modernidade leva o homem à experiência da aceleração
do tempo, que é vivenciada na vacuidade do rompimento contínuo com o passado e a perda da dimensão do presente. Essa
experiência, denominada “superstição do progresso”, leva à
crença em uma linha evolutiva infinita que, identificada com o
transcurso temporal, acaba reduzindo o “agora” a um sentido
de incompletude e insuficiência.
Essa vivência de uma temporalidade magnetizada pelo futuro não se prende somente à renovação tecnológica, mas a uma
valorização, no campo da arte e da poesia, do novo. Paz assinala
o início desse procedimento, chamado “tradição da ruptura”,
no período do Romantismo. De fato, o poeta romântico parece
espelhar-se na imagem de um Prometeu que rouba o fogo do
saber e da arte, rompendo com toda uma estética baseada no
gosto clássico: “Fue la primera y más osada de las revoluciones
poéticas. La primera que explora los dominios subterránea del
sueño, el pensamiento inconsciente y el erotismo; la primera,
asimismo, que hace de la nostalgia del pasado una estética y
una política” (PAZ, 1999, v. 1, p. 368).
De uma maneira resumida pode-se afirmar que, para
Octavio Paz, o poeta moderno será levado a esgrimir-se com
a espinha dorsal da modernidade: o tempo linear, homogêneo e
vazio. Porém, contraditoriamente, acaba por confirmá-lo porque
cada poética ganha, a seu tempo, as marcas do efêmero e do
contingente:
A modernidade é uma tradição polêmica e que desaloja a
tradição imperante, qualquer que seja esta; porém desaloja-a
para, um instante após, ceder lugar a outra tradição, que por
sua vez, é outra manifestação momentânea da atualidade.
A modernidade nunca é ela mesma: é sempre outra. (PAZ,
[19--], p. 18)
Em outro aspecto, quando o poeta rompe com a ordem
presente, ele retoma elementos do antigo, remodulando-os
como novidade. Assim, ao mesmo tempo em que se insere na
Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 199
199
6/11/2007 14:26:39
Gragoatá
Olga Valeska
temporalidade evolutiva linear, ele rompe com esta, forçando a
convivência paradoxal do tempo linear com um tipo de circularidade temporal. Sobre essa questão, Maria Esther Maciel (1999)
em “Vôo Transverso” afirma: “[...] recusa paradoxal das idéias
modernas de futuro e de progresso, visível na controvertida tese
de Valéry segundo a qual o poeta moderno “entra no futuro em
marcha ré.” (p. 56)
Ressalte-se que o artista moderno, mesmo em seu radicalismo vanguardista, ao tentar romper com uma estética, era
somente para buscar fixar outra, considerada melhor que a anterior. Dessa forma, pode-se dizer que as propostas estéticas na
modernidade mantinham, pelo menos nesse aspecto, uma visão
de mundo essencialista e evolucionista que, apesar de não deixar
cristalizar nenhuma convenção, não deixava de reconhecê-las
em seus antagonismos. Ora, uma oposição polarizada, muitas
vezes, não representa ausência de valor estético, mas seu recrudescimento. E a estética da ruptura é, a meu ver, uma confirmação contraditória disso: um artista só pode romper com aquilo
que possui, para ele, um desenho claro. Por outro lado, ele só
pode defender a superação de uma estética se acredita numa
linearidade evolucionista, se acredita na superação do presente
pelo futuro. Assim, pode-se afirmar que a tradição da ruptura
relativiza os valores estéticos, não por uma descrença nesses
valores, mas pela repetição exaustiva do gesto de romper com
eles. Esse gesto contraditório acaba revelando, não uma ausência
de valor, mas sua relatividade móvel e sua pluralidade.
Para Octavio Paz, as constantes rupturas no período das
vanguardas teria levado à experiência de um tempo fragmentado
e espacializado que caracteriza a atualidade: “No fim da modernidade, o ocaso do futuro, manifesta-se na arte e na poesia como
uma aceleração que dissolve tanto a noção de futuro como a de
mudança” (PAZ, [19--], p.198). Tal disposição força a convivência
de várias temporalidades que acabam por confundir-se com
um presente fixo e móvel a um só tempo: “A poesia que começa
agora, sem começar, busca a interseção dos tempos, o ponto de
convergência. Afirma que, entre o passado confuso e o futuro
desabitado, a poesia é o presente” (p. 204).
Assim, a ruptura ritualizada pelas vanguardas passa a
constituir-se como uma tradição: o gesto de negar passa a ser
mimetizado pelas mãos de todos os artistas. E o fazer poético
passa a vivenciar o impasse de um Prometeu que, livre da cadeia
que o prendia no monte Cáucaso, descobre-se aprisionado nos
labirintos de uma liberdade quase ilimitada. E essa liberdade
lega à posteridade o que se pode chamar de certeza da incerteza
estética: a mescla, tão atual, entre arte e artifício. Dessa forma,
acredito que um dado importante para pensar o fazer artístico
(e poético), na atualidade, não seria tanto, como apontam muitos
200
Gragoata 22.indb 200
Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:39
El sueño de la razón...
autores, a relativização dos valores estéticos. Tal relativização
também marcava a visão moderna de arte. O que diferencia, de
maneira mais nítida, a nossa época e o período chamado “moderno” seria a descrença na linearidade evolutiva que tornaria
impossível um retorno à estética da ruptura.
A partir dessas reflexões, pode-se observar que a atual crise
da razão também afeta profundamente o campo da poesia. Ora,
a objetividade cientificista que fundamenta a técnica criticada
por Octavio Paz é avessa, por princípio, à ambigüidade poética.
O status de verdade do discurso científico frente aos demais discursos advém dos resultados práticos e econômicos obtidos pelo
desenvolvimento tecnológico e da valorização do conhecimento
cumulativo, objetivo e universal. Nesse contexto, a comprovação
de uma verdade se dá pela possibilidade de um experimento
ser repetido por toda a comunidade científica, obtendo resultados iguais. Isso não quer dizer que as metáforas e as imagens
não tenham sido usadas nos diversos campos da ciência, seja
como forma de expressão ou como forma de construção de
conhecimento. Vários são os exemplos da presença de imagens
envolvendo a criatividade humana e as grandes descobertas
científicas. De acordo com esse ponto de vista, Octavio Paz também pensa o conhecimento de um modo geral como algo ligado
à experiência da forma: baseado no lingüista Whorf, ele parte
da premissa de que “a referência é a parte menor do sentido, e
o poder configurativo a maior” (PAZ, 1991, p. 42). Porém, se as
imagens são usadas, no campo da ciência, com um determinado fim, para auxiliar a compreensão ou mesmo para produzir
conhecimento, na poesia as imagens são a sua matéria mesma,
sua força e sua vitalidade, o que não impede a geração de um
tipo de saber que surgiria de um tipo de “lógica concreta”, uma
outra lógica diferente da racionalista. Como afirma Paz: “El eje
de esta lógica es la relación entre lo sensible y lo inteligible, lo
particular y lo universal, lo concreto y lo abstracto [...]. Es una
lógica concreta porque para ella lo sensible es significativo [...]”
(PAZ, 1996, v. 10, p. 530)
Como já foi observado, um saber como o mencionado
acima não daria ao mundo um sentido unívoco, como desejaria
a ciência clássica: a imagem poética, que se estrutura a partir
dessa “lógica concreta”, faz convergir no corpo da linguagem
uma possibilidade infinita de gerar sentidos: “Todas ellas [todos
los tipos de imágenes] tienen en común el preservar la pluralidad de significados de contrarios o dispares, a los que abarca o
reconcilia sin suprimirlos” (PAZ, 1998, p. 98).
Ressalta-se que o conceito de “imagem poética”, definida
pelo poeta como: “toda forma verbal, frase o conjunto de frases,
que el poeta dice y que unidas componen un poema” (PAZ,
1998, p. 98), inclui os sons, as metáforas, os ritmos e as formas,
Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 201
201
6/11/2007 14:26:39
Gragoatá
Olga Valeska
assim como representa uma interação entre palavra, homem e
mundo. Essa perspectiva possibilita vislumbrar uma visão de
mundo em que a linguagem que a veicula não seria pensada
em seu caráter referencial, mas em sua dimensão analógica: um
conjunto de relações:
La poesía concibe al lenguaje como un universo animado,
recorrido por una doble corriente de atracción y repulsión. [...]
Cada poema, cualquiera que sea su tema, su forma y las ideas
que lo informan, es ante todo un pequeño cosmos animado.
El poema refleja la solidaridad de las “diez mil cosas que componen el universo. (PAZ,1999, v. 1, p. 592)
Octavio Paz faz uma
distinção entre linguagem verbal (da poesia
enquanto gênero, por
exemplo), e linguagem
não verbal (das artes
plásticas, da música, da
dança, etc). Porém, para
o poeta mexicano, a poesia também se articula
através da linguagem
não verbal, na medida
em que participa da dimensão sensível dessas
outras artes, através do
ritmo, da forma, etc.
6
202
Gragoata 22.indb 202
Ora, para o poeta mexicano, o conhecimento humano é
plasmado a partir da matéria da linguagem6. Existe, assim uma
imanência recíproca entre a linguagem e a visão de mundo que
podemos ter: a linguagem que usamos é fruto, meio, limite e a
matéria do nosso horizonte de conhecimento. A apreensão que
temos do mundo é algo intrínseco à linguagem, indissociável
dela. Mesmo o homem é pensado, nesse contexto, como uma
metáfora: “El hombre es hombre gracias al lenguaje, gracias a
la metáfora original que lo hizo ser otro y lo separó del mundo
natural. El hombre es un ser que se ha creado a sí mismo al
crear un lenguaje. Por la palabra, el hombre es una metáfora de
si mismo.” (PAZ, 1998, p. 34).
Nesse aspecto, a linguagem poética em sua dimensão analógica é também o próprio mundo e um mundo em si mesmo.
Além disso, a partir do jogo de similitudes e assimilações metafóricas, a poesia também atua na alquimia das coisas, participa
do “ser” das coisas, porque compreender é também ser. Assim,
a “cosmologia poética”, observada em Octavio Paz, segue uma
“outra lógica” além da razão, porém, sem deixar de participar
desta. Ela estabelece, na linguagem, uma ligação entre o abstrato do sentido e sua dimensão sensível: corpo e não-corpo se
enlaçam.
Coerente com esse ponto de vista, ao tentar responder à
pergunta: “es posible edificar algo sobre las perpetuas arenas
movedizas del presente?” (PAZ, 1999, v. 1, p. 592), Octavio Paz
dá à poesia um papel central: “La poesía es el antídoto de la
técnica y del mercado. A eso se reduce lo que podría ser, en
nuestro tiempo y en el que llega, la función de la poesía. ¿Nada
más? Nada menos.” (PAZ, 1999, v. 1, p. 592).
“La analogía es el nexo” mas é também jogo, dança de signos que nos conta uma história de mundo, porém uma história
em que não existe sentido fixo: os nexos são variáveis e efêmeros.
A ironia está sempre no centro da analogia e marca a potencialidade infinita da rotação dos signos: “Poema: ideograma de un
mundo que busca su sentido, su orientación, no un punto fijo
sino en la rotación de los puntos y en la movilidad de los signos”
(PAZ, 1999, v. 1, p. 301).
Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:39
El sueño de la razón...
A partir dessas observações, fica claro que o conceito de
“poesia”, para o poeta mexicano, não se reduz somente ao campo
da escrita: é uma experiência vital, corpórea, e também uma
“outra lógica”, uma “outra voz” que transcende qualquer definição de gênero literário. A poética de Octavio Paz não pode ser,
assim, desvinculada de uma crítica da própria razão utilitária,
objetivista e desencarnada:
La imagen no explica: invita a recrear-la y literalmente, a revivirla.[...] El universo deja de ser un vasto almacén de cosas
heterogéneas. Astros, zapatos, lágrimas, locomotoras, sauces,
mujeres, diccionarios, todo se comunica y se transforma sin
cesar, una misma sangre corre por todas las formas. (PAZ,
1999, v. 1, p. 113)
Ressalte-se que Octavio Paz, quando pensa a função da
poesia no mundo sem imagem, não nos propõe, como se poderia
pensar em um primeiro momento, uma nova utopia política ou
uma nova República platônica, dessa vez povoada por poetas,
mas afirma uma lógica poética, num sentido amplo da palavra,
como forma de saber no mundo: um saber alicerçado, não num
conhecimento puramente abstrato, mas também no corpo (da
linguagem, do homem e do mundo): uma sagesse que se refere
a uma compreensão que vai além de uma reflexão racional,
desencarnada: como já foi observado, corpo e não-corpo convergem. Como afirma Gonzalez Javier (1990), em El cuerpo y la letra:
“En el cuadro de la crisis y del retorno a lo sensible el arte [y la
poesía] deviene el modelo de la nueva epistemología. Es desde
esta perspectiva que deben considerarse las ideas filosóficas del
poeta mexicano” (p.18).
Importa observar que esse quadro que Octavio Paz chama de perda da imagem do mundo, também está vinculado à
proliferação do “eu” que se dá em vários níveis: em primeiro
lugar, se dá na cristalização da idéia de pessoa nos limites do
individualismo; em segundo lugar, na negação, no âmbito das
sociedades, do “outro” em benefício do “mesmo”; e, finalmente,
na rasura da lógica poética, metafórica, do seio da nossa compreensão de mundo, em favor de uma suposta razão universal.
Analisando o Don Quixote de Cervantes, Octavio Paz aponta
a opção da modernidade no sentido de negar o “outro” e essa
“outra lógica” representada pela loucura poética de Quixote: “Al
expulsar a don Quijote, paradigma del lenguaje como irrealidad,
se desterró a lo que llamamos imaginación, poesía, palabra sagrada, voz de otro mundo” (PAZ, 1999, v. 1, p. 312).
A oposição Don Quijote/Don Quijano, mais que uma crítica
aos romances de cavalaria, representa, para o poeta mexicano,
uma cisão no centro da própria linguagem (e na lógica que guia
a compreensão moderna de mundo): a palavra poética (louca,
imaginativa); e a palavra racional (prosaica, prática, realista,
Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 203
203
6/11/2007 14:26:40
Gragoatá
Olga Valeska
objetiva). Assim, juntamente com a morte de Quixote, ocorre um
alijamento de toda uma visão imaginativa, poética, de mundo:
ou ocorre uma marginalização da poesia por meio de um processo de auratização, o que a impediria de tocar, participar da
matéria do mundo; e/ou ocorre uma negação do tipo de “saber”
que ela veicula.
Nota-se que a otredad, no contexto paziano, assinala possibilidades de mudança que incidiriam em vários níveis da sociedade: na idéia de pessoa, para além de si mesma; uma proposta
ética de aceitação das diferenças culturais, sexuais e sociais; e,
principalmente, a aceitação da lógica poética como instrumento
gerador de um “saber sobre o mundo” a partir de uma lógica
inclusiva: “isso é aquilo”; “isso e aquilo”:
La imaginación poética no es invención sino descubrimiento de
la presencia. Descubrir la imagen del mundo en lo que emerge
como fragmento y dispersión, percibir en lo uno lo otro, será
devolverle al lenguaje su virtud metafórica: darle presencia a
los otros. La poesía: búsqueda de los otros, descubrimiento de
la otredad. (PAZ, 1998, p. 261)
Assim, pode-se dizer que a otredad, em seu movimento
contraditório em direção ao outro, “ser outro sem deixar de ser
si mesmo”, representa uma resposta possível a uma demanda
tradutória, em um sentido amplo da palavra que, como vimos,
se encontra no centro das questões enfrentadas pela sociedade
contemporânea: a proliferação do “eu” isolado, a aliedad. Seguindo uma perspectiva analógica de mundo, a otredad abre
espaço para uma possibilidade de enlace entre as diferenças:
uma compreensão do “outro”: “[...] estoy solo y estoy contigo,
en un no sé dónde que es siempre aquí. Contigo y aquí:¿quién
eres tú, quién soy yo, en dónde estamos cuando estamos aquí?”
(PAZ, 1998, p. 266)
Em outro aspecto, esse conceito também pode ser pensado
como um procedimento metafórico que torna irrisória uma opção entre ser/não-ser; verdade/mentira; sujeito/objeto; realidade/
imaginação; etc. Essa irrisão não significa uma fusão, ou indistinção de termos, mas uma tensão que mantém as polaridades em
movimento num “ponto de crise”. As polaridades são intercambiáveis, mas não são redutíveis a uma unidade fixa. Um ponto
de crise, nesse contexto, constitui um lugar proliferante, onde se
torna possível a emissão de uma multiplicidade de sentidos: a
presença inclusiva de sentidos paradoxais advindos dos enlaces
metafóricos: “[...]a analogia opõe, não a unidade impossível mas a
mediação de uma metáfora. Analogia é o recurso da poesia para
enfrentar a alteridade.” (PAZ, [19--], p.100) Essa idéia atravessa
toda a obra paziana e pode ser exemplificada pela recorrência de
títulos que evocam tais tensões: “Convergencias y divergencias”;
“El arco y la lira”; “Corriente alterna”, etc.
204
Gragoata 22.indb 204
Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:40
El sueño de la razón...
Assim, para Octavio Paz, a imagem poética é também
otredad: um saber advindo de uma “lógica poética” imanizada
por um movimento em direção ao “outro”. Tal saber abarca e
incorpora, desse modo, o sentimento vertiginoso de uma tradução que é paixão e conhecimento, que é reflexão e entrega:
o “e” que enlaça as metáforas que desenham o mundo a partir
de um tempo escandido na intensidade viva do aqui/agora: na
experiência da agoridad. “Metáfora del cambio, el ahora disuelve
al pasado y al futuro y así se disuelve a si mismo. Disolución
del tiempo, no en una eternidad incomensurable sino en una
vivacidad igualmente sin medida.” (PAZ, 1999, v. 1, p. 316) Para
o poeta mexicano, o tempo é o fundamento da configuração de
uma imagem de mundo: “Todas las sociedades poseen lo que
comúnmente se llama una ‘imagen de mundo’.Esa imagen hunde
sus raíces en la estructura inconsciente de la sociedad y la nutre
una concepción particular del tiempo.[...]El tiempo es el depositario del sentido” (PAZ, 1999, v. 1, p. 301). E o que diria o tempo
da agoridad a um mundo cujo sentido se resolve em dispersão:
um mundo sem imagem?
Octavio Paz opõe a perda de imagem do mundo (e do
homem) à imagem poética. Esta última atrelada aos conceitos
de otredad, agoridad e corporeidad, possibilitaria uma reversão do
quadro de dispersão, constituindo uma outra lógica, nem nova
nem única, estabelecida na dinâmica da interexistência entre o
todo e as partes, e entre as partes mesmas:
el abrazo de los cuerpos y la metáfora poética. En el primero:
unión de la sensación y de la imagen, el fragmento aprehendido como cifra de la totalidad y la totalidad repartida en
las caricias que transforman a los cuerpos en un surtidor de
correspondencias instantáneas. En la segunda: fusión del
sonido y del sentido, nupcias de lo inteligible y lo sensible.
(PAZ, 1999, v. 1, p. 316)
Em síntese, o conceito paziano de “imagem poética” nos
permite pensar uma cosmologia poética, não como um substituto
dos grandes discursos que buscavam dar um sentido unificador
ao mundo. Mas como configuração de imagens múltiplas capazes de proporcionar outras possibilidades de compreensão das
contradições paradoxais da atualidade.
Assim, pode-se dizer que a imagem poética, fundamentada
no tempo do aqui/agora, nos diz sobre um salto epistemológico
para a superação do impasse do mundo sem imagem. A cosmologia poética desenha o mundo como forma em movimento, fluxo
em transformação, é um agora experimentado no deslimite de
um infinito de possibilidades. É nesse sentido que Paz observa
o lugar da poesia no contexto atual de crise da razão: a imagem
poética configura um espaço compartilhado por Don Quijote e
Don Quijano a partir do qual não (re)surgiria O Mundo ou O
Homem, mas uma outra lógica capaz de pensá-los.
Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 205
205
6/11/2007 14:26:40
Gragoatá
Olga Valeska
Abstract
This essay is a reflection on the place of poetry and
literature in the context of current epistemological
changes. From this point of view, the analysis
focuses on essays by Mexican poet Octavio Paz,
promoting a dialogue with discourses from several
knowledge areas.
Keywords: Octavio Paz; Poetry; Reason crisis;
Cosmology; Technology; Science; Nce.
Referências
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfredo Bosi.
São Paulo: Martins Fontes, 1999.
AUDOUZE, Jean; CARRIERE, Jean-Claude; CASSE, Michel. Conversas sobre o invisível. Trad. Marília Garcia. São Paulo: Martins
Fontes, 1991.
COOPER, David E. As filosofias do mundo. Trad. Dinah de Abreu
de Azevedo. São Paulo: Loyola, 2002.
GONZALEZ, Javier. El cuerpo y la letra: la cosmología poética de
Octavio Paz. México: FCE, 1990.
LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São
Paulo: Martins Fontes, 1999.
MACIEL, Maria Esther. As vertigens da lucidez: poesia e crítica
em Octavio Paz. São Paulo: Experimento, 1995.
______. Vôo transverso: poesia, modernidade e fim do século XX.
Rio de Janeiro: Sette Letras,1990.
NOVAIS, Adauto. A crise da razão. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999.
PAZ, Octavio. Convergências: ensaios sobre arte e literatura. Trad.
Moacir Werneck de Castro. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
______. Os filhos do barro. São Paulo: Nova Fronteira, [19--].
______. Obras completas. v. 1. México: Fondo de la Cultura Económica, 1999.
______. ______. v. 10. México: Fondo de la Cultura Económica,
1996.
206
Gragoata 22.indb 206
Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:40
O conto policial de Jorge Luis Borges:
cânone e marginalidade
Andréa Lúcia Padrão Ângelo
Recebido 9, jan. 2007/Aprovado 9, abr. 2007
Resumo
A obra de Jorge Luis Borges teve influência decisiva na definição do perfil do século XX, especialmente nas questões referentes ao mundo das
letras. Escritor consagrado, demonstra inegável
preferência pela literatura marginal, pelo texto
fora das tradições canônicas. O presente trabalho
enfoca dois contos de Borges em um gênero ainda
considerado “menor”, o policial. Mostra, também,
como essas narrativas aparecem vinculadas a preocupações que ultrapassam o gênero, abrangendo
elementos comuns ao universo borgiano: filosóficos, teológicos, místicos, míticos, metafísicos e
históricos.
Palavras-chave: Borges; Cânone; Transgressão;
Policial.
Gragoatá
Gragoata 22.indb 207
Niterói, n. 22, p. 207-220, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:40
Gragoatá
O marginal pode ser
entendido como o comentário sobre textos
existentes, o texto excêntrico, fora das tradições
consagradas (BALDERSTON, 1984, p. 11).
2
Na década de 20, o
termo ‘orillas’ referiase a bairros afastados e
pobres, limítrofes com a
cidade (SARLO, 2003, p.
48).
1
208
Gragoata 22.indb 208
Andréa Lúcia Padrão Ângelo
Se observarmos o perfil do nosso tempo, é possível verificar
que a obra de Jorge Luis Borges tem nele influência decisiva, principalmente no que diz respeito às questões de literatura. Dentre
os escritores da América Latina é certamente um dos mais lidos,
discutidos e traduzidos no mundo todo; sua obra vem marcar
um novo lugar para a recepção da literatura que aqui se produz,
inclusive para a nossa maneira de falar. Em conseqüência do diálogo que provocou com autores europeus ou americanos, levou
as especificidades da cultura latino-americana a diversas partes
do mundo. Apesar de escritor consagrado e de fazer chegar o
nome da Argentina e da sua Buenos Aires às diversas línguas
para as quais sua obra é traduzida, peculiarmente demonstra
uma notória preferência pela literatura marginal.
Borges ultraísta afirma que “o marginal é o mais belo”,
já em 1921. Essa estranha preferência de Borges pela literatura
marginal1 inicia na juventude não só nos seus próprios textos,
mas também se acha presente na seleção de seus autores preferidos, como Stevenson, De Quincey, Chesterton. Para Balderston,
a excêntrica avaliação de Borges de que, por exemplo, Robert
Louis Stevenson é uma das figuras mais amoráveis da literatura inglesa constitui uma “traição” ao chamado corpo canônico
da língua inglesa. E ao analisar a identificação de Borges com
os citados autores, transformando-os em pontos centrais da
tradição de língua inglesa, declara que o escritor argentino cria
novos precursores, reescrevendo a tradição inglesa a partir de
Buenos Aires, a partir de sua perspectiva de “mero sudamericano” (BALDERSTON, 1984, p. 11). Pensamento semelhante é
compartilhado por Sarlo, ao afirmar que Borges delineia um
dos paradigmas da literatura argentina, ao construí-la no cruzamento da cultura européia com a “inflexión rioplatense del
castellano en el escenario de un país marginal” (SARLO, 2003,
p. 47). Assim, é possível observar, em parte de sua obra, a convivência de temas universais com a tradição dos compadritos e
dos orilleros, das milongas e dos duelos com punhais. As orillas,
“espacio imaginario que se contrapone, como um espejo infiel a la
ciudad moderna despojada de qualidades estéticas e metafísicas”
(SARLO, 2003, p. 48), constituem a periferia que Borges explora
com seus orilleros; constituem o lugar onde o campo e a cidade se
encontram e se desmancham, se destroem. Borges, dessa forma,
libera “las orillas”2 do estigma social que as identificava, e faz
delas um espaço literário, definindo ali um território original
que lhe permite não só dialogar em pé de igualdade com a literatura ocidental, mas também implantar sua própria diferença
em relação ao resto da literatura argentina. Ao fazer da margem
uma estética pode-se dizer que Borges reafirma a especificidade,
a argentinidade de sua literatura. Assim, a estética de margens, de
que fala a crítica argentina, refere-se àquele aspecto da literatura
de Borges em que os limites se confundem: “[...] ciudad estética
Niterói, n. 22, p. 207-220, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:41
O conto policial de Jorge Luis Borges: cânone e marginalidade
No segundo volume
dessa antologia estão
publicados doze contos
de autores de língua
inglesa: nove britânicos
e três norte-americanos.
Tal fato certamente confirma, no gênero, a superioridade atribuída
por Borges à literatura
anglo-saxônica.
3
sin centro, construida totalmente sobre la matriz de un margen”
(SARLO, 2003, p. 51). Apesar de serem margens, contêm um
manancial, capaz de dar origem, de gerar. E é a partir dessas
margens que Borges constrói sua literatura de fronteiras, uma
poética que muitas vezes se alimenta da diferença, por exemplo,
entre o heterogêneo, o “gênero menor” e a erudição universalista
dos seus contos e ensaios; uma poética que se alimenta da mescla
do marginal e do popular com o consagrado.
Um gênero considerado “menor” a que Borges se dedica
durante grande parte de sua vida literária é a narrativa policial,
que se faz presente na sua formação desde a infância e atravessa
sua maturidade literária como centro contínuo de interesse. Esse
interesse deve-se, em parte, à influência exercida sobre ele pela
literatura de língua inglesa, berço da narrativa policial. Impregnada com o tempo mágico, com o tema do duplo, com o sonho,
com o pesadelo ou com uma realidade que freqüentemente se
apresenta misteriosa, fantástica ou irreal, é principalmente na
Grã-Bretanha que se realiza uma aproximação do sobrenatural
com o gênero policial. Tal fato ocorre principalmente na obra de
Chesterton, mas também na de outros escritores como Stevenson,
autor de numerosas narrativas fantásticas como The strange case
of Dr. Jekyll and Mr. Hyde e New Arabian Nights, que nos revela
uma Londres fantástica, antecipatória das atmosferas policiais
típicas de Chesterton. O especial interesse que Borges sente pela
narrativa policial não se limita aos clássicos do gênero, que leu
avidamente (de Poe a Chesterton), mas estende-se a escritores
que considera de menor densidade literária, como Conan Doyle
e Agatha Christie. Sua Antologia do conto policial, compilada em
colaboração com Adolfo Bioy Casares, e publicada em dois volumes, em 1943 e 1951, com diversas reedições, nos dá testemunho
dessa variedade de interesse e leituras.3 Isabel Stratta (1999, p.
55) considera que o interesse demonstrado por Borges por esse
gênero literário se deve, em grande parte, a uma necessidade
de atacar “o que considerava as tendências caóticas do romance
contemporâneo”. Segundo a autora, esse foi um mecanismo freqüentemente utilizado pelo autor argentino: ressaltar os méritos
de um escritor ou de um gênero para, por contraste, evidenciar
as falhas de outros (ou, ao contrário, atacar um para ressaltar
o outro). Assim, ao elogiar a disciplina construtiva do policial,
evidencia o que chama de época de desordem da literatura: “el
relato policial no prescinde nunca de un principio, de una trama
y de un desenlace. Interjecciones y opiniones, incoherencias y
confidencias agotan la literatura de nuestro tiempo; el relato policial representa un orden y la obligación de inventar.” (BORGES,
1999a, p. 250).
Os contatos mais explícitos do Borges-escritor com o gênero
iniciam-se em meados dos anos 30, prolongando-se no começo
dos anos 50 (RIVERA, 1995, p. 133). São marcados por alguns
Niterói, n. 22, p. 207-220, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 209
209
6/11/2007 14:26:41
Gragoatá
Outros comentários
sobre Chesterton foram
feitos em 22 de julho
de 1936, também em
Sur, no ensaio “Modos
de G.K. Chesterton”. E,
finalmente, nos Anales
de Buenos Aires, n. 20-22,
out./dez. 1947, ao publicar uma “Nota sobre
Chesterton”.
5
Balderston, Daniel. El asesinato considerado como una de
las bellas artes. In: El
precursor velado: R.L.
Stevenson en la obra
de Borges. Tradução de
Eduardo Paz Leston.
Buenos Aires: Sudamericana, 1985. Disponível
em: <http://www.hum.
au.dk/romansk/borges/
bsol/db5.htm>. Acesso
em: 05 mar. 2005.
4
210
Gragoata 22.indb 210
Andréa Lúcia Padrão Ângelo
textos ficcionais e por uma grande quantidade de artigos, resenhas, ensaios e prólogos em que o escritor se dedica a comentar
narrativas, narradores e o próprio gênero. Dessa infinidade de
textos compostos por Borges de um modo oblíquo e descontínuo,
“pero sumamente coherentes” (STRATTA, 1999, p. 55), é possível
extrair, além de um código estético que norteia suas composições
literárias, uma teoria borgiana do conto policial.
Dentre um conjunto de publicações sobre o gênero, destacase o ensaio “Los laberintos policiales y Chesterton” (1999, p.
126-9), surgido em 1935, em Sur, por ocasião do lançamento do
quinto e último volume das aventuras do Padre Brown, de Chesterton.4 Nesse ensaio, que pode ser considerado um dos mais
importantes estudos de Borges sobre o policial, ele descreve a
forma ideal da narrativa policial, distingue o romance do conto
policial e propõe seis requisitos para o gênero:
1) “Un límite discrecional de seis personajes”. Assim, as
personagens devem ser poucas.
2) “Declaración de todos los términos del problema”. Como
um jogo, deve-se oferecer ao leitor todos os elementos
necessários à resolução do enigma.
3) “Avara economía en los medios”. Ou seja, os enigmas
devem ser simples.
4) “Primacía del cómo sobre el quién...”. Deve prevalecer a
originalidade do argumento; dessa forma, a trama importa mais que as personagens.
5) “El pudor de la muerte”. Supressão dos detalhes violentos
e desnecessários à trama.
6) “Necesidad y maravilla en la solución”. A resolução do
enigma deve surgir quase como uma epifania e maravilhar o leitor.
Balderston5 enfatiza a ausência de algumas convenções do
gênero no código proposto por Borges. Para o crítico norte-americano, esses princípios, que o escritor argentino estabelece para
orientar a narrativa policial, não devem ser encarados como leis
canônicas, mas como constantes que dão estrutura a um gênero
instável e sujeito a contínuas inovações. O próprio Borges afirma,
ao resenhar Excellent Intentions, de Richard Hull: “entiendo que
el género policial, como todos los géneros, vive de la continua y
delicada infracción de sus leyes” (BORGES, 1996, p. 359, v. IV).
Também no prólogo do livro Elogio de la sombra, Borges confessa o
que considera uma “astúcia” utilizada em seus relatos: “recordar
que las normas anteriores no son obligaciones y que el tiempo
se encargará de abolirlas” (BORGES, 1996, p. 353, v.II).
Dessa forma, fixando apenas os limites que não devem ser
ultrapassados sob pena de perder em rigor e interesse, o escritor
sente-se à vontade para inovar em seus próprios contos.
É importante ressaltar que, ao lado de autores como Chesterton, Stevenson e Ellery Queen, Poe é uma das mais constantes
Niterói, n. 22, p. 207-220, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:41
O conto policial de Jorge Luis Borges: cânone e marginalidade
referências na construção da teoria do policial para Borges. De
acordo com o autor de Ficciones, a narrativa policial é tributária
desse escritor, à medida que ele cria um gênero fantástico da
inteligência, fazendo com que a literatura seja considerada “una
operación de la mente, no del espíritu”. Assim, “hablar del relato
policial es hablar de Edgar Allan Poe, que inventó el género”,
sendo a literatura moderna “inconcebible sin Poe” (BORGES,
1997, p. 83-7).
Numa conferência sobre o conto policial, proferida em
1978, na Universidade de Belgrano, Borges tem a oportunidade
de afirmar que:
Poe no quería que el género policial fuera un género realista,
quería que fuera un género intelectual, un género fantástico si
ustedes quieren, pero un género fantástico de la inteligencia,
no de la imaginación solamente, de ambas cosas desde luego,
pero sobre todo de la inteligencia. (BORGES, 1997, p. 94)
Assim, Borges mostra-se abertamente favorável ao conto
policial racional, na sua vertente inglesa, criada pelo americano Poe e seu detetive Dupin.6 Por outro lado, rejeita a vertente
americana da chamada série “noire” de Dashiell Hammett e
Raymond Chandler. Na conferência sobre o conto policial, já
referida anteriormente, Borges constata que o gênero policial
apresenta-se nos Estados Unidos de forma realista, enfocando
violência, inclusive de natureza sexual. E destaca o desaparecimento da história policial clássica, com suas características
intelectuais, excetuando apenas os autores ingleses que ainda
escrevem romances de enredo sóbrio, sem excessivo derramamento de sangue (BORGES, 1997, p. 103-4).
Na sua produção ficcional Borges imprimiu nova dimensão
ao conto policial contemporâneo, introduzindo nele questões
filosóficas e metafísicas e temas recorrentes na estética borgiana.
O início da cronologia policial de Borges data de 1936, com a
publicação de “El acercamiento a Almotásim”, surgido primeiro
como ensaio, em Historia de la eternidad, e depois como conto,
em Ficciones; consiste no esboço bibliográfico de um livro fictício, caracterizado pelo que o autor, ironicamente, chama de “la
primera novela policial escrita por un nativo de Bombay City”
(RIVERA, 1995, p.133). Aqui Borges emprega esse procedimento,
tão freqüente em seus ensaios, o de simular que um livro já existe
e fazer sobre ele um resumo ou comentário. Em 1941, no Prólogo
a “El jardín de senderos que se bifurcan”, Borges afirma:
De forma curiosa
se pode observar que
o conto policial de estilo clássico, ou europeu,
admirado por Borges,
paradoxalmente nasceu
na América, com Poe.
6
Desvarío laborioso y empobrecedor el de componer vastos
libros; el de explayar en quinientas páginas una idea cuya
perfecta exposición oral cabe en pocos minutos. Mejor procedimiento es simular que esos libros ya existen y ofrecer un
resumen, un comentario. (BORGES, 1996, p. 429)
Niterói, n. 22, p. 207-220, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 211
211
6/11/2007 14:26:41
Gragoatá
Andréa Lúcia Padrão Ângelo
Para Alazraki, esse comportamento, embora atenda ao
ideal de economia verbal que confere ao seu estilo solidez e
transparência, constitui, também, um dos meios dos quais Borges se utiliza para misturar ou confundir os limites do real e do
irreal (ALAZRAKI, 1983, p. 75).
Em “El acercamiento a Almotásim” Borges leva o leitor
a pressupor a existência de um romance – “la primera novela
policial escrita por un nativo de Bombay” – que é resumida
e comentada. Ao final, o resumo ou o comentário acaba por
impor-nos a realidade do livro imaginado. Trata da história de
um estudante de direito de Bombaim, que dedica sua vida à
busca do homem de quem procede a claridade que percebera
num homem vil. Assim, inicia uma peregrinação que abrange
a extensa geografia do Industão. Observa-se, também, que
todos os homens dos quais se aproxima e interroga têm uma
parcela de Almotásim, origem dessa claridade almejada, e que
essa parcela é maior nas pessoas das quais mais se aproxima.
No desfecho do conto, o estudante chega a uma galeria e a
incrível voz de Almotásim convida-o a entrar. No final de sua
nota sobre a narrativa, Borges adiciona uma outra nota, que
contém o resumo, agora, de um poema: Mantiq al-Tayr (Colóquio
dos pássaros) de Muhammad ibn Ibrahim, místico persa, mais
conhecido como Attar. Diz o poema que no centro da China os
pássaros encontram uma pluma do Simurg (que significa trinta
pássaros), seu rei e resolvem buscá-lo. Depois de inúmeras aventuras, somente trinta pássaros conseguem chegar à montanha do
Simurg. “Lo contemplan al fin: perciben que ellos son el Simurg
y que el Simurg es cada uno de ellos y todos” (BORGES, 1996, p.
463). Para Alazraki, este poema, que existe e não é uma criação
de Borges, explica o final do romance simulado: a identidade
do perseguido e do perseguidor. O estudante de Bombaim é
Almotásim e Almotásim é o estudante e todos os homens. Da
mesma forma, o Simurg é Deus e todos os homens são o Simurg.
Ao apresentar as aventuras de um romance policial segundo o
modelo de uma alegoria que expressa a crença panteísta do Sufismo, Borges evidencia o valor estético das doutrinas religiosas;
aqui, as possibilidades literárias do panteísmo. Assim, quando
mistura um resumo do Mantiq al Tayr com um resumo de uma
obra fictícia, Borges faz com que o fictício (o romance policial)
se encha de realidade e o real (o poema) adquira vislumbres de
irrealidade. Também a própria estrutura do conto expressa a
idéia panteísta de que tudo é todos, observável na inclusão de
uma nota dentro de outra nota, de um resumo dentro de outro
e a redução de ambos a versões diferentes de uma mesma doutrina (ALAZRAKI, 1983, p. 77-8).
Outro conto do gênero policial, “La muerte y la brújula”, é,
certamente, um dos mais celebrados do escritor argentino. Foi
publicado em Sur, em maio de 1942, e posteriormente incluído
212
Gragoata 22.indb 212
Niterói, n. 22, p. 207-220, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:42
O conto policial de Jorge Luis Borges: cânone e marginalidade
em Ficciones (1944), livro que recebeu o Prêmio Internacional de
Literatura, em 1961. Ler “La muerte y la brújula” significa penetrar simultaneamente em muitos mundos borgianos: do relato
policial, da erudição livresca, das conjeturas, dos paradoxos, da
ironia, de uma metafísica notável, da refutação do racionalismo.
Esse conto tem como tema central a briga de sangue entre o detetive racional Erik Lönnrot e o chefe de uma quadrilha, o gângster
Red Scharlach el Dândi, numa Buenos Aires visionária que tão
freqüentemente é palco dos textos de Borges. Inimigos mortais,
como indica a cor vermelha que partilham nos nomes, Lönnrot
e Red Scharlach são duplos óbvios. “La muerte y la brújula” gira
em torno de uma série de crimes e inicia com um assassinato
cometido no Hôtel du Nord, na noite de 3 de dezembro, no Norte
da cidade. Encarregados de investigar o crime, um comissário
de polícia e o detetive Erik Lönnrot chegam ao local na manhã
do dia 4 e são informados de que a vítima é o rabino Marcel
Yarmolinsky, representante de Podólsk no Terceiro Congresso
Talmúdico. Junto a seu corpo, aberto a faca, uma frase inconclusa: “La primera letra del Nombre ha sido articulada” (BORGES,
1996, p. 500 v.I). Lönnrot, um detetive racional como Dupin de
Poe, busca explicações rabínicas para o crime, baseando-se nos
livros que o morto carrega consigo: uma monografia sobre o
Tetragrámaton, o livro dos Nomes de Deus, uma Vindicación de
la cabala, um Examen de la filosofía de Robert Flood, uma tradução
literal do Sepher Yezirah, uma Biografía del Baal Shem, uma Historia
de la secta de los Hasidim, uma monografia sobre a nomenclatura
divina do Pentateuco. Como uma característica da obra de Borges,
o conto faz referências a autores e títulos pouco acessíveis ao
leitor comum. Poder-se-ia acusar o autor de excesso de cultismo, se essas referências fossem meras citações. A alusão a essas
obras esotéricas, entretanto, justifica-se plenamente, uma vez
que constitui parte do argumento do conto e a suposta causa dos
assassinatos, bem como a ordem em que eles ocorrem, ligam-se
diretamente aos princípios esotéricos emanados dos textos.
Um segundo crime é cometido em um subúrbio a Oeste
da cidade, na noite de 3 de janeiro e forma a segunda letra do
nome, conforme algumas palavras garatujadas junto ao cadáver:
“La segunda letra del Nombre ha sido articulada” (BORGES,
1996, p. 501, v.I).
No Leste da cidade, no dia 3 de fevereiro, ocorre um suposto terceiro assassinato, mas não se descobre cadáver algum.
Somente uma mancha de sangue e a previsível frase rabiscada:
“La última de las letras del Nombre ha sido articulada.” (BORGES, 1996, p. 502 v. I), o que vai se configurando, para Lönnrot,
serem esses assassinatos sacrifícios místicos de uma seita judaica,
os Hasidim.
A primeiro de março a polícia recebe uma carta avisando
que no próximo dia 3 não haveria um quarto crime porque a
Niterói, n. 22, p. 207-220, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 213
213
6/11/2007 14:26:42
Gragoatá
O nome sugere o
filósofo Baruch Spinoza
(1632-1677), de origem
judaico-holandesa.
8
De acordo com os estudiosos, a Cabala busca
uma aproximação do
homem a Deus, por intermédio do seu Nome
que, na mitologia judaica,
pode ser designado pela
palavra grega tetragrammaton. Do grego tetra,
quatro e gramma, letra, o
tetragrama é representado pelas letras YHVH
(às quais a tradição acrescentou os sinais vocálicos
e chamou de ‘Jeová’ ou
‘Senhor’ em algumas
traduções da Bíblia em
Português (NASCIMENTO, Lyslei de Souza. Vestígios da tradição judaica:
Borges e outros rabinos.
2001. Tese – Curso de Pós
Graduação em Letras,
Universidade Federal
de Minas Gerais, Belo
Horizonte).
9
Expressão lat i n a,
significando “de acordo com os métodos da
geomet r ia”, em u ma
referência explícita à
obra de Spinoza More
geométrico demonstrata
(FISHBURN; HUGHES
1990, p. 233).
7
214
Gragoata 22.indb 214
Andréa Lúcia Padrão Ângelo
localização dos três crimes anteriores, respectivamente no Norte,
Oeste e Leste da cidade, formam “los vértices perfectos de un
triángulo equilátero y místico”. Junto ao comunicado há um
mapa da cidade, no qual está desenhado, em tinta vermelha, um
triângulo com os três pontos cardeais. A carta é assinada por um
tal “Baruch Spinoza”,7 nome que incita e desafia a racionalidade
de Lönnrot.
Por outro lado, de acordo com o material recebido, o espaço
demarcado por um triângulo e as datas dos crimes (3 de dezembro, 3 de janeiro e 3 de fevereiro) obedeceria a uma ordem que
tem por base o número três. Assim, a possibilidade de novos
assassinatos estaria descartada para a polícia, mas não para
Lönnrot, detetive racional, sagaz e desconfiado. Com a ajuda de
uma bússola, de um compasso e da palavra “Tetragrámaton”,8
ele chega à dedução lógica de que a primazia do número três é
enganadora. Contra todas as aparências, haverá um quarto crime. Lönnrot baseia-se em algumas evidências (entre elas, o fato
de as letras no Tetragrámaton serem quatro e não três) e conclui
que a série de crimes não é tríplice, mas quádrupla. Conseqüentemente, a figura geométrica que indica no mapa a localização
dos crimes não deve ser um triângulo, mas um losango. Assim,
por meio de um procedimento more geometrico,9 e utilizando uma
bússola e um compasso, o detetive prevê exatamente o local ao
Sul da cidade onde ocorrerá o quarto crime e que define “el punto
que determina un rombo perfecto” (BORGES, 1996, p. 507, v. I):
a quinta abandonada de Triste-le-Roy. Para lá ele se dirige.
Ao percorrer a casa, Lönnrot constata que ela possui muitas
“inútiles simetrías”: escadas, terraços, salas, esculturas, espelhos. Dessa forma, a casa é a representação de um labirinto em
que tudo é duplo, como a imagem dos espelhos. Lá o inspetor
é feito prisioneiro de Red Scharlach, velho inimigo, e só então
compreende que ele próprio é a quarta vítima. Antes de matar o
inspetor, e para completar seu triunfo, Scharlach revela a razão
dos crimes e o labirinto criado para capturar Lönnrot. O último
deles, agora iminente, tem como vítima o próprio detetive. Compreendendo, por fim, que foi ludibriado e vai morrer, Lönnrot
ainda quer ter a última palavra:
– En su laberinto sobran tres líneas – dijo por fin –. Yo sé de
un laberinto griego que es una línea única, recta. En esa línea
se han perdido tantos filósofos que bien puede perderse un
mero detective. Scharlach, cuando en otro avatar usted me dé
caza, finja (o cometa) un crimen en A, luego un segundo crimen en B, a 8 kilómetros de A, luego un tercer crimen en C,
a 4 kilómetros de A y de B, a mitad de camino entre los dos.
Aguárdeme después en D, a 2 kilómetros de A y de C, de nuevo
a mitad de camino. Máteme en D, como ahora va a matarme
en Triste-le-Roy. (BORGES, 1996, p. 507, v. 1)
Niterói, n. 22, p. 207-220, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:42
O conto policial de Jorge Luis Borges: cânone e marginalidade
Famosos são os paradoxos de Zenão de
Eléia, cujo objetivo era
a refutação, por redução
ao absurdo, do pluralismo e do mobilismo,
procurando mostrar os
paradoxos envolvidos
na idéia de movimento.
O mais famoso desses
paradoxos é o de Aquiles e a tartaruga. (Paradoxo. In: JAPIASSU,
Hilton; MARCONDES,
Danilo. Dicionário básico de Filosofia. Rio de
Janeiro: Zahar, 1993,
p.189). Segundo o primeiro deles, Aquiles,
o homem mais veloz
da Ática, corre contra
a tartaruga, o animal
mais lento da criação.
Arbitrariamente, Zeno
estabelece que Aquiles
é dez vezes mais rápido
que a tartaruga e lhe dá
cem metros de vantagem na corrida. De acordo com essa proposição,
quando Aquiles corre os
cem metros, a tartaruga
avança a décima parte.
Quando Aquiles avança
os dez metros, a tartaruga avança um metro.
Aquiles se adianta um
metro e a tartaruga, um
centímetro... e, assim,
i n t e r m i n ave l m e n t e.
Na realidade, Aquiles
supera de imediato a
tartaruga. Porém, para
a razão, essa vitória é
impossível e a corrida
é infinita. Aquiles pode
correr para sempre e
nunca alcançar a tartaruga.
11
A imunidade do detetive, como regra do
gênero policial clássico,
ou de enigma, é enfatizada por Todorov, ao
descrever as “espécies”
de narrativa policial
(TODOROV, 1969, p.
99).
10
Descobrindo que Scharlach baseou seu labirinto em um
triângulo e em um quadrilátero, o inspetor lhe propõe outro novo
labirinto de uma linha só: o paradoxo de Zeno.10 Citar Zeno é a
solução do detetive, para vencer seu inimigo. Ao apresentar esse
outro labirinto – que Scharlach aceita – Lönnrot não está apenas
propondo mais um jogo intelectual: está também reescrevendo
seu destino. É de se supor que Lönnrot, conhecedor das teorias
de Zeno, pense que, na subdivisão infinita do espaço, Scharlach
nunca poderá alcançá-lo.
Segundo Barili, com “La muerte y la brújula” Borges, leitor
de policiais, se estabelece na tradição do gênero, desenvolvido
principalmente por britânicos e norte-americanos, e, justamente
por não ser produto direto dessa cultura, move-se com grande
liberdade para inovar, maneja com perícia o legado recebido e
altera suas convenções, em uma clara afirmação de sua identidade como escritor latino-americano (BARILI, 1999, p. 188). Pode-se
mesmo afirmar que Borges subverte o gênero e dilui suas fronteiras, recriando-o. Uma de suas muitas inovações refere-se às
personagens canônicas do gênero: detetive, criminoso, vítima.
Na narrativa policial clássica é o detetive quem, no final, esclarece o mistério, depois de desprezar as prosaicas e geralmente
falsas soluções do comissário de polícia. Em “La muerte y la
brújula”, em uma crucial transgressão, o detetive é assassinado
quando lhe é revelado o motivo “de la periódica serie de hechos
de sangre” (BORGES, 1996, p. 499 v. I), que não consegue impedir.
Assim, inverte-se o binômio criminoso/detetive de forma que o
detetive, perseguidor, se transforma na vítima, perseguida. E,
inversamente, o perseguido se converte no detetive perseguidor.
É o criminoso quem, conhecedor do modo de atuar do detetive,
se antecipa aos seus raciocínios e o captura em uma armadilha
fatal.11 Ao final, é ele quem fornece a verdadeira explicação dos
fatos, baseado no que acredita ser verdadeiro.
Parece que Borges, escritor, utiliza as palavras de Scharlach
para falar diretamente a seu leitor, explicando-lhe os artifícios de
sua escritura, desfamiliarizando-o de uma leitura convencional
e propondo-lhe infinitas possibilidades de leitura (BARILI, 1999,
p. 200).
Assim, ao mostrar ironicamente as convenções e limitações
do gênero, Borges, além de subvertê-lo e recriá-lo, obriga o leitor
a refletir sobre o que está lendo, tornando-se um colaborador,
um escritor do texto, a partir de suas experiências e leituras.
A narrativa ambienta-se numa metrópole à qual Borges
prefere não dar nome, nem situar geograficamente. No prólogo
a Artificios o escritor esclarece:
pese a los nombres alemanes o escandinavos, ocurre en
un Buenos Aires de sueños: la torcida Rue de Toulon es
el Paseo de Julio; Triste-le-Roy, el hotel donde Herbert
Niterói, n. 22, p. 207-220, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 215
215
6/11/2007 14:26:43
Gragoatá
Andréa Lúcia Padrão Ângelo
Ashe recibió, y tal vez no leyó, el tomo undécimo de una
enciclopedia ilusoria. (BORGES, 1996, p. 483, v. I)12
Também em um diálogo mantido com Alifano, Borges
esclarece que coloca, neste conto, muitas das suas recordações
de Buenos Aires e seus subúrbios.
La Quinta Triste-le-Roy es una versión exaltada y distorsionada
del espacioso hotel Las Delicias, de Adrogué, donde yo viví
parte de mi juventud. [...] El Hôtel du Nord es el Plaza Hotel. En
cuanto al estuario no es otro que el Río de la Plata. (BORGES
in ALIFANO, 1988, p. 106)
Note-se que o conto
não propõe apenas um
retrato de Buenos Aires,
ainda que alterando-lhe
as feições, mas o cenário
poderia ser estendido
pelo mundo afora, cita
Borges no prólogo de
Artificios: “Ya redactada
esa ficción, he pensado
en la conveniencia de
amplificar el tiempo y
el espacio que abarca:
la venganza podría ser
heredada; los plazos
pod r ía n comput a rse
por años, tal vez por
siglos; la primera letra
del Nombre podría articularse en Islandia; la
segunda, en Méjico; la
tercera, en el Indostaní” (BORGES, 1996, p.
483 v.I). Nesse sentido,
a cidade tornar-se-ia,
também, uma réplica
do mundo, em outras
dimensões.
13
Ao comentar o estilo literário de Borges,
ALAZRAKI (1983: 199)
enfatiza que ele consegue extrair das coisas
comuns sua poesia intrínseca, sem prejuízo
da prosa, pois “no se trata de la poesía de las palavras sino de las cosas”.
Aponta os traços líricos,
que, elucida, tratam-se
de “verdaderos puentes poéticos”, nunca de
desvios, e são parte integrante da trajetória da
narrativa; ocorrem, sobretudo, quando Borges
enfoca alguns temas,
como a tarde, a planície
e a cidade de Buenos
Aires.
12
216
Gragoata 22.indb 216
Borges consegue transmitir como que um sentimento de
nostalgia pela Buenos Aires de sua juventude, o que, na opinião
de alguns críticos, é um dos maiores méritos de “La muerte y
la brújula”. Alifano (1988, p. 106), por exemplo, afirma que “ese
cuento [...] se sostiene más por su atmósfera que por su trama,
aunque su trama es perfecta, inobjetable”. ��������������������
Assim, Borges transforma suas próprias vivências em material literário que expressa
seu sentir argentino e apesar de não enfocar temas tipicamente
argentinos, o conto encerra, como mostra o fragmento abaixo,
um sabor de sua cidade natal:
A izquierda y a derecha del automóvil, la ciudad se desintegraba; crecía el firmamento y ya importaban poco las casas y
mucho un horno de ladrillos o un álamo. Llegaron a su pobre
destino: un callejón final de tapias rosadas que parecían reflejar de algún modo la desaforada puesta de sol. (BORGES,
1996, p. 501, v. I).13
Pode-se dizer que essa Buenos Aires “de sueños” não é
simplesmente um cenário, em que as personagens vagueiam
com desenvoltura, mas uma circunstância, mesmo, dessas personagens. Mais do que o locus, a cidade é também personagem
da história.
É importante ressaltar que a teoria de que Lönnrot e Scharlach são a mesma pessoa apóia-se na noção panteísta de que um
homem é os outros, ou na idéia de que todos os homens são de
alguma maneira a mesma pessoa (o que significa a anulação
da identidade individual), constante preocupação filosófica de
Borges, presente em outros contos, como em “El acercamiento a
Almotásim”, já analisado. Outras narrativas de Borges abordam
o tema, como “La forma de la espada”:
Me abochornaba ese hombre con miedo, como si yo fuera el
cobarde, no Vincent Moon. Lo que hace un hombre es como
si lo hicieran todos los hombres. Por eso no es injusto que una
desobediencia en un jardín contamine al género humano; por
eso no es injusto que la crucifixión de un solo judío baste para
salvarlo. Acaso Schopenhauer tiene razón; yo soy los otros,
cualquier hombre es todos los hombres, Shakespeare es de
algún modo el miserable John Vincent Moon. (BORGES, 1996
p. 493, v.I)
Niterói, n. 22, p. 207-220, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:43
O conto policial de Jorge Luis Borges: cânone e marginalidade
O mesmo conceito é utilizado em ”Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”:
“Todos los hombres, en el vertiginoso instante del coito,
son el mismo hombre. Todos los hombres que repiten
una línea de Shakespeare, son William Shakespeare”
(BORGES, 1996, p. 438, v.I).
Também é recorrente nos contos de Borges a tese de que se
alguém participa de uma entidade qualquer, ele é essa entidade;
ou que uma circunstância similar, unindo várias pessoas, faz
dessas pessoas uma só. No poema “El truco”, de Fervor de Buenos
Aires, o conceito é enriquecido, ao aparecer perpetuado no fato de
que todos que realizam uma mesma ação básica e ritual perdem
a identidade individual e se tornam, de certa forma, imortais. A
idéia é a de que os jogadores do passado, mortos, voltam a viver
nos jogadores que, hoje, reproduzem as mesmas apostas; assim,
a repetição de um ato ritualizado suspende e apaga o tempo
histórico e confere eternidade aos que o praticam.14
Assim, neste artigo, procurei mostrar a opção por um gênero literário tradicionalmente considerado “marginal” feita por
um dos escritores mais representativos da literatura hispanoamericana. Ao analisar dois contos policiais de Jorge Luis Borges, espero ter conseguido demonstrar que o policial em Borges
aparece vinculado a preocupações que ultrapassam o gênero,
abrangendo desde questões literárias a metafísicas. Também é
possível confirmar nos seus contos policiais a presença de temas
que são comuns às suas narrativas, policiais ou não. Dessa forma,
verifica-se que a ficção policial que compõe a obra do escritor
argentino vai muito além do gênero que ele conseguiu, como foi
visto, subverter e até recriar, e merece ser lida como a expressão
de um pensamento literário universal. Na verdade, a contribuição de Jorge Luis Borges15 à ficção policial vai mais além: ao se
dedicar a um gênero considerado “menor” (hoje menos do que
ontem), que despertava pouca atenção da crítica do ponto de
vista da estrita literariedade, o escritor como que concorre para
sua legitimação, oportunizando estudos mais abrangentes do
texto policial, sob uma perspectiva menos preconceituosa.
Ver MONEGAL (1987,
p. 102) e SABATO (1976,
p. 72).
15
E outros escritores
que, segundo Vera Lúcia Follain de Figueirado, h istoricamente
não se identificam com
o universo da cultura
de massa, como Mario
Vargas Llosa, Gabriel
Garcia Márquez, Rubem
Fonseca (FIGUEIREDO,
1998, p. 20).
14
Niterói, n. 22, p. 207-220, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 217
217
6/11/2007 14:26:43
Gragoatá
Andréa Lúcia Padrão Ângelo
Abstract
The work of Jorge Luis Borges had a decisive
influence on the profile of the 20th century, especially concerning the literary world. An acclaimed
writer, he revealed an undeniable preference for
marginal literature, for text outside the canonic
traditions. The present work focuses on two tales
by Borges that belong to a genre still considered
“minor,” the detective story. Also, it shows how
these narratives appear tied to concerns that go
beyond the genre, encompassing some usual
elements of the Borgian universe such as philosophy, theology, mysticism, myth, metaphysics,
and history.
Keywords: Borges; Canon; Transgression; Detective story.
Referências
ALAZRAKI, Jaime. La prosa narrativa de Jorge Luis Borges. Madrid:
Gredos, 1983.
ALIFANO, Roberto. Conversaciones con Borges. Buenos Aires:
Torres Agüero, 1994.
ÂNGELO, Andréa Lúcia Padrão. Tradição e transgressão no conto policial de Jorge Luis Borges. 2006. 213f. Tese (Doutorado em
Literatura)–Centro de Comunicação e Expressão, Universidade
Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006.
BALDERSTON, Daniel. El precursor velado: R.L. Stevenson en la
obra de Borges. Tradução de Eduardo Paz Leston. Buenos Aires:
Sudamericana, 1985. Disponível em: <http://www.hum.au.dk/
romansk/borges/bsol/db5.htm>. Acesso em: 5 mar. 2005.
______. Tradição e traição: Borges e Stevenson. Folha de São Paulo,
São Paulo, 19 ago. 1984. Caderno Folhetim, p. 11.
BARILI, Amelia. Jorge Luis Borges y Alfonso Reyes: la cuestión de
identidad del escritor latinoamericano. México: Fondo de Cultura
Económica, 1999.
BORGES, Jorge Luis. Borges en Sur. 1931-1980. Buenos Aires:
Emecé, 1999a.
______. El acercamiento a Almotásim. In: ______. Obras completas. v. 1: historia de la eternidad. Barcelona: Emecé, 1996a.
______. El cuento policial. In: ______. Borges oral. Buenos Aires:
Emecê: Editorial de Belgrano, 1997.
______. El jardín de senderos que se bifurcan. In: ______. Obras
completas. v. 1: ficciones. Barcelona: Emecé, 1996b.
218
Gragoata 22.indb 218
Niterói, n. 22, p. 207-220, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:43
O conto policial de Jorge Luis Borges: cânone e marginalidade
______. Excellent intentions, de Richard Hull. In: ______. Obras
completas. v. 4: textos cautivos. Barcelona: Emecé, 1996c.
______. Ficciones. In: ______. Obras completas . Barcelona: Emecé,
1996d.
______. La muerte y la brújula. In: ______. Obras completas. v. 1:
ficciones. Barcelona: Emecé, 1996e.
______. La forma de la espada. In: ______. Obras completas. v. 1:
artificios. Barcelona: Emecé, 1996f.
______. Los laberintos policiales y Chesterton. In: _______.
Borges en sur 1931-1980. Buenos Aires: Emecé, 1999b.
______. Modos de G.K. Chesterton. In: ______. Borges en sur.
Buenos Aires: Emecé, 1999c.
______. Tema del traidor y del héroe. In: ______. Obras completas.
v. 1: ficciones. Barcelona: Emecé, 1996g.
______. The paradoxes of Mr. Pond, de G.K.Chesterton. In:
______. Obras completas. v. 4: textos cautivos. Barcelona: Emecé,
1996h.
______. Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. In: ______. Obras completas.
v. 1: ficciones. Barcelona: Emecé, 1996i.
______; CASARES, Adolfo Bioy. Que es el cuento policial? In:
LAFFORGUE, Jorge; RIVERA, Jorge. Asesinos de papel: ensayos
sobre narrativa policial. Buenos Aires: Colihue, 1995.
______. Los mejores cuentos policiales. 4. ed. Buenos Aires: Emecé,
1977.
BORGES, Jorge Luis; FERRARI, Osvaldo. Edgar Allan Poe. In:
______. Diálogo II. Buenos Aires: Sudamericana, 1998.
______. El cuento policial. In: ______. Diálogo I. Buenos Aires:
Editorial Sudamericana, 1998.
BORGES, Jorge Luis; SÁBATO, Ernesto; BARONE, Orlando. Diálogos: Borges e Sábato. 2. ed. Buenos Aires: Emecé, 1996.
FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. O assassino é o leitor. Matraga, Rio de Janeiro, v. 3, n. 4-5, p.20, jan./ago. 1988.
FISHBURN, E.; HUGHES, P. Un diccionario de Borges. Buenos
Aires: Torres Agüero, 1995.
JAPIASSU, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de
Filosofia. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1993.
MONEGAL, Emir R. Uma poética de leitura. Trad. Irlemar Chiampi. São Paulo: Perspectiva, 1987.
NASCIMENTO, Lyslei de Souza. Vestígios da tradição judaica:
Borges e outros rabinos. 2001. Tese (Doutorado em Letras)–
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2001.
Niterói, n. 22, p. 207-220, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 219
219
6/11/2007 14:26:44
Gragoatá
Andréa Lúcia Padrão Ângelo
RIVERA, Jorge B. Borges y lo policial. In: LAFFORGUE, Jorge;
RIVERA, Jorge. Asesinos de papel: ensayos sobre narrativa policial.
Buenos Aires: Colihue, 1995.
SÁBATO, Ernesto. Los relatos de Jorge Luis Borges. ���������
In: ALAZRAKI, Jaime (Ed.). Jorge Luis Borges. Madrid: Taurus, 1976.
SARLO, Beatriz. Borges, un escritor en las orillas. Buenos Aires:
Seix Barral, 2003.
______. La pasión y la excepción: Eva, Borges y el asesinato de
Aramburu. Buenos Aires: Siglo XXI, 2004.
STRATTA, Isabel. Borges, un heredero parcial. Fragmentos, Florianópolis, n.17, p. 55-62, jul./dez. 1999.
TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1969.
VÁZQUEZ, María Esther. Borges: imagines, memorias, diálogos.
Caracas: Monte Ávila, 1977.
220
Gragoata 22.indb 220
Niterói, n. 22, p. 207-220, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:44
O enteado, de Saer:
uma percepção poética da
Conquista Hispânica Americana
Danilo Luiz Carlos Micali
Recebido 9, jan. 2007/Aprovado 9, abr. 2007
Resumo
Em O enteado (2002), de Juan José Saer, um velho narrador conta a sua história. Quando jovem
grumete, presenciou o ataque e o massacre da
tripulação do barco em que viajava na região do
Rio da Prata. Como único sobrevivente, é praticamente adotado pelos mesmos índios, sem saber ao
certo a razão de ter sido poupado. Assim, esse livro
promove um debate sobre a Conquista Hispânica
da América, do ponto de vista particular de um
narrador que constrói poeticamente a sua visão
daquele passado, que não diz respeito a nenhum
fato histórico preciso. Mas, enquanto a historicidade desse texto transparece nas suas entrelinhas, a
sua imanente poesia define o seu aspecto de prosa
poética, senão de narrativa poética, traços que
apontam para um possível hibridismo literário
nesse romance.
Palavras-chave: Saer; O enteado; Canibalismo;
Identidade; Alteridade.
Gragoatá
Gragoata 22.indb 221
Niterói, n. 22, p. 221-234, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:44
Gragoatá
Danilo Luiz Carlos Mical
A literatura é considerada um fenômeno estético, mas também uma manifestação cultural e social, utilizada pelo homem
para expressar seus anseios e suas visões de mundo. Sendo a
cultura o sinal mais evidente da consciência de um povo sobre si
mesmo, sobre a sua identidade e o seu destino, a ficção literária
se constitui numa possibilidade de registro do movimento que
realiza o homem na sua historicidade, o que a tem transformado
em objeto de pesquisa na mão dos historiadores. No romance O
enteado (2002), de Juan José Saer, deparamo-nos com um velho
narrador disposto a contar a sua história, uma experiência que
lhe marcou a vida para sempre.
O narrador, quando jovem, viajava como membro da tripulação de um navio que costeava a bacia do rio da Prata. Repentinamente, o barco é atacado por índios que assassinam o capitão
e os demais tripulantes, com exceção desse narrador-grumete,
o único sobrevivente da chacina, o qual, logo em seguida, presencia o suculento banquete preparado com os corpos de seus
companheiros, pelos canibais da tribo Colastiné.
Passando a conviver com os índios, sem saber ao certo a
razão de ter sido poupado, esse narrador observa que a história
se repete a cada ano, uma vez que novas vítimas são mortas e
devoradas, e surgem novos espectadores. Mas a maneira de viver
daqueles índios revelava certas particularidades, pois, além de
antropófagos, faziam sexo em grupo (orgias), morriam muito
cedo, e a singular linguagem que praticavam possuía palavras
com muitos significados, às vezes totalmente opostos, que dificultavam a aprendizagem da língua, e, portanto, da própria
cultura. Assim se passam dez anos de uma convivência pacífica
do narrador em meio aos índios, quando então é resgatado e
regressa para o mundo civilizado da Europa.
A princípio, a narrativa lembra um romance de viagem
com marcas de relato etnográfico, mas depois se percebe um
viés histórico inserido sutilmente nas suas entrelinhas, onde o
autor tacitamente retoma o importante debate sobre a Conquista
Hispânica da América, dialogando assim com outras vozes autorais e outros vieses – antropológico e sociológico – sobre essa
questão, presentes em obras como A conquista da América (1999),
de Todorov, e Visão do Paraíso (1994), de Buarque de Holanda.
Conforme declarou Saer a respeito dos fatos históricos
que o inspiraram a construir o enredo de O enteado, diz ele terse baseado num dado histórico real, qual seja, o naufrágio da
expedição de Juan Díaz de Solís na região do Rio de la Plata no
ano de 1515. Solís e seus homens foram emboscados e mortos
por um grupo de índios, sendo o grumete o único sobrevivente
da matança. “Solís desembarcou com um pequeno grupo de
marinheiros e imediatamente foram atacados pelos índios que
os comeram crus na frente dos outros que estavam no barco e
222
Gragoata 22.indb 222
Niterói, n. 22, p. 221-233, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:44
O enteado, de Saer: uma percepção poética da Conquista Hispânica Americana
“Solís bajó com un
pequeño grupo de marineros e inmediatamente
fueron atacados por los
índios que se los comieron crudos frente a los
otros que estaban em el
barco y que miraban la
escena asombrados.”
2
“El grumete que los
índios habían dejado
vivo es um personaje misterioso del que
se sabe muy poco. Se
sabe simplemente que
se llamaba Francisco
del Puerto porque era
huérfano.”
1
que olhavam a cena assombrados” (SCHWARTZ, 2003, tradução
nossa).1
Francisco del Puerto (era o nome do grumete) convive com
os índios antropófagos durante dez anos, ao cabo dos quais é
resgatado, voltando para a civilização, mas não sem antes revelar
a existência e os hábitos gastronômicos daquela tribo, o que teria
desencadeado seu extermínio total nas mãos dos conquistadores.
Para o autor, o fato de Solís e os outros marinheiros terem sido
comidos não é algo tão enigmático ou surpreendente, posto que
a antropofagia era praticada pelos índios sul-americanos naquela
época. Na verdade, o que parece ter intrigado Saer, provavelmente a ponto de motivá-lo a escrever essa ficção, foi a “adoção” do
jovem grumete pelos índios Colastiné, conforme dá a entender
nessa entrevista (SCHWARTZ, 2003), quando de sua passagem
pelo Brasil: “O grumete que os índios haviam deixado vivo é
um personagem misterioso de que se sabe muito pouco. Sabese simplesmente que se chamava Francisco do Porto porque era
órfão” (tradução nossa).2
Segundo alguns pesquisadores – Albornoz (2003), e Pons
(1997) –, não se tem notícia de nenhum documento no qual o
grumete sobrevivente houvesse registrado suas vivências. Por
isso a novela de Saer parece escrita sobre um silêncio total, uma
vez que do grumete histórico (Francisco do Porto) não ficou
nenhum relato, nada escrito sobre sua experiência como cativo
e testemunha da antropofagia praticada pelos nativos. Mas há
indícios de que existiu realmente uma tribo indígena de nome
Colastiné na Argentina, ainda que dela só se conheça o nome. E,
dado curioso, vale mencionar que na província de Santa Fé há
dois povoados chamados Colastiné Norte e Colastiné Sul, e que
Saer viveu no primeiro deles durante uma parte de sua vida.
A falta de documentação e de alusões específicas dentro
da obra propicia ao autor liberdade para recriar e recontar uma
história que sempre se move sobre essa linha brumosa entre o
real e o fictício. De acordo com Pons (1997), o romance O enteado
aflora na indeterminação entre as referências históricas precisas
e o passado real e inequívoco, onde se debate a tensão entre o
histórico e o imaginário, tensão esta que, para Albornoz (2003),
será fundamental dentro do romance.
Por outro lado, não passa despercebida, no nível lingüístico e também no supralingüístico (ou diegético) desse romance,
uma importante discussão sobre a maneira de se representar
as coisas do mundo, uma vez que se tem não apenas um velho
marinheiro que nos conta a sua história, mas um narrador que
escreve de forma poética as suas memórias. Ao dar início à
narrativa, sessenta anos depois, esse narrador se depara com
indícios incertos e recordações duvidosas que afloram no seu
discurso sob a forma de aporias.
Niterói, n. 22, p. 221-233, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 223
223
6/11/2007 14:26:44
Gragoatá
Danilo Luiz Carlos Mical
Nesse sentido, dois aspectos do fazer literário transparecem
concomitantes no discurso do narrador de Saer, quais sejam, a
representação e a poeticidade. Poeticidade que talvez permita caracterizar esse velho marinheiro como um narrador-poeta, uma
vez que efetua uma representação poética da sua experiência de
mundo, numa linguagem narrativa praticamente lírica. É como
se o valor verbal e o valor rítmico dessa linguagem “poética”
pudessem substituir o conteúdo, a ação, a intriga, e todos os
elementos tradicionais da narrativa. Tal como diz Bakhtin, “[o]
discurso do sujeito falante no romance não é apenas transmitido
ou reproduzido, mas representado artisticamente e, à diferença do
drama, representado pelo próprio discurso (do autor)” (BAKHTIN,
2002, p. 135).
Conforme se nota pelo excerto seguinte, que reproduz o
parágrafo introdutório do romance, o estilo poético saereano
chama a atenção desde o início, por já apresentar um certo lirismo que se intensificará no decorrer da narrativa.
Dessas costas vazias me restou, sobretudo, a abundância
de céu. Mais de uma vez me senti diminuído sob esse
azul dilatado: na praia amarela, éramos como formigas
no centro de um deserto. E se, agora que sou um velho,
passo meus dias nas cidades, é porque nelas a vida é
horizontal, porque as cidades dissimulam o céu. Lá,
de noite, ao contrário, dormíamos, a céu aberto, quase
achatados pelas estrelas. Estavam como ao alcance da
mão e eram grandes, inumeráveis, sem muito negrume
entre uma e outra, quase faiscantes, como se o céu tivesse
sido a parede perfurada de um vulcão em atividade que
deixasse entrever, por seus orifícios, a incandescência
interna. (SAER, 2002, p. 11)
Logo se percebe que o enredo é dominado menos por
acontecimentos do que pelo fluxo de consciência do narrador, na
descrição intimista de suas experiências. É a partir desse fragmento que o narrador retrocede mais ainda no tempo diegético,
dando início ao seu relato autobiográfico.
Tal como nos lembra o significado do vocábulo “enteado”,
segundo o dicionário da nossa língua – “o filho de matrimônio
anterior com relação ao cônjuge atual de seu pai ou de sua mãe”
–, o título do romance sugere, à primeira vista, uma relação de
parentesco entre personagens da história. E, à medida que o
velho narrador compõe o seu relato, isto vem a se confirmar
no plano diegético, configurando-se uma incomum relação de
adoção, dos índios para com o grumete, que, embora aprisionado
nos limites da aldeia, desfruta de uma relativa liberdade, pois,
caminha, vê e observa tudo ao redor.
Desse modo, a oração que inicia o segundo parágrafo do
livro, e que revela a orfandade do protagonista, também já acena
com a possibilidade de adoção: “A orfandade me empurrou aos
224
Gragoata 22.indb 224
Niterói, n. 22, p. 221-233, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:45
O enteado, de Saer: uma percepção poética da Conquista Hispânica Americana
portos” (SAER, 2002, p. 11), diz o narrador. Assim não surpreende
o fato de os portos terem ocupado o lugar dos pais que nunca
teve, tendo sido criado nas docas – ambiente descrito por imagens e sensações que esse narrador, na época um moleque de
recados, guardou na memória todos aqueles anos e que recorda
depois de velho. Eis o resto do parágrafo:
O odor do mar e do cânhamo umedecido, as velas lentas e
rígidas que se afastam e se aproximam, as conversações de
velhos marinheiros, perfume múltiplo de especiarias e amontoamento de mercadorias, prostitutas, álcool e capitães, som
e movimento: tudo isso foi meu berço, minha casa, me deu
uma educação e me ajudou a crescer, ocupando o lugar, até
onde alcança minha memória, de um pai e uma mãe. (SAER,
2002, p. 11-12)
Pode-se observar no trecho acima um tom nobre na sinédoque “velas”, palavra empregada no lugar de “navios”, que
remete vagamente à poesia épica. A forma do significante ajuda a construir o ritmo do discurso narrativo, como se vê pelas
assonâncias (afastam/aproximam; especiarias/mercadorias),
também presentes no texto em espanhol. Ademais, a presença
de conjunções aditivas, assim como a cadência imposta pela pontuação, concorre para compor o ritmo desse trecho. Desse modo,
o relato do velho grumete forma, tanto na tradução quanto na
língua original, uma imagem em nossa mente, sem abrir mão
do ritmo, cuja cadência parece ter-se deslocado para palavras
contíguas – (“acunó/ayudó, padre/madre”)3.
Dos nove traços que caracterizam a narrativa poética, segundo Massaud Moisés, dois deles se fazem notar no discurso
do narrador de Saer, quais sejam:
3) a narrativa é um espetáculo rememorado, por entre névoas
de incerteza, ou sutilezas oníricas, como se transcorresse no
interior do “eu”: a narrativa desdobra-se na mente de quem a
vai tecendo, como se desfiasse o novelo da memória, se abandonasse ao devaneio ou pervagasse os confins do sonho; 4) a
vaguidade, ocasionada pela ambigüidade do relato, conduz
as reminiscências. (MOISÉS, 2003, p. 29)
[...] El olor del mar
y del cánãmo humedecido, las velas lentas y
rígidas que se alejan y se
aproximan, las conversaciones de viejos marineros, perfume múltiple
de especias y amontonamiento de mercaderías,
prostitutas, alcohol y
capitanes, sonido y movimiento: todo eso me
acunó, fue mi casa, me
dio una educación y me
ayudó a crecer, ocupando el lugar, hasta donde
llega mi memoria, de
un padre y una madre
(SAER, 2005, p. 9-10).
3
Por sua vez, Tzvetan Todorov, em As estruturas narrativas,
diferencia basicamente a estrutura da poesia e a da ficção,
quando diz que a narrativa ficcional se move numa linha horizontal, onde se vê o que “cada acontecimento provoca”, enquanto na poesia, quer-se saber o que “cada acontecimento é”.
Para esse autor, numa mesma obra sempre se encontram juntos
elementos da ficção e da poesia.“Sabe-se que a poesia se funda
essencialmente sobre a simetria, sobre a repetição (sobre uma
ordem espacial) enquanto a ficção é construída sobre relações
de causalidade (uma ordem lógica) e de sucessão (uma ordem
temporal)” (TODOROV, 1969, p. 183).
Niterói, n. 22, p. 221-233, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 225
225
6/11/2007 14:26:45
Gragoatá
Danilo Luiz Carlos Mical
Nesse sentido, se diversas passagens de O enteado parecem
conter alguma característica da narrativa poética, conforme
Moisés (2003), também possuem, ao mesmo tempo, algum traço estrutural da ficcionalidade narrativa, segundo Todorov; tal
como o longo trecho a seguir, onde destacamos as linhas nas
quais as imagens que transparecem nos dão a impressão de que
a ação ocorre a nossa frente (presentificação4):
O homem, como que atordoado, ficou olhando a mulher. Não parecia
enojado, nem humilhado, pelo que acabava de acontecer. Seu membro,
tão peremptório até a poucos momentos, desinchou de repente e desapareceu entre as pernas; seu olhar vidrado se perdeu entre as árvores,
mais com distração do que com indiferença. Era evidente que a
mulher que, como o norte a bússola, havia estado atraindo o
homem, já não ocupava nenhum lugar em seus pensamentos.
Também nos meus sua presença era incerta: aparecera, brusca
e obscena, diante de meus olhos, na transparência do dia e, depois de
desdobrar nela seus gestos inusuais, desaparecera desdenhosa, entre a
multidão, não menos incerta dois ou três minutos depois de sua
desaparição do que agora, sessenta anos depois, em que a mão
frágil de um velho, à luz de uma vela, se empenha em materializar,
com a ponta da pluma, as imagens que lhe manda, não se sabe como,
nem de onde, nem por que, autônoma, a memória. (SAER, 2002, p.
68, grifo nosso).
A noção de presentificação é aqui empregada
como “a impressão de
estar em presença de um
certo real”, de acordo
com Lefebve (1980, p.
42).
5
Da mesma forma, a
noção de materialização
aqui se refere à materialidade do significante,
enquanto figura, forma
e aparência, conforme
Lefebve (1980, p. 46).
4
226
Gragoata 22.indb 226
Segundo Lefebve (1980, p. 82) a intencionalidade literária
conduz à materialização5 e ao apelo de sentido do discurso narrativo, fazendo surgir uma relação de alteridade e solidariedade
entre a materialização e a presentificação que, por meio das
figuras e da conotação reflexiva, produz as imagens do texto.
Portanto, as imagens que o texto narrativo evoca em nossa mente
dar-se-iam a ver e a ler através de um processo onde concorrem
essas etapas, i.e., a intencionalidade literária, a materialização do
significante e a presentificação do discurso assim produzido.
Entretanto, a narração em primeira pessoa remete à poesia lírica, que possui um forte apelo emotivo, intensificando a
poeticidade textual de O enteado, e dando-lhe a aparência de um
romance autobiográfico, que registra, sobretudo, a intimidade da
experiência vivida pelo grumete – narrador autodiegético, segundo Reis e Lopes (1988, p. 118-121). E, neste sentido, a narrativa
se constitui de forma monofônica, pois é sempre o mundo visto
pela perspectiva desse narrador-poeta – alguém que reúne os
atributos que caracterizam a figura e o modus vivendi do sujeitolírico, conforme Todorov (1980, p. 102), quais sejam: existência
bem simples – o velho narrador pouco se alimenta (come apenas
pão, azeitonas e vinho), enquanto escreve o seu relato sobre a
experiência vivida sessenta anos atrás –, contemplação, reflexão,
e interesse pelo espetáculo do mundo, buscando nele a sua essência e o seu sentido. Logo, tudo ao redor do narrador enquanto
refém dos índios – espaço que abrange as casas e as árvores da
aldeia; o solo; a areia da praia e o leito do rio; e também o céu e
Niterói, n. 22, p. 221-233, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:45
O enteado, de Saer: uma percepção poética da Conquista Hispânica Americana
o sol; a lua e as estrelas –, todo esse entorno se torna simbólico
e marcado pela poesia. Mesmo após voltar a viver nas cidades,
o espaço que esse narrador percorre ainda possui uma textura
poética.
Em O enteado, o tempo parece ser conduzido, se alongando
ou se encurtando, segundo a vontade do narrador. Isto equivale
a dizer que três ou quatro dias transcorridos no mundo diegético
rendem cinqüenta, sessenta páginas de relato; dez anos passados
na história correspondem a umas poucas páginas da narrativa;
e, depois, cinqüenta ou sessenta anos em pouquíssimas páginas.
O tempo gasto pelo narrador para contar a sua história na forma
de uma autobiografia, compreende um tempo diegético onde
presente e passado se misturam, emergindo através dos fluxos
de consciência do narrador-protagonista. Embora o enredo não
faça menção a quaisquer datas é perceptível um contexto (“pano
de fundo”) histórico, qual seja, o tempo da Conquista Espanhola
na América Latina, em que ocorrem os fatos diegéticos narrados, i.e., a viagem rumo à Bacia do Prata, o ataque e morte da
tripulação do barco, a captura do grumete pelos índios, além
das orgias antropofágicas e sexuais.
Há ainda, nessa narrativa, marcas do tempo cíclico da
natureza, como o devir das estações do ano e o amanhecer e
anoitecer na aldeia. Mas esses indícios da passagem do tempo
físico também emergem das lembranças fragmentadas do narrador-protagonista, fazendo pensar numa supremacia do tempo
interiorizado sobre o tempo cronológico. E talvez coubesse uma
pergunta: existe de fato uma história, ou seriam apenas fragmentos que surgem em meio à introspecção do personagem?
O intervalo de tempo transcorrido entre o passado da história e o presente da narração é outro fator que caracteriza esse
narrador autodiegético. De acordo com o Dicionário de teoria da
narrativa (1988), dessa distância temporal também decorre uma
distância em relação a princípios éticos, morais, afetivos e ideológicos, pois a pessoa que recorda os episódios já é diferente
daquela que os viveu. Eis porque O enteado não se caracteriza
como romance de viagem, uma vez que “[e]sse tipo de romance
ignora o devir, a evolução do homem”, de acordo com Bakhtin
(1992, p. 225), mas como romance biográfico, ou melhor, autobiográfico, em que “[g]raças ao vínculo que [o] liga a um tempo
histórico, a uma época, fica possível refletir a realidade de modo
mais realista” (BAKHTIN, 1992, p. 233).
No mundo ficcional construído pelo narrador de Saer,
bastante estranha era aquela linguagem praticada pelos índios,
na qual uma mesma palavra significava coisas bem diferentes,
o que explicaria por que eles emprestam ao grumete o apelido
de def-ghi – seqüência que constitui uma das suas unidades
lingüísticas mais significativas, pois se referia a uma multiplicidade de coisas, muitas delas praticamente opostas. Entre outros
Niterói, n. 22, p. 221-233, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 227
227
6/11/2007 14:26:45
Gragoatá
Danilo Luiz Carlos Mical
sentidos, usavam a expressão def-ghi para nomear o “homem
que se adiantava em uma expedição e retornava para relatar o
que tinha visto, ou ao que ia espiar o inimigo e dava todos os
detalhes de seus movimentos”. Era também usada para se referir
ao “reflexo das coisas na água” (espelho); e também chamavam
def-ghi “certos objetos que eram colocados em lugar de uma
pessoa ausente e que a representavam nas reuniões, a tal ponto
que às vezes lhes davam uma parte de alimento como se fossem
comê-la em lugar do homem representado”; def-ghi era ainda o
nome de um pássaro de “bico preto e plumagem amarela e verde que às vezes domesticavam e que os fazia rir porque repetia
algumas palavras que lhe ensinavam, como se tivesse falado”
(SAER, 2002, p. 161).
Então, observa-se que as palavras “relatar”, “espiar”, “reflexo”, “representavam” e “repetia” (referir, espiar, reflejo, representaban, repetía), indiciam, no plano da ficção, a representação da
realidade pela linguagem. Em vista disso, a estrutura narrativa
de O enteado demonstra conter uma série de procedimentos poéticos, que resultam numa linguagem que explora novas formas
de representar a presença das coisas no mundo, indiciando,
nos dois planos da narrativa, a representação da realidade pela
linguagem literária.
Desse modo, chega-se ao cerne do sentido da trama de
O enteado, do ponto de vista da relação expressa pelo binômio
realidade/linguagem, que coloca em causa, através do discurso
do narrador, a criação da realidade pela linguagem – a linguagem escrita do narrador, no plano lingüístico do romance; e a
linguagem oral praticada pelos índios no plano diegético (supralinguístico) – cuja potencialidade, ao dar voz ao imaginário e
nomes aos objetos, faz com que eles passem a existir ou não, tal
como registra o narrador de O enteado, na sua incessante busca
pelo “entendimento”:
Nesse idioma, não há nenhuma palavra equivalente a ser ou
estar. A mais próxima significa parecer. Como tampouco têm
artigos, se querem dizer que há uma árvore, ou que uma árvore
é uma árvore dizem parece árvore. Mas parece tem menos o sentido de similitude que o de desconfiança. É mais um vocábulo
negativo que positivo. Implica mais objeção que comparação.
Não é que remeta a uma imagem já conhecida mas que tende,
antes, a desgastar a percepção e a subtrair contundência. A
mesma palavra que designa a aparência, designa o exterior, a
mentira, os eclipses, o inimigo. [...] Nesse idioma, liso e rugoso
são nomeados com a mesma palavra. Também uma mesma
palavra, com variantes de pronúncia, nomeia o presente e o
ausente. Para os índios, tudo parece e nada é. E o parecer das
coisas se situa, sobretudo, no campo da inexistência. (SAER,
2002, p. 147)
Nessa representação poética prevalece quase sempre o sentido denotativo das palavras e frases, o que não quer dizer que
228
Gragoata 22.indb 228
Niterói, n. 22, p. 221-233, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:46
O enteado, de Saer: uma percepção poética da Conquista Hispânica Americana
inexista linguagem figurada nesse romance. Embora raramente
apareça a metáfora stricto sensu – o que seria, talvez, a condição
número um (ou sine qua non) para se reconhecer a poeticidade
desse texto –, é freqüente a ocorrência da sinédoque (metonímia),
como ocorre nas narrativas realistas, até porque um dos temas
discutidos no entrecho nada tem de romântico em si, ou seja, a
antropofagia.
Na passagem seguinte, além dos adjetivos e da conjunção
comparativa (como), notam-se semelhanças quanto à sonoridade
(aliteração/assonância/paronomásia), de tal forma que as palavras estão ali reunidas tendo em vista padrões de semelhança,
oposição, paralelismo, criados não apenas pelo som, mas pelo
significado, ritmo e conotações, talvez até mais perceptíveis na
tradução do que no texto original.
Atribuí isso, no início, a esse sol árido que subia, constante e
embrutecedor, no céu sem limites, mas, pouco a pouco, fui compreendendo que o ano que passava arrastava consigo, de um
negrume desconhecido, como o fim do dia a febre às entranhas
do moribundo, uma multidão de coisas semi-esquecidas, semienterradas, cuja persistência e a existência inclusive nos parecem
improváveis e que, quando reaparecem, nos demonstram, com
sua presença peremptória, que foram a única realidade de nossas
vidas. (SAER, 2002, p. 89, grifo nosso)6
[...] Yo lo atribuí al
principio a ese sol árido
que iba subiendo constante y embrutecedor,
en el cielo sin límites,
pero poco a poco fui
comprendiendo que el
año que pasaba arrastraba consigo, desde una
negrura desconocida,
como el fin del día la
fiebre a las entranãs del
moribundo, una muchedumbre de cosas
semiolvidadas, semienterradas, cuya persistencia e incluso cuya
existencia misma nos
parecen improbables y
que, cundo reaparecen,
nos demuestran, con su
presencia perentoria,
que habían estado siendo la única realidad de
nuestras vidas (SAER,
2005, p. 103-104).
6
Fragmentos como esse dificultam a tarefa de apontar a
função da linguagem que predomina nesse romance, considerando que – retomando Jakobson (1969) –, a função poética seja
dominante apenas na poesia, arte verbal por excelência. Aliás,
vale lembrar o caráter secundário da função poética em outras
manifestações verbais (JAKOBSON, 1969, p. 128), como na narrativa ficcional, por exemplo.
O romance de Saer não chega a ser um lento relatório de
uma vida inteira, mas o relato de uma experiência incomum de
vida, onde os acontecimentos que compõem a história rememorada, embora fragmentados, são narrados obedecendo a uma
seqüência lógica e natural no tempo cronológico da diegese,
uma vez que os dias e meses se passam, as estações do ano se
sucedem, e o narrador-grumete envelhece. Portanto, a sucessão
dos eventos diegéticos, de certo modo, faculta alguma percepção
da historicidade do romance, no qual transparecem as crônicas
da conquista espanhola na América (século XVII) e os relatos
etnográficos sobre a população indígena sul-americana.
Considera-se em geral romance histórico (ESTEVES, 1998),
o romance cujo enredo ficcional, ainda que totalmente inventado, seja embasado em fatos históricos reais. Mas, ainda que
Francisco do Porto tenha realmente existido, o que, sobretudo,
parece emprestar a O enteado uma nuança de romance histórico
é justamente o debate que se trava, em segundo plano, sobre a
representação da conquista do Novo Mundo e da origem da
Niterói, n. 22, p. 221-233, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 229
229
6/11/2007 14:26:46
Gragoatá
Danilo Luiz Carlos Mical
América hispânica. Na verdade, Saer não chega a ficcionalizar
aquele fato histórico em particular – a expedição de Juan Díaz de
Solis à bacia do Rio da Prata, no ano de 1515 –, mas simplesmente
se inspirou nele para construir o seu mundo ficcional, o que talvez enquadrasse esse romance, mais adequadamente, no campo
da lenda e do mito do que propriamente no historiográfico.
Entretanto, de uma perspectiva moderna ou pós-moderna,
sabe-se que, diferentemente da História, a literatura não tem
pretensão de reconstruir o passado. De maneira descompromissada, o escritor pode construir a sua visão pessoal de um
passado, e sem, necessariamente, referir-se a algum fato histórico
específico. E a ficção assim produzida geralmente nos parece não
apenas atraente, como mais crível e convincente que o próprio
relato historiográfico, o que constitui, aliás, uma das virtudes da
ficção literária. Ademais, considerando a atual pluralidade do
conceito de “verdade” histórica, nada impede que, ao dizer o que
pode (ou poderia) ter acontecido, a ficção diga o que realmente
aconteceu de fato.
Ao que tudo indica, O enteado faz parte da categoria de
romance histórico que se caracteriza pela metaficção historiográfica, onde se confrontam “os paradoxos da representação
fictícia/histórica, do particular/geral e do presente/passado”,
de acordo com Hutcheon (1991, p. 142), levando-se em conta a
criação do seu enredo dentro de um determinado panorama
histórico. Se, por um lado, tem-se um “romance histórico”
vinculado à colonização espanhola da América – inspirado na
existência real daquele marinheiro órfão (Francisco do Porto) –,
por outro, tem-se um romance de temática subjetiva, atemporal
e universalizante, como são os temas da busca pela identidade,
pelo autoconhecimento e pelo sentido da vida.
Contudo, esse velho narrador não deixa transparecer, em
nenhum momento do seu relato, qualquer tipo de ressentimento para com os índios. Pelo contrário, ao final se percebe uma
certa dose de emoção da parte dele, um misto de sentimentos e
sensações, que esse narrador-poeta imprime nas últimas linhas
da narrativa. Não sendo fácil definir, uma leitura atenta pode
revelar mais do que muitas palavras. Diz o último parágrafo
do romance:
Vindo dos portos, onde há tantos homens que dependem do
céu, eu sabia o que era um eclipse. Mas saber não basta. O
único certo é o saber que reconhece que sabemos apenas o que
se concede a mostrar. Desde aquela noite, as cidades me abrigam. Não é por medo. Dessa vez, quando o negrume atingiu
seu extremo, a lua, pouco a pouco, começou de novo a brilhar.
Em silêncio, como tinham vindo, os índios se dispersaram, se
perderam entre o casario e, quase satisfeitos, foram dormir.
Permaneci só na praia. Ao que veio depois, chamo-o anos ou
minha vida – rumor de mares, de cidades, de latejos humanos,
cuja corrente, como um rio arcaico que arrasta os trastes do
230
Gragoata 22.indb 230
Niterói, n. 22, p. 221-233, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:46
O enteado, de Saer: uma percepção poética da Conquista Hispânica Americana
visível, me largou numa peça branca, à luz das velas já quase
consumidas, balbuciando sobre um encontro casual entre e
com, também, certamente, as estrelas. (SAER, 2002, p. 188)7
Por venir de los puertos, em los que hay tantos hombres que dependen del cielo, yo sabía lo
que era um eclipse. Pero
saber no basta. El único
justo es el saber que
reconoce que sabemos
unicamente lo que condesciende a mostrarse.
Desde aquella noche,
las ciudades me cobijan.
No es por miedo. Por esa
vez, cuando la negrura
alcanzó su extremo, la
luna, poco a poco, empezó de nuevo a brillar.
En silencio, como habían venido llegando, los
indios se dispersaron,
se perdieron entre el
caserío y, casi satisfechos, se fueron a dormir.
Me quedé solo em la
playa. A lo que vino
después, lo llamo anos
o mi vida – rumor de
mares, de ciudades, de
latidos humanos, cuya
corriente, como un rio
arcaico que arrastrara
los trastos de lo visible,
me dejó em uma pieza
blanca, a la luz de las
velas ya casi conumidas,
balbuceando sobre um
encuentro casual entre,
y com, también, a ciência cierta, las estrellas
(SAER, 2005, p. 223).
7
Talvez, até mais do que outras passagens igualmente poéticas desse romance, esse trecho final contém marcas de poesia,
pois o seu ritmo se apresenta sincopado, como se fosse formado
de versos de fato, além da ocorrência de um paralelismo (se
dispersaram, se perderam) que reforça a sonoridade poética. À
semelhança do que ocorreu ao longo de toda a narrativa, também
aparece aí a partícula como, marca de comparação ou símile, motivada por um significado análogo e subjetivo: “[...], como um rio
arcaico que arrasta os trastes do visível, [...]” (SAER, 2002, p. 188).
Além disso, se pensarmos em “as estrelas”, metaforizando “os
índios”, contribuiremos para aumentar a poeticidade do texto.
Com base nos critérios teóricos visitados, que investigam
a poesia na narrativa, pode-se pensar em O enteado como um
romance poético, reconhecendo-se o investimento efetuado pelo
autor na poeticidade narrativa – fato que, não apenas denota uma
originalidade de estilo, mas, principalmente, ajuda a eliminar o
mal-entendido de que a relação do texto com a “história” deva
se dar, exclusivamente, de forma referencial, ou seja, “realista”.
Ao incorporar uma percepção poética de mundo, Juan José
Saer constrói uma singular representação da realidade, através
do seu melancólico narrador. Quanto à historicidade desse romance, talvez ninguém a defina melhor do que o próprio autor,
quando diz que O enteado não reconstrói uma época determinada
do passado, mas “simplesmente constrói uma visão do passado,
certa imagem ou idéia do passado que é própria do observador
e que não diz respeito a nenhum fato histórico preciso” (SAER,
2002, capa).
Niterói, n. 22, p. 221-233, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 231
Abstract
In “El Entenado” (2002), by Juan José Saer, a
narrator of old age tells his story. Traveling in
his youth as a grummet on a ship coasting the
Plata River Basin, he witnessed the attack and
massacre of the boat crew by local Indians. As
the only survivor of the slaughter, he is adopted
by the natives and lives among them without
knowing the real reason for having been saved.
From the viewpoint of the narrator, this novel
tacitly promotes a discussion about the Hispanic
conquest of the Americas that poetically builds
his vision of the past without regard for historical
precision. Nevertheless, while the historicity of
the text becomes evident through the interlinea231
6/11/2007 14:26:47
Gragoatá
Danilo Luiz Carlos Mical
tions, its intrinsic poetry is the source of poetic
prose, or poetic narrative, leading us to see traces
of literary hybridism.
Keywords: Saer; El Entenado; Cannibalism;
Identity; Otherness.
Referências
ALBORNOZ, María Victoria. Canibales a la carta; mecanismos
de incorporacion y digestion del “otro” en O enteado, de Juan
Jose Saer. CHASQUI: Revista de Literatura Latinoamericana,
[S.l.], v. 32, n. 1, mayo 2003.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução do francês
por Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira; com revisão de
Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
______. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 5.
ed. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: Hucitec,
2002.
ESTEVES, Antonio R. O novo romance histórico brasileiro. In:
ANTUNES, L. (Org.). Estudos de literatura e lingüística. São Paulo:
Arte e Ciência; Assis: Curso de Pós-Graduação em Letras da
FCL, UNESP, 1998.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso. 6. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria,
ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. Trad. Isidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1969.
LEFEBVE, Maurice-Jean. Estrutura do discurso da poesia e da narrativa. Trad. José Carlos Seabra Pereira. Coimbra: Almedina, 1980.
MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa II. 18. ed. São Paulo:
Cultrix, 2003.
PONS, Maria Cristina. ����������������������������������������
The cannibalism of history: the historical representation of na absent other in O enteado by Juan José
Saer. In: YOUNG, Richard (Ed.). Latin american postmodernisms.
[S.l.]: Rodopi, 1997. p. 155-174.
REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da
narrativa. São Paulo: Ática, 1988.
SAER, Juan José. El entenado. Buenos Aires: Booket, 2005.
______. O enteado. Trad. José Feres Sabino. São Paulo: Iluminuras, 2002.
232
Gragoata 22.indb 232
Niterói, n. 22, p. 221-233, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:47
O enteado, de Saer: uma percepção poética da Conquista Hispânica Americana
SCHWARTZ, Jorge. Saer en la Universidad de San Pablo. Ensayos
de Literatura, [S.l.], 2003. Disponível em: <http://www.avizora.
com/publicaciones/literatura/textos/ textos_2/0012_entrevista_saer.htm>. Acesso em: 10 jul. 2005.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro.
Trad. Beatriz Perrone Moisés. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,
1999.
______. As estruturas narrativas. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São
Paulo: Perspectiva, 1969.
______. Os gêneros do discurso. Trad. Elisa Angotti Kossovitch.
São Paulo: Martins Fontes, 1980.
Niterói, n. 22, p. 221-233, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 233
233
6/11/2007 14:26:47
Gragoata 22.indb 234
6/11/2007 14:26:47
Textualidade, imagem e mestiçagem
na crônica de Guamán Poma
Consuelo Alfaro Lagorio
Recebido 9, jan. 2007/Aprovado 29, mar. 2007
Resumo
Felipe Guamán Poma de Ayala (1526?-1615) é
o cronista andino, autor de Nueva Crônica y
buen gobierno, cujo texto reproduz, entre outros,
os processos críticos de identidade, resultado dos
acontecimentos históricos da América a partir do
século XVI. A crônica envolve um interdiscurso
entre tradição oral da língua materna e literalidade em segunda língua, mas recorre também à
tradição iconográfica andina, como parte dos conflitos desta identidade. Consciente do irreversível
das mudanças pelas quais passavam as sociedades
andinas, o cronista índio decide formular por
escrito o que conhece ‘de oídas’, o que recolhe à
maneira de um ‘etnógrafo’, o que lê nas crônicas
espanholas e o seu próprio testemunho sobre os
acontecimentos e seus antecedentes históricos. O
texto escrito está acompanhado de desenhos que o
ilustram, o que dá um caráter iconográfico especial
ao documento.
Palavras-chave: Crônicas da conquista; Iconografia da conquista; Literatura do Peru.
Gragoatá
Gragoata 22.indb 235
Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:47
Gragoatá
Consuelo Alfaro Lagorio
Em 1615, um índio peruano que assina Felipe Guamán
Poma de Ayala escreve uma carta ao monarca espanhol, Felipe
III, dando conta do envio de um manuscrito de 1200 páginas,
entre as quais 398 desenhos. Não há notícias de que o rei espanhol recebera o documento, mas se sabe que a carta chegou
ao Arquivo de Simancas, como parte de toda a documentação
administrativa que foi transferida ao Archivo de Indias de Sevilha
no século XVIII.
O manuscrito teve um outro destino, atualmente se encontra na Biblioteca Real de Dinamarca, possivelmente adquirido
pela Coroa Dinamarquesa devido ao interesse das monarquias
protestantes na documentação da Inquisição espanhola dos
séculos XVI e XVII. Descoberto, em 1908, pelo bibliotecário alemão Richard Pietschmann, o manuscrito foi apresentado pela
primeira vez no Congresso de Americanistas.
A Nueva Crônica y buen gobierno do peruano Felipe Guamán
Poma de Ayala constitui um dos documentos mais significativos
sobre a conquista espanhola, escrito por um índio e, ao mesmo
tempo, um esforço em registrar dados e versões destinados a
construir a memória não só desse momento histórico, mas de
um passado étnico ao que a introdução da escrita apresenta
riscos. Na carta dirigida ao monarca espanhol apresentando a
Crônica, o autor se refere a esta tarefa assim:
[...] Muchas veces dudé,... azeptar esta dicha inpresa y muchas
veces más me quis volver atrás jusgando temeraria mi intención, no hallando sujeto en mi facultad para acauarla conforme
a la que se debia a unas historias cin escriptura nenguna no
más de por los quipus e memorias y rrelaciones de los yndios
antiguos de muy biejos y biejas sabios testigo de vista para
que dé fé de ellos y me valga por ello [...].
Como produto da sociedade colonial americana nos
primeiros momentos - séculos XVI e XVII - Guamán Poma é
um índio ladino, isto é, descendente de duas estirpes andinas
pertencentes ao Tahuantisuyo — Império Incaico — portanto,
falante nativo da língua quéchua — variedade Chinchay — mas
também com um relativo domínio do espanhol, fruto do contato educativo com o clero, especialmente dentro do marco da
catequese. O fenômeno de ladinização é o resultado dos processos
de integração pelos quais passam as lideranças andinas e ele
se reflete no bilingüismo quechua- castelhano, especialmente
dos “curacas”, ‘autoridade local de mando médio’, que são os
intermediários das relações produtivas entre índios del común e
agentes da conquista.
O cronista constrói a sua legitimidade como interlocutor
representante do novo mundo, precisamente pela condição de
falante nativo de língua quéchua, competente a ponto de conhecer toda a diversidade lingüística e cultural do mundo andino.
236
Gragoata 22.indb 236
Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:47
Textualidade, imagem e mestiçagem na crônica de Guamán Poma
Por outro lado, maneja como segunda língua o espanhol, embora
com informações do mundo ocidental fragmentadas, conhece
muito bem a máquina burocrática hispânica, o que lhe proporciona elementos críticos constitutivos do texto e lhe dá acesso a
formas de oratória para argüir e defender as suas teses.
A intenção de registro é evidente no gênero escolhido
pelo caráter institucional dessa forma. O gênero crônica, que
se consolida desde Alfonso X, confere ao discurso histórico um
papel relevante na formação discursiva hispânica. A propósito,
a historiografia hispano-americana conta com uma profusão de
documentação, pois toda e qualquer expedição, incursão, evento
bélico ou não, tem registros descrevendo e narrando uma ou
mais versões dos acontecimentos.
No entanto, o autor se serve do gênero não só para descrever o mundo incaico antes da chegada dos conquistadores, ou
para descrever os acontecimentos da conquista desde o ponto
de vista andino. O que Guamán Poma pretende, além de documentar, é debater, argumentando, mas, sobretudo contestando e
deslegitimando outras versões, a partir do seu lugar ‘nativo’. Ao
mesmo tempo, é consciente que essa é uma das poucas formas em
que um índio, como ele, poderia fazê-lo, participando da grande
polêmica sobre a natureza humana dos nativos americanos,
polêmica que agita os meios intelectuais da Europa humanista
na discussão sobre o futuro das sociedades conquistadas em
franco processo de desagregação.
O autor utiliza estratégias retóricas que conhece da sua experiência no meio eclesiástico hispânico e que são fundamentais
para o debate teológico, mas ele aporta elementos de sua própria
tradição étnica como o uso das línguas andinas, registrando diversas formas literárias da tradição oral não apenas em quéchua,
mas também em aymara, outra língua andina importante. O que
constitui novidade em relação a outros documentos do gênero
é, porém, o registro iconográfico nos desenhos, que representam o esforço de interculturalidade, no sentido de acionar os
traços andinos, mas com glosas, tanto em quéchua quanto em
espanhol, com caráter proselitista, seguindo as normas didáticas
conciliares. A Nueva Coronica y Buen Gobierno representa uma
grande empreitada, considerando que o autor não só escreve
numa língua que não é a materna, mas recorre às suas fontes
étnicas e à sua tradição de registro, que são provenientes de uma
língua e de culturas independentes da escrita.
A sociedade colonial andina
Como uma forma de resolver os problemas derivados da
diversidade lingüística, os conquistadores recrutavam jovens
indígenas, geralmente falantes de uma língua geral ou de mais
de uma língua ou dialeto de uma família lingüística (bilíngües
ou diglóssicos). Submetidos a um processo de imersão, através
Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 237
237
6/11/2007 14:26:48
Gragoatá
Consuelo Alfaro Lagorio
de uma longa convivência forçada com as tropas, serviam de
intérpretes ou tradutores nas expedições de penetração da empresa
colonizadora. O conhecimento das línguas locais oferecia melhores condições para uma das principais tarefas da expedição
que consistia em recrutar mão de obra dos diversos grupos
étnicos existentes.
Este papel serve para desestruturar o sistema, exacerbando
os conflitos étnicos já existentes. Os línguas servem como instrumento de comunicação até quando já estava bem avançado
o processo de consolidação da conquista. Subsistem na função
de intérpretes nos litígios fundiários e no confessionário. Neste
último caso, existe abundante documentação da polêmica sobre
a falta de sigilo no que se refere ao segredo da confissão, intrínseca à tradução, assim como os problemas de falta de fidelidade,
dependendo da competência lingüística do língua, violando as
normas dogmáticas da Igreja (SUESS,1992).
Uma vez superada a fase de impacto frente à diversidade
lingüística, o projeto político hegemônico da conquista entranha
a padronização lingüística que está em processo na própria Espanha. No século XVI, a Coroa Espanhola cria uma legislação
que segue uma linha dura de castelhanização com os nativos
americanos. Em 1550, Carlos I dispõe que os frades ensinem
obrigatoriamente o espanhol aos índios dentro das atividades de
catequese. Ante uma resistência generalizada por parte do clero
e da própria administração colonial, o monarca espanhol revogou, em 1565, a cédula real anterior e exigiu que os missionários
aprendessem a língua de cada grupo indígena a seu cargo. Em
1570, Felipe II declara as línguas indígenas veículo de catequese
(SOLANO,1991).
Uma avaliação correta do quadro lingüístico fará com que
a política lingüística desemboque no curso das línguas gerais. Na
metade do século XVI, no caso andino, o quéchua chinchay se
converte na língua de catequese e de comunicação interna. Aparecem os primeiros estudos sobre as línguas indígenas, de forma
que as primeiras gramáticas da língua quéchua datam de 1586
e logo no início do século seguinte é publicada a Gramática da
Língua Quéchua de González Holguin [1607] (TORERO, 1968).
Esta estratégia de aceitação das línguas e culturas indígenas coincide, paradoxalmente, com uma investida definitiva
contra as culturas andinas. No século XVII, se desencadeia um
período conhecido como extirpação de idolatrias contra os remanescentes das nacionalidades indígenas acuadas nas regiões de
mais difícil acesso. (TAYLOR, 1980). Ali está o refúgio, através
das línguas, da religiosidade do mundo andino e, precisamente
por isto, a Inquisição entra com seu exército de missionários,
padres e agentes bilíngües para, segundo eles, erradicar ‘todo
gênero de superstições e costumes idolátricos veiculados nas línguas’,
assim como qualquer possibilidade de irradiação das mesmas. Os
238
Gragoata 22.indb 238
Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:48
Textualidade, imagem e mestiçagem na crônica de Guamán Poma
bilíngües são por definição do oficio, não só índios ladinos, mas
mestiços indo-hispânicos, ou “criollos”, profundos conhecedores
da cultura e hábeis falantes de quéchua.
Este contexto pode explicar porque Guamán Poma desempenha as funções relacionadas à sua condição lingüística
de bilíngüe. Foi língua na juventude, participando no episódio
da extirpação de idolatrias e na repressão aos movimentos étnicos
conhecidos como taki-onkoy. Foi também intérprete em litígios de
terras e em confessionários, a sua língua materna é a variedade
Chinchay do quéchua que estava se tornando a língua geral do
Império antes da chegada dos colonizadores, mas que ainda
continuará seu processo de expansão, duzentos anos após a
consolidação da conquista (TORERO, 2002). Desta forma, esta
variedade que era a de maior prestígio e de maior extensão
territorial é a língua materna do cronista, embora ele domine
outras línguas e dialetos quéchuas, além do aymara, língua de
grande importância local.
Apesar da polêmica em torno à condição de principal, que
ele alega, é indiscutível que o cronista teve uma educação formal
que lhe deu acesso à escrita. Isto se torna um dado de grande
importância porque, neste ponto, o contato de línguas orais e
culturas que têm formas de registro diferentes à escrita sofrem
um impacto irreversível especialmente nas formas de construir
a memória.
O Autor
A parte espanhola do seu nome, Felipe de Ayala, provém do
casamento da mãe com um espanhol depois do seu nascimento,
em torno de 1534. Waman Poma, ‘águia’ e ‘tigre’ respectivamente,
correspondem à clássica onomástica quéchua. À diferença do
ilustre mestiço cusquenho, o Inca Garcilaso de la Vega, também
cronista, Guamán Poma é andino pelos dois lados, descendente
dos Yarovilca Allauca Huánuco pela linha paterna e da dinastia
cusquenha pela materna.
Esta filiação é uma das bases da composição do texto na
medida em que o autor marca reiteradamente a sua identidade
dentro do complexo universo étnico andino. Como em toda
sociedade patrilinear, esta forma de parentesco é fundamental
para a caracterização étnica responsável pela sua perspectiva
histórica. O autor destaca a naturalidade do pai e do avô paterno
como “principales” do Chinchay-suyo, um importante reino do
Império Incaico que disputa o poder com as estirpes cusquenhas.
Também destaca a origem de sua mãe como filha de TúpacYupanqui, décimo Inca, legítimo representante da alta nobreza
do Cusco, centro administrativo do poder político imperial.
Além destes elementos de identificação étnica, o cronista
chama atenção para a inserção familiar nas relações sociais.
Como personagens de sua Crônica, o pai e o avô desempenham,
Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 239
239
6/11/2007 14:26:48
Gragoatá
Consuelo Alfaro Lagorio
no texto, funções graduadas na administração do Império, como
vice-reis do Inca. O pai aparece também como general de exércitos, participando de operações militares na conquista, e o avô,
como mártir, queimado vivo por Pizarro. Esta linha sucessória
constrói uma identidade ‘social’ e política do autor que converge
na autodenominação de ‘príncipe’, ‘cacique principal’, ‘tenente
corregedor de índios’ (PRADO, 1991). Embora não haja provas
da posição aristocrática reivindicada pelo cronista, o que parece
ser o objetivo de Guamán Poma é se apresentar perante a nascente sociedade colonial como herdeiro legítimo de direito, de
uma linhagem nobre, interlocutor à altura do rei de Espanha,
a quem dirige o documento; nos padrões de uma sociedade
monárquica assume o lugar de porta-voz e legítimo representante das nações conquistadas. Nesse sentido, o elemento que
compõe a principal legitimidade do testemunho do cronista é a
sua identidade lingüística.
A sua formação hispânica começa na juventude, não só
pelo contato direto com a burocracia colonial, mas especialmente
pela educação religiosa a que eram submetidos os jovens índios
escolhidos. Este contato intenso e prolongado permite um conhecimento profundo e crítico das diversas Ordens Religiosas. O
seu desempenho como ‘língua’ — intérprete — e especialmente
como auxiliar do visitador eclesiástico na tarefa inquisitorial de
“extirpação de idolatrias” acaba por consolidar esta formação.
Guamán Poma ocupa uma posição lingüística privilegiada.
O uso do quéchua, que dialoga com um profundo conhecimento do mundo andino, proporciona um tipo de legitimidade
ao texto, ausente nas crônicas espanholas, ao introduzir conceitos e etno-categorias andinas, formas literárias da tradição
pré-hispânica dentro de uma grande diversidade dialetal e uma
multiplicidade de estilos do quéchua; ao lado de uma retórica
escolástica dos sermões litúrgicos.
O esforço do cronista é também no sentido de criar uma
interlocução com o outro, por isso, a organização da informação
responde à apresentação de elementos culturais e elementos de
argumentação ao leitor hispânico. Por outro lado, com o rigor de
um pesquisador, recolhe informações conforme métodos ocidentais, através da documentação espanhola, e paralelamente o faz
em fontes indígenas através do testemunho de “los yndios antigos
de mui biejos y biejas sabios testigos de vista...” ou nos arquivos da
memória imperial guardada nos “quipus”.
A intenção de “dar fé de las historias” obriga o cronista ao
uso do registro escrito, consciente de que as formas tradicionais da memória nas sociedades orais correm sérios riscos em
contato com as sociedades letradas. A tradição de pintores préhispânicos, encarregados dos registros, tem em Guamán Poma
uma continuação, seus desenhos seguem esta tradição, embora
a função ilustrativa, acompanhando o texto numa linha retóri240
Gragoata 22.indb 240
Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:49
Textualidade, imagem e mestiçagem na crônica de Guamán Poma
ca proselitista, faça parte da história do contato e do poder do
Santo Ofício.
Guamán Poma constrói desta forma a sua autoridade como
escritor e historiador, mas, principalmente a sua legitimidade
étnica para denunciar e participar do debate político.
A Crônica
Fig.1-/195[197]/
PRIMERAVECITA GENERAL
Fig.2-/361[363]/ CONTADOR
MAIOR I TEZORERO TAVANTIN
SVIO QVIPOC CVRACA
O cronista aporta elementos alternativos ao gênero sedimentado dos cronistas espanhóis, que ele conhece bastante bem.
Isso é possível precisamente porque ele incorpora as formas de
registro de sua tradição cultural, recuperando assim, elementos
e recursos mnemotécnicos andinos, vinculados às características destas sociedades, principalmente a oralidade. O trabalho
do autor consiste em recolher dos quipus, de fontes orais e dos
desenhos a história remota, em forma de mitos e de narrativas,
sobre o período pré-incaico, o império incaico, a conquista, e a
época contemporânea a seu tempo. Para cada um há formatos
diferentes, mas as conseqüências da extirpação de idolatrias que
haviam deixado marcas profundas na consciência coletiva, da
qual o autor participou, também fazem parte do texto.
Se há uma matriz cultural que define melhor o estilo inca,
ela pode ser representada pelo quipus (MACERA, [19--]). A arquitetura e disposição do texto estão marcadas por esta forma
de matriz andina. Na primeira parte da Crônica, Guamán Poma
faz uma descrição da estrutura da sociedade andina, organizada
por idades e gênero, em função de sua capacidade de trabalho,
Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 241
241
6/11/2007 14:26:56
Gragoatá
Consuelo Alfaro Lagorio
evocando as fontes de onde retira as informações. Não só organiza seu discurso em blocos calle a calle para descrever cada setor
social, os critérios de organização e as suas funções sociais, mas
apresenta uma diagramação da página que segue rigorosamente
as formas do quipus (Fig. 1).
Na edição fac-similar, editada pelo Institut d´Ethnologie
de Paris em 1936, não é possível ver a diversidade significativa
de cores em cada fileira que o autor reproduz, mimetizando
o suporte e a forma material de organização das informações
contidas no quipus e, ao mesmo tempo, remetendo, às suas fontes étnicas. Ao longo de todo o texto, e a partir destas fontes,
Guamán dá dados numéricos precisos, sobre a organização da
rede administrativa andina, fazendo uma projeção estimada de
habitantes, de dados de produção, dos ciclos e festas.
As sociedades andinas que não conheceram a escrita
tiveram outras formas materiais de guardar informação, a principal delas está constituída justamente pelos quipus. Segundo
o cronista mestiço o Inca Garcilaso de la Vega, esta forma de
registro “ dice el número mas no la letra” (Fig. 2). Trata-se, fundamentalmente, de um registro de contabilidade, instrumento de
controle administrativo, cuja estrutura combina cor, tipo de nó,
tamanho da corda, distancia entre os nós. Os quipus não só consignam números, mas relações matemáticas complexas. Alguns
arqueólogos pensam que ele é o elemento chave do estilo Inca,
comparando as suas formas com algumas construções como,
por exemplo, as pontes suspensas.
Sobre o registro de formas orais, podem se observar pequenas narrativas anedóticas, assim como descrições, em que
é possível reconhecer a presença testemunhal na riqueza de
detalhes, que guarda com fidelidade a memória coletiva sobre
fatos de 80 ou 90 anos antes do nascimento do autor. É o caso
da descrição de monumentos arquitetônicos, já destruídos, ou
ainda de alguns episódios sobre os primeiros encontros quando o desembarque dos europeus que estão registrados desde a
perspectiva andina.
O autor explicita um propósito ambicioso de registrar a
história étnica, que se estende desde os tempos remotos e míticos
pré-incaicos até os inícios da colônia, entretanto, a complexidade
discursiva que caracteriza o texto, composto por narrativas e
descrições, apresenta evidentes marcas argumentativas.
A narrativa, especialmente da história antiga, levanta um
questão central quanto à natureza dos índios, que se tornou
um ponto polêmico na primeira metade do século XVI. Dados
da religiosidade indígena em discursos litúrgicos que o autor
apresenta como da tradição oral pré-hispânica: “O señor, adonde
estás, en el cielo o en el mundo...”; a voz do próprio autor: “los
primeros indios tubo sombra de conocer al criador”, ao longo
da narrativa, vão construindo evidências para fundamentar, do
242
Gragoata 22.indb 242
Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:56
Textualidade, imagem e mestiçagem na crônica de Guamán Poma
ponto de vista teológico, que esses elementos se enquadram nos
parâmetros do cristianismo e são compatíveis com as normas
ditadas pelo Santo Ofício.
Outro argumento importante nesta direção é a apresentação da cultura material e da organização social que tanta
admiração causaram nos observadores europeus. Na descrição
e relatos sobre as idades pré-incaicas, o autor seleciona uma
série de itens, que caracterizam os avanços técnicos da cultura
andina, por exemplo, os tecidos, com especial referência às tintas,
um dos grandes motivos de assombro, explicitado em algumas
crônicas hispânicas. Desta forma, o cronista aborda a descrição
do sistema político e a organização social a partir de suas raízes
históricas até a formação do Império da qual mostra algumas
edificações. A sua versão sobre a sociedade andina como uma
civilização organizada, sustentada por leis e princípios, se opõe
às versões de cronistas espanhóis como González de Oviedo ou
Herrera que tratam não só as sociedades andinas, mas todas as
americanas, como bárbaras e selvagens.
Num outro sentido, Guamán Poma representa também
uma alternativa ao Inca Garcilaso de la Vega que, como outros
cronistas, por exemplo, o soldado espanhol Cieza de Leon, concebem o Cusco como a origem civilizadora do universo andino,
transferindo a maneira renascentista que entendia a cultura
greco-romana como o princípio organizador e civilizador do
universo ocidental, opondo a estrutura política do Império Romano à ‘barbárie’ que o antecede. Os intelectuais da conquista,
deslumbrados pela organização e eficiência do Estado Incaico,
projetam a divulgação desse clichê.
A identidade étnica Chinchay do cronista é responsável
pela perspectiva descentralizada que destaca a representação da
diversidade étnica do universo andino como característica: “...
que todo este reyno salieron de muchas maneras de castas y lenguages
de yndios, es por causa de la tierra...”. Esta visão contrasta com uma
visão monolítica cusco-céntrica dominante, Guamán Poma, ao
apresentar essa diversidade, dá elementos para ponderar a visão
parcial da cultura andina.
Desta forma, podemos sugerir que a principal estratégia
desenvolvida por Guamán Poma é argumentativa; tanto as descrições étnicas quanto as narrativas, e até mesmo os diálogos,
estão postulando uma defesa e encaminhando denúncias. Nesse
sentido, a parte da obra à qual o autor dá o título de “Consideraciones” está constituída por uma série de premissas que organizam
o seu pensamento político e é colocada em contraponto com o
senso comum para fundamentar e desenvolver teses em defesa
da questão étnica. Esta parte, apesar das dificuldades de manejar
uma língua que não é a materna, é desenvolvida em espanhol,
utilizando a retórica escolástica que o cronista conhece bem.
Neste sentido, os desenhos que compõem a textualidade
Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 243
243
6/11/2007 14:26:56
Gragoatá
Consuelo Alfaro Lagorio
da obra desempenham funções ilustrativas, compatíveis com as
normas conciliares, no que se refere à elaboração de material de
catequese. Assim, eles cumprem com a função demonstrativa,
à maneira dos exemplos, que é a de visualizar a descrição, a
narrativa, a crítica, a denúncia, permitindo e facilitando a construção de sentidos do público não letrado. Como nos catecismos,
a imagem acompanha o texto escrito para ilustrá-lo (LÓPEZBARRALT, 1988).
Os Desenhos
Um dos principais elementos culturais andinos aportados
pelo cronista índio ao gênero é a tradição pictográfica. O cronista
apresenta uma relação de continuidade da tradição pré-hispânica
dos pintores encarregados do registro através da iconografia.
Os desenhos acumulam várias funções no texto, algumas como
resultado do contato, adaptando-se às novas condições históricas, entretanto, a formatação do desenho responde a técnicas e
modelos andinos, não ocidentais.
Na cultura européia dos séculos XVI e XVII, ainda marcada
por fortes traços de oralidade, a imagem ocupa um papel predominante na edição de textos literários. O texto verbal guarda
relação com uma imagem prévia e Guamán Poma, como índio
ladino, provavelmente tem acesso a essa produção. De qualquer
forma, pode-se observar ao longo da Crônica e mais especificamente nos desenhos, o impacto da escrita alfabética: os desenhos
têm pequenos textos verbais explicativos, à maneira de títulos,
glosas e outras anotações em espanhol e em quéchua.
Estas formas dialogam com as normas discursivas prescritas nos documentos conciliares, especialmente no que se refere
à elaboração de catecismos em Línguas Gerais. A recomendação
é de mostrar imagens a um público não letrado e, neste sentido,
Guamán Poma se apropria dessas orientações didáticas, propostas pela Contra-reforma (LÓPEZ-BARRALT, 1988). O autor segue
os princípios comunicativos das normas estabelecidas no Concilio
Limense (1582-1583), que recomendam o uso de imagens na empresa evangelizadora como um eficiente instrumento didático,
aproveitando as vantagens da comunicação visual. No caso, o
artista se serve delas para as suas reivindicações nativistas e por
isso é proselitista, os desenhos ilustram e tentam persuadir.
Guamán Poma usa as imagens para introduzir informação
não conhecida sobre o mundo andino, mas também estabelece linhas de compatibilidade entre este e o mundo hispânico,
por exemplo, na apresentação do calendário indígena, fazendo
correspondências com o cristão. Usa os desenhos para ilustrar
informações míticas, com o distanciamento exigido pela Inquisição, mas, ao mesmo tempo, para representar a sua versão sobre
episódios e narrativas da conquista e ainda usa esse recurso
para denunciar os diversos tipos de abuso.
244
Gragoata 22.indb 244
Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:26:57
Textualidade, imagem e mestiçagem na crônica de Guamán Poma
A Questão Étnica
O texto do cronista pretende dar uma ordem ao universo colonial, que se apresenta caótico em comparação à ordem
evocada pelo autor na parte descritiva das sociedades andinas
pré-incaicas e pré-hispânicas. Nesse sentido, as relações interétnicas que aparecem como uns dos lugares de conflito de maior
visibilidade ocupam um espaço especial nas alegações do autor
para a sua proposta política e estão registradas em grande parte
dos desenhos, como um tópico referencial do período colonial.
O léxico para categorizar essas relações inter-étnicas, que
já circulam em outros textos do século XVII, aparecem na obra.
Termos como criollo e mestizo são categorias nativas para designar os cidadãos não índios, nascidos no continente americano,
para diferenciá-los dos espanhóis nascidos na Península, mas
radicados na América, que por sua vez recebem nomes como
gachupin no México e chapetón no Peru, principais assentos coloniais hispânicos.
Entretanto, o cronista adota um tom moralista para apresentar essas categorias, representando nos desenhos as práticas
cotidianas dessas relações inter-étnicas no marco de um topos que
pode ser considerado uma forma de protesto social. O quadro
taxonômico que organiza esse novo universo está atravessado
pela retórica medieval que contrapõe vícios a virtudes, dando
sentido à nova ordem na Colônia. Na iconografia apresentada
pelo autor, há uma categorização na qual não só interpreta os
eventos históricos da Conquista, mas especificamente, julga os
processos e resultados desses fatos. A denúncia da violência é
o fio condutor que dá inteligibilidade aos desenhos.
Os Pecados Capitais
Embora sem citar, a proposta política central do cronista
dialoga com um dos mais brilhantes defensores das populações
indígenas americanas, Bartolomeu de Las Casas, cujas obras,
na época, estavam proibidas de circular. O ilustre dominicano
sugeria a criação de nações espanhola, indígena e africana com
territórios e organizações políticas separados, justamente por
uma avaliação negativa das relações inter-étnicas nos primeiros
anos de contato. Isto pela evidente desagregação das nações
indígenas e degradação dos grupos africanos em função das
desigualdades que marcam essas relações.
No texto de Guamán Poma, esta proposta constitui um dos
principais pressupostos, a partir do qual o autor vai construir
uma das estratégias argumentativas para formular a sua postura
crítica. Nesse sentido, a mestiçagem, a mais visível evidência,
é um dos objetos de maior recriminação do autor e serve para
ilustrar as conseqüências danosas do contato, através do exemplo
que se materializa no desenho.
Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 245
245
6/11/2007 14:26:57
Gragoatá
Consuelo Alfaro Lagorio
Fig.3 – /594[608]/PADRES / MVI BRABO I COLÉRICO padre contra los
caciques prencipales I contra sus yndios
Fig. 4/ 538[552] – ESPAÑOLES/ SOBERBIOSO CRIOLLO o mestizo o
mulato deste reyno
Assim, o desenho da p. 594 (Fig.3) traz no título a associação de bravo e colérico assinalando a violência na relação entre
246
Gragoata 22.indb 246
Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:27:12
Textualidade, imagem e mestiçagem na crônica de Guamán Poma
um espanhol e um índio, que é espancado e humilhado, como
pode ser visto pela posição que ocupa cada um no espaço, e que
representa o pecado da ira.
No desenho da p.538 (Fig.4), o título contém a soberbia como
tópico das cenas violentas; constitui uma refutação ao senso
comum que admite na soberba uma ideologia de superioridade
necessária para explicar a colonização. O autor tenta argumentar
que aqueles que se consideram superiores estão em pecado, assim
como os descendentes, os mestiços, fruto do contato, conforme
reza o tópico no desenho da p.540 (Fig.5).
Fig. 5 – /540[554] ESPAÑOLES/ SOBERBIOSA CRIOLLA o mestiza o
mulata deste reyno
A avareza é outro pecado denunciado no contexto das relações inter-étnicas, que guarda uma contigüidade com a cobiça,
que é recorrente no texto, vinculada à acumulação de riqueza
(Fig.6), mas ao mesmo tempo, há uma representação sistemática
da conduta dos funcionários da administração colonial despojando das posses aos índios, às vezes mínimas, como no caso
da p. 790 (Fig.7).
Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 247
247
6/11/2007 14:27:20
Fig 6 - /521[525]/ESCRIVANO/ESCRIVANO DE CABILDO o rreal
nombrado o rrezeptor deste rreyno/ “Paga”...
Fig. 7- /790[804]/PRINCIPALES/QUE LLEVA DE PRESENTES el
cacique principal al dicho corregidor y no le agradese en este rreyno...
Gragoata 22.indb 248
6/11/2007 14:27:28
Textualidade, imagem e mestiçagem na crônica de Guamán Poma
A gula também faz parte do elenco pictográfico, embora
sem topicalizar. No quadro da p. 505 (Fig.8), a crítica está mais
na promiscuidade que no banquete, isto é, ao fato de sentar à
mesa juntos os diversos segmentos, assinalado no texto.
Fig. 8 - /505[509]/CORREGIMIENTO/ QUE EL CORREGIDOR
CONBIDA en su mesa a comer gente vaja, yndio mytayo, a mestizo,
mulato...
Mas o tom moralista do cronista se exacerba quando se
refere à luxúria, que extrapola os desenhos, atravessando todo
o texto. A maior visibilidade do contato inter-étnico está nos
mestiços que o autor recrimina, não só pela origem, a violação
das mulheres índias (Fig.9), mas por considerá-los inimigos dos
índios: los mestizos son mas peores para con sus tios y tias madres
ermanos ermanas... (GP p. 539). Neste tópico, o discurso anticlerical do cronista chega ao ponto mais crítico, apresentando
a produção em série de mesticillos, fruto do abuso do poder do
clero e a violência contra as mulheres índias (Fig.10).
Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 249
249
6/11/2007 14:27:50
Gragoatá
Consuelo Alfaro Lagorio
Fig.9 /503[507]/CORREGIMIENTO/ EL CORREGIDOR I PADRE
TINIENTE anda rrondando y mirando la güergüenza de las mujeres/
probincias/
Fig.10. /606[620]/PADRES/HIJO DELOS PADRES DOTRINANTES
mesticillos y mesticillas/ Lo lleva un harriero español alquilado a la
ciudad de los Reys de Lima...
250
Gragoata 22.indb 250
Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:28:03
Textualidade, imagem e mestiçagem na crônica de Guamán Poma
Considerações Finais
A crônica de Guamán Poma apresenta uma situação enunciativa complexa. O lugar de onde fala e a sua interlocução estão
construídos numa língua e num registro recém adquiridos.
Entretanto, as línguas que ele aciona em seu discurso, especialmente as ameríndias, lhe conferem o status de um porta-voz dos
povos andinos com o argumento da identidade. A modalidade
do espanhol em que escreve reflete os processos de interculturalidade das populações andinas, resultado não só das línguas
em contato, mas das funções sociais que irão desempenhar nessa
nova ordem.
Por outro lado, a condição de testemunha dos eventos
históricos relatados pelo autor, legitima a ‘autenticidade’ do
seu texto. Na narrativa, recorre à tradição oral, à iconografia, à
documentação, inclusive a andina. Na argumentação, o autor
transpõe os recursos retóricos da escolástica, da prédica religiosa na sua condição de cristão novo, para elaborar um discurso
político. Mas é nos desenhos que o autor constrói a sua eficácia
comunicativa, ilustrando as denúncias e ativando a persuasão
para a defesa das suas reivindicações étnicas.
Abstract
Felipe Guaman Poma de Ayala (1526?-1615) is the
Andean author of Nueva Crônica e buen gobierno, a
text that reproduces, among other things, the critical
process of identity from historical events of the Americas beginning in the 16th century. The chronicle
involves an interdiscourse between the oral tradition
of the maternal language and literality in a second
language, but has recourse to the Andean iconographical tradition as part of the conflicts of this identity.
Quite aware of the irreversibility of the changes that
Andean societies have undergone, the Indian chronicler decided to write what he knew ‘de oidas,’ in the
manner of an ethnographer, compiling what he read
in the Spanish chronicles and recording his own witnessing of the events and their historical antecedents.
The written text is accompanied by drawings that
illustrate what gives a special iconographic character
to the document.
Keywords: the Conquest’s chronicles; The Conquest’s
iconography; Peru’s literature.
Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 251
251
6/11/2007 14:28:03
Gragoatá
Consuelo Alfaro Lagorio
Referências
LÓPEZ -BARRALT, Mercedes. Icono y conquista: Gumán Poma
de Ayala. Madrid: Hiparión, 1988.
­­­­­­­­­______. Guamán Poma autor y artista. Lima: Fondo Editorial da
Pontificia Universidad Católica del Perú, 1993.
MACERA, Pablo. Historia del Perú y del mundo. Lima: Ed. Bruño,
[19--].
POMA DE AYALA, Felipe. Nueva crónica y buen gobierno. Paris:
Institut D´Ethnologie, 1936.
______. ______. Madrid: Historia 16, 1987.
PRADO, Elias; PRADO, Alfredo. Phelipe Guamán Poma de Aiala
y no hay remedio. Lima: Centro de Investigación y Promoción
Amazónica, 1991.
SOLANO, Francisco. Documentos sobre Política Lingüística en Hispanoamérica – 1492- 1800. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1991.
SUESS, Paulo (Coord.). A conquista espiritual da América Espanhola.
Petrópolis: Vozes, 1992.
TAYLOR, Gerard (Ed.). Rites et traditions de Huarochiri. Paris:
L’Harmattan, 1980.
TORERO, Alfredo. El quechua y la historia social andina. Lima:
Universidad Ricardo Palma, 1968.
______. Idiomas de los Andes: Lingüística e Historia. Lima: IFEA
Editorial Horizonte, 2002.
252
Gragoata 22.indb 252
Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:28:03
Perdón, desculpa, desculpa aí
La expresión de las disculpas en el
cine iberoamericano
Flávia de Almeida Monteiro
Célia Regina dos Santos Lopes
Leticia Rebollo Couto
Recebido 20, jan. 2007/Aprovado 29, mar. 2007
Resumo
O objetivo do texto é levantar o conjunto de
fórmulas rituais, cristalizadas ou não, que permitem expressar pedidos de desculpas em diversas comunidades ibero-americanas, bem como
comparar a natureza das ofensas que demandam
atos reparadores. Analisamos uma amostra de
nove filmes contemporâneos ambientados em
oito diferentes centros urbanos (Cuba, Espanha,
México, Peru, Chile, Brasil, Argentina e Colômbia). Como resultado preliminar, observamos que
houve algumas diferenças no uso de desculpas nas
comunidades hispânicas ou brasileiras quanto 1)
a suas formulações e 2) aos tipos de ofensas que
são objeto de desculpas. Em suas formulações
diretas, as desculpas estão necessariamente relacionadas aos diferentes sistemas de tratamento
verbo-pronominais no que se refere às formas de
tratamento: ustedeo, tuteo, voseo, no espanhol,
neutralização tu/você, em português, e às correspondentes relações interpessoais em cada contexto
sócio-cultural.
Palavras-chave: Atos de discurso; Desculpas;
Cortesia; Formas de tratamento.
Gragoatá
Gragoata 22.indb 253
Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:28:04
Gragoatá
Flávia de Almeida Monteiro, Célia Regina dos Santos Lopes, Leticia Rebollo Couto
1 Introducción
En varias lenguas y culturas los “saludos”, los “agradecimientos” y las “disculpas” son los tres principales actos rituales
de la interacción conversacional. Son enunciados cuyas formulaciones y condiciones de empleo están muy estereotipadas, pues
tienen una función básicamente relacional, con poco o ningún
contenido proposicional. Para Kerbrat-Orecchioni (2005, p. 110144), los agradecimientos y las disculpas presentan analogías
evidentes en su ritual de realización (a) por prestarse a innúmeras formulaciones directas e indirectas, (b) por constituirse
como actos de discurso a partir de un intercambio ternario, (c)
por suscitar una reacción y (d) por tener la función común de
restablecer el equilibrio ritual de la interacción.
De hecho, estos dos actos rituales son fundamentales para
satisfacer las exigencias de imagen de los participantes y para
mantener una relativa armonía entre los interactantes. El agradecimiento es un acto determinado por un acto previo que redunda en beneficio del hablante: las fórmulas de agradecimiento
compensan simbólicamente el coste invertido por el oyente en
beneficio del hablante. Ya en la disculpa se da a conocer que se
ha violado una norma social sintiéndose el hablante al menos
parcialmente responsable de dicha violación (HAVERKATE,
1994, p. 93, 97).
La observación de situaciones en las que se reconoce verbalmente que hubo un “regalo” o una “ofensa”, su importancia y
frecuencia en los intercambios cotidianos, nos permiten analizar
situaciones particularmente representativas del funcionamiento
de la cortesía en diferentes comunidades socioculturales. Este
trabajo pretende ser un estudio preliminar a partir del cual se
nos permita organizar un repertorio inicial de temas y problemas para posterior sistematización. A partir de las definiciones
y categorías propuestas por Kerbrat-Orecchioni (2005, 2006),
queremos saber, antes de todo, cómo se realizan lingüísticamente
los actos de disculpas, en qué contexto y para qué se utilizan en
distintos centros urbanos de Ibero América. En otra oportunidad
analizaremos y discutiremos los actos de agradecimientos, ya
que estos dos actos del discurso presentan muchísimos paralelismos y complementariedad de funciones.
Trabajamos con una muestra de nueve películas contemporáneas ambientadas en ocho diferentes centros urbanos: Fresa
y chocolate (Cuba, 1993), Carne Trémula (España, 1997), Amores
Perros (México, 2000), Tinta Roja (Perú, 2000), Taxi para tres (Chile,
2001), Amores Possíveis (Brasil, 2001), El hijo de la novia (Argentina,
2001), Cidade de Deus (Brasil, 2003), María llena eres de gracia (Colombia, 2004). En cada drama cinematográfico controlamos la
formulación utilizada y su respectivo acompañamiento mímico,
la “ofensa”, el lugar de interacción, la relación social entre los
254
Gragoata 22.indb 254
Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:28:04
Perdón, desculpa, desculpa aí La expresión de las disculpas en el cine iberoamericano
personajes bien como el tipo de interacción. Los resultados son
cuantitativamente desiguales, sin embargo, a partir de factores
de variación, verbales y no verbales, podemos reconocer diferencias de funcionamiento válidas como primer acercamiento
al tema.
Nuestra propuesta es: (a) repertoriar el conjunto de fórmulas rituales, fosilizadas o no, que permiten expresar las disculpas
en diversas comunidades iberoamericanas y (b) comparar la naturaleza de las ofensas en las diferentes comunidades iberoamericana. Esta comparación inicial nos permitirá, oportunamente,
establecer un cuadro de variación a fin de detectar diferencias
en el funcionamiento del sistema de cortesía en comunidades
socioculturales brasileñas frente a otras comunidades iberoamericanas.
2 Las disculpas en los guiones hispánicos y brasileños
2.1 El repertorio de fórmulas y estructuras por localidad
En los siete guiones hispánicos observamos 74 pedidos
de disculpas. Se trata de formulaciones directas o indirectas.
De los 74 pedidos de disculpas identificados, 80% (59 casos) son
formulaciones directas (que se constituyen en la muestra a partir
de formas verbales imperativas, elípticas o performativas). Predominan las estructuras con verbos en Imperativo, 64% de las
ocurrencias (37 casos), seguidas de las Fórmulas Elípticas, 32 %
(19 casos), como se puede constatar en la Tabla 1a.
Tabla 1a: Disculpas en los guiones hispánicos: total de fórmulas lingüísticas directas
Comparativamente, la Formulación Imperativa directa
es la más frecuente en toda la muestra, sin embargo hay varia­
ción respecto a la selección del verbo en Imperativo: ¿perdonar
o disculpar?
Como se ve en la Tabla 1b, el guión español y el mexicano
presentan un comportamiento similar respecto a la selección del
verbo, en ambos sólo se usa el imperativo con perdonar. En los
guiones cubano, peruano, argentino y colombiano hay variación entre las dos formas, pero predomina, excepto en el guión
colombiano, perdonar sobre disculpar. Ya en el guión chileno sólo
se usa el imperativo con disculpar.
Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 255
255
6/11/2007 14:28:05
Gragoatá
Flávia de Almeida Monteiro, Célia Regina dos Santos Lopes, Leticia Rebollo Couto
Tabla 1b: Disculpas en los guiones hispánicos: las fórmulas lingüísticas directas
La segunda forma más frecuente es la forma elíptica
perdón, que aparece prácticamente en todos los guiones como
una estrategia fosilizada para situaciones de cortesía más convencionales, y repara mayoritariamente faltas conversacionales
como interrupción de intercambio, primer perdón del Ejemplo 1,
o gaffes verbales (lo dicho) y no verbales (una risa, una mirada
inapropiada), segundo perdón del Ejemplo 1:
(1)
Rafael – Sciacalli: “Sciacalli...Perdón. Mi ex mujer. Qué bárbaro
sería ser viudo, ¿no?”
Sciacalli – Rafael: “Yo soy viudo.”
Rafael – Sciacalli: “Uy, Perdón.” (El hijo de la novia, Argentina,
2001: 13)
Cuanto a las 15 realizaciones indirectas o implícitas (que
se constituyen en la muestra a partir de enunciados descriptivos, interrogativos o interrogativos elípticos), los pedidos de
disculpas indirectos descriptivos son los más productivos, con
un 67% (11 casos). Predomina en este contexto la fórmula ritual
fosilizada “lo siento” (05 casos), como se ve en la Tabla 2.
256
Gragoata 22.indb 256
Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:28:08
Perdón, desculpa, desculpa aí La expresión de las disculpas en el cine iberoamericano
Tabla 2: Disculpas en los guiones hispánicos: las fórmulas lingüísticas indirectas
En el guión español la fórmula lo siento parece tener contextos y frecuencia de uso diferentes a lo que observamos en los
demás guiones en español.
(2)
Elena – Víctor: “Desde que has salido de la cárcel te veo por
todos lados...”
Víctor – Elena: “Lo siento, pero vivimos en la misma ciudad.”
(Carne Trémula, España – Almodóvar, 1997, p. 148)
Se trata de una variante coloquial de las formas imperativas
del verbo perdonar y es incluso más frecuente que perdón en la
película que analizamos. La alta frecuencia de uso de esta forma
en la norma castellana explicaría variaciones coloquiales como
se siente, dicho en tono de broma alargando la vocal final, bastante frecuente en conversaciones familiares. Ya en los guiones
mexicano y colombiano, lo siento se limita a fórmula de cortesía
convencional frente a la tarea de transmitir malas noticias:
(3)
Nacho (médico) – Daniel: “Se presentó un cuadro de gangrena
avanzada y tuve que amputarle la pierna. Lo siento, Daniel.”
(Amores Perros, México – GONZÁLEZ, 2000, p. 40)
Respecto a las formulaciones indirectas, en ¿me perdonas? la
interrogación intensifica el pedido de disculpas ya formulado:
(4)
Faundez – Rosana: “Hola amor. Sí, perdona, ... yo sé que debí
avisarte, pero estuve muy mal, todo el día en cama sin poder
moverme... el hígado otra vez, sí ¿me perdonas?” (Tinta Roja,
Perú – LOMBARDI, 2000, p.70)
Sin embargo, en ¿perdón? la interrogación y la forma elíptica fosilizan una expresión de desacuerdo en forma de unidad
discursiva diferente a la simple forma elíptica perdón, se trata de
Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 257
257
6/11/2007 14:28:17
Gragoatá
Flávia de Almeida Monteiro, Célia Regina dos Santos Lopes, Leticia Rebollo Couto
un marcador conversacional cuya función pragmática es una petición indirecta de repetición y de desacuerdo por algo dicho:
(5)
Faundez – Alfonso: “ ¿Y tú? ¿Desde cuándo que no remojas la
guasamandrapa?”
Alfonso – Faundez: “¿Perdón?” (Tinta Roja, Perú – LOMBARDI,
2000, p. 36)
La Tabla 3 ilustra la distribución general de las 24 fórmulas
de disculpas encontradas en los guiones brasileños, frente a las
74 de los guiones hispánicos.
En los guiones brasileños también predominan las formas
directas Imperativas (88%) pero con importantes variaciones
sociales en la morfología verbal. Brasil (A) es el Brasil de Amores
Possíveis, clase media alta de la zona sur de Río, mientras que
Brasil (B) es el Brasil de Cidade de Deus, clase media baja, cuya
circulación es bastante más limitada al universo de la favela y del
tráfico de drogas. Con menos escolaridad, este Brasil (B) tiene un
acceso a la cultura letrada más restricto, desempeña roles sociales más marginados y tiene sus ingresos económicos bastante
limitados al narcotráfico. Estas diferencias de distribución social
repercuten en la selección de formas lingüísticas, incluso en actos
tan ritualizados como los agradecimientos y disculpas.
Tabla 3: Disculpas en los guiones brasileños - las estrategias lingüísticas
En los dos guiones en portugués, la forma verbal predominante es desculpar. Y la forma más frecuente o menos marcada, desculpa, parece estar en franco proceso de lexicalización o
discursivización, considerando que sólo guarda resquicios de
flexión verbal en situaciones menos coloquiales en Brasil (A). En
Brasil (B) la flexión verbal no aparece en nuestros datos, ni para
marcar distancia interpersonal ni para marcar plural.
En Brasil (A) la forma Imperativa del verbo desculpar no
marcada, desculpa, alterna en registros menos coloquiales con las
formas desculpe/me desculpe, en singular, o desculpem, en plural.
258
Gragoata 22.indb 258
Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:28:22
Perdón, desculpa, desculpa aí La expresión de las disculpas en el cine iberoamericano
(6)
Julia – Carlos e Sonia: “Desculpem o atraso.” (Amores Possíveis,
Brasil – HALM, 2001, p. 98)
(7)
Garçom – Julia: “Desculpe, senhora, mas aqui é área reservada
para não-fumantes.”
Julia – Garçom: “Mas o senhor não está entendendo... O senhor
é que me desculpe. Mas está vendo essa coisa linda aqui, essa
gracinha? Eu sou louca por ele, sou apaixonada por ele e tudo
isso foi arrumado para a mãe dele me conhecer. Ela tem que
me aceitar. Tem que me aprovar.”
Garçom – Julia: “A senhora me desculpe, mas vou ter que chamar o maître.” (Amores Possíveis, Brasil– HALM, 2001, p. 99)
Las formas flexionadas y el clítico aumentan la distancia
interpersonal entre camarero/cliente en el Ejemplo 6, o en el
primer encuentro entre nuera/suegra, en el Ejemplo 7. La forma
foi mal, al contrario, se observa entre la generación más joven en
situación más coloquial e igualitaria y marca menos distancia
interpersonal.
(8)
Julia – Carlos: “Foi mal, Carlos, isso nunca tinha me acontecido
antes... Você foi a primeira pessoa que deixou que eu a algemasse na cama” (Amores Possíveis, Brasil– HALM, 2001, p. 81)
Esa gradación de distancia interpersonal a partir de desculpa, la forma no marcada, en Brasil (A): [me
desculpe→desculpe→desculpa→foi mal] se da en Brasil (B) exclusivamente entre [desculpa→desculpa aí], o sea, se marca apenas la
aproximación coloquial con desculpa aí, sin que aparezca ningún
caso de distanciamiento con desculpe o con los clíticos me desculpe/
me desculpa. En Brasil (B) la forma Imperativa del verbo desculpar
no marcada y más frecuente, también es desculpa, que en este
contexto sociocultural alterna en registros más coloquiales con
desculpa aí (variante del desculpa lá de Lisboa?). Las formas marcadas acortan la distancia interpersonal, reafirmando los lazos
de afiliación, como en este saludo inicial del narrador al público
cuando empieza a contar su historia en la película:
(9)
Busca-Pé (V.O.): “Desculpa aí. Esqueci de me apresentar.” (Cidade de Deus, Brasil - MEIRELLES; MANTOVANI, 2003, p. 21)
La forma desculpa aí corresponde en este caso a una variante
más coloquial de desculpem, sin flexión verbal de plural, y que
sería más normativa para una interlocución al público. En los
Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 259
259
6/11/2007 14:28:23
Gragoatá
Flávia de Almeida Monteiro, Célia Regina dos Santos Lopes, Leticia Rebollo Couto
dos guiones brasileños la fórmula desculpa puede estar a medio
camino de fosilización y configurarse como una estrategia elíptica de las formas verbales imperativas desculpa-me, desculpe-me, o
quizás del enunciado preformativo eu te peço desculpas. El verbo
perdoar sólo aparece en la fórmula me perdoa? y como en los guiones en español, Ejemplo 4, ocurre en relaciones de pareja. En el
Ejemplo 10, el que se fue pide que se le acepte de vuelta, se trata
de una ofensa relacional, haber abandonado al otro:
(10)
Carlos 2 – Pedro 2: “Eu amo você, Pedro. Me perdoa?”
Pedro 2 – Carlos 2: “Tá bom. É muito chato jogar sozinho mesmo.” (Amores Possíveis, Brasil– HALM, 2001, p. 129)
Las formas más largas, con clíticos, me perdoa, me perdoe,
también aumentan la solemnidad del pedido de disculpas en
el portugués de Brasil que tiende, al contrario del español, a
marcar como vacía la categoría del objeto y a reducir el sistema
de clíticos en el lenguaje coloquial.
Además, en portugués, la fusión de paradigmas entre las
formas de tratamiento você y tu hizo que la forma en Imperativo
prevalezca con desculpa. Las demás variaciones matizan tanto el
acercamiento social (desculpa aí, foi mal) como la tomada de distancia (desculpe, desculpem) una vez que las flexiones personales
se han ido perdiendo con la reducción de morfología verbal para
marcar diferencias de tratamiento y de registros más o menos
coloquiales.
2.2 Tipos de ofensas en guiones hispánicos y brasileños
Según Kerbrat-Orecchioni (2005, p.140), el pedido de disculpas es un acto reparador del discurso. El locutor lo utiliza
para obtener de su destinatario algún tipo de perdón por una
ofensa, que supone haber cometido o que realmente cometió.
La ofensa sería el acontecimiento previo que desencadena el
ritual del pedido de disculpas: FTA (ofensa del Locutor) + FFA
(disculpas del Locutor) = Reequilibrio de la relación. La ofensa,
las disculpas y una posible reacción, constituyen los tres elementos
constitutivos del ritual de disculpas.1
En el análisis de los guiones establecimos básicamente
tres niveles de ofensas que desencadenaron actos reparadores
de disculpas. La Tabla 4 contrasta la frecuencia de ofensas que
han sido motivos de disculpas en los guiones analizados en
español y en portugués:
260
Gragoata 22.indb 260
Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:28:23
Perdón, desculpa, desculpa aí La expresión de las disculpas en el cine iberoamericano
Tabla 4: Tipos de ofensas en español y en portugués
Las ofensas conversacionales fueron las que han provocado
un mayor número de disculpas en español (57%) y en portugués
(41%). Consideramos ocho tipos de ofensas conversacionales: (a)
identificación, (b) inicio de intercambio, (c) interrupción de intercambio (d) interrupción de turno de habla, (e) manera de hablar,
(f) desacuerdo, (g) malas noticias, (h) rechazo de ofrecimiento e
(i) gaffes o inadecuaciones verbales y no verbales.
En español, las ofensas conversacionales más reparadas
por pedidos de disculpas han sido las relacionadas con identificación 24% (10 casos), manera de hablar 19% (8 casos) y desacuerdo
19% (8 casos):
• identificación: del destinatario al comienzo del intercambio
(11)
Carla – María: “Perdón. ¿Cómo se llama ot ra vez?”
María – Carla: “María Álvarez.” (María llena eres de gracia, Colombia, 2004, p. 19)
• manera de hablar: insultos, gritos
(12)
Daniel – Valeria: “Pues bueno ¿qué chingados quieres? Perdona.
Perdona. Vas a ver que todo va a salir bien” (Amores Perros,
México – GONZÁLEZ, 2000, p. 37)
• desacuerdo
(13)
Juanqui – Ortega: “Bueno...a... es decir... ser lo más objetivo
posible, verificar las fuentes, comprobar los datos”
“Ortega mira a Juanqui como si éste fuera un retrasado mental.”
Ortega – Juanqui: “¿Perdón? ¿Usted lleva trabajando más de
dos meses en El Clamor? (Sonríe despectivo) A ver, dígame,
¿entretener o informar?” (Tinta Roja, Perú – LOMBARDI, 2000,
p. 75)
Los problemas de identificación al inicio del intercambio se
oponen por su posición inicial en la interacción a las interrupciones de intercambio, que al final de la interacción fueron objeto
Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 261
261
6/11/2007 14:28:24
Gragoatá
Flávia de Almeida Monteiro, Célia Regina dos Santos Lopes, Leticia Rebollo Couto
de disculpas en 7% de las ocurrencias en español (3 casos) y en
10% de las ocurrencias en portugués (1 caso). Sin embargo, las
disculpas por interrupción de turno de habla o para iniciar intercambio, que fueron objeto de disculpas en 5% de las ocurrencias
en español (2 casos cada una), no fueron objeto de disculpas en
portugués lo que podría señalar una diferencia de comportamiento conversacional que valdría la pena analizar y discutir
posteriormente con otro tipo de datos o con testes de hábitos
sociales (HERNÁNDEZ FLORES, 2003).
Otra práctica conversacional que merecería la pena analizar posteriormente es el papel del desacuerdo y de los insultos
al interlocutor, ambos objeto de disculpas en español, y que se
verifican con poca o ninguna frecuencia en los guiones en portugués. Las disculpas por la manera de hablar de los hombres en
español, que gritan o insultan, llegan a un 19% (8 casos) de los
datos, mientras que en portugués son apenas un 10% (1 caso), y
el desacuerdo tanto en relaciones personales como transaccionales, tratado con o sin humor, llega a un 19% en español (8 casos)
frente a un 10% en portugués (1 caso irremediable en el que el
camarero no tiene otra opción sino la del desacuerdo).
En portugués, las ofensas conversacionales más reparadas por pedidos de disculpas han sido las relacionadas con
desacuerdos 30% (3 casos), identificación 20% (2 casos) y rechazo de
ofrecimiento 20% (2 casos).
Los tres casos de desacuerdo forman parte de la misma
interacción transaccional, están en la misma secuencia conversacional y se refieren a una misma acción: fumar en área de
no fumadores. El desacuerdo entre camarero y cliente recubre
peticiones indirectas: dejar de fumar o seguir fumando, como
se vio en el Ejemplo 7.
Asimismo, el rechazo de un ofrecimiento con disculpas
corresponde a un 20% en portugués (2 casos) frente a un 2% en
español (1 caso). O sea, en portugués se rechazan los ofrecimientos mayoritariamente con disculpas mientras que en español con
agradecimientos (13 casos).
• rechazo de ofrecimiento en español
(14)
Juan Carlos – Rafael: “¿Querés un maní?”
Rafael – Juan Carlos: “No, no, gracias. Ya tengo.” (El hijo de la
novia, Argentina – CAMPANELLA, 2001, p.158)
El único caso con disculpas para rechazar ofrecimiento
en español, frente a los 13 casos con agradecimientos, se da
en una situación bastante tensa de interrogatorio, en el guión
chileno, entre policía y sospechoso, en una relación jerárquica
de inferior para superior. Y el único caso con agradecimiento
262
Gragoata 22.indb 262
Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:28:24
Perdón, desculpa, desculpa aí La expresión de las disculpas en el cine iberoamericano
para rechazar ofrecimiento en portugués, frente a los casos con
disculpas se da también en un situación tensa, cuando uno de
los principales traficantes invita a una chica a bailar en un baile
funk en la citadela.
• rechazo de ofrecimiento en portugués
(15)
Zé Pequeno – Jovem: “Você quer dançar comigo?”
Jovem – Zé Pequeno: “Ah não, obrigada. Eu tô
acompanhada.” (Cidade de Deus, Brasil - MEIRELLES;
MANTOVANI, 2003, p.134)
En ambos casos el agradecimiento en rechazos acompaña invariablemente una negación atenuada (repetición no,
no o marcador discursivo ah não) y una justificativa (ya tengo o
eu tô acompanhada). Sin embargo, en los guiones en portugués
se prefiere rechazar ofrecimientos con disculpas (2 casos en
portugués y 1 caso en español). Para Nieves Hernández Flores
(2001) el ofrecimiento en España no es una amenaza a la imagen
negativa y su rechazo no es una amenaza a la imagen negativa,
sin embargo en portugués de Brasil, rechazar ofrecimientos,
desacuerdos y humor sarcástico o irónico sí parecen amenazar
la imagen positiva.
Las disculpas conversacionales, por gaffes verbales o no, son
también más frecuentes en los guiones en español 14% (6 casos)
que en los guiones en portugués 10% (1 caso). Como se ve en la
Tabla 4, en los guiones en español la frecuencia de disculpas en
ofensas conversacionales (57%) es bastante más alta que en los
demás tipos de ofensas (territoriales y relacionales), mientras
que en los dos guiones brasileños, las disculpas conversacionales
(41%) son prácticamente tan frecuentes como las disculpas por
ofensas territoriales (38%), sobretodo las que están relacionadas
a lo físico.
Separamos las ofensas territoriales, según el tipo de atropello al territorio espacial, temporal o físico del otro y verificamos
que en portugués las disculpas se concentran en el territorio más
concreto o más material. Registramos 18 ofensas territoriales en
español y 9 en portugués.
El 78% de las disculpas por ofensas territoriales que registramos en portugués (7 casos) se refieren a apenas tres actos
concretos, uno haberle tirado la bicicleta al piso a un traficante,
otro haberle estropeado la pared del bar a un comerciante con
el coche en Brasil (B) y el tercero haber esposado al amante a la
cama y no conseguir luego abrir las esposas, en Brasil (A).
Se trata de ofensas más materiales comparadas al 56% de
disculpas físicas en español (10 casos) que se refieren a ofensas verbales (por molestar con ruido o con un cumplido no
deseado sobre el aspecto físico del interlocutor) o a ofensas no
Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 263
263
6/11/2007 14:28:25
Gragoatá
Flávia de Almeida Monteiro, Célia Regina dos Santos Lopes, Leticia Rebollo Couto
verbales como: (a) tomarle un objeto a alguien (foto, comida),
aunque también observamos ofensas por (b) lastimar a alguien
(golpearlo, quemarlo) o (c) hacerle pedidos referente al físico
(hacerle donar sangre o pedirle que tenga relaciones sexuales
con alguien). Las ofensas como “quemar a alguien” o “pedirle
que tenga relaciones sexuales” ponen en riesgo la relación de
amistad y son objeto de dos pedidos de disculpas consecutivos
en el mismo intercambio.
El 33% de las ofensas territoriales en español (6 casos) se
refieren a una invasión de espacio físico, al entrar en el territorio
del otro (casa, dormitorio, despacho), pero son apenas el 6% en
portugués (1 caso).
• territorio espacial en español
(16)
Sandra – Rafael: “No avisaste que subías.”
Rafael – Sandra: “Ah, Perdón” (El hijo de la novia, Argentina –
CAMPANELLA, 2001, p. 90)
• territorio espacial en portugués
(17)
Carlos – Julia: “Desculpa vir sem avisar... é que eu precisava ver
o Lucas…” (Amores Possíveis, Brasil – HALM, 2001, p. 67)
Se trata del mismo contexto, el ex-marido que llega sin
avisar para dejar o venir a ver el hijo que vive con la madre, sin
embargo, la disculpa en el guión argentino es reactiva, provocada
por una crítica de la mujer, mientras que en el guión brasileño,
es un acto iniciativo, más conciliador, por parte del hombre. Las
disculpas en el guión argentino están atenuadas por la interjección ah, y por el tono que marca un pedido más convencional
de alguien que no está muy convencido de la ofensa, algo que
en portugués correspondería a un tá bom, desculpa o sino a un
então, desculpa.
Las ofensas relativas al territorio temporal (llegar tarde)
también son algo más importantes en español 11% (2 casos) que
en portugués 6% (apenas 1 caso). En portugués el pedido de
disculpas parece más relacionado a ofensas más materiales y a
situaciones en las que corre riesgo la continuidad de la relación
social.
El tercer tipo de ofensa es el que consideramos como ofensa relacional, sea personal o transaccional. Este tipo de ofensa
está basado en algún tipo de incumplimiento de expectativas
en las relaciones interpersonales o transaccionales. Registramos
14 ofensas relacionales en español y 5 en portugués. En las relaciones personales se considera en estos casos que se ha fallado
como pareja como amigo, como padre o hijo. Y en las relaciones
264
Gragoata 22.indb 264
Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:28:25
Perdón, desculpa, desculpa aí La expresión de las disculpas en el cine iberoamericano
transaccionales, se considera que se ha fallado en su rol social
como ciudadano o como vendedor. La mayoría de las ofensas
relacionales que observamos en los guiones pertenecen a la esfera de las relaciones interpersonales: 86% (12 casos) en español
y 80% (4 casos) en portugués.
• parejas
(18)
Carlos – Julia: “Me desculpa...”
Julia – Carlos: “Te desculpar? Eu quero que você morra!” (Amores
Possíveis, Brasil - HALM , 2001, p.125)
• amistad
(19)
Chavelo – Ulises: “Compadre, fue culpa mía, por eso, quiero
arreglarlo. Usted me había pedido un último favor para salir
de toda esta mierda y yo estoy en deuda con usted.” (Taxi para
tres, Chile – LÜBERT, 2001, p. 83)
En relaciones transaccionales, encontramos 1 pedido de
disculpas en portugués (20%), se trata de una relación de compra
y venta (error del vendedor al describir o presentar el producto)
y 2 disculpas en español (14%), en los dos casos se trata de peticiones indirectas en la negociación con la autoridad respecto a
infracciones civiles, sea en el restaurante sea en la vía pública:
• autoridad
(20)
Rafael – Policía: “(Sigue. Cuelga. Frena).”
“Sí, discúlpeme, oficial, ya sé, venía hablando por el celular.
¿Sabe qué pasa? Tengo a mi mujer embarazada, y estoy…” (El
hijo de la novia, Perú – CAMPANELLA, 2001, p. 20)
Los resultados importantes de disculpas con ofensas conversacionales por motivos tan diversificados se deben tanto al
carácter más formulaico y ritualizado del acto de disculparse en
algunos contextos, tanto a un trabajo estratégico de preservación de imagen en la relación interpersonal. Las primeras serían
disculpas menos intensificadas, mientras que las segundas
más. En los guiones brasileños hay diferencias, sobretodo en
el guión de Brasil (B) que evidencia relaciones sociales menos
convencionalizadas de convivencia interpersonal. El tema de la
película podría condicionar los resultados, considerando que
en las interacciones entre traficantes en Brasil (B), problemas
de identificación, manera de hablar o desacuerdos verbales no serían
objetos legítimos que demanden un pedido de disculpas. Tampoco es importante aumentar la distancia interpersonal: desculpe/
desculpem, sino más bien acortarla: desculpa aí.
Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 265
265
6/11/2007 14:28:25
Gragoatá
Flávia de Almeida Monteiro, Célia Regina dos Santos Lopes, Leticia Rebollo Couto
Conclusiones
Las disculpas refuerzan la cortesía positiva y contribuyen a
la armonía de las relaciones sociales pero las normas que subyacen al conocimiento de los hablantes acerca de qué se considera
apropiado decir a quién, y en qué circunstancias, varían considerablemente de una comunidad lingüística a otra, tanto entre
grupos idiomáticos diferentes, como también - lo que es más
difícil de determinar – en el interior de los mismos. La variedad
cultural se manifiesta, por ejemplo, en el carácter opcional u obligatorio del agradecimiento o la disculpa en una situación dada
u otra. También el carácter obligatorio u opcional de la reacción
al agradecimiento o a la disculpa está sujeta a normas culturales
variables, bien como su intensificación o el cumplimiento cortés
de otros actos del discurso tales como peticiones, o rechazos de
ofrecimientos (BRAVO; BRIZ, 2004).
Como resultado preliminar, observamos que hay algunas
diferencias en el uso de disculpas en las comunidades hispánicas
o brasileñas cuanto a:
1. Las formulaciones de las disculpas están bastante relacionadas a los diferentes sistemas verbo-pronominales en
lo que se refiere a las formas de tratamiento.
2. Las ofensas en los guiones en portugués tienden a ser más
materiales y concretos que en los guiones en español pero
habría que detallar mejor esta variación en cada comunidad sociocultural con otro tipo de dato o análisis.
Para un estudio más completo, vale la pena controlar
otros factores, como lo señala Kerbrat-Orecchioni (2005). Sería
importante verificar cuando y con que frecuencia son actos iniciativos o reactivos. Considerar también el tercer elemento de
este intercambio ternario, o sea los tipos de reacción al acto de
disculpar. Además de analizar y discutir la posición de estos
actos reparadores en el intercambio: su función de apertura,
desarrollo o cierre conversacional.
La observación de guiones cinematográficos contemporáneos nos permite discutir, en un primer momento, algunas
diferencias interculturales respecto al desacuerdo, al humor y
a la manera de hablar en la conversación que tendrán que ser,
a posteriori, testadas en corpus de naturaleza no-ficcional y con
cuestionarios y encuestas aplicados a diferentes comunidades
socioculturales en portugués y en español.
Sin embargo, este tipo de estudio nos permite inferir algunas reglas referentes a los sistemas de cortesía que rigen las
prácticas sociales en comunidades socioculturales iberoamericanas. Consideramos que estos tipos de estudios son un claro
aporte a la enseñanza de Lenguas Extranjeras tanto del Español
(HICKLEY, 2004; DUMITRESCU, 2005) como del Portugués de
Brasil (FAVERO; AQUINO, 2001; KOIKE, 1992), pues aunque se
266
Gragoata 22.indb 266
Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:28:26
Perdón, desculpa, desculpa aí La expresión de las disculpas en el cine iberoamericano
trate de un campo clásico de la pragmática contamos con pocos
análisis o descripciones que busquen comparar, en estas dos
lenguas, diferencias de variación y orientar mejor la prevención
de posibles mal entendidos culturales.
Abstract
The aim of this article is to identify the group of ritual
formulas, whether crystallized or not, that express apologies in different Iberian and American communities
and compare the nature of offenses that demand acts
of reparation. The analysis involves nine contemporary movies exhibiting eight different urban centers:
Cuba, Spain, Mexico, Peru, Chile, Brazil, Argentina,
and Colombia. Preliminary results show some differences in the use of apologies between Hispanic and
Brazilian communities concerning a) the formulations
of the apology and b) the types of offenses demanding
apology. In their direct formulations, the apology is
necessarily related to the verbal and pronominal system
of addressing in the following forms: ustedeo, tuteo,
voseo in Spanish, neutralization of tu/você in Portuguese, and the corresponding interpersonal relations
in social and cultural context.
Keywords: Discourse acts; Apologies; Politeness;
Addressing forms.
Referências
Almodóvar, P. Carne trémula. Madrid: Plaza Janés, 1997.
Blum-Kulka, S.; HOUSE, J.; KASPER, G. (Ed.). Cross-cultural
pragmatics: requests and apologies. Norwood: Ablex, 1989.
BRAVO, D.; BRIZ, A. Pragmática sociocultural: estudios sobre el
discurso de cortesía en español. Barcelona: Ariel, 2004.
BROWN, P.; LEVINSON, S. C. Politeness: some universals in language usage. Cambridge: Cambridge University Press, 1987.
CAMPANELLA, J. El hijo de la novia. Buenos Aires: Del Nuevo
Extremo, 2002.
DUMITRESCU, D. Agradecer en una interlengua: una comparación entre la competencia pragmática de los estudiantes
nativos y no nativos del español en California, Estados Unidos.
In: COLOQUIO DEL PROGRAMA EDICE: actos de habla y
cortesía en distintas variedades del español: perspectivas teóricas
y metodológicas, 2., 2005, Estocolmo. Actas… ������������������
Estocolmo: Universidad de Estocolmo, 2005.
Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 267
267
6/11/2007 14:28:26
Gragoatá
Flávia de Almeida Monteiro, Célia Regina dos Santos Lopes, Leticia Rebollo Couto
FAVERO, Leonor Lopes; AQUINO, Zilda G. O. Os atos de agradecimento. In: URBANO, Hudinilson et al. Dino Preti e seus
temas: oralidade, literatura, mídia e ensino. São Paulo: Cortez,
2001. p. 107-117.
GONZÁLEZ, A. Amores perros. México: [s.n.], 2000. Versión manuscrita de los diálogos de la película.
GUMPERZ, J.J. Discourse strategies. Cambridge: Cambridge University Press, 1982.
GUTIÉRREZ ALÉA, Tomás. Fresa y chocolate. La Habana, 1993.
Versión manuscrita de los diálogos de la película.
HALM, P. Amores possíveis. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
HAVERKATE, H. La cortesía verbal: estudio pragmalingüístico.
Madrid: Gredos, 1994.
HERNÁNDEZ FLORES, N. Los tests de hábitos sociales y su uso
en el estudio de la cortesía: una introducción. In: COLOQUIO
DEL PROGRAMA EDICE: la perspectiva no etnocentrista de la
cortesía: identidad sociocultural de las comunidades hispanohablantes, 1., 2003, Estocolmo. Actas… Estocolmo: Universidad
de Estocolmo, 2003.
______. Politeness in invitations and offers in Spanish Colloquial
Conversation. Communicating Cultura, [S.l.], p. 29-40, 2001.
HICKEY, L. Politeness in Spain: thanks, but no “thanks”. In:
HICKEY, L.; STEWARD, M. (Ed.). Politeness in Europe. Clevedon:
Multilingual Matters, 2004.
KERBRAT-ORECCHIONI, C. Análise da conversação princípios e
métodos. Traducción de Carlos Piovezani Filho. Paris: Seuil, 2006.
Título original: La conversation (1996).
______. ¿Es universal la cortesía? In: BRAVO, D.; BRIZ, A. (Ed.).
Pragmática sociocultural: estudios sobre el discurso de cortesía en
español. Barcelona: Ariel, 2004.
______. Os atos de linguagem no discurso: teoria e funcionamento.
Traducción de Fernando Afonso de Almeida & Irene Ernest Dias.
Niterói: Eduff, 2005. Título original: Les actes du langage dans le
discours (2001).
KOIKE, D. Language and social relationship in Brazilian Portuguese:
the pragmatics of politeness. Austin: The University of Texas
Press, 1992.
LAKOFF, R. La lógica de la cortesía, o acuérdate de dar las gracias. In: JULIO, M. T.; MUÑOZ, R. Textos clásicos de pragmática.
Madrid: Arco Libros, 1998.
LOMBARDI, F. Tinta Roja. Lima: [s.n.], 2000. Versión manuscrita
de los diálogos de la película.
LÜBERT, O. Taxi para tres. Santiago de Chile: [S.n.], 2001. Manuscrito de la versión final enviada por el autor.
268
Gragoata 22.indb 268
Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:28:26
Perdón, desculpa, desculpa aí La expresión de las disculpas en el cine iberoamericano
MÁRQUEZ REITER, R.M.; PLACENCIA, M.E. Spanish pragmatics.
Palgrave: Macmillan, 2005.
MARSTON, J. María, llena eres de gracia. Bogotá: [s.n.], 2004.
Versión manuscrita de los diálogos de la película.
MEIRELLES, F.; MANTOVANI, B. Cidade de Deus. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2003.
PLACENCIA, M. E.; BRAVO, D. Actos de habla y cortesía en español.
Munich: Lincom Europa, 2002.
Agradecimientos
Agradecemos a Catherine Kerbrat-Orecchioni todas las
agradables conversaciones y sugerencias sobre el funcionamiento de la cortesía en situaciones de relación intercultural. Al
Grupo Coimbra de Becas europeas y al proyecto Valibel, de la
Universidad Católica de Lovaina, por habernos propiciado las
condiciones de escritura de este trabajo.
Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 269
269
6/11/2007 14:28:26
Gragoata 22.indb 270
6/11/2007 14:28:26
Resenhas
Gragoata 22.indb 271
6/11/2007 14:28:26
Gragoata 22.indb 272
6/11/2007 14:28:27
Pizarro, Ana. O sul e os trópicos. Niterói: EdUFF, 2006.
PIZARRO, Ana. O sul e os trópicos. Niterói: EdUFF, 2006.
Lívia Reis
Última obra da escritora chilena, publicada originalmente
na Espanha em 2005, O sul e os trópicos, ensaios de cultura latinoamericana, mantém-se fiel ao espírito questionador e polêmico
presente na obra anterior de Ana Pizarro e, ao mesmo tempo,
avança em algumas dimensões ainda pouco contempladas em
trabalhos anteriores. Em permanente diálogo com críticos de
seu tempo, como García Canclini e Cornejo Polar, os ensaios
que compõem a coletânea trazem inquietações com questões
basilares dos estudos de cultura na América Latina, como por
exemplo, a complexa e controversa noção de América Latina e
suas articulações culturais e históricas em torno da unidade e
diversidade, além das constantes preocupações com uma historiografia literária da e para a América Latina.
De certa forma a obra de Ana Pizarro é herdeira daqueles
que primeiro pensaram o continente e buscaram conceber uma
nova a história literária: Martí, González Prada, Mariátegui,
Pedro Henrique Ureña, posteriormente Angel Rama e Antonio
Candido. Todos estes intelectuais propuseram questões que
conduziram a questionamentos densos e complexos a respeito
da cultura e da literatura latino-americana e terminaram por
formular novas propostas metodológicas, mediante os câmbios
e os deslocamentos de seus objetos de estudo.
Ancorada na noção de “sistema literário” forjado por Candido, que perpassa os debates propostos, a autora abre um leque
de questionamentos que alavancam suas reflexões em torno
de temas que exigem urgência no cenário da crítica da cultura
na América Latina. A partir desta urgência, Ana Pizarro abre
a coletânea questionando a situação cultural da modernidade
tardia na América Latina. Em seguida, sua reflexão volta-se aos
questionamentos centrados no campo da história. A partir deste
campo cria pontes com a historiografia literária, com a relação
história e ficção, e ainda propõe interrogar os espaços, tempos,
períodos históricos e regiões culturais do sub-continente. Ao longo dos capítulos a reflexão avança para questões conceituais que
freqüentam a critica cultural da atualidade, como as problemáticas ligadas à mestiçagem e ao hibridismo, as de deslizamentos
causados por viagem e exílio, além de problemas levantados a
partir das vanguardas históricas dos anos 20. Também o papel
desempenhado pelas primeiras escritoras no início do século
XX são motivo para a arguta reflexão da escritora chilena que
encerra o volume com uma análise sobre o impacto da indústria
de bens culturais, a TV e o cinema na cultura periférica.
Todos os temas elencados aparecem em um, às vezes, em
mais capítulos discutidos, resgatados, reavaliados, redimensionados sob diversos ângulos e olhares. Por trás da preocupação
Niterói, n. 22, p. 273-274, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 273
273
6/11/2007 14:28:27
Gragoatá
Lívia Reis
com a construção de um arcabouço teórico que dê sustentação
a uma historiografia literária aberta aos estudos de cultura, sua
relação com os imaginários e sua vinculação com a história,
os ensaios se encaixam conduzindo a reflexão e a leitura pelos
diferentes espaços da geografia cultural latino americana. No entanto, é no capítulo 11 “Áreas culturais da modernidade tardia”,
aquele em que a autora coloca sua mais recente preocupação: a
incorporação e reivindicação da Amazônia, espaço privilegiado
da cultura do continente, tradicionalmente isolada dos estudos
latino americanos.
Entendendo a região amazônica como suporte de nosso
imaginário mítico, para além das questões ecológicas e ambientais, o texto de Ana Pizarro, constrói uma reflexão que entende
esta região tão rica e abandonada, espaço dividido por oito países
do continente, como um dos “espaços culturais que configuram
a fragmentada unidade do continente e que, historicamente, tem
contribuído no desenho de nosso imaginário cultural”.
Ana Pizarro se serve de todos estes temas para desenvolver
sua delicada e perspicaz análise da cultura latino-americana do
último século. A obra, além da pertinência dos estudos, desenvolvidos sempre com delicadeza e profundidade, vem envolvida em
uma linguagem acessível que conduz o raciocínio de seu leitor
ao questionamento a respeito de temas que estão a nossa volta,
em nosso dia a dia cultural sem, no entanto, abrir mão de uma
grande erudição que faz com que a autora esteja em permanente
diálogo com críticos de sua época e do passado.
Acreditamos que O sul e os trópicos já tenha o seu lugar nos
estudos de literatura e cultura no Brasil, sobretudo hoje, momento em que assistimos a um sensível crescimento dos estudos
comparativos, ao mesmo tempo em que vamos construindo um
processo de incorporação do mundo hispânico e caribenho à
nossa cultura brasileira. Este processo também pode ser percebido na medida em que começamos a nos identificar e nos sentir
parte deste continente. Podemos observar, pelo lado inverso, o
mesmo processo que descreve Ana Pizarro, de incorporação do
bloco luso falante aos estudos literários latinos americanos.
Este é outro mérito de O sul e os trópicos. Repetindo o
movimento que teve início na trilogia América Latina, palavra,
literatura e cultura (Unicamp, 1995), este livro incorpora o Brasil,
sua literatura e cultura, seus processos de desenvolvimento,
vanguarda e modernidade, que são analisados em conjunto com
os diferentes países do bloco hispânico e do Caribe.
Com isso damos boas vindas à primeira edição brasileira de
O sul e os trópicos: ensaios de literatura e cultura latino-americana.
274
Gragoata 22.indb 274
Niterói, n. 22, p. 273-274, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:28:27
TROUCHE, André. América: história e ficção. Niterói, RJ: EdUFF, 2006. 156 p.
TROUCHE, André. América: história e ficção. Niterói, RJ: EdUFF,
2006. 156 p.
A história como intertexto ativo
da literatura hispano-americana
Heloisa Costa Milton
Na literatura hispano-americana, a indagação do passado
compõe um veio privilegiado para o gesto criador, inscrevendose como uma busca poética diretamente vinculada ao tópico
da identidade cultural. Tal condição traz como resultado uma
alta incidência de romances históricos neste território literário,
subgênero que, emergindo no século XIX, instala-se na contemporaneidade com força expressiva, talento inovador e vitalidade
plena.
Sendo assim, pode-se afirmar que, contando com um acervo enorme de histórias privadas e coletivas e tecendo narrativas
que primam pelo engenho e arte, o romance, em particular o
histórico, exercita uma prerrogativa que lhe é inerente: fabular as
conjunturas da história, dramatizando, inclusive, as mentalidades e sensibilidades que se expandem em temáticas tão amplas
e abstratas quanto amor, maldade, vida, morte, costumes, celebrações e rituais, dentre outros aspectos da existência humana
que potencializam a riqueza literária.
André Trouche, na obra que se denomina América: história
e ficção, oriunda da tese de Doutorado defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1997, discute, com esteio
crítico vigoroso e sólido procedimento analítico, a presença do
discurso histórico no processo literário hispano-americano,
caracterizando-o como intertexto ativo na formação das matrizes
paradigmáticas da ficção hispano-americana. Essas matrizes
são consideradas linhas de força que definem e sustentam a dinâmica literária como um todo e, no tocante ao trabalho crítico
que desenvolve o autor, são os eixos que lhe conferem substância
argumentativa e analítica.
Partindo de uma revisão teórica sobre as relações possíveis
entre história e ficção, Trouche estabelece tais linhas de força
propondo, com argumentos incontestáveis, uma perspectiva de
abordagem das letras hispano-americanas em função de quatro momentos, concebidos como decisivos para esse processo e
tomados como parâmetros de uma possível unidade cultural.
Esses momentos privilegiados dizem respeito ao lastro cultural
de quatro obras, selecionadas como corpus de análise e fundamentação da pesquisa: Comentarios reales (1609), do Inca Garcilaso
de la Vega, tida como emblema de fundação e ponto de partida
do processo literário hispano-americano; Recuerdos de provincia
(1850), de Domingo Faustino Sarmiento, obra de referência do
Niterói, n. 22, p. 272-279, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 275
275
6/11/2007 14:28:27
Gragoatá
Heloisa Costa Milton
período de formação das nacionalidades; La muerte de Artemio
Cruz (1960), de Carlos Fuentes, focalizada como expressão do período de afirmação emergencial da narrativa hispano-americana;
e Yo el supremo (1974), de Augusto Roa Bastos, sustentada como
signo privilegiado de superação das utopias modernistas. Em
todas elas, o autor sublinha a capacidade de evocar, como modelo literário, algo que caracterizaria sobremaneira a narrativa
hispano-americana: a tendência, dotada de múltiplas feições
narrativas, de transferir para o terreno ficcional o questionamento da experiência histórica, refletindo, com tal gesto, sobre
a ontologia e a identidade americanas.
Trouche sedimenta seu estudo em inúmeras indagações.
Por exemplo, com ímpeto de intensificar o debate sobre as literaturas do continente, lança um feixe de perguntas como norte
do seu pensamento:
De que se fala quando se fala em América Hispânica? E de
América Latina? Existirá uma Literatura Hispano-Americana?
O que se produz hoje nos EEUU, em espanhol, é Literatura
Hispano-Americana? E as crônicas da Conquista produzidas
por europeus na América? O Caribe é inglês ou latino? A
literatura produzida pelos jesuítas nos séculos XVI e XVII
é hispânica ou latino-americana? E a literatura indígena? A
busca de autonomia pode ser matriz de comparação para uma
periodização uniforme? E a tensão entre localismo e cosmopolitismo, como deve ser encarada? E a questão lingüística?
E...? (TROUCHE, 2006, p. 22-23)
Esse rol de questões lhe serve para confirmar a existência
de um sistema literário em língua espanhola na América e legitimar a proposição de uma escritura recorrente voltada para
o elemento histórico, interface literária que se opera e adquire
maior ressonância, tal como ele estipula, no âmbito da metodologia comparatista. Entretanto, é importante salientar que o
pesquisador recusa a designação de romance histórico para os
paradigmas que institui, por entender que estes são formações
discursivas que transcendem os registros do romance histórico
por não se subordinarem à linha cronológica que define a série
literária e, mais ainda, por alcançarem rendimentos artísticos
diversos devido à confluência, no interior da sua linguagem, de
um considerável hibridismo discursivo.
Sem refutar as excelências do romance histórico, Trouche
reivindica um caráter mais abrangente para as matrizes literárias
sobre as quais reflete. Enfatiza que a obra de Garcilaso funda
um tipo de discurso que conjuga memória, eventos históricos
e projeto narrativo, na busca de um espaço próprio, genuinamente americano, em relação ao espaço do outro; que a obra de
Sarmiento dá continuidade ao paradigma de Garcilaso e enlaça
estrato autobiográfico, memória, contrato social e construção
ficcional, colocando em evidência a junção do público com o
276
Gragoata 22.indb 276
Niterói, n. 22, p. 272-279, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:28:27
TROUCHE, André. América: história e ficção. Niterói, RJ: EdUFF, 2006. 156 p.
privado na recuperação da história; que a obra de Fuentes é um
romance histórico que, embora não opere com personagens que
tenham assento nos cartórios de registro civil, analisa, recupera
e reinventa, pelo recurso à memória, a experiência da sociedade
mexicana desde a Revolução de 1910, prenunciando o que Linda
Hutcheon (1987), denominaria metaficção historiográfica; e que
a obra de Roa Bastos é, notadamente, um “documento ficcional”,
que desconstrói o discurso histórico ao articular uma contra-história, problematizar a representação do passado e pôr em juízo a
existência de verdades absolutas, superando, assim, a tradicional
dicotomia entre verdade histórica e fantasia ficcional.
Essa produção constitui, pois, o andaime literário a partir
do qual Trouche pensa e afirma a incidência da história no processo formador da literatura hispano-americana. Referindo-se às
questões levantadas anteriormente, ele destaca a importância da
noção de sistema para uma literatura que, em sua diversidade,
forma uma unidade:
Abordar a literatura hispano-americana como sistema, sem
dúvida, é uma das questões mais imediatas e delicadas com
que se enfrenta o discurso crítico, ao debruçar-se sobre a
produção literária da chamada América Hispânica. Imediata
porque o próprio termo América Hispânica corresponde a um
conceito geopolítico questionável, e que vem apresentando
grande variação ao longo do tempo. E delicada porque envolve
uma grande quantidade de culturas regionais/nacionais que
apresentam considerável diversidade, não se expressam numa
única língua (vide o caso da produção literária indígena pré
e pós-colombiana e o caso atual dos Chicanos,New Ricans e
Cubanos-Americanos nos EEUU), e, principalmente, porque
se relaciona diretamente à questão da imagem/identidade
hispano-americana, verdadeiro trauma ontológico-cultural,
sempre presente desde a época da Conquista. (TROUCHE,
2006, p. 140)
Em vista desses dilemas e configurações, ao tomar as quatro obras como referenciais simbólicos da literatura que estuda,
Trouche defende a substituição dos designativos “narrativas
históricas” e “romances históricos” por “narrativas de extração
histórica”, com a justificativa de que o composto “romance histórico” não expressa a ruptura radical com o modelo scottiano,
empreendida, por exemplo, pelas obras que Hutcheon qualifica
de “metaficção historiográfica”. Além disso, indo na contramão
da avaliação feita por Rodríguez Monegal e outros críticos a
respeito da longevidade deste tipo de construção, classifica o
romance histórico de “subgênero arquidatado e cristalizado”,
argumentando que ele não possui amplitude suficiente para
abarcar obras que foram produzidas com anterioridade ao seu
advento no território hispano-americano, no século XIX.
Nessa direção, com o estilo enfático que caracteriza sua voz
crítica e levando em consideração que o conceito de metaficção
Niterói, n. 22, p. 272-279, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 277
277
6/11/2007 14:28:28
Gragoatá
Heloisa Costa Milton
historiográfica, ainda que extremamente operacional e renovador, não se aplica inteiramente à narrativa hispano-americana
que toma a história como intertexto ativo, Trouche explica o
porquê de pertinência de outra nomenclatura:
Fator paralelo, porém de importância capital para a opção pelo
composto “narrativas de extração histórica”, encontra-se no fato
de que o diálogo com a história não se restringe ao âmbito do
romance histórico, e sua linha de continuidade, ou ao âmbito
das chamadas metaficções historiográficas. Ao contrário, no
universo do sistema literário hispano-americano, muito antes
do século XIX, já encontramos significativa produção narrativa que toma o histórico como intertexto. Refiro-me à crônica
historiográfica dos séculos XVI e XVII e a alguns narradores
como Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo Palma, ambos
no mesmo século XIX, mas totalmente afastados do modelo
do romance histórico, que tomaram a memória, a história e
o legendário oral como signos contíguos não-excludentes,
compartilhando a mesma perplexidade e o mesmo projeto
de autoconhecimento, a começar do diálogo com a história.
(TROUCHE, 2006, p. 43)
Inegavelmente, o conceito “narrativas de extração histórica”
alicerça, com mais precisão e alcance, os paradigmas literários
selecionados pelo pesquisador. De uma parte, observa-se que
eles não se circunscrevem totalmente ao âmbito do romance
histórico, ou do que se convencionou denominar “novo romance
histórico”, e, de outra, que tampouco se limitam ao que Linda
Hutcheon, aludindo à pós-modernidade e considerando basicamente a produção narrativa do Primeiro Mundo, qualifica de
metaficção historiográfica.
Com os paradigmas que propõe, Trouche se insere no
pensamento hispano-americano com eficácia analítica e argumentação refinada, a partir da visão de um processo literário
que se sedimenta na relação com a história. Embora esta relação
seja, notoriamente, foco de atenção de inúmeros estudos críticos
sobre a literatura hispano-americana, a contribuição maior que
Trouche oferece reside na fundamentação de uma nomenclatura
mais abrangente — narrativas de extração histórica — para as
diversas modalidades de relatos que se constroem e se nutrem
do material histórico.
Em função do exposto, vale ainda notar que, se a história
não é patrimônio exclusivo dos historiadores, como os bens
artísticos testemunham, se o romance histórico demonstra sua
plena vitalidade, tal como demonstrado pela variedade e alta
incidência de suas produções, fica evidente que a história constitui, hoje e sempre, um dos agentes primordiais da inquietação
humana, sendo, nesse sentido, um manancial inesgotável para
a criação literária.
Ocupando os interstícios que a história deflagra, a literatura, em especial o sub-gênero histórico, encena o passado com
278
Gragoata 22.indb 278
Niterói, n. 22, p. 272-279, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:28:28
TROUCHE, André. América: história e ficção. Niterói, RJ: EdUFF, 2006. 156 p.
total autonomia de vôo, descongelando discursos tipificados
nos diferentes campos do saber. A propósito desta propriedade
artística, é oportuno afirmar, apelando a Roland Barthes, “que
todas as ciências estão presentes no monumento literário“e que a
literatura, sendo nesse ponto enciclopédica, “faz girar os saberes,
não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso.” (BARTHES,1980, p. 18). De fato,
indiretamente, a literatura revisa/revira a história abrindo-se a
uma multiplicidade de interpretações, como decorrência da invenção de inúmeros tecidos, feixes, nós narrativos, que induzem
o leitor a dois movimentos simultâneos e complementares: reviver o passado e imaginar o presente. As narrativas de extração
histórica, nos termos com que André Trouche exalta a vocação
da literatura hispano-americana para a história, cumprem com
excelência artística essa função.
Referências
BARTHES, Roland. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moysés. São Paulo:
Cultrix, 1980.
HUTCHEON, Linda. Trad. Ricardo Cruz. Poética do pós-moderno:
história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
Niterói, n. 22, p. 272-279, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 279
279
6/11/2007 14:28:28
Gragoata 22.indb 280
6/11/2007 14:28:28
Colaboradores
deste Número
ANDRÉA LÚCIA PAIVA PADRÃO ÂNGELO
Professora do Colégio de Aplicação da UFSC fez Doutorado em Literatura
(2006), área de concentração Teoria Literária, na UFSC. Publicações recentes:
Alguns aspectos teológicos em Borges. “La casa de Asterión”: uma leitura. Anais
do II Simpósio Internacional sobre religiões, religiosidades e culturas, Universidade Federal da Grande Dourados (2006). Manifestações bíblicas em três contos de Jorge
Luis Borges. Anais do X Congresso Internacional da Abralic. UERJ (2006). Borges e o
conto policial: “Abenjacán el Bojarí, muerto em su laberinto”. Revista Interletras.
UNIGRAN-MS (2006).
CÉLIA REGINA DOS SANTOS LOPES
Professora de língua portuguesa da Faculdade de Letras da UFRJ desde
1994, onde se doutorou em 1999, atua no Programa de Pós-Graduação em
Letras Vernáculas. Sua tese “A inserção de a gente no quadro pronominal
do português: percurso histórico” foi publicada em Frankfurt/Madri, 2003.
Em 2005, organizou o livro “A Norma Brasileira em Construção: fatos lingüísticos em cartas pessoais do século XIX” e, em 2006, editou, em co-autoria,
o livro “Sincronia y diacronía: de tradiciones discursivas en Latinoamérica”
pela Vervuert/Bibliotehca Ibero-Americana. É bolsista de Produtividade do
CNPq.
CONSUELO ALFARO LAGORIO
Fez a graduação e a pós-graduação na PUC de Lima-Peru, e o doutorado em
Lingüística em Paris. Trabalhou na Reforma Educativa do Peru, na década
de 70, no Ministério de Educação, na elaboração de políticas públicas sobre
a relação espanhol/ línguas indígenas. Atualmente é professora na graduação e pós-graduação da UFRJ, na área de Estudos Lingüísticos (Língua
Espanhola) e faz parte do GT Historiografia Lingüística, produzindo uma
reflexão sobre as políticas lingüísticas, a partir de documentação colonial
ibérica. Nessa perspectiva histórica, a autora tem priorizado as questões
relativas às estratégias de difusão das línguas na região dos Andes, a partir do século XVI, especialmente no tocante a ensino, nessas situações de
contato. As publicações tratam principalmente sobre política lingüística
colonial hispânica. DANILO LUIZ CARLOS MICALI
É aluno do curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Estudos
Literários da UNESP – Araraquara, onde também obteve o título de Mestre
em Estudos Literários (2003). Desenvolve o projeto de pesquisa em teoria
literária e literatura comparada, intitulado “O Narrador e a Construção da
ficcionalidade em romances de Calvino, Saer, Ubaldo Ribeiro e Bernardo
Carvalho”. O autor publicou artigos em Anais de congressos.
EURÍDICE FIGUEIREDO
Doutora pela UFRJ (1988), é professora associada de Literaturas Francófonas
e Literatura Comparada na UFF. Foi coordenadora do Programa de PósGraduação em Letras da UFF (1995-1999), do GT da ANPOLL “Relações
Niterói, n. 22, p. 281-285, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 281
281
6/11/2007 14:28:28
literárias interamericanas” (2000-2002, 2002-2004). Organizou O francês e
a diferença (com Paula Glenadel, 2006) Conceitos de literatura e cultura (2005),
Recortes transculturais (com Eloína Prati dos Santos, 1997), A escrita feminina
e a tradição literária (1995). Publicou Construção de identidades pós-coloniais na
literatura antilhana (1998) e inúmeros artigos em obras coletivas e revistas
nacionais e internacionais. É pesquisadora do CNPq.
FLÁVIA DE ALMEIDA MONTEIRO
Mestranda da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
onde desenvolve projeto de dissertação sobre “Agradecimentos e Desculpas
em português brasileiro e em espanhol: um estudo comparado de polidez
a partir de roteiros cinematográficos contemporâneos”. Graduada em Português – Espanhol pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 2001,
é professora titular da Fundação de Apoio à Escola Técnica e da Secretaria
do Estado de Educação.
GRACIELA RAVETTI
Bolsista de Produtividade do CNPq, doutora em Letras (Língua Espanhola
e Literatura Espanhola e Hispano-Americana) pela Universidade de São
Paulo. Atualmente é professora Associada I da Universidade Federal de
Minas Gerais. É Presidente da Associação Brasileira de Hispanistas. Tem
experiência na área de Letras e atua principalmente nos seguintes temas:
literatura latino-americana, teoria literária, América latina, critica literária,
estudos culturais, performance escrita, artes performáticas, ensino da língua
espanhola, cinema e das culturas hispânicas. Publicou: O corpo na letra: O
transgênero performático, performance, exílio, fronteiras: Errâncias territoriais e textuais e mediações performáticas latino-americanas.
HAYDÉE RIBEIRO COELHO
Professora Associada da Faculdade de Letras da UFMG ( Universidade
Federal de Minas Gerais). Doutora em Teoria da Literatura e Literatura
Comparada (USP).Organizou os livros: Darcy Ribeiro e Rui Mourão (Coleção
Encontro com Escritores Mineiros) e co-organizou 1000 rastros rápidos: Cultura e
milênio. Realizou Pós-Doutorado na “Universidad de la República”, Uruguay.
Pesquisadora e bolsista do CNPq desde 2003.
HELOISA COSTA MILTON
Mestre e Doutora em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispanoamericana pela Universidade de São Paulo, é docente do Curso de Letras da
Universidade Estadual Paulista (campus de Assis). Sua atuação acadêmica
envolve ensino, pesquisa e orientações de pesquisas em Literatura Hispanoamericana, Literatura Comparada (Brasileira e Hispânicas) e Teoria Literária.
Possui diversos artigos publicados no Brasil e no exterior.
LETICIA REBOLLO COUTO
Professora de língua e literatura espanhola da Faculdade de Letras da
UFRJ desde 1991, atua na área de Estudos Lingüísticos no Programa de
Pós-Graduação em Letras Neolatinas. Doutora em Ciências da Linguagem
282
Gragoata 22.indb 282
Niterói, n. 22, p. 281-285, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:28:28
pela Universidade de Ciências Humanas de Estrasburgo, 1999. Bolsa de
Hispanistas para Pós-Doutorado na Universidade de Alcalá, Projeto Espanhol oral e estudo das relações interpessoais, 2005. Bolsa Coimbra de jovens
pesquisadores para Pós-Doutorado na Universidade Católica de Louvain,
Projeto Prosódia e variação dialetal, 2007.
LÍVIA REIS
Doutora em literaturas hispânicas pela USP, professora associada de literatura hispano-americana na UFF e pesquisadora do CNPq. Nos últimos
anos tem trabalhado com o diálogo literário e cultural entre o Brasil e a
América Hispânica. Foi vice-presidente da ABRALIC e diretora da EdUFF.
No momento, cumpre seu segundo mandato como diretora do Instituto de
Letras da UFF. Principais publicações. Fonteiras do Literário I e II, Hipanismo
2.000, Dom Quixote, Utopias.
LUIZ FERNANDO VALENTE
Educado no Brasil e nos Estados Unidos, é atualmente Professor de Literatura
Brasileira e Comparada e Diretor do Departamento de Estudos Portugueses
e Brasileiros da Brown University (Providence, RI), nos Estados Unidos.
Autor de inúmeros trabalhos sobre a literatura brasileira dos séculos XIX e
XX, sobre as relações entre a história e a ficção e o novo romance histórico,
e sobre a história intelectual brasileira, acaba de terminar o livro Mundivivências: Leituras Comparativas de Guimarães Rosa.
MÓNICA BUENO
Professora e pesquisadora da Universidad Nacional de Mar del Plata (Argentina), na cátedra de Literatura Argentina. Tem trabalhado sobre a vanguarda
argentina, especialmente sobre a obra de Macedonio Fernández, que é parte
de sua tese de Doutorado. Dirige o grupo de pesquisa Cultura y política en la
Argentina no CELEHIS (Centro de Letras Hispanoamericanas) de la UNMdP,
que atualmente desenvolve uma pesquisa sobre questões culturais durante
as ditaduras de Brasil e Argentina. É integrante do projeto bilateral Margens/Márgenes que edita a revista do mesmo nome. Entre suas publicações:
Macedonio Fernández, un escritor de Fin de Siglo, (Genealogía de un vanguardista)
(2000); Premio Cuadro de Honor, Corregidor; AAVV Diccionario sobre la novela
de Macedonio Fernández, Ricardo Piglia (comp), Fondo de Cultura Económica
(2000); Conversaciones imposibles con Macedonio Fernández (comp), Corregidor,
Ensayo, Buenos Aires, (2001); Centro Editor de América Latina. Capítulos para
una historia, Siglo XXI (2006).
OLGA VALESKA
Professora de Língua Portuguesa e Literatura no CEFET-MG, a autora possui
mestrado em Teoria da Literatura pela UFMG (1998), doutorado em Literatura
Comparada pela UFMG (2003) e Doutorado Sanduíche UFMG/ El Colegio
de México-COLMEX (2002). Atualmente participa do grupo de pesquisa
financiado pelo CNPq, “Os intelectuais e a vida pública”, na Universidade
Federal de Minas Gerais.
Niterói, n. 22, p. 281-285, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 283
283
6/11/2007 14:28:29
PAULO SÉRGIO MARQUES
Mestre e Doutorando em Estudos Literários pela Faculdade de Ciências e
Letras de Araraquara, Universidade Estadual Paulista (Unesp). Publicou,
dentre outros, o artigo “Poesia Feminina em Mato Grosso: Filiações e Rupturas na Poesia de Arlinda Morbeck e Amália Verlangieri” (Abralic, 2006),
o livro de poesias Primeiro e a obra crítica Dez modernistas, este último em
co-autoria com Paulo Sesar Pimentel.
RAFAEL GUTIÉRREZ GIRALDO
Mestre em Literatura Latino-americana pela Universidade Javeriana de
Bogotá (Colômbia), é Doutorando em Estudos de Literatura da PUC­Rio. Sua
área principal de pesquisa é a literatura latino-americana contemporânea.
Atualmente realiza sua tese de doutorado sobre a obra do escritor chileno
Roberto Bolaño e trabalha como pesquisador do Núcleo de Estudos de Literatura Latino-americana da PUC­Rio.
RAUL ANTELO
Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, leciona literatura brasileira
na Universidade Federal de Santa Catarina. Autor de Potências da imagem
(Grifos, 2004) e Maria con Marcel. Duchamp en los trópicos (Buenos Aires, Siglo
XXI, 2006), editou Antonio Candido y los estudios latinoamericanos (Pittsburgh,
Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana, 2001) e colaborou, também, em O Grande Terramoto de Lisboa: Ficar Diferente (Lisboa, Gradiva, 2005);
Candido Portinari y el sentido social del arte (Buenos Aires, Siglo XXI, 2005); Arte
de posguerra (Buenos Aires, Paidós, 2005); Viver com Barthes (Rio de Janeiro,
7letras, 2005); Céu acima. Para um tombeau de Haroldo de Campos (São Paulo,
Perspectiva, 2005); A literatura latino-americana no século XXI (Rio de Janeiro,
Aeroplano, 2005); Gilberto Freyre e os estudos latino-americanos (Pittsburgh.
Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana, 2006) e Travessias do
pós-trágico (São Paulo, UNIMARCO, 2006).
SILVINA CARRIZO
Doutora em Letras pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora
Adjunta da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF). Publicou os artigos “Indigenismo” e “Mestiçagem” (Figueiredo,
Eurídice (org), Conceitos de Literatura e Cultura. Juiz de Fora: EDUFJF; Niterói:
EDUFF, 2005), o ensaio: “Guimarães Rosa en la Revista Crisis (D´Angelo, Biaggio: Verdades y veredas de Rosa. Ensayos sobre la narrativa de João Guimarães
Rosa. Lima: Fondo Editorial UCSS; Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2004)
e o artigo: “As passagens. Vários processos de estranhamento”, em: Ipotesi,
Revista de Estudos Literários, Programa de Pós-graduação em Letras, UFJF,
v.8 – n.1 –jan/jun, n.2 –jul/dez, novembro 2004.
WALTER D. MIGNOLO
Professor de Literatura na Duke University (Estados Unidos), fez
seu Doutorado na Ecole des Hautes Etudes (Paris). Tem trabalhado sobre
diferentes aspectos do mundo moderno/colonial explorando conceitos como
284
Gragoata 22.indb 284
Niterói, n. 22, p. 281-285, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:28:29
colonialidade global, geopolítica do conhecimento, transmodernidade, pensamento da margem. Suas mais recentes publicações incluem: The Idea of Latin
America (2005), Writing Without Words: Alternative Literacies in Mesoamerica and
the Andes, co-editado com Elizabeth H. Boone (1994), e The Darker Side of the
Renaissance: Literacy, Territoriality, Colonization (1995) que ganhou o prêmio
Katherine Singer Kovacs da Modern Languages Association. É também autor
de Histórias locais/Projetos globais, colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar (ed. UFMG, 2003). É diretor acadêmico da Duke nos Andes,
um programa interdisciplinar em Estudos Latino Americanos e Andinos
em Quito (Equador). Dirige desde 2000 o Center for Global Studies and
the Humanities, uma unidade de pesquisa no John Hope Franklin Center
for International and Interdisciplinary Studies. Pesquisador Permanente a
Distância da Universidad Andina Simón Bolívar em Quito (Equador).
Niterói, n. 22, p. 281-285, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 285
285
6/11/2007 14:28:29
Gragoata 22.indb 286
6/11/2007 14:28:29
UNIVERSIDADE
FE­DE­RAL FLUMINENSE
Instituto de Letras
Revista Gragoatá
Av. Visconde do Rio
Branco s/nº
Campus do Gragoatá Bloco C - Sala 501
24220-200 - Niterói - RJ
e-mail: [email protected]
Telefone: 21-2629-2608
Normas de apresentação de trabalhos
1 A Revista Gragoatá, do Programa de Pós-graduação em Letras da
UFF, aceita originais sob forma de artigos inéditos e resenhas de
interesse para estudos de língua e literatura.
2 Os textos serão submetidos a parecer da Comissão Editorial, que
poderá sugerir ao autor modificações de estrutura ou conteúdo.
3 Os textos não deverão exceder 25 páginas, no caso dos artigos, e 8
páginas, no caso de resenhas. Devem ser apresentados em duas
cópias impressas sem identificação do autor, bem como em disquete,
com indicação do autor, no programa Word for Windows 7.0, em
fonte Times New Roman (corpo 12, espaço duplo), sem qualquer
tipo de formatação, a não ser:
3.1 Indicação de caracteres (negrito e itálico).
3.2 Margens de 3 cm.
3.3 Recuo de 1 cm no início do parágrafo.
3.4 Recuo de 2 cm nas citações.
3.5 Uso de sublinhas ou aspas duplas (não usar CAIXA ALTA).
3.6 Uso de itálicos para termos estrangeiros e títulos de livros e períodicos.
4 As citações bibliográficas serão indicadas no corpo do texto, entre
parênteses, com as seguintes informações: sobrenome do autor em
caixa alta; vírgula; data da publicação; abreviatura de página (p.) e
o número desta. (Ex.: SILVA, 1992, p. 3-23).
5 As notas explicativas, restritas ao mínimo indispensável, deverão
ser apresentadas no final do texto.
6 As referências bibliográficas deverão ser apresentadas no final do
texto, obedecendo às normas da ABNT(NBR-6023).
Livro: sobrenome do autor, título do livro (itálico), local de publicação,
editora,data.
Ex.: SHAFF, Adan. História e verdade. São Paulo: Martins Fontes,
1991.
Artigo: nome do autor, título do artigo, nome do periódico (itálico),
volume e nº do periódico, data.
Ex.: COSTA, A.F.C. da. Estrutura da produção editorial dos periódicos biomédicos brasileiros. Trans-in-formação, Campinas, v. 1, n.1,
p. 81-104, jan./abr. 1989.
7 As ilustrações deverão ter a qualidade necessária para uma boa reprodução gráfica. Deverão ser identificadas, com título ou legenda,
e designadas, no texto, de forma abreviada, como figura (Fig. 1, Fig.
2 etc).
Niterói, n. 22, p. 287-290, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 287
287
6/11/2007 14:28:29
8 Os textos deverão ser acompanhados de resumo em português e
abstract, em inglês, que não ultrapassem 250 palavras, bem como de
3 a 5 palavras-chave também em português e em inglês.
9 Os autores deverão encaminhar, em folha separada, sua identificação (nome do artigo, nome do autor, instituição de vínculo, cargo,
últimas publicações etc.) em texto que não ultrapasse 6 linhas. Na
mesma folha, devem constar o endereço, o telefone e o e-mail.
10 Os colaboradores terão direito a 2 exemplares da revista.
11 Os originais não aprovados não serão devolvidos.
Próximos números
Número 23
Tema: Releituras da tradição
Organizadores: Silvio Renato Jorge e Solange Coelho Vereza
Prazo para entrega dos originais: 30 de junho de 2007
Ementa: Conceitos de tradição. Paradigmas da pesquisa em lingüística e literatura revisitados. Contribuições da tradição para a análise interpretativa e a leitura do
contemporâneo. Redimensionamento de pressupostos teóricos e metodológicos da
investigação atual na área de Letras e Lingüística. Teóricos e pensadores – legados
para o novo milênio.
Número 24
Tema: Brasil e África: trajetórias, rostos e destino
Organizadores: Laura Padilha e Lucia Helena
Prazo para entrega dos originais: 15 de janeiro de 2008
Ementa: Literatura, política e ideologia no cenário do neoliberalismo. Nação e narração na
estrutura pós-colonial contemporânea do Brasil e da África. O Brasil e a África
em suas literaturas e linguagens: paradoxos, identidades, dilemas e problemas.
O discurso e a construção da subjetividade e das formas estéticas. Literatura e
outras artes. As perspectivas da crítica e a questão da teoria no Brasil e na África.
Línguas em contato e política lingüística. Reflexão, história, antropologia e filosofia
na cultura brasileira e africana contemporânea. Literatura, crise e utopias.
288
Gragoata 22.indb 288
Niterói, n. 22, p. 287-290, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:28:30
UNIVERSIDADE
FE­DE­RAL FLUMINENSE
Instituto de Letras
Revista Gragoatá
Av. Visconde do Rio
Branco s/nº
Campus do Gragoatá
- Bloco C - Sala 501
24220-200 Niterói - RJ- Brazil
e-mail: pgletras@vm.
uff.br
Telefone:
+55-21-2629-2608
General Instructions for Submission of Papers
1 The Editorial Board will consider both articles and reviews in the
areas of language and literature studies.
2 In considering the submitted papers, the Editorial Board may
suggest changes in their structure or content. Papers should be
submitted in floppy disks together with two printed copies, typed
in Word for Windows 7.0, double-spaced, Times New Roman font
12, without any other formatting except for:
2.1 bold and italics indication;
2.2 3cm margins;
2.3 1cm identation for paragraph beginning;
2.4 2cm identation for long quotations;
2.5 underlining or double inverted commas (NEVER UPPERCASE)
for emphasis;
2.6 italics for foreign words and book or journal titles.
3 Papers should be no more than 25 pages in length and reviews no
more than 8 pages.
4 Authors are requested to resort to as few footnotes as possible,
which are to be placed at the end of the text. As for references in
the body of the article, they should contain the author’s surname
in uppercase as well as date of publication and page number
in parentheses (eg.: JOHNSON, 1998, p. 45-47).
5 Bibliographical references should be placed at the end of the text
according to the following general format:
Book: author’s surname and first name, title of book (italics), place of
publication, publisher and date (eg.: ELLIS, Rod. Understanding second language acquisition. Oxford : Oxford University Press, 1994).
Article: author’s surname and first name, title of article, name of journal
(italics), volume,number and date (eg.: HINKEL, Eli. Native and
nonnative speakers’ pragmatic interpretations of English texts.
TESOL Quarterly, v. 28, no. 2, p. 353-376, 1994).
6. Tables, graphs and figures should be identified, with a title or legend,
and referred to in the body of the work as figure, in abbreviated
form (eg.: Fig. 1, Fig. 2 etc.).
7. Papers should contain two abstracts (a Portuguese and an English
version), no more than 5 lines in length. In addition, between 3 to
5 keywords, also in Portuguese and in English, are required.
Niterói, n. 22, p. 287-290, 1. sem. 2007
Gragoata 22.indb 289
289
6/11/2007 14:28:30
8 Authors are requested to send in an abridged CV (name, institution,
post, degrees, titles, latest publications, research interests, etc.), no
more than 5 lines in length.
9 Authors, whose articles are accepted for publication, will be entitled
to receive 2 copies of the journal. Originals will not be returned.
290
Gragoata 22.indb 290
Niterói, n. 22, p. 287-290, 1. sem. 2007
6/11/2007 14:28:30

Documentos relacionados