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BRASÍLIA - 13 A 21 DE JULHO DE 2016
RIO DE JANEIRO - 06 A 25 DE SETEMBRO DE 2016
FORTALEZA - 06 A 18 DE SETEMBRO DE 2016​
Organização dos Textos: Lucas Murari e Mateus Nagime
LDC
2016
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New Queer Cinema: Segunda Onda
Murari, Lucas; Nagime, Mateus (orgs.)
1ª Edição
2016
ISBN: 978-85-69488-03-3
Projeto Gráfico
Inhamis
Quadro Capa
“The visit of the North King or The Prelude
to War”, 2011, de Ramonn Vieitez
A CAIXA é uma empresa pública brasileira que prima pelo respeito
à diversidade, mantendo comitês internos para realização
de campanhas, programas e ações voltados para disseminar
ideias, conhecimentos e atitudes de respeito à diversidade de
gênero, raça, orientação sexual e todas as demais diferenças que
caracterizam uma sociedade plural.
Os projetos patrocinados são selecionados via seleção pública,
uma opção da CAIXA para tornar mais democrática e acessível a
participação de produtores e artistas de todo o país como também
dar mais transparência à utilização dos recursos da empresa.
Com a mostra New Queer Cinema – A segunda onda, a
CAIXA não apenas contribui para reavaliar os 25 anos dessa
vertente cinematográfica e o que ela representa na sociedade
contemporânea com novos debates e questões, como também
fomenta a discussão das relações de gênero.
Desta maneira, a CAIXA contribui para promover e difundir a
cultura e retribui à sociedade brasileira a confiança e o apoio
recebidos ao longo de seus 155 anos de atuação no país. Para
a CAIXA, a vida pede mais que um banco. Pede investimento e
participação no presente, compromisso com o futuro do país e
criatividade para conquistar os melhores resultados para o povo
brasileiro.
CAIXA ECONÔMICA FEDERAL
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ÍNDICE
Apresentação, por Mateus Nagime e Denilson Lopes
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Rosas Selvagens, por Pedro Guimarães
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Vive L’amour, por Denilson Lopes
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Kids, por João Marcos de Almeida
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Hustler White, por Will Domingos
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Vida Sem Destino, por Sérgio Silva
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Sitcom, por Marília Lima
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Aimée & Jaguar, por Érica Sarmet
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Lola and Billy the Kid, por Pablo Gonçalo
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Meninos não choram, por Thays Prado
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Quero ser John Malkovich, por Mateus Nagime
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Tabu, por Aleques Eiterer
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O Pântano, por Chico Lacerda
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Madame Satã, por Chico Lacerda
90
Elefante, por Luiz Carlos Oliveira Jr.
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Mal dos Trópicos, por Rodrigo de Oliveira
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BIOGRAFIAS DOS AUTORES
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CRÉDITOS
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NEW QUEER CINEMA – A SEGUNDA ONDA
Mateus Nagime e Denilson Lopes
A experiência de organizar a mostra New Queer Cinema – Cinema, Sexualidade e
Política em 2015 foi bastante frutífera, tanto na exibição dos filmes quanto nos debates e
encontros que aconteceram pelo país. A experiência nos fez refletir sobre a importância
de seguir exibindo e discutindo filmes que apresentam questões importantes a respeito
de sexualidade e da teoria queer.
É importante ressaltar que ainda que o New Queer Cinema tenha sido um movimento específico que aconteceu entre o final dos anos 1980 e início dos anos 1990, especialmente nos Estados Unidos e Reino Unido, ele se deu em uma época de lutas políticas
avançadas e cada vez mais globalizadas, ampliando a repercussão desses filmes em muitos
outros países.
No Brasil, seus principais títulos foram exibidos em diversos festivais e Garotos de
Programa (My Own Private Idaho, 1991, Gus Van Sant) chegou a estrear no circuito de arte.
O início dos anos 1990 também era o auge da cultura do VHS e filmes que fracassavam nas
bilheterias do cinema viraram cults nas locadoras.
Se não podemos afirmar com certeza que os filmes do New Queer Cinema influenciaram todo um cinema queer ao redor do mundo, é fato que, ao menos, eles criaram
uma tendência que permitiu a proliferação de uma produção que desafiou cada vez mais
as sexualidades dominantes. E de modos cada vez mais difusos: ora a partir de imagens
e narrativas ainda mais ousadas, ora em tramas mais simples e acessíveis a uma plateia
média.
Os principais nomes, os mais comentados, conhecidos e premiados (todos garotos), conquistaram seu espaço definitivo no cinema independente norte-americano ao
longo daquela da década.
Todd Haynes fez Mal do Século (Safe, 1995), uma alegoria da Aids com Julianne
Moore; Velvet Goldmine (1998), filme com maior repercussão, um retrato da cena glam londrina dos anos 1970 um tanto inspirado na vida e obra de David Bowie; e com Longe do
Paraíso (Far from Heaven, 2002) conquistou definitivamente seu lugar ao Sol e suas indicações ao Oscar.
Validado pelos prêmios da Academia alguns anos antes também tinha sido Gus
Van Sant com Gênio Indomável (Good Will Hunting, 1997). O cineasta equilibraria filmes
muito comerciais (Gênio...), artísticos com cara de comercial - Psicose (Psycho, 1998) -, ou
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muito artísticos como Gerry (Gerry, 2002) e Elefante (Elephant, 2003).
Por mais que Haynes e Van Sant estivessem flertando com os estúdios, nunca
deixaram o queer, mesmo quando a trama não era explicitamente sobre sexualidades desviantes. Talvez principalmente nestes filmes é que o queer fica implícito, fica mais perigoso
ainda, podendo alcançar um público sem ele mesmo perceber de imediato!
Essa ampliação do conceito queer fica evidente quando levamos em conta os
filmes realizados entre meados dos anos 1990 e início dos anos 2000. Os títulos que escolhemos exibir nesta segunda edição da mostra são, de fato, uma representação que acreditamos ser válida do que decidimos chamar de segunda onda do New Queer Cinema.
A partir dos anos 1990 era possível perceber cineastas queers importantes em
muitos países. Diretores que lideravam buscas por novas linguagens, novos meios de realizar um cinema moderno, revigorante, desafiador. Em Portugal temos o exemplo de João
Pedro Rodrigues, e na Espanha, Pedro Almodóvar, que já provocava desde os anos 1980,
mas nos anos 1990 conquistou um público mais amplo e conseguiu dar uma nova cara ao
seu estilo queer.
O cinema queer não só continuou a ser realizado com certa frequência, mas ganhou um espaço cada vez maior. Alguns dos principais cineastas daquele momento eram
queers e suas obras eram completamente calcadas nessa constante presença e discussão
de temas relacionados à sexualidade, corpo e erotismo: Apichatpong Weerasethakul, Tsai-Ming Liang, Haynes, Van Sant etc.
Em muitos países era possível localizar filmes que incorporavam estilos queers
em suas imagens. No Brasil, percebemos a variedade de estilos que abordam as questões:
Djalma Limongi Batista utilizou uma abordagem mais aberta e sexualmente explícita em
Bocage - O Triunfo do Amor (1997), enquanto Sandra Werneck incorporou um amor homossexual entre três possibilidades da vida do personagem interpretado pelo galã global Murilo Benício, em Amores Possíveis (2001). Escolhemos para “representar” o cinema brasileiro
o título mais conectado com as discussões queers mundiais: Madame Satã (2002, Karim
Aïnouz). Um filme que, discute de forma clara, direta e muito inteligente as questões de
gênero e de sexualidade que tanto falam da história do Brasil, assim também como as lutas raciais e sexuais que aconteceram no país desde o início do século XX. É um típico filme
do New Queer Cinema, ainda que feito uma década depois: histórico e ao mesmo tempo
supercontemporâneo.
Nos Estados Unidos, o cinema queer seguiu duas principais tendências. Alguns
cineastas, como Bruce LaBruce se mantiveram ligados às principais ideias do New Queer
Cinema, utilizando uma história canônica para reapropriá-la: no caso de LaBruce, Crepúsculo dos Deuses (Sunset Blvd., 1950, Billy Wilder) transformado em uma história que se passa
no meio pornô gay: Hustler White (1996). O cinema queer que busca apresentar as nuances da sexualidade através de uma erotização dos corpos - masculinos e femininos, sem
muita distinção - ganhou uma revigorada a partir de Larry Clark, fotógrafo de longa data
que fazia sua estreia no cinema em Kids (1995), roteirizado por Harmony Korine, que depois dirigiria Vida Sem Destino (Gummo, 1997). Em ambos os filmes vemos retratos de uma
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juventude desesperançada, sem futuro, mas ainda assim vivendo um presente intenso e
portanto muito rico. Ou seja, um filme - e uma geração - que nasce em uma contradição e
a celebra. Nada mais queer do que isso.
A outra tendência é aproveitar o sucesso comercial de alguns filmes estrangeiros
e mais independentes para criar histórias com um alcance de público maior, o que resulta
em tramas mais lineares e um desenvolvimento maior de personagens. Os exemplos que
selecionamos para esta mostra são Quero Ser John Malkovich (Being John Malkovich, 1999,
Spike Jonze), que aborda de forma cômica e surrealista questões de identificação sexual
e de gênero, e Meninos Não Choram (Boys Don’t Cry, 1999, Kimberly Pierce), baseado na
história real do assassinato do transexual Brandon Teena. Naturalmente, outros filmes ficam um pouco no meio termo, entre tentar contar uma história e alcançar uma grande
audiência e dedicar um tempo às pesquisas formais, como The Delta (The Delta, 1996, Ira
Sachs), um filme que, mesmo que que não tenha entrado no nosso recorte final, dialoga
muito com os temas da mostra.
Porém, se há algo que suscita especial atenção de nossa parte nessa segunda
onda é o fato de que realmente o cinema queer alcançou diversos cineastas dos mais variados estilos em todo o mundo. Do último filme do japonês Nagisa Oshima, Tabu (Gohatto,
1999) ao primeiro filme da argentina Lucrecia Martel, O Pântano (La Ciénaga, 2001), filmes
ousados e diretores queers conquistavam o mundo.
contemporâneo com Felizes Juntos (Chun Gwong Cha Sit, 1997), enquanto Tsai Ming-Liang
construiu sua carreira estudando e pesquisando as necessidades e os desejos de seus personagens. Vive l’Amour (Ai Qing Wan Sui, 1994) é um de seus melhores filmes - venceu
o Festival de Veneza - e serve como um bom ponto de partida para a sua obra. Mal dos
Trópicos (Sud Pralad, 2002) apresenta uma estrutura narrativa que vai marcar o cinema de
Apichatpong Weerasethakul e engloba em torno de si as muitas questões ligadas ao cinema queer: um apego a tradições e histórias de subversão romântica na primeira parte - com
um soldado e um trabalhador rural vivendo seu amor abertamente nas florestas e cidades
tailandesas - e um choque formal, imagético e místico na segunda parte, em que tudo o
que imaginávamos ser certeza se cobre de muitas dúvidas. Mal dos Trópicos é uma metáfora quase perfeita para essa segunda onda do New
Queer Cinema: o que parecia já estar consolidado e articulado passa a ser algo institucionalizado ou careta. As propostas agora são distintas, algumas mais ousadas e outras
buscando um apelo mais popular. O cinema queer se convertia, então, em uma realidade,
deixando de ser apenas um movimento. O Pântano funciona na mostra como o representante da América hispânica, uma
região que viu crescer o número de filmes que dialogam com a questão queer. Nele, a
questão da sexualidade se mistura com a paisagem e uma família decadente numa obra
cinematográfica rica em atmosferas e sutilezas. Para além dos filmes sobre sair do armário
e seus confrontos romantizados, a quebra de hetero e homonormatividades se dá de forma integrada às narrativas, muitas vezes sem que nenhuma discussão explícita de gênero
seja feita.
Essa fluidez de gêneros é a marca de muitos dos filmes, mesmo os que seguem
mais o padrão narrativo clássico. Como exemplo, o alemão Aimée & Jaguar (1999, Max Färberböok), uma história de amor entre duas mulheres na Alemanha nazista em meio ao
bombardeio sobre Berlim: uma esposa de general que tem sua primeira relação sexual
lésbica com uma judia, por quem se apaixona. Muito mais ousado narrativamente é Lola
+ Bilidikid (Lola and Billy the Kid, 1999, Kutlug Ataman), que envolve ainda a questão da
imigração - neste caso, um turco que mora em Berlim. O tema da imigração seria muito
discutido pelo cinema queer da época, como em Head On (1998, Ana Kokkinos), além do
horizonte pós-colonial, bastante presente no cinema de Claire Denis, como em Bom Trabalho (Beau Travail, 1999) ou em menor grau no romance de formação Rosas Selvagens
(Les Roseaux Sauvages, 1994, André Téchiné). Na mostra, o cinema francês também está
representado com Sitcom (1998, François Ozon), outro filme destinado a destruir ideias
normativas, seja sobre a família, a sociedade ou as sexualidades.
A globalização promovida pela segunda onda no New Queer Cinema trouxe para
muito perto de nós o cinema queer oriental: Wong Kar-Wai firmou seu nome no cinema
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FILMES
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ROSAS SELVAGENS
Les roseaux sauvages | 1994 | 110min
Elenco: Ëlodie Bouchez, Gaël Morel, Stéphane Rideau,
Frédéric Gomy.
Às vésperas de sair da escola e entrar para a vida adulta, quatro jovens, que estão terminando o colegial,
passam pelos últimos espinhos da adolescência. Tendo
como plano de fundo o sudoeste da França em 1962,
época do final da guerra da Argélia, Henri (Frédéric
Gorny), um garoto argelino se envolve com o doce
François (Gaël Morel), a bela Maïté (Élodie Bouchez) e
o rude Serge (Stéphane Rideau). Juntos, eles nutrem
amizade, desejos e paixões uns pelos outros.
Direção: André Téchiné Roteiro: Olivier Massart, Gilles Taurand, André Téchiné
Produção: Georges Benayoun, Alain Sarde
Produtor Associado: Chantal Poupaud, Paul Rozenberg
Direção de fotografia: Jeanne Lapoirie
Montagem: Martine Giordano Casting: Jacques Grant, Michel Nasri
Equipe de arte: Pierre Soula, Elisabeth Tavernier, Agnès Lévy, Leonardo Haertling
Equipe de som: Yunus Acar, François Groult, Pierre
Lorrain, Jean-Luc Marino, Pierre Martens, Jean-Paul
Mugel
Festivais: Festival de Chicago (1994), Festival de Nova
York (1994), Festival de Montréal (1994) etc.
Prêmios: Indicado a 8 prêmios César 1995 e vencedor
de melhor filme, direção, roteiro e atriz revelação (Élodie Bouchez)
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ROSAS SELVAGENS
Pedro Maciel Guimarães
No início de Rosas Selvagens (Les Roseaux Sauvages, 1994), Gaël Morel
conta a Élodie Bouchez o último filme que o impactou. Ele descreve a cena de
uma mulher que confunde realidade com ilusão, conta suas sensações, explica
os personagens e ressalta o quanto ficou maravilhado com a atriz principal. O
filme em questão era Através de um Espelho (Såsom i en Spegel, 1961), de Ingmar
Bergman, e a atriz, Harriet Andersson — a mesma que mexeu com toda a geração da nouvelle vague francesa. Andersson havia sido a Monika de Bergman em
Monika e o Desejo (Sommaren med Monika, 1953) e marcou a pupila e a libido
de toda uma geração de cinéfilos pela liberdade temática e plástica com a qual
seu corpo e sua postura de mulher foram filmados pelo cineasta sueco. Nos dois
filmes-manifesto da Nouvelle Vague existem citações diretas à personagem Monika. Em Acossado (À Bout de Souffle, 1960), Godard cita explicitamente o olhar
para a câmera na cena da libertação de Monika no final da trama, quando Patricia
Franchini (Jean Seberg) dá a cara a tapa aos espectadores por ter causado a morte
do namorado (Jean-Paul Belmondo). Em Os Incompreendidos (Les Quatre Cents
Coups, 1959), François Truffaut presta uma homenagem a Monika na cena em
que Doinel (Jean-Pierre Léaud) rouba uma foto da atriz numa entrada do cinema.
Téchiné, que recheou as mesmas páginas da revista amarela na qual Godard e
Truffaut haviam se ilustrado como críticos alguns anos antes, mostra, enquanto
cineasta, que a rebelde Monika-Harriet continuava influenciando a imaginação
dos jovens apaixonados por cinema.
Com a referência, a linhagem de fraternidade entre os dois filmes, cineastas e personagens está estabelecida. O jovem secundarista vivido por Gaël Morel
(não por acaso chamado François) poderia ser uma versão tardia do alter ego de
Truffaut (Doinel) – seria ele também alter ego de André Téchiné? As coincidências
se acumulam: tanto a série de filmes com o personagem Doinel, que se estende
até 1979, como Rosas Selvagens trabalham a questão do amadurecimento sexual
e afetivo. Doinel se apaixona por diversas garotas a cada filme e sonha em viver
com elas uma relação que termina mais cedo que ele gostaria. É desajeitado e
carismático. Já François está apaixonado pelo colega de dormitório, o belo Serge
1 Nota dos Editores: Referência a Nas Garras do Vício (Le Beau Serge, 1958), filme de estreia de Claude
Chabrol.
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(Chabrol passou também por aqui)1 e tem uma relação fusional com a melhor
amiga, Maitê. Fala rápido como uma metralhadora, sofre de asma e é o melhor
aluno da turma. François vive dramaticamente a guerra da Argélia, tema que também está nas histórias de Doinel, embora de maneira mais atenuada. Ambos viveram na mesma época diegética (os anos 1960), amam literatura, sabem poemas
de cor, dão a vida pelo cinema.
Tanto o filme de Truffaut quanto o de Téchiné constroem-se no registro
do romanesco e buscam o envolvimento pessoal do espectador com os personagens e seus problemas. Truffaut foi o cineasta das boas histórias, contadas com
retidão e paixão. Téchiné, roteirista de mão cheia, também — embora tenha escolhas estéticas mais ousadas, principalmente em torno da expressão do desejo.
Ambos amam a juventude e retornam a ela com nostalgia. Até na elaboração de
cenas, existem ecos entre os dois universos estéticos. Num determinado momento das aventuras de Doinel, em Beijos Proibidos (Baisers Volés, 1968), ele se planta
na frente de um espelho e repete inúmeras vezes, até quase perder o fôlego, seu
nome e o nome das duas mulheres que povoam seus sonhos. François, do mesmo modo, quando se dá conta da sua atração por homens, usa o espelho como
interlocutor para tentar se convencer: “eu sou gay, eu sou gay, eu sou gay!”.
O tom encontrado por Téchiné para tratar um assunto grave – a guerra,
a relação política entre colônia e metrópole, o impacto do conflito na vida de
jovens soldados – é o da afirmação. Rosas Selvagens é um filme positivo, fresco,
passado no verão de todos os belos sentimentos, na tradição de Rohmer e das
descobertas feitas ao som das cigarras e sob o perfume do sol nos campos de
lavanda do sul da França. A afirmação sexual gay de François não é motivo de
chacotas ou violências – a não ser do personagem do jovem politizado que acaba
se tornando amigo do protagonista. François vai se tornar um adulto emancipado
por ser corajoso e saber se posicionar na vida. Possui o frenesi da juventude, mas
tem colhões suficientes para entrar na loja do gay notório da cidadezinha para lhe
pedir conselhos sobre seu futuro. Suas questões de coração são ao mesmo tempo
pessoais e universais, mas é através da amizade que sua pretensão de parceria e
pertencimento se realiza. Gaël Morel, Stéphane Rideau (Serge) e Élodie Bouchez
(Maitê) formam uma verdadeira irmandade de cinema a partir da figura tutelar de
Téchiné. Gaël tornou-se diretor e continua trabalhando com os antigos companheiros de verão.
Na obra de Téchiné, essa maneira singela, quase pueril, de falar de sexualidade é exceção. Filmes como Rendez-vous (1985), J’embrasse pas (1991) e Alice
e Martin (Alice et Martin, 1996) têm uma visão muito mais desencantada e crua
dos relacionamentos. E não é por serem basicamente filmes em torno de relacionamentos heterossexuais. As Testemunhas (Les Temoins, 2007), um dos melhores
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longas da safra recente de Téchiné, apresenta histórias de personagens gays com
amargor – o tema do filme é a consequência da Aids na vida sexual de um grupo
de amigos.
Rosas Selvagens é um filme de impacto geracional, que povoou o imaginário de cinéfilos dos anos 1990, assim como o seu filme-farol o fizera 30 anos
antes. Assim como a obra de Truffaut-Doinel, fez seus atores estabelecerem com
os espectadores relações de proximidade, quase de amizade; mostrou a estes um
cinema outro que o de Hollywood, e os armou para encarar os problemas da vida
adulta.
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VIVE L’AMOUR
Ai Qing Wan Sui | 1994 | 118min
Elenco: Chen Chao-jung, Lee Kang-sheng, Yang Kuei-Mei, Lu Yi-Ching
Sinopse: Hsiao-kang vende urnas funerárias. Ele é extremamente tímido para trabalhar com vendas, mas é
assim que ganha a vida. Mei-mei é corretora imobiliária. Vive sozinha em um pequeno apartamento e acorda muito cedo para despachar anúncios imobiliários
para os jornais. De dia visita os apartamentos com os
compradores interessados. Ah-rong vende vestidos
femininos na entrada de uma grande loja de departamentos. Em uma noite de inverno os três se reúnem
em um apartamento vazio do centro de Taipei. Estão
juntos, mas não totalmente.
Direção: Tsai Ming-Liang
Roteiro: Tsai Ming-Liang, Tsai Yi-chun, Yang Pi-ying
Produção executiva: Feng-Chyt Jiang
Produção: Hu-pin Chung, Li-Kong Hsu
Direção de Produção: Wei-hua Tzon
Direção de fotografia: Pen-Jung Liao, Ming-kuo Lin
Montagem: Shia-cheng Sung
Equipe de arte: Chien-hsun Chen, Chung-hung Luo,
Jean Mei Tang
Equipe de som: Chiang-Sheng Hsin, Ding-Yi Hu, Ching-an Yang, Jing-an Yang
Festivais: Festival de Veneza (1994), Festival de Toronto (1994), Festival de Chicago (1994) etc.
Prêmios: Vencedor do Leão de Ouro e prêmio Fipresci
no Festival de Veneza. Indicado a 5 Golden Horse (prêmio principal de Taiwan): Melhor ator (Lee Kang-sheng)
e ator coadjuvante (Chen Chao-jung) e vencedor de 3
prêmios (filme, direção e efeitos sonoros)
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JUNTOS E SÓS: VIVE
L’AMOUR DE TSAI
MING-LIANG
Denilson Lopes
Entre os cineastas asiáticos que emergem nos anos 1990, Tsai MingLiang ocupa um lugar fundamental na possibilidade de pensar um New Queer
Cinema fora dos EUA (MARTIN, 2003; BERRY, 2005). Esta posição já ficou visível
no seu segundo longa-metragem, Vive l’Amour (Ai Qing Wan Sui, 1994), por sua
encenação de fragmentos da vida de três jovens em Taipei sem recorrer aos
conhecidos clichês de pensar uma relação a três como uma fase na juventude
que passaria em função da substituição por casais hetero e homonormativos na
vida adulta. O que acontece é a precariedade de um outro modo de vida, de uma
outra forma de estar junto.
Como espaço, nada mais interessante do que o apartamento para alugar
que se converte em ponto para os encontros ocasionais da corretora Mei Ling (Yang
Kuei-Mei). Sem que ela saiba, o apartamento se torna uma espécie de morada
para um de seus amantes, Ah-Jung (Chen Chao-jung), camelô nas ruas de Taipei, e
Hsiao Kang (Lee Kang-sheng), um jovem que vende urnas funerárias. A casa é, ao
mesmo tempo, um lugar de passagem e de intimidade. Casa incerta, provisória,
já que em breve seria vendida - Mei teria que trocar este apartamento por outro
lugar para seus encontros fortuitos e Ah-Jung e Hsiao Kang, aparentemente sem
casa, teriam que encontrar um outro lugar para dormir. Dos personagens, é Hsiao
Kang que mais tenta fazer desta casa destituída de marcas pessoais, com poucos
móveis, um espaço lúdico, onde ele se veste de mulher, brinca com uma melancia
e até mesmo corta os pulsos. O objetivo, mesmo aqui, não é tanto o suicídio, mas
perceber a si mesmo. Seria isso que Slavoj Zizek (2003, p. 24) analisa quando fala
que os cortes no corpo seriam uma última tentativa de afirmar uma sensação
de realidade, de que nem tudo é simulacro e evanescimento? Hsiao Kang não
aparece deprimido antes do corte, nem parece redimido depois. Um corte é só
um corte. Nada de explicações psicológicas. O corpo, já na primeira cena quando
olha para uma câmera de vigilância, só parece confirmar uma existência que se
esvai absorvida em si mesma e dispersa no espaço. Os personagens, quase sem
nomes, não têm família nem passado, conversam pouco, sem grandes vínculos,
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transeuntes na cidade, sempre dispostos a experimentar as possibilidades de
encontro. Como quando Ah-Jung e Mei se veem pela primeira vez num restaurante,
e depois pelas ruas de Taipei, passando pela troca de telefones realizada, mas
não mostrada, até os dois encontros sexuais no apartamento quase vazio. Ou
quando Hsiao Kang, na primeira cena do filme, vê uma chave do lado de fora do
apartamento e a pega, entregando, tempos depois, uma cópia da mesma chave
para Ah-Jung. E é este acaso que faz com que estes dois homeless se encontrem
dentro do apartamento. Quando Ah-Jung descobre que Hsiao Kang também está
usando o apartamento como moradia, cria-se um vínculo entre eles, um vínculo
a partir do espaço que também transita para algo mais além dos dois encontros
sexuais entre Ah-Jung e Mei. Tudo parece uma possibilidade aberta que também
pode não levar a nada mais do que ao beijo que Hsiao Kang dá em Ah-Jung
enquanto este está dormindo. A ação acontece logo após Hsiao Kang assistir
escondido à transa de Ah-Jung e Mei e se masturbar debaixo da cama. Também o
sexo não significa intimidade nem transgressão. Apenas um momento. Tudo são
possibilidades precárias.
Curiosamente, a explosão do choro convulsivo de Mei no banco de
um auditório ao ar livre, depois de caminhar por um parque em obras, mas que
também poderia ser em ruínas, não é explicada. Certamente não é uma catarse,
seja para a personagem, seja para o espectador. Aliás, quando parece que o
filme está terminando e a tela preta surge, ainda ouvimos uma volta ao choro.
Poderíamos pensar que justamente a Mei, uma corretora de imóveis, bemvestida e focada na sua profissão, a personagem mais integrada ao mundo do
trabalho, é destinado o gesto mais dramático de insatisfação, enquanto que
Ah-Jung e Hsiao Kang, que não parecem se interessar tanto por seus trabalhos,
demonstram ter uma relação mais neutra com a vida, sem grandes alegrias ou
grandes tristezas. A última imagem de Mei é o choro, filmado quase em close,
num filme em que há mais planos médios e distanciados, como se as lágrimas
fossem nos tocar, nos invadir. Não saímos, no entanto, identificados com o
sentimento da personagem nem redimidos, marcados por aquela leveza quando
assistimos a algo muito belo, embora doloroso. Não choramos junto com Mei.
Não podemos compartilhar este sentimento. Apenas somos atingidos, um pouco
perplexos, um pouco incomodados, na longa sequência que parece não ter fim,
enquanto que de Ah-Jung e Hsiao Kang fica um breve beijo, que talvez nem AhJung tenha percebido. Uma outra intimidade. A intimidade possível não só entre
pessoas que se encontram por acaso, algo que não passa pela confissão e pela
autoexposição. A vida aparece como uma sucessão de possibilidades abertas,
capítulos desconectados, estórias rápidas, sem sínteses nem conclusões, talvez
algo mais do que a mera solidão enfatizada pelos críticos do individualismo e
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do narcisismo em nossas sociedades. Pode ser o amor, mas pode ser o desejo
de estar junto. Para Tsai, lágrimas são lágrimas, um beijo é um beijo, o toque é o
toque, nada de redentor, transgressor, exuberante, transformador, apenas algo
que faz seus personagens se moverem para um outro espaço, para um outro
momento, a que não temos acesso. Podemos no máximo ser atingidos, isso seria o
que é possível compartilhar, estar com os personagens, acompanhar seus gestos,
nada mais nos será revelado, não há nada a ser interpretado, não há símbolos
nem alegorias. Os personagens não são reduzidos a tipos sociais ou a vítimas de
preconceitos, apenas à experiência concreta e fílmica das quase duas horas em
que passamos em sua companhia. As marcas sociais e históricas existem, mas elas
entram sutilmente nos corpos, nos gestos, nas atitudes, sem explicações.
Taipei aparece sem grandes marcas, sem parecer um cartão-postal
(BRAESTER, 2010), no seu cotidiano, definida pelo constante fluxo de carros que
cede lugar ao vazio noturno. Vazios estão inclusive os apartamentos por onde os
três protagonistas transitam. A casa transforma-se de um não lugar num lugar
de encontros, onde os personagens masculinos parecem fantasmas, para não
serem percebidos, sobretudo o personagem de Hsiao Kang. Mas todos os três,
anônimos na cidade e na casa que habitam, podem desaparecer, sair de cena e
talvez ninguém note. O que talvez reste são os encontros. Não, nem isto.
BRAESTER, Yomi. Painting the City Red: Chinese Cinema and the Urban Contract.
Durhan: Duke University Press, 2010.
MARTIN, Fran. “Vive l’Amour: eloquent emptiness”. In: BERRY, Chris. Chinese Films in
Focus. Londres: BFI, 2003.
WU, Meling. “Postsadness Taiwan New Cinema”. In: LU, Sheldon; YEH, Emilie (org.).
Chinese Language Film. Honolulu: University of Hawai’i Press, 2005.
ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real. São Paulo: Boitempo, 2003.
Vive l’Amour é um drama desdramatizado marcado por elipses que não
chegam a quebrar a narrativa tradicional, mas que não busca dar densidade
psicológica aos personagens como no grande teatro naturalista do século XIX.
Não há monólogos interiores nem narradores. Os personagens falam pouco
e de maneira contida. Em vez do excesso de ação ou de emoção, a ênfase está
na ambiência e no tom, nas pausas e silêncios, colocando em cena personagens
comuns – nem épicos nem trágicos –, personagens medianos, com vidas medianas,
nada excepcionais nem heroicas, com falas convencionais sobre assuntos banais,
sem nenhuma pretensão intelectual e poética, frases de efeito, reflexões abstratas
e lições de vida. São sujeitos em eclipse não por serem alienados, anônimos na
multidão urbana como o homem moderno, mas figuras quase fantasmais, por
marcarem pouco a sua presença, a sua voz, a sua vida. Contudo não possuem
nenhuma dimensão metafísica.
Referências bibliográficas
BERRY, Chris. “Where is the Love? Hyperbolic Realism and Indulgence in Vive
l’Amour”. In: BERRY, Chris; LU, Feii (org.). Islands on the Edge. Taiwan New Cinema
and After. Hong Kong: Hong Kong University Press, 2005, p.89-100.
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KIDS
Kids | 1995 | 91min
Elenco: Leo Fitzpatrick, Justin Pierce, Chloë Sevigny,
Rosario Dawson
Sinopse: O filme é focado em um dia na vida de um
grupo de jovens sexualmente ativos de Nova Iorque e
mostra seu comportamento diante de sexo e drogas
durante a era do HIV em meados dos anos 90. O filme
tem como protagonista um skatista em busca de sexo
e drogas.
Direção: Larry Clark
Roteiro: Harmony Korine
Produção executiva: Patrick Panzarella, Gus Van Sant,
Michael Chambers
Co-Produção: Cathy Konrad, Christine Vachon, Lauren
Zalaznick
Música: Lou Barlow, John Davis
Direção de fotografia: Eric Alan Edwards
Montagem: Christopher Tellefsen
Casting: Alysa Wishingrad
Equipe de arte: Ford Wheeler, Kim Marie Druce,
Jennifer Alex Nickason, Michael Preston
Equipe de som: Laurel Bridges, Wendy Hedin, Charles
R. Hunt, Jan McLaughlin
Festivais: Festival de Sundance (1995), Festival de
Cannes (1995), Festival de Locarno (1995) etc.
Prêmios: Indicado à Palma de Ouro no Festival de
Cannes; Indicado a 4 prêmios no Independent Spirit
Awards (filme de estreia, roteiro de estreia, atriz coadjuvante - Chloë Sevigny) e vencedor de Melhor atuação
estreante (Justin Pearce).
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LITTLE TROUBLE GIRLS AND
BOYS - IMPRESSÕES DE
INFÂNCIA E LEMBRANÇAS
DE KIDS
João Marcos de Almeida
1996. Ano da morte de Renato Russo, do hit É o Tchan, ano em que O
Quatrilho é indicado ao Oscar, a explosão de Daft Punk e Prodigy. Foi o ano da
multiplicação de festas de música eletrônica nas grandes cidades – e fora delas,
nas raves. Também foi o ano em que Michael Jackson veio ao Brasil dizer que “eles
não ligam pra gente”. Extraterrestres visitaram a cidade de Varginha. É o ano da
vaca louca, do lançamento do Nintendo 64 e da separação de Lady Di e Príncipe
Charles. Foram lançados Wonderwall, Don’t Speak, Devil’s Haircut e Ironic. Também é o ano do lançamento de Kids nas locadoras no Brasil. Aos 10 anos, após ler e ouvir sobre o filme em revistas especializadas e
programas de TV, apesar da idade, ou talvez especialmente por causa dela, eu
estava louco para ver Kids (1995, Larry Clark). Qualquer um que acompanhasse
minimamente cinema sabia do filme e tinha, no mínimo, grande curiosidade para
ver. O cinema independente americano estava no topo, com Robert Rodriguez,
Gus Van Sant, Kevin Smith, Richard Linklater e Quentin Tarantino. Mas alugar Kids
era completamente diferente do que alugar qualquer outro filme. Em idade ainda do que seria hoje ensino fundamental, com aparência de
ainda mais novo do que era, tinha medo que entregar Kids para o balconista da
videolocadora seria lido como “Olha, esse jovem está interessado em sexo, talvez
eu devesse avisar sua família”. Então, resolvi fazer o caminho inverso: pedir para
minha mãe alugar a fita. O plano era simples, entregar um papel para ela com alguns outros nomes de filmes mais razoáveis como Antes do Amanhecer e Batman
Eternamente. Não deu tão certo, já que o telefone tocou alguns minutos depois
em casa e era ela perguntando se era esse filme mesmo que eu queria ver, já que
o funcionário a havia alertado sobre o conteúdo possivelmente desagradável ao
gosto dela. Afirmei que era esse mesmo e o filme acabou chegando em casa e
consegui assisti-lo1.
1 Nota dos editores: O autor menciona neste parágrafo os filmes Antes do Amanhecer (Before Sunrise,
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Desde então, algumas das imagens que vi durante o tempo entre colocar
a fita no videocassete e rebobiná-la 90 minutos depois nunca mais sairiam da
minha cabeça. Também a partir daí criei ídolos que até hoje são referências para
o meu trabalho2: Larry Clark, Harmony Korine e Chloë Sevegny. O casal Chloë e
Harmony seriam até hoje o casal mais bonito, fotogênico e interessante que já
houve. Eu acompanharia os dois em cada trabalho e nas fotos de imprensa. E
mesmo sendo Kids o único filme de Larry Clark que nunca revi, foi o que mais usei
de referência de direção, consciente ou inconscientemente.
Para mim, o universo do filme chegaria logo na minha vida real, e era
tudo muito claro como as coisas iam se desenvolver na minha adolescência. Eu
me apaixonaria por Jennie, a personagem de Chloë Sevegny, que obviamente
era a garota dos meus sonhos. Telly e Casper, interpretados por Leo Fitzpatrick e
Justin Pierce, eram a típica dupla de que eu fugiria, mas que me atormentaria com
questões de virilidade. Eu seria um daqueles personagens mais jovens que eles,
que acaba fumando maconha na festa dos colegas mais velhos para provar que
era adulto o suficiente e mentir que não era mais virgem. Ou mais tarde seria o
personagem de Harmony, o maluco da casa noturna que tentava animar Jennie.
Pelo menos, era assim que eu me sentia ao assistir ao filme. Ao mesmo tempo
que eu tinha um pouco de medo daquele ambiente, sentia uma forte atração em
pertencer a um grupo daquele tipo e sentia que eu não tinha escapatória, que eu
passaria por aquelas experiências. Claro que eu pensava que seria mais cuidadoso
no sexo que eles, eu me cuidaria para não me infectar pelo HIV, acreditando que
eu logo perderia a virgindade.
O primeiro plano do filme já é um choque. Nunca havíamos visto crianças se beijando daquele jeito no cinema – nem ouvido, já que o barulho do beijo
deles é perturbador – em primeiro plano, em 35mm, e, mais uma vez: daquele
jeito. Logo depois, o personagem de Leo convence a companheira, de 12 anos,
a ter relações sexuais com ele. Esse começo é realmente difícil de esquecer. Logo
de cara o filme explicita que crianças de 12 anos têm desejos sexuais, o que era
realmente algo fora do comum – não era discutido no cinema em algum tempo
ou com um alcance de público tão extenso. Eu tinha ainda menos idade que eles
e, por isso, me animava que talvez eu pudesse exercer minha sexualidade na prática em tão pouco tempo.
Era estranho que, em um filme onde os personagens masculinos eram
1995, Richard Linklater) e Batman Eternamente (Batman Forever, 1995, Joel Schumacher), mas preferiu não incluir as informações no decorrer do texto.
2 Nota dos editores: João Marcos de Almeida é diretor, montador, diretor de arte de vários filmes,
como A Bela P... (2008), Eva Nil cem anos sem filmes (2009) e Meu amigo que trabalhou com Manoel de
Oliveira, que fez cem anos (2012), além de desenhar os créditos e cartazes de vários filmes brasileiros. 29
tão misóginos e homofóbicos, os corpos de rapazes e garotas eram mostrados do
mesmo modo. Sentia que era permitido ter prazer ao observar os corpos dos dois
gêneros. É difícil não enxergar homoerotismo na cena em que Telly leva Casper
para sua casa, tiram a camisa no quarto e um se exibe para o outro. As meninas
podiam se beijar apenas por estar com vontade, como amigas, e recusar o beijo
do colega, assim como na cena da piscina, mais para o final do filme. Beijo entre
diversas pessoas ao mesmo tempo era permitido, assim como era permitido assisti-las como voyeur, visto na cena da casa noturna, onde o personagem do Harmony leva Jenny para observar um pouco da ação. Diversos tipos de sexualidade
eram normais, permitidas e, o melhor: tudo era lindo, divertido e perigoso.
A novidade também estava nos corpos que eram mostrados. Eram corpos bonitos, mas em um padrão de beleza completamente diferente do em voga
então na televisão e propagandas de moda. As garotas não eram tão magras e os
seios não eram tão grandes. Não era tudo tão proporcional, também. Os rapazes
eram bem menores e mais magros, o que me animava, já que eu me sentia completamente indesejável com minha magreza exagerada.
A linguagem que os personagens usavam, os temas das conversas e o
gestual eram muito verdadeiros. Era raro ver na tela adolescentes que se comportavam como adolescentes: tinham muito tempo livre, passavam muito tempo na rua, bebiam, faziam pequenos furtos, paqueravam, causavam problemas
com outros grupos por nada, brigavam por diversão. Fazia toda a diferença ter
um roteirista de 19 anos (idade de Harmony Korine na época), que, além de jovem
e skatista, era fã de Werner Herzog, cinéfilo e se inspirava nas histórias reais de
seus amigos, muitos inclusive no elenco. A vida desglamorizada filmada de modo
mais cru, muito frequente no cinema independente americano dos anos 1970, já
estava fora de moda fazia um bom tempo, e essa parecia uma abordagem fresca
e necessária.
logo iniciaria minha vida sexual – o que não aconteceria de verdade – e que nunca correria nenhum risco, que era fácil se prevenir. A questão do HIV era frequente
o tempo todo, principalmente para os jovens. Eu era dessas crianças que passava
um bom tempo assistindo MTV diariamente e vendo programas para jovens um
pouco maiores que eu. Ali, a Aids era alertada o tempo todo. Quando assisti ao filme, era uma questão básica, que logicamente seria abordada. Mas claro que não
era tão óbvio, e o filme marcou especialmente por abordar a questão de modo
criativo.
Anos depois, impressionou-me saber que muitos amigos haviam conhecido o filme na escola, geralmente no ginásio, que havia sido usado como material didático de apoio para alertar sobre a doença. A maioria deles conta que ficou
bastante chocado ao final, apesar da euforia inicial. Já os amigos que viram em
casa (a maioria escondido dos pais), viam naquele universo um pouco um objetivo de vida, como eu. Em um dos relatos de exibição em sala de aula, a professora
da quinta série do fundamental, após mostrar o filme, adaptou o jogo Detetive,
onde é preciso descobrir quem é o assassino, para descobrir quem é o portador
do vírus.
E afinal, Jesus Christ, what happened? Voltando ao filme 20 anos depois, e
assistindo hoje apenas pela segunda vez, fica claro como ele permeou boa parte
da minha vida. Nunca deixei de falar sobre o filme, nem discuti-lo com amigos,
copiei estilos de roupa, ouvi músicas do universo do filme, tentei andar de skate.
Nada deu muito certo, mas rever o filme me fez perceber que sou, sim, citando as
músicas do Sonic Youth e Blur que ouvia na mesma época, um daqueles problemáticos pequenos garotos e garotas.
O comportamento das meninas no filme me chamava bastante atenção,
elas discutiam sexo assim como os rapazes: falavam de virgindade, sexo selvagem, esclareciam seu desejo. No grupo dos rapazes da minha escola, era normal
falar de sexualidade, embora nenhum de nós realmente soubesse nada daquilo,
mas era novidade para mim aquela intimidade do mundo feminino. Confesso que
fiquei um pouco decepcionado, 20 anos depois, quando li que Chloë Sevegny
achava na época da filmagem os diálogos dessa cena vulgares, que ela não costumava falar daquele jeito com as amigas.
A cena da enfermaria, em que as meninas fazem o teste de HIV, tem muito da vergonha do jovem ao se expor aos médicos. Já os meninos dizem não se
importar em ficar doentes. Eu certamente não era nenhum deles. Achava que
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HUSTLER WHITE
Hustler White | 1996 | 79min
Elenco: Tony Ward, Bruce La Bruce, Alex Austin, Kevin
Kramer, Ron Athey, Glen Meadmore
Sinopse: Montgomery Ward é um batalhador em Los
Angeles que aparece flutuando em uma banheira de
hidromassagem. Sua voz começa o relato das circunstâncias que levaram à morte. Tudo começa com um
escritor alemão chamado Jürgen Anger que para na
Califórnia, com a intenção de escrever um livro sobre
prostituição masculina. Quando ele conhece Monty, o
contrata por mil dólares para que conte a história de
sua vida e os detalhes de seu trabalho.
Direção: Bruce LaBruce, Rick Castro
Roteiro: Bruce LaBruce, Rick Castro
Produção: Bruce LaBruce, Jürgen Brüning
Direção de fotografia: James Carman
Montagem: Rider Siphron
Casting: Jamool
Direção de arte: Steve Hall, Tyr Jung-Hall
Edição de som: Lawrence W. Wemdleton, Rider Siphron
Mixagem de som: Mark Meyuhas
Festivais: Festival de Berlim (1996), Festival de Toronto (1996), Festival do Filme Lésbico e Gay de Seattle
(1996) etc.
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HUSTLER WHITE - A
CAVALO ENTRE O
DESEJO E A MORTE
Will Domingos
[…] na paquera de ‘entendidos’ e michês, esta procura
de compradores e vendedores de sexo percorre
itinerários urbanos, territorialidades materiais; as
circunvoluções desejantes são estampadas no plano
real da paisagem urbana em movimento. Elas usam,
em verdade, circuitos moleculares que atravessam
a massa de transeuntes – um aparelho de captura
do olhar que singulariza um sujeito desejante na
multidão, separando-o fugazmente da fileira de
rostos “facsimilizados” e anônimos. O olhar de relance
da prostituta, do “entendido”, do michê […] sexualiza
e acende a multidão anódina, […] por um lado,
abrem-se ‘pontos de fuga’ libidinais, mas, por outro, a
prostituição procede a uma reconversão econômica
desse fluxo desejante. (PERLONGHER, 2008, p. 247248).
O personagem do michê é um ator social marginal, desviante e promíscuo
diante do corpo social hegemônico e também da comunidade gay em processo
de disciplinarização. O seu trabalho desenvolve-se num território ambíguo “[…]
a cavalo entre o desejo e a morte, entre a disrupção passional e a submissão ao
sistema de regras e preços do mercado” (PERLONGHER, 2008, p. 253).
A partir de um repertório teórico e de suas pesquisas de campo,
Néstor Perlongher (2008) oferece descrições e análises minuciosas dos modos
de configuração da paquera na prática da prostituição urbana, em seu livro O
Negócio do Michê. Se o autor não se priva de manifestar seus desejos numa escrita
encharcada também por um estilo confessional e repleto de atravessamentos entre
o falar sobre o outro e a troca de vivências, as mise-en-scènes cinematográficas em
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torno do personagem do michê também fizeram uso de qualidades sensoriais,
autoetnográficas e subversivas desse fluxo desejante, em que se dão o trottoir1 e
o cruising2 dessas existências performáticas.
Nos anos 90, além de Hustler White (1996, Bruce LaBruce e Rick Castro),
destacaria – seja pela forma fílmica ou pelo discurso transgressor ou mesmo
assimilacionista e higienizado sobre o michê – filmes como Garotos de Programa
(My Own Private Idaho, 1991, Gus Van Sant), The Living End (1992, Gregg Araki),
Not Angels But Angels (1994, Wiktor Grodecki), Body Without Soul (Telo bez Duse,
1996, Wiktor Grodecki), Skin and Bone (1996, Everett Lewis), From The Edge Of The
City (Apo tin Akri tis Polis, 1998, Constantine Giannaris), e nos anos 2000, obras
como Vagón Fumador (2001, Verónica Chen), Garçon Stupide (2004, Lionel Baier),
Mistérios da Carne (Mysterious Skin, 2004, Gregg Araki) e Greek Pete (2009, Andrew
Haigh).
Se os mais recentes exemplares desse universo temático, tais como
Greek Pete, Homem ao Banho (Homme Au Bain, 2010, Christophe Honoré) e
Eastern Boys (2013, Robin Campillo), apresentam estéticas realistas e corpos
fílmicos com preocupações estético-discursivas mais próximas de filmes do
cinema underground americano dos anos 1960 e 19703, com suas histórias e
conflitos menores, diante da priorização da experiência sensorial do cotidiano
ocioso do michê, seus prazeres prosaicos, as práticas sexuais dos personagens
e suas futilidades, em parte é porque o “realismo opera com vistas a atender às
necessidades impostas por novos contextos histórico-culturais” (SALOMÃO, 2005,
p. 24). Estamos falando de filmes que promovem um convite às sensações que
passa muito mais pela aproximação entre a arte e a vida, através de articulações
entre efeitos do real e efeitos de dramaturgia, em que a “ficção absorve a força do
[…] documentário, usando-a para seu benefício” (SALOMÃO, 2005, p. 15),4 do que
1 O trottoir é a maneira comum de se referir à prostituição de rua, feita em calçada, onde o profissional
se coloca como objeto a ser ofertado e ritualiza o desejo e seu valor em determinados gestos
codificados.
2 Em momentos históricos quando as relações homossexuais ocupavam contextos menos tolerantes
e até mesmo proibicionistas, o cruising comumente era conhecido como uma espécie de ritual
de olhares, gestos e códigos diversos de que os homens se utilizavam para se relacionar sexualmente com outros homens, na esfera do anonimato.
3 A partir de questionamentos da ideologia dominante do fazer cinematográfico e da rejeição da
norma sexual e social, esse movimento de experimentação explorava sem pudor os corpos, desejos e
práticas marginalizadas (BETTIM, 2015), desconstruindo os essencialismos identitários e estéticos, caracterizando-se por uma performatividade do desvio, associada anos depois com o imaginário queer.
4 Menos pautados por um movimento narrativo que progride de acordo com ações dramáticas
claras diante de conflitos facilmente identificados e reações psicológicas interligadas à construção
moral e identitária dos personagens, esses filmes convocam sensações privilegiando o corpo –
da imagem e dos sujeitos – e a emoção, fazendo disso acontecimentos em si mesmos, em que
afetação e ação se confundem e os pesos se igualam. Aposta-se assim numa fluição e fruição mais
sensorial do que numa lógica de leitura objetiva, racional e sentimentalmente pré-organizada na
dinâmica da representação.
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de experiências estéticas baseadas em experimentações na imagem, na estética
do exagero vinculada à cultura pop, às promessas do digital e aos perigos da
higienização das práticas sexuais dissidentes no contexto da Aids, como é o que
se manifesta na radicalidade enérgica dos filmes do New Queer Cinema.5
O ímpeto maior presente em boa parte das produções audiovisuais
dessa geração certamente estava na visibilidade performativa dos estilos de
vida dissidentes e no desejo como elemento central das histórias. Diante disso,
desfaziam-se as identidades no movimento instável, caótico e amoral das
subjetividades e territorialidades dos indivíduos.
Em Hustler White (1996), Bruce LaBruce e Rick Castro experimentam
possibilidades de aproximação entre a estética pop, a visualidade pornográfica,
a violência estilizada e cômica e o final feliz ironizado, a partir de perturbações
na linguagem clássico-narrativa e da reapropriação de clichês da comunidade
gay. Acompanhamos a busca do escritor Jürgen Anger (interpretado por Bruce
LaBruce) pelo michê Monti (Tony Ward), pela região de Santa Monica Boulevard,
em Hollywood. O escritor está na cidade pesquisando a indústria pornográfica e
a prostituição, quando se apaixona de modo obsessivo pela imagem de Monti, ao
cruzar por ele em uma esquina.
No filme, coloca-se em cena toda uma cultura de gestos, imagens e
sensações, mas a fluidez dos corpos, da cidade e da multiplicidade das vivências
não permite o encontro de uma organicidade homogênea e harmônica em torno
da lógica das ações no espaço e no tempo, o que acaba particularizando essa
forma de apropriação em torno do mainstream. A ocorrência disso se dá por
sucessivos processos de desterritorialização e reterritorialização do desejo, dos
limites do corpo e do corpo social, algo que remete à condição de deriva dos
michês. Quando os desejos, as corporalidades, as sexualidades, os gestos e afetos
escorregam das arquiteturas da heteronormatividade, estamos diante de outros
movimentos de pertencimento à experiência dos espaços de visibilidade e às
políticas do cotidiano. Assim, a normalidade não é o centro, e o desvio se torna
a condição dessas existências, assim como o comportamento da materialidade
fílmica. Se esses personagens fossem vistos como minorias desviantes, seria difícil
apostar na existência de algo como um gueto gay, uma vez que esses grupos não
são tidos como agrupados no filme, muito pelo contrário. A sociabilidade aqui é
marcada pela sobrevivência e pela lei do mais forte, em que não há espaço para
5 Esse convite às sensações no New Queer Cinema era atravessado pela constante do excesso tanto na forma estética quanto num realismo naturalista ambíguo, já que não havia abandonado
completamente a dramatização das emoções e dos gestos do corpo, a qual se intensificava nas
narrativas quase sempre no instinto da transgressão, da violência, do descontrole emocional e
do prazer, configurando o aspecto traumático de um tipo de realismo por vezes associado ao
choque, segundo autores como Hal Foster, Beatriz Jaguaribe, entre outros.
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julgamentos em torno de bem, mal, certo, errado.
Toda a noção de desvio presente no filme está vinculada à ideia de
prazer visual. E quanto a isso, não estamos falando somente do prazer sexual
proporcionado pelo sexo pornográfico, mas também de encenações de uma
cultura espetacularizada da violência e do choque. Por isso, há uma obsessão da
câmera em filmar de perto e com tempos alongados, qualquer coisa que possa
causar sensações no corpo do espectador. No que diz respeito às práticas sexuais
dissidentes e subversivas, destacam-se cenas sadomasoquistas e da cultura BDSM,
além da presença de cortes, enforcamento, penetração por membro amputado,
entre demais práticas que não se restringem aos órgãos sexuais.
Há uma cena ícone sobre o cruising e o trottoir em Hustler White (1996),
que é quando o escritor Jürgen relata para o seu próprio gravador, o cruzar de
olhares entre ele – num carro em movimento – e o hustler Monti (Tony Ward) numa calçada, ambos sob a luz do dia. Jürgen diz (referindo-se a si mesmo em
terceira pessoa):
Jürgen considera esse olhar furtivo como um sinal
encorajador, um relâmpago, como o amor à primeira
vista. Para o garoto, é um olhar gelado, fixo, que
caça, encurrala, é a possibilidade de um cliente entre
milhares de clientes possíveis.
A partir de uma estrutura de planos ponto de vista, o cruising é
estabelecido na cena, em câmera lenta e acompanhado por uma música não
diegética de rock. Após a gravação falada de Jürgen, a mesma música retorna,
e vemos Monti em uma barra de flexão se exercitando. O mesmo plano de suas
subidas na barra é repetido cerca de três vezes, enfatizando o olhar desejante de
Jürgen e investindo no poder mobilizador da imagem no corpo do espectador.
O cruising e o trottoir não assumem formas fixas. A performatividade desse
tipo de ritual lembra a lógica da concepção de gênero enquanto performance
(BUTLER, 2003), já que os gestos, os códigos e as práticas expressadas no corpo
produzem papéis identitários e sexualidades múltiplas, assim como os efeitos e as
ocasiões que se alcançam a partir desse ritual de desejo e conquista.
A voz off de um policial interrogando Monti é recorrente ao longo do filme
de LaBruce e Rick Castro. O policial insiste inúmeras vezes sem resposta: “Você é
gay ou hétero?”. Ao final do filme, Monti responde: “Eu sou um hustler [michê]”. Se
em termos de representatividade das dissidências sexuais o cinema ainda é muito
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frágil e omisso, é certo dizer que ao lado da figura da travesti e da drag queen,
o personagem do michê proporcionou experiências narrativas cinematográficas
mais próximas de uma real negação da heteronormatividade e, principalmente,
discussões em torno da sexualidade sem reafirmar identidades gays fixas e
padronizadas, propondo papéis e corpos descentralizados e transitórios, a partir
do investimento na esfera da fluidez dos desejos.
Referências Bibliográficas
BETTIM, Lucas. Um certo Old Queer Cinema. In: MURARI, Lucas; Nagime, Mateus.
(Org.). New queer cinema – cinema, sexualidade e política. 1. ed.: Caixa Cultural,
2015, v., p. 108-11.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismos e subversão da identidade. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
PERLONGHER, Néstor. O Negócio do Michê – A prostituição viril em São Paulo. 1ª
edição (1987). São Paulo, Editora Perseu Abramo, 2008.
SALOMÃO, Pedro Eduardo Pereira. Realismos contemporâneos: a inserção da
realidade na ficção cinematográfica. Dissertação de Mestrado. Orientadora:
Beatriz Jaguaribe de Mattos. UFRJ, 2005.
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VIDA SEM DESTINO
Gummo | 1997 | 89min
Elenco: Jacob Reynolds, Nick Sutton, Jacob Sewell,
Chloë Sevigny, Carisa Glucksman, Darby Dougherty,
Linda Manz, Mark Gonzales, Max Perlich.
Sinopse: Moradores de uma cidade de Ohio atingida
por um furacão seguem em vidas niilistas numa paisagem pobre e deserta com personagens comuns e angustiados
Direção: Harmony Korine Roteiro: Harmony Korine Produção executiva: Stephen Chin, Ruth Vitale
Produção: Cary Woods
Co-Produção: Robin O’Hara, Scott Macaulay
Direção de fotografia: Jean-Yves Escoffier Montagem: Christopher Tellefsen
Casting: Lyn Richmond Direção de arte: Amy Beth Silver Equipe de arte: Chloë Sevigny, Mia Thoen, George E.
Boyd, Anthony Gasparro
Equipe de som: Steve Borne, Bradford L. Hohle, Leo
Madrazo, Brian Miksis, Aaron J. Rudelson, Reilly Steele
Festivais: Festival de Veneza (1997), Festival de Londres (1997), Festival de Toronto (1997) etc.
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É COMO UM ANJO
SUSPIRANDO
Sergio Silva
“Life is beautiful. Really, it is. Full of
beauty and illusions. Life is great.
Without it, you’d be dead.”
Um pré-adolescente triste, com orelhas falsas de coelho cor-de-rosa na
cabeça e cigarro na mão vaga pelos escombros destruídos por um tornado em
Xenia, Ohio, em Gummo. O primeiro longa-metragem dirigido por Harmony Korine - o “skatista roteirista adolescente” do Kids de Larry Clark (1995) - é uma explosiva obra-prima feita de retratos de família rodeado por baratas, gatos chamuscados, banheiras imundas, cola de sapateiro e acumuladores.
Jamais estreado nos cinemas brasileiros, e lançado em VHS pela comportada Warner como “Vida sem destino”, tudo em Gummo é sens(x?)ual e descoberta. São corpos que raramente são retratados como desejáveis e desejantes no
eugênico ambiente do cinema (e, passados 19 anos de seu lançamento, sabemos
que tudo ficou ainda mais tímido), vivendo e negociando suas sexualidades, num
mundo onde os adultos quase não existem - e, na ausência deles, tocam o terror.
Solomon segue Tummler para todo canto, ambos com suas armas de
chumbinho atirando em gatos perdidos em lixeiras e que vendem para um comerciante local. Um de seus concorrentes é Jarrod, garoto andrógino que mora
com a avó que sobrevive graças aos aparelhos em uma casa entulhada de caixas.
Solomon admira demais o amigo, para quem faz cruas elegias sussurradas em
voice over. Compartilham o trabalho e os ganhos da caça de gatos, a cola que inalam, os passeios de bicicleta ao som de black metal e o encontro sexual (separadamente) com a mesma cândida adolescente cafetinada por um sujeito grotesco.
Quando a menina diz que Solomon é “magro demais”, ele se refugia no porão da
casa para malhar com pesos improvisados com talheres ao som de Like a prayer,
de Madonna - e sua mãe o acompanha numa sequência de sapateado entre o patético e o sublime (que caminha para a violência, quando ela encosta um revólver
na cabeça do filho, ameaçando-o por não lhe dar um sorriso. Mas tudo termina
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bem: Gummo é um filme terrivelmente angustiante, doce e terno, não podemos
esquecer).
Duas irmãs adolescentes (e uma terceira, criança, observa) colam fitas
isolantes nos seios para, após retirá-los bruscamente, ver como os mamilos cresceram. Elas saltam sobre as camas ao inocente som de Everyday, de Buddy Holly (e
uma delas, Dot, é Chloë Sevigny, a atriz-símbolo de uma era, nesta altura namorada de Korine e responsável pelo magnífico figurino do filme) e duvido muito que
não foram poucxs adolescentes que as imitaram quando viram o filme. E é Korine
quem terá uma das mais abertas cenas de afeto gay de Gummo, quando ele, (ator
e personagem) bêbado no sofá, tem um longo diálogo com um ator negro portador de nanismo para o qual se declara.
Aliás, como já não existe mais mundo após o fim dele (e gêneros e orientações sexuais do filme são extremamente dúbios e livres), temos o Bunny Boy.
Mais tocante personagem de Gummo, ele vaga por uma ponte, cuspindo entre a
cerca de proteção, mijando nos carros, fumando seu cigarro. No caminho, encontra dois pequenos cowboys com armas de brinquedo que o matam, o xingam e
humilham. Pouco depois, ele desce uma ladeira com seu skate (numa das mais
lindas cenas do filme, com genial fotografia de Jean-Ives Escoffier, parceiro constante de Leos Carax e de quem Korine era fã declarado) e toca seu acordeão num
banheiro escolar.
Quase tudo em Gummo acontece em duplas idênticas - irmãos gêmeos
esfregam as costas um do outro na banheira, dois irmãos skinheads dão depoimento para a câmera e fazem uma patética briga de socos, há duelos de braço de
ferro entre dois homens e duas mulheres, surgem dois missionários que vendem
chocolates de porta em porta, dois cowboys falsos acuam Bunny Boy - e mesmo
sua figura delicada encontra eco na de Jarrod.
Exercício poético à partir do universo white trash, Gummo emociona
com personagens que vestem camisetas de bandas de metal, cenas de luta livre
envolvendo uma cadeira e declarações de amor a Pamela Anderson e Patrick
Swayze. Quando se menos espera, estamos tomados pela ternura do olhar de
Korine. Solomon se lava na banheira mais encardida da história do cinema comendo um prato de macarrão, uma barra de chocolate e bebendo iogurte. Nas
paredes, uma instalação feita de bonecas barbie destruídas de um lado e fatias de
bacon coladas com fita adesiva do outro dão o tom delirante do filme.
Dot e a irmã procuram juntas sua gata preta. Bunny Boy e as duas irmãs
se beijam na piscina, sob a chuva. Solomon e Tummler matam a gata, sob a mesma chuva, graves e melancólicos. A exemplo do que acontecerá em seus filmes
seguintes, o clima sufocante e grave é sempre combinado com o humor - e a triste
43
gravação de “Crying”, de Roy Orbison embala a cena final.
Logo depois, Korine teria maior aproximação do mainstream ao dirigir
o clipe de Sunday (1998), de Sonic Youth - incluindo ali uma primeira representação gay e não-infantil de Macaulay Culkin -, faria o primeiro filme com o selo
Dogma 95 dos EUA com Julien Donkey-Boy (1999), lançaria seu longa mais caro, o
drama sobre sósias Mister Lonely (2007), e também o mais barato, o romance de
escombros Trash Humpers (2009). Talvez tenha atingido o ápice do seu gosto por
cultura pop com Spring Breakers - Garotas perigosas! (Spring Breakers, 2013), e no
recente Needed me (2016), video de Rihanna), sem nunca deixar de se interessar
por personagens que desejam dominar seus próprios corpos. Da minha parte,
sempre estarei acompanhando cada novo trabalho com fascínio e amor. It’s hard
to understand, but the touch of your hand can start me crying (...) Yes now you’re
gone, and from this moment on, i’ll be crying, crying, crying, crying, yeah, crying,
crying over you.
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SITCOM
Sitcom | 1998 | 85min
Elenco: Adrien de Van, Evelyne Dandry, François Marthouret, Marina de Van, Stéphane Rideau
Sinopse: Uma família francesa burguesa vive em aparente harmonia até que o pai compra um pequeno rato.
Devido a este animal de estimação, o caos instala-se e
cada membro da família vai expor suas perversões sexuais. O filme é uma farsa provocante que faz estalar o
verniz da burguesia e desafia os valores familiares das
sitcoms.
Direção: François Ozon
Roteiro: François Ozon
Produção: Olivier Delbosc, Marc Missonnier
Direção de Produção: Paul Raoux
Direção de fotografia: Yorick Le Saux Montagem: Dominique Petrot Música: Éric Neveux
Equipe de som: Charles Autrand, Christophe Bourreau, François Guillaume, Benoît Hillebrant
Festivais: Festival de Edimburgo (1998), Festival de
Chicago (1998), Festival do Filme Gay e Lésbico da
Carolina do Norte (2000) etc.
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PAPÉIS TRANSGREDIDOS
EM SITCOM
Marília Lima
O filme começa com uma cortina fechada, ouvimos diversas vozes, toca-se o sino, o público faz silêncio, abre-se a cortina e tem início o espetáculo. No
primeiro plano do filme, vemos a chegada do pai em casa. Quando o personagem
entra, é recebido com uma festa surpresa de aniversário que apenas sabemos em
voz off, criando a expectativa de que estamos diante de uma família tradicional
francesa, de classe alta. Não vemos, no entanto, a família nesse início, o plano geral mostra apenas a frente da casa, logo fica a cargo do espectador imaginar essa
família feliz. Até que ouvimos tiros, pessoas gritando e pelo off imaginamos o pai
atirando na própria família. Assim a construção imaginária da família tradicional
se quebra e dá lugar a abertura de um questionamento não apenas sobre sua
constituição, mas também sobre sua representação. A motivação do pai assassino
é o que espectador busca entender, qual o conflito do filme que repercutiu nisso?
Um rato! Então, o que cai no filme não é só um postulado da família (assassinado
pelo pai), mas aquilo que é representado como ordem natural de acontecimentos
no cinema clássico, uma causalidade verossimilhante desencadeada por um ratinho de laboratório.
A chegada do rato nada traz de estranho, é de quem menos desconfiamos, e, é claro, é ele que vai despertar em quem o toca os desejos, atitudes e
gestos ainda não experimentados. O bicho como agente causador de conflitos
na história do filme mostra o primeiro elemento de uma carreira cinematográfica
que coloca no plano outras maneiras de se trabalhar a imagem. Ozon desestabiliza seus personagens tal qual uma narrativa clássica faz, mas rompe a primazia
do conflito sobre o desenvolvimento do filme com um simples rato. Assim como
ficam seus personagens, ele desestabiliza o legado da estrutura narrativa onde
todo um cinema clássico se instituiu. Aqui (talvez) mais próximo de Luis Buñuel
do que de Pier Paolo Pasolini, Ozon nos conta uma história que entendemos, só
não sabemos o que fazer com ela. O filme apresenta várias situações irônicas e,
por isso mesmo, o título Sitcom, que é uma comédia com situações comuns de família ou grupo de amigos e etc. Ele se enquadraria então no gênero da comédia,
contudo, não rimos com a firmeza com que deveríamos rir, mas vem com a risada
sem graça um estranhamento e a dúvida sobre aquele que nos conta a história.
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Não culpamos mais o rato pela crise, mas quem comanda a história, o narrador.
Esse que constrói os personagens, nos guia, nos direciona, nos salva e nos alivia.
Em Sitcom, o narrador é o rato que nos toca, que nos mostra a facilidade
de romper com a imagem dogmática da família e do cinema. Em outros filmes,
Ozon usa a mesma estratégia de instaurar o conflito com um elemento simples.
Em 8 mulheres (8 femmes, 2002), o patriarca da família é assassinado, as mulheres
passam a desconfiar uma das outras, investigando e descobrindo seus segredos.
Nos diversos papéis das mulheres, há algo escondido nelas. No entanto, a “mensagem” do filme não recai sobre como nos escondemos por traz da fachada, mas
sobre aquilo que o espetáculo protege: as estratégias imagéticas de velar um discurso, mostrado como “transparente”, com toda sua onisciência divina. O espetáculo em Ozon é revelado pelo abrir das cortinas em Sitcom, pelo fechar delas em
8 mulheres e em Dentro da Casa (Dans la Maison, 2012), pelo olhar do personagem
para a câmera no final de Os Amantes Criminais (Les Amants Criminels, 1999)e por
outras estratégias que derrubam a quarta parede.
Em Sitcom, não se têm imagens surreais que libertariam os desejos reprimidos como em Buñuel, usou-se um rato. Essa é a quebra de Ozon da linguagem,
da estética de um cinema dominante que representa com naturalidade a família,
o casamento, o trabalho, a sexualidade. A direção do rompimento não vai em
busca de uma outra forma de representação que enquadraria novamente os seres, mas direciona o questionamento para o espectador sentado na plateia sobre
aquilo que ele vê como construção. São os papéis instituídos que se veem em
situações diferentes da norma que seria a graça do filme. A ironia funciona porque reconhecemos esses papéis e não imaginamos isso para eles. A empregada
supostamente não apareceria tão arrumada para um jantar na casa dos patrões,
o filho não deveria ser gay, assim como a filha não poderia ser sadomasoquista,
a graça está na situação inesperada, como qualquer comédia. Mas o questionamento vem da autoconsciência de reconhecer a representação dos papéis, não
na sua quebra, mas antes, quando já de início colocamos a empregada no lugar
estabelecido para ela, do filho tímido e da filha mimada. O narrador não nos diz
nada além disso, a família nos é apresentada de maneira simples por meio de
Maria, a empregada que vai começar os trabalhos na casa. Em um tour pelos cômodos, a mãe mostra os quartos ao mesmo tempo em que apresenta a família: o
filho que não abre as cortinas por ser um garoto (“Sabe como são os garotos!”, a
mãe diz), a filha que tem o quarto bagunçado justificado por ser artista. E o que
vem depois é o toque do rato que desperta os comportamentos fora dessa norma
que foi mostrada de modo econômico, mas o suficiente para ditarmos seu papel
com nosso olhar viciado.
Mas não nos culpemos por isso. Estamos acostumados com a ideia da
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ordem natural das coisas, nos agarramos a ela e a jogamos no cinema. Fizemos a
domesticação do cinema na forma da linguagem bem comportada, compreensível, por vezes abstrata, mas sempre no limite da representação acessível: basta
colocar uma dona de casa, o marido executivo, um casal de filhos e a empregada
que temos um mundo para destruir. Um mundo que construímos, e essa construção não precisa ser feita então pelo cinema, já está dada. O que precisa ser trabalhado é o seu avesso, onde não teremos mais base para reconhecer o outro, sua
representação será irreconhecível, precisaremos de mais para entender os personagens, os conflitos, as ironias. É o que Sitcom joga para o espectador, é o que
outros filmes dentro de uma noção de New Queer Cinema fazem. Eles subvertem
a representação naturalista que deriva do moralismo dos comportamentos, não
apenas pautando os temas tabus, mas inovando na sua forma cinematográfica.
Em Sitcom, o filho Nicolas assume sua homossexualidade logo após tocar no rato,
no jantar da família. Depois de assumido, ele muda seu comportamento, cuida
do corpo, troca as roupas antigas por novas, torna-se mais extrovertido, o espectador reconhece assim a cultura gay em Nicolas, por meio de muitos códigos que
se tornaram referência na representação. Essa transição performática do personagem transparece o medo encarnado das pessoas que categorizam umas as outras
a partir de suas sexualidades.
Referências Bibliográficas
BORDWELL, David. Narración en el Cine de Ficcion. Paidós: Madrid, Barcelona,
1996.
BUTLER, Judith. “Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do
‘sexo’”. In: LOURO, Guacira Lopes (org.). O corpo educado: pedagogias da
sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p. 151-172.
LIMA, Marília X. (org.) Mostra François Ozon. São Paulo: Luzes da Cidade, 2016.
RICH, B. Ruby. New Queer Cinema – Versão da diretora. In: MURARI, Lucas e NAGIME, Mateus (org.). In: New Queer Cinema – Cinema, Política e Sexualidade. Brasil,
LDC, p. 18-29.
O cinema, assim como outras artes e entretenimentos, que foi (e ainda
é) usado para fortalecer cada vez mais as bases sociais, culturais e econômicas
do patriarcado, da heteronormatividade e ditar os padrões dos corpos e das performances, agora é usado para escancarar esses modelos com ironia e colocar na
imagem as possibilidades dos afetos e dos desejos. Aqui, a estética e a política
evidenciam um olhar sem referências, sem base, que nos dá algo novo para ver,
ser afetado e causar um outro pensamento. A teoria queer em suas diversas faces
nos coloca diante do outro sem essência, sem base, atravessado por vários discursos e performances, mostra a construção que somos e que fazemos das verdades
e dos mundos possíveis. O cinema pode ser uma chave para levar esse questionamento ao espectador e, com um rato, todo um quadro de referências cinematográficas se quebra, assim como a base da representação, mostrando como esse
sistema é frágil e dúbio.
O filme, por fim, nos mostra o que aconteceu dentro da casa no momento em que o pai chega e é recebido com a festa surpresa. Foi apenas um sonho.
A família então continua viva e quem morre é o rato, o culpado de tudo. Volta-se
assim à estabilidade de todos, mas que agora são diferentes, evoluídos depois da
crise, fechando a estrutura clássica do filme. Mas o rato não está morto!
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AIMÉE & JAGUAR
Aimée & Jaguar | 1999 | 125min
Elenco: Maria Schrader, Juliane Köhler, Johanna Wokalek,
Heike Makatsch, Elisabeth Degen, Detlev Buck, Inge Keller
Sinopse: Na Berlim sitiada pela Guerra Mundial surge a inesperada história de amor entre Lilly Wust, a esposa de um
militar nazista e Felice Schragenheim, uma judia integrante
da resistência alemã. Lilly é a ariana perfeita, que se dedica
a um lar decorado com bustos de Hitler e cuida dos quatro
filhos enquanto o marido luta no front. A despeito dos amantes ocasionais e das bombas que arruínam a cidade, Lilly cai
de amores pela auto-confiante Felice Schragenheim, que lhe
envia cartas apaixonadas sob o codinome de ´Jaguar´. O filme é baseado na história verídica relatada por Lilly Wust, aos
80 anos, à escritora Erica Fischer, que a transformou em best-seller no ano de 1994.
Direção: Max Färberböck
Roteiro: Max Färberböck e Rona Munro
Produção executiva: Lew Rywin
Produção: Hanno Huth, Günter Rohrbach Diretor de Produção: Feliks Pastusiak, Stefaan Schieder
Direção de fotografia: Tony Imi
Montagem: Barbara Hennings
Música: Jan A.P. Kaczmarek Casting: Risa Kes
Direção de arte: Uli Hanisch
Designer de som: Hubert Bartholomae, Friedrich M. Dosch Editor de som: Jörn Poetzl, Sylvana Zafosnik-Jakob
Festivais: Festival de Berlim (1999), Festival Gay e Lésbico de
Los Angeles (1999), Festival do Filme Gay e Lésbico da Carolina do Norte (2000) etc.
Prêmios: Indicado a melhor filme estrangeiro no Globo de
Ouro 2000. Vencedor do prêmio de melhor atriz no Festival
de Berlim (Maria Schrader e Juliane Köhler)
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ROMPENDO COM A
HETEROSSOCIABILIDADE
– A EXISTÊNCIA LÉSBICA E A
POTÊNCIA DA ALEGRIA EM
TEMPOS SOMBRIOS
Érica Sarmet
Na cena final de Aimée & Jaguar (1999), temos Lilly Wust e Felice Schragenheim, o casal protagonista, a jogar cartas com um grupo de amigas. Todas
fumam, cantam e se divertem enquanto debatem a existência ou não do “amor
único e verdadeiro”. “- O que você procura, Felice?” pergunta uma delas. “- Eu?
Procuro vocês, todas, todos. Tudo! Mas me contentaria com um só momento, tão
perfeito que duraria uma vida.” “- Onde você encontra isso?” “- Aqui mesmo”, responde Felice. “- Não quero um sempre. Quero o agora”.
Apesar da inegável força da trama principal que conduz o filme – a história de amor entre uma lésbica judia e uma dona de casa ariana, casada com um
soldado nazista e mãe de quatro filhos –, podemos dizer que um dos aspectos
mais marcantes da obra do diretor alemão Max Färberböck é a existência lésbica fora da heterossociabilidade, a potencialização dos encontros entre corpos de
mulheres e os afetos plurais gerados neles e a partir deles. A voz over que narra o
filme já é um indicativo da dimensão da importância que a amizade e o modo de
vida lésbico terão: acompanhamos a narrativa não pelos relatos de uma das personagens principais, mas sim a partir do olhar atento de Ilse, ex-amante de Felice
e ex-babá dos filhos da Sra. Wust. Ao se esbarrarem na apresentação de uma orquestra sinfônica, Ilse percebe de imediato o encantamento da namorada por sua
patroa. A energia erótica advinda desse encontro é inebriante, e Felice começa a
escrever cartas de amor para a chefe da namorada assinadas como “Jaguar”.
Na Alemanha de 1943, em plena Batalha de Berlim, vemos como sobrevive em meio aos bombardeios e à perseguição da polícia nazista uma comunidade
de mulheres, em sua maioria judias, que circulam disfarçadas pela alta sociedade nazista berlinense. Juntas, elas formam uma rede de proteção sustentada por
identidades e passaportes falsos, mas também festas e encontros sexuais. A alegria e a reunião de corpos dançantes, vibrantes e múltiplos são a um só tempo
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estratégias de sobrevivência e respiros de liberdade em uma cidade esfumaçada
pelo terror. É nessa brecha, nessa fenda da dor causada pela guerra e o genocídio, que o continuum lésbico se fortalece e possibilita a existência fora da norma
social. Mais do que a sexualidade, elas vivem um modo de vida gerido por uma
ética própria. Segundo Michel Foucault,
Um modo de vida pode ser partilhado por indivíduos
de idade, estatuto e atividade sociais diferentes. Pode
dar lugar a relações intensas que não se pareçam com
nenhuma daquelas que são institucionalizadas e me
parece que um modo de vida pode dar lugar a uma
cultura e a uma ética. Ser gay é, creio, não se identificar aos traços psicológicos e às máscaras visíveis do
homossexual, mas buscar definir e desenvolver um
modo de vida (FOUCAULT, 1981, p. 3).
Como judias na Alemanha nazista, elas não são consideradas humanas;
como sapatões, tão pouco. O que fazem, então, é aproveitar intensamente os momentos do “agora”, como diz Felice, para perfurarem ainda mais as camadas da
vida heterossocialmente comportada e orientada: vestem-se com roupas masculinas à la Marlene Dietrich, engajam-se em relacionamentos não monogâmicos,
festejam e celebram a vida dentro de casa, pois, do lado de fora, é certo, a morte
está à espreita. São relações femininas que, permeadas pelo poder do erótico,
carregam consigo uma carga eletrizante de energia que provém, justamente, do
“compartilhamento de alegria, seja física, seja emocional, seja psíquica” (LORDE,
1984). Essa estratégia permanece com Felice e Lilly mesmo após tudo “dar errado” – o marido descobre a traição de Lilly e a expulsa de casa; as amigas de Felice
fogem de Berlim, e esta escolhe permanecer na cidade, mesmo correndo o risco
de ser presa e morta. As duas vão morar em uma casa mais afastada, com os pais
de Lilly. Passam dias de completa felicidade, nadando no lago, brincando ao sol
com as crianças, recitando poemas e declarações de amor uma a outra. O jogo,
a alegria, o entrelaçar dos corpos e até a natureza em torno substancializam um
momento de suspensão para quem vivia, a todo momento, sendo lembrada da
vulnerabilidade e precariedade de suas vidas. Nesse breve espaço-tempo em que
as duas escolhem ficar em Berlim, não há mais marido, não há Hitler, não há guerra, não há amigas mortas, não há dor. Existe apenas o desejo, o toque, o gozo de
estar viva e de estar junto.
Em seu famoso texto sobre a heterossexualidade compulsória, Adrienne Rich escreve que a existência lésbica tem sido vivida sem acesso a qualquer
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conhecimento de tradição, continuidade e esteio social. Segundo a autora, a destruição de registros, memória e cartas documentando as realidades da existência
lésbica é uma estratégia histórica de manutenção da heterossexualidade compulsória para as mulheres, que coloca “à parte de nosso conhecimento a alegria,
a sensualidade, a coragem e a comunidade, bem como a culpa, a autonegação e
a dor” (RICH, 2010, p. 36). Aimee & Jaguar trabalha justamente com a memória e
a história fancha/sapatão, esforçando-se para eternizar o presente vivido pelas
personagens. Primeiramente, trata-se de uma obra baseada em uma história real
(quando o filme foi lançado no Festival de Berlim, a verdadeira Lilly Wust, já com
85 anos, estava presente na sessão); em segundo lugar, é um filme permeado
por trocas de cartas, declarações, poemas e registros fotográficos, sejam eles feitos pelas próprias amantes ou por outrem – a exemplo do momento em que as
amigas “pagam” seus novos passaportes com uma série de fotografias eróticas
ou quando a Gestapo encontra a foto de Felice no bolso de Lotte, logo após a
assassinarem. Há também a referência a uma cultura lésbica pré-existente que
a espectadora, mesmo não tendo vivido, sabe identificar e pode em algum nível
relacionar-se, como o já mencionado figurino dietrichiano, símbolo clássico da
estética da existência lésbica no cinema.
Ainda que a história de amor possua um final trágico – infelizmente, um
padrão a ser seguido pela maioria dos filmes lésbicos, mas sobretudo por aqueles
rodados nos anos 1990 e 2000, Aimée & Jaguar não se encerra com a tristeza: ao
final do filme, voltamos para uma das primeiras sequências, quando, em 1997,
Lilly, já idosa, reencontra Ilse em um asilo. As duas conversam sobre o passado, os
sentimentos que ambas nutriam por Felice e como ficou a vida depois que ela se
foi. Ilse teve várias amantes. Lilly nunca mais se relacionou com ninguém; foram
cinquenta anos sem estabelecer nenhum laço, dominada pela culpa de se considerar responsável pela execução da amada.
O Anjo Azul (Der blaue Engel, 1930, Josef von Sternberg). Trata-se de uma canção
que versa sobre uma paixão inesperada, arrebatadora, que não pode ser evitada e
precisa ser vivida, precisa do agora. Lá, ela sempre estará; lá, elas sempre estarão,
pois é onde o agora nunca morre. “Apaixonar-me novamente/ Nunca quis/ O que
posso fazer?/ Não posso evitar”.
Referências bibliográficas
FOUCAULT, Michel. Da Amizade como Modo de Vida. Entrevista de Michel Foucault
a R. De Ceccaty, J. Danet e J. Le Bitoux, publicada no jornal Gai Pied, nº 25, abril de
1981, pp 38-39 (W. F. Nascimento, tradução disponível online).
_______________. Michel Foucault, uma entrevista: sexo, poder e a política da
identidade. Entrevista com B. Gallagher e A. Wilsomn. Verve, 5, pp. 260-277,
2004/1984.
LORDE, Audre. Uses of the Erotic: the Erotic as Power. In: Sister Outsider. Trumansburg: Crossing Press, 1984.
RICH, Adrienne. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bagoas, v. 05,
p. 17–44, 2010.
De acordo com Foucault (2004), a liberdade é algo que nós mesmos criamos e que não se refere à descoberta de um aspecto secreto de nosso desejo,
de uma verdade sobre a nossa sexualidade. Adaptando o argumento do autor,
podemos dizer que ser lésbica não é ser livre. A sexualidade faz parte da forma
de estarmos no mundo, ela faz parte da liberdade, mas reside em compreender
como, por meio da sexualidade, podemos criar novas formas de relações, novas
formas de amor, novas formas de criar. É nisso que reside a experiência política da
amizade e da alegria na existência lésbica. De modo sensato, o filme não termina
na sequência em que as idosas conversam entre si; assim, ficaríamos com a imagem de uma Lilly que, no fim, não conseguiu ser livre. Vamos, ao invés disso, para
as mulheres na mesa, o jogo de cartas, o riso, o flerte. Elas cantam a versão original
em alemão de Falling In Love Again, música interpretada por Marlene Dietrich em
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LOLA AND
BILLY THE KID
Lola + Billidikid | 1999 | 93min
Elenco: Gandi Mukli, Baki Davrak, Erdal Yıldız, Murat
Yılmaz, Inge Keller, Michael Gerber
Sinopse: Murat, um jovem turco de origem Berlim,
descobre sua homossexualidade. Cada noite ele anda
por parques solitários em busca de sua sua primeira
experiência sexual. Seu irmão Osman também quer
perder a virgindade, mas com uma mulher. Chefe da família após a morte do pai, Osman é homofóbico. Murat
decide fugir da atmosfera opressiva e, assim, atender a
Lola, travesti que atua em um clube, e seu namorado,“Bilidikid”. Entre Murat e Lola nasce uma amizade muito
especial.
Direção: Kutlug Ataman
Roteiro: Kutlug Ataman
Produção executiva: James Schamus
Produção: Martin Hagemann
Co-Produção: Zeynep Ozbatur Atakan, Martin Wiebel
Direção de fotografia: Chris Squires
Montagem: Ewa J. Lind
Música: Arpad Bondy Casting: Annette Borgmann Direção de arte: Mona Kino
Equipe de arte: Anselm Breig, Markus Leuwer, Alexander Liebenthron, Ulla Gothe, Xenia Eichholz, Axel
Zornow
Equipe de som: Axel Arft, Günther Friedhoff, Michael
Junge, Mel Kutbay
Festivais: Festival de Istambul (1999), Festival de Seattle (1999), Festival Gay e Lésbico de Turim (1999) etc.
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UMA ENCRUZILHADA
ÍNTIMA E GERACIONAL
Pablo Gonçalo
para Juarez, in memoriam
Quem estiver em Berlim e por acaso passar na Nollendorfplatz, no bairro
de Schönenberg, poderá, talvez, reparar num pequeno detalhe que está pendurado numa das paredes dessa estação de metrô. Vê-se uma das tantas e pequenas inscrições urbanas que recordam as barbaridades praticadas pelo passado
nazista e que grifaram essa cidade, a Alemanha, a história da Europa. Não se lê,
nos grifos daquela pedra, como de praxe, informações sobre os judeus deportados para Auschwitz ou outros campos de concentração. Não se enfileiram datas,
dias e locais de morte de nenhum indivíduo em particular. Tão aterrorizante como
qualquer uma dessas placas, aquela, contudo, aborda a memória da perseguição
e opressão sofrida por gays no contexto nazista, que não apenas criminalizou o
homossexualidade, como via-se na missão de “medicar”, castrar, castigar e algumas vezes matar indivíduos que manifestavam o desejo por pessoas do mesmo
sexo. Bizarros, esses anos prenhes de intolerância e planejamento visavam justamente apagar o afã de liberdade sexual e livre de preconceitos que a estação
Nollendorf, no auge da república de Weimar, representava.
Desde os anos oitenta, contudo, o bairro de Schönenberg passou a abrigar anseios de resistência queer, e promove, atualmente, os dias de festejo do
orgulho gay de Berlim. A história, sim, tem seus percalços, e são similares acasos
do tempo que marcam o filme Lola + Billidikid (1999, Kutlug Ataman). É para parte
dessa transformação, ou de um retorno, junto ao seu sinuoso trajeto, que a narrativa do filme nos conduz. Como se não fosse um passado remoto – ou um local
tão distante –, a primeira sequência da obra de Kutlug Ataman ocorre a pouquíssimos quilômetros da Nollendorfplatz, no Tiergarten, amplo parque no centro da
cidade, onde, no escuro, à noite, ocorrem encontros cegos entre homens e perambulam michês. Murat é um jovem bonito, atento ao mundo. A câmera realça
seus olhos negros. Ele caminha sozinho: hesita antes de atravessar uma pequena
ponte sobre um lago. Está com as mãos no bolso. Curioso, ele observa os movimentos, os olhares dos homens e dos meninos. Alguns interessados. Outros, interessantes. Há, ainda, aqueles apenas bisbilhoteiros. Imberbe e imaturo, Murat não
possui exatamente todos os códigos desse ambiente de desejo latente pelo qual
se sente atraído. Sua transformação será mais do que o tema do filme; ela guiará
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e conectará todas as histórias e os percursos que são arquitetados pela narrativa
de Ataman.
Há, nesse retrato do protagonista, um detalhe, que se revela essencial.
Murat é filho de imigrantes turcos. Chamada de Gastarbeiter, expressão que
pode ser traduzida como trabalhadores visitantes ou trabalhadores convidados,
a geração dos seus pais foi conclamada a auxiliar a reconstrução da Alemanha
pós-guerra. Havia um amplo incentivo estatal e governamental, e todo o êxito
econômico da Alemanha “ocidental”, conforme a denominação da época, deve-se
ao empenho de imigrantes turcos, italianos, gregos, entre outras origens e nacionalidades. O recorte dramático e histórico de Lola + Billidikid dialoga diretamente
com esse recente passado dos Gastarbeiter. O próprio Murat já é da segunda ou
terceira geração após a imigração. Conversa em alemão, de forma natural e fluida,
com Osman, o seu irmão, que, num vértice mais tenso, é totalmente identificado
com os antepassados turcos e exala várias dessas características identitárias. Gosta da música, da comida, da religião, da tradição da família turca e possui olhares
de desconfiança frente a tudo que remete a traços culturais alemães. Murat, no
entanto, foge dele. Ao início do filme, diz que estava numa biblioteca – embora
ele, Osman, não saiba o que isso seja. Murat encontra-se diante de uma encruzilhada. Não apenas em decorrência da sua homossexualidade, que é um claro
tabu de intolerância entre os turcos mais ortodoxos, como Osman, mas também
por já ser um sujeito híbrido que, além do seu passado turco, pisa, caminha, age e
interage com os outros berlinenses que lhe são contemporâneos.
Sintomaticamente, Murat encontrará um refúgio onírico e uma realidade
agonística dentro de uma mambembe trupe de turcos gays, que ora cantam, ora
se prostituem e, de forma irreverente, perturbam o cotidiano ordeiro assim como
encantam o imaginário dos arianos nativos. Lola e Billi, o tal “the kid”, dois dos
protagonistas ancilares, que tão título ao filme, irrompem de dentro de uma casa
de shows, meio improvisada, meio anárquica. Eles formam um inusitado casal, de
polos justamente opostos que se atraem, que se amam de forma intensa e, muitas vezes, destruidora. No palco, emergem algumas das melhores cenas do filme
de Utuman. Vê-se o furor, a irreverência e o deboche de Lola. Travestida, ela surge,
reluzente, com uma peruca colorida. Dança com as colegas, uma música turca e
insinua, incorpora e desmancha os clichês da sensualidade das mulheres turcas.
Seu sarcasmo é sua principal arma. Amparado num balcão de bar, olhando-a, está
Billi, de jaquetas e com gel no cabelo, como se quisesse ter imigrado de um western urbano. Ele gosta de se meter em trapaças, em roubadas, que envolvem a
prostituição nos banheiros mais remotos. Tanto Lola como Billi parecem emergir
de algumas cenas de outras cinematografias para povoar e animar o cabaré do
filme de Ataman e da própria narrativa que enlaçará o jovem Murat.
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Contudo, deve-se perguntar: que filmes são esses? Quais são os imaginários cinematográficos francamente evocados pelos personagens? Mais: como
esses personagens atualizam esses mesmos universos oníricos? Não por acaso,
eles surgem de dentro de um típico cabaret europeu, um tanto underground e
frequentado por alemães. A Lola que está lá, no entanto, apenas longinquamente remete aos mesmos aspectos étnicos da clássica Lola, meio musa e um tanto
femme fatale, que Fassbinder celebrou e tão bem levou às telas1. Esta Lola tem
trejeitos árabes, é desajeitada, nada solene, cheia de rompantes e de instantes súbitos, um tanto enigmáticos, que se afastam totalmente da típica e estereotipada
austeridade germânica. Na tradição dos filmes alemães, ela dialogaria com certas
áureas femininas e homoeróticas que reverberam em alguns planos de Werner
Schroeter. A Lola do filme de Ataman, por outro lado, estaria mais próxima de
Tahia Carioca, a musa da dança do ventre nos filmes egípcios, do que, num contraste, as fantasias despertadas pelo ícone de Marlene Dietrich, as quais são tão
reveladores do imaginário simbólico do entreguerras na Alemanha. Nem num
polo, nem noutro. A Lola que vemos dançar, e toda a misteriosa e kitsch sensualidade que dela evola, é híbrida, imperfeita, fronteiriça e por natureza indefinida.
A mesma ambivalência habita as veias de Billi. Mesmo que não esteja
travestido, ele parece um personagem que saltou de um western pós-moderno, à
la Nicholas Ray, e começou a perambular e se prostituir pelo bairro de Neuköln,
onde reside parte significativa da imigração turca em Berlim. Ele respira a aura
corporal de um Artaud meio punkboy, no imaginário reverso e de homens num
mundo sem homens, tal como habilmente sugerido por Kathy Acker no seu Pussy,
king of the pirates. Ao contrário do encanto de Lola, Billi reivindica atos violentos, ações clandestinas e que verbalizam um impulso por inadequação da cultura
alemã e da vida contemporânea berlinense. Essa violência repercute em outros
amigos do clã libertário dele e Lola, que perambula pela rua, sem regras, solto a
respirar o ar fresco que reivindicam para si. É assim, por exemplo, que o personagem Iskender envolve-se, após uma noite de prostituição com o arquiteto alemão
Friedrich Schmidt. Não há, inicialmente, nenhuma relação de afeto por parte de
Iskender, mas somente um interesse mais explícito – e cômico – em se apropriar
do carro de Schmidt. Eivada por arroubos de violência e por constantes interrupções, o idílio entre Schmidt e Iskender ora desfruta de sentimentos sinceros, ora
escorre para atos bruscos e irracionais.
Esse conjunto dramático tecido por Ataman visa, de forma precisa, conotar esteticamente os paradoxos enfrentados por essa comunidade ficcional e
utópica, que seria gay e turco-germânica. No polo antagônico dessa ilha, deliciosamente fantasiada, emerge um grupo de três jovens alemães que teriam feixes
1 Nota dos Editores: referência a Lola (1981, Rainer Werner Fassbinder).
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xenófobos e homofóbicos. No entanto, o filme os retrata de forma ingênua e pueril sem compartilhar com uma forte convicção das abordagens preconceituosas
e deliberadamente violentas, inaceitáveis, que praticam na rua. Mesmo vazios de
conteúdos ideológicos claros, sua verborragia física prega a intolerância e, certamente para a maior parte desse terceto dramático, uma impossibilidade de conviver e partilhar da rua por onde andam gays e turcos.
Ataman, no entanto, revela-se astuto ao deixar seu contraponto dramático mais complexo. Numa das enigmáticas cenas do filme, a dupla mais nova
dos estudantes protofascistas incita o neófito à sua primeira agressão homofóbica. Ele possui os mesmos passos hesitantes do Murat do início do filme. E é
justamente Murat quem flerta com ele. Os dois se encontram num banheiro que,
sintomaticamente, calha de estar no Olympiastadion, onde Hitler hospedou as
olimpíadas nazistas. Eles se beijam de forma delicada e intensa. Talvez o único
beijo verdadeiramente sincero de todo o filme. Aos chutes, os jovens fascistas
abrem a porta do banheiro e interrompem o possível fluxo de paixão e sexo. Mais
esperançoso do que primeiramente soa, todo o contraponto dramático-narrativo de Lola + Billidikid revela uma – remota – possibilidade de união e convívio
carinhoso entre alemães e imigrantes, o qual, de forma recorrente, seria sempre
sabotado por lapsos mais nacionalistas, conservadores e moralistas. É para além
desses arraigados veios que Murat e o jovem alemão, também gay e também ainda hesitante dos preconceitos da sua cultura “original”, precisam apostar. Ambos
estão na encruzilhada. Ambos, contudo, podem inventar um possível caminho.
Não há, nessa teia, respostas ou horizontes claros. Apenas o risco das travessias.
Não por acaso, Lola + Billidikid concentra-se em contar sua história a partir de um ponto de vista agudamente familiar. E é aqui, dentro dos valores patriarcais, turcos e ortodoxos, que reside o principal polo de autodestruições frente aos
anseios mais liberais de Murat. Dramaticamente, por um lado, a escolha revela-se
inquietante e primorosa. A família já em si é conotada de forma desintegrada. A
mãe é viúva e conversa em turco com seus dois filhos, Osman e Murat. Os dois,
contudo, optam por respondê-los em alemão. Há um terceiro filho que, de forma
enigmática e preconceituosa, foi expulso de casa. O que resta, assim, dos valores
turcos mais tradicionais são cacos esparsos. Da tradicional família turco-berlinense, esse mote se desenlaça de forma bastante forçada do terceiro ato do filme em
diante. No ângulo da tela, portanto, constata-se como as opções de encenação de
Kutlug Ataman acabaram escorregando para exageros tipicamente melodramáticos, que seriam, de fato, desnecessários e arrefecem os memoráveis lampejos de
irreverência que pululam ao longo filme.
Lola + Billidikid alcançou as telas em 1999. Um ano indecifrável. Na mesmo época, lançava-se Corra Lola, Corra (Lola rennt, 1998, Tom Tykwer), uma fugi63
dia celebração de uma geração berlinense que, dez anos após a queda do muro,
reivindicava uma maneira livre e autônoma de circular pela cidade, embalada por
um ritmo eletrônico, pós-punk, que ainda marca a cidade. A estreia ocorreu anos
depois de O ódio (La Haine, 1995, Mathieu Kasovitz), bombástico filme que retratava com afinco os ranços xenófobos e devastadores entre árabes, judeus e
franceses numa periferia, num banlieu parisiense. Os estilhaços de raiva que esse
filme mostra ainda ecoam nos recentes atentados terroristas na Europa. A obra de
Ataman, por outro lado, responde a esses mesmos desafios geracionais de forma
mais misteriosa. Embora sejam fiascos de expectativas, as trôpegas sensações de
Murat apontam para um caminho íntimo, pessoal e audacioso. Uma trajetória que
aposta nos vértices transformadores do afeto e da delicadeza. São esses mesmos
feixes que, na tela preta, ao findar da narrativa, reverberam. Ainda que frágeis,
eles conclamavam por uma experiência possível diante da virada do milênio. Se
vingaram ou não, isso já é outra história. Ou outro filme?
Referências Bibliográficas
ACKER, Kathy: Pussy, king of the pirates. Grove Press: New York, 1996.
ELSAESSER, Thomas. New German Cinema. A history. Rutgers University Press: New Jersey,
1989.
_________. Fassbinder’s Germany: history, identity, subject. Amsterdam University Press,
1996.
KUZNIAR, Alice A. The queer German Cinema. Stanford: UP, 2000.
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MENINOS NÃO
CHORAM
Boys Don’t Cry | 1999 | 118min
Elenco: Hilary Swank, Chloë Sevigny, Peter Sarsgaard, Brendan Sexton III
Sinopse: Saiba como Teena Brandon se tornou Brandon
Teena e passou a reivindicar uma nova identidade, masculina, numa cidade rural de Falls City, Nebraska. Brandon inicialmente consegue criar uma imagem masculinizada de si
mesma, se apaixonando pela garota com quem sai, Lana, e se
tornando amigo de John e Tom. Entretanto, quando a identidade sexual de Brandon vem a público, a revelação ativa uma
espiral crescente de violência na cidade.
Direção: Kimberly Peirce Roteiro: Kimberly Peirce, Andy Bienen
Diretor de Produção: Caroline Kaplan, Pamela Koffler, Jonathan Sehring
Produção: John Hart, Eva Kolodner, Jeff Sharp
Direção de fotografia: Jim Denault Montagem: Tracy Granger, Lee Percy
Música: Nathan Larson
Casting: Kerry Barden, Billy Hopkins, Jennifer McNamara Direção de arte: Shawn Carroll
Equipe de arte: Phyllis Detrich, Sherief Elkatsha, Jimmy
Estrada, Lynn A. Johanson
Equipe de som: Gina Alfano, Jeremy Brill, Robert Fernandez,
Sean Garnhart
Efeitos especiais: Jack Bennett
Festivais: Festival de Veneza (1999), Festival de Toronto
(1999), Festival de Chicago (1999), Festival de Nova York
(1999) etc.
Prêmios: Vencedor de melhor atriz (Hilary Swank) e indicado
a melhor atriz coadjuvante (Chloë Sevigny) no Oscar e Globo
de Ouro 2000. Indicado a melhor atriz revelação (Swank) e
melhor beijo (Swank e Sevigny) no MTV Movie Awards 2000.
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BRANDON TEENA E A
IMPOSSIBILIDADE DE
PERTENCER
Thays Prado
Desde seu lançamento em 1999, muito se escreveu sobre Meninos Não
Choram (Boys Don’t Cry), de Kimberly Peirce. Entre as diversas reflexões provocadas pelo filme na mídia e na academia, chama a atenção a discussão sobre pessoas transgênero, termo aqui utilizado para se referir a todos os indivíduos que,
“deliberadamente ou acidentalmente, desafiam as normas de gênero” (HALBERSTAM, 2000), e seu papel na desconstrução delas. De um lado, há o argumento de
que, na busca por expressarem socialmente sua identidade de gênero, acabariam
reforçando estereótipos e o binarismo moderno. Do outro, o entendimento de
que a figura transgênera é, em si, a tradução da desconexão entre sexo e gênero e a denúncia da construção social e artificial de ambos (HALBERSTAM, 2000).
Independente do viés teórico utilizado para discutir intelectualmente a questão,
seria, no mínimo, injusto depositar sobre os ombros de pessoas transgênero a
responsabilidade de desmontar a lógica patriarcal, machista e homofóbica em
que vivemos.
Embora Meninos Não Choram seja baseado em fatos reais, neste ensaio
atenho-me à representação cinematográfica do personagem Brandon Teena (Hilary Swank), para comentar brevemente sobre a angustiante negociação da existência trans em uma sociedade em que, por convenção, só é possível ser homem
ou mulher. Para isso, é útil voltar a atenção para três elementos principais: o uso
da linguagem, o corpo e a performatividade de gênero no convívio social.
Brandon Teena, cujo nome na certidão de nascimento é Teena Brandon,
nasceu com o sexo feminino, se identifica com o gênero masculino e se passa
por homem. Vivendo na pequena cidade de Lincoln, no estado de Nebraska, nos
Estados Unidos, Brandon estava sendo acusado de forjar cheques, quando, ao
paquerar Candace (Alicia Goranson) em um bar e entrar em uma briga por ela,
acaba indo parar em Falls City. Ali, entre bares, sinucas e caraoquês, Brandon se
apaixona por Lana (Chloë Sevigny) e sustenta sua identidade masculina para ela,
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sua mãe alcóolatra (Jeannetta Arnette) e os amigos, normalmente alcoolizados e
sob efeito de drogas ilícitas, John (Peter Sarsgaard) e Tom (Brendan Sexton III). Ao
descobrirem que Brandon é biologicamente uma mulher, John e Tom o assassinam brutalmente.
Embora haja uma larga discussão sobre a representação da vida queer
em ambientes rurais nos Estados Unidos (CRAWFORD, 2008), não é um exagero
dizer que Falls City é mais do que um exemplo do terror que pessoas que não se
conformam às normas rígidas de gênero podem viver, especialmente longe do
anonimato dos grandes centros urbanos. A sufocante cidadezinha pode também
ser lida como uma metáfora da claustrofobia que consiste em viver em uma sociedade que só considera válida e valiosa a existência cisgênera, heterossexual,
branca e de alta classe econômica. Diante do fato de que ser humano não é o bastante para ser parte da humanidade, artificialmente dividida entre dois gêneros,
quem vem de um outro lugar, ou de um não lugar, jamais poderá encontrar em
Falls City a sensação de lar. Aliás, essa divisão binária é tão frágil e o lugar de pertencimento tão estreito, que só é possível suportá-los sob grande anestesia. Um
espaço que urge por transgressões da ordem estabelecida e, ao fazê-lo, recria sua
própria prisão, revela o desejo violento e paradoxal de existir de forma autêntica
e, simultaneamente, pertencer.
Nomear pode ter tanto a função de individualizar quanto a de agrupar e
organizar a realidade. Nos dois casos, dar um nome a algo ou alguém é uma forma de reconhecer sua existência. Quando Brandon dá ao seu sobrenome o status
de nome próprio, permite que sua identidade de gênero, masculina, ganhe realidade para além de sua sensação interna. Mas nomear sua verdade mais autêntica
é justamente o que seus, então, amigos interpretam como farsa e enganação. Não
que a farsa seja recriminada em qualquer circunstância. Na cena em que Brandon
apresenta um documento com nome falso aos policiais após ser pego dirigindo
em alta velocidade, os mesmos amigos o haviam considerado esperto o suficiente para se safar da lei. Nessa contradição entre a legitimação da farsa e a supressão
violenta da verdade, ecoa o questionamento (HALBERSTAM, 2000): “que tipo de
verdades exigimos das pessoas que, de alguma maneira, não conformam a categorias normativas de gênero?”.
A função de agrupação do ato de nomear também não serve a Brandon.
Ele não é uma mulher, pois, apesar de ter nascido com o sexo feminino, não se
identifica como uma. E, ainda que, segundo Wittig (1980), lésbicas não possam
ser consideradas pertencentes à categoria de mulheres, pois a definição de mulher se dá a partir de uma noção heterossexual e, necessariamente, em relação à
de homem, Brandon tampouco se considera lésbica. Na cena em que seu primo
gay corta seu cabelo e comenta “Se você fosse um cara, eu te comeria”, Brandon
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responde: “se você fosse um cara, você quer dizer”. Para Brandon, a masculinidade
que performa está mais próxima da masculinidade hegemônica do que a do próprio primo, biologicamente homem, mas homossexual e com trejeitos afeminados (DAWSON, 2015). No entanto, a revelação do nome real de Brandon – Teena
Brandon – o faz ser interpelado como lésbica e como mulher, e violentado como
tal.
A pergunta opressora de John sobre o que Brandon realmente é escancara o desespero de uma sociedade binária por classificar e conter as identidades
dentro de limites seguros e bem estabelecidos. Nesse contexto, qualquer coisa
que extrapole as definições artificiais dos polos homem e mulher só pode ser considerada uma aberração. Brandon apela para o uso da linguagem médica, talvez a
única na qual ele possa existir: “crise de identidade sexual” é o que pode descrever
sua condição humana. O termo que traduz parte do que Brandon é – pois jamais
poderá traduzir sua experiência única por completo – é o mesmo que lhe coloca,
necessariamente, à margem. E é justamente a natureza paradoxal da linguagem
que ele usa para se definir que o permitiria reafirmar sua existência política e física, por meio do requerimento de hormônios masculinos e de uma cirurgia de mudança de sexo, por exemplo. Mas esse movimento é também o que o aproximaria
da coerência entre sexo e gênero tão cultuada pela modernidade.
Nesse sentido, é interessante observar de que forma o corpo de Brandon
lhe serve como um veículo de prazer ou de exclusão. Por um lado, seus seios e
genital lhe causam a sensação de não pertencimento entre corpo e identidade.
Por outro, a possibilidade plástica desse corpo de ser remodelado é a ferramenta
que lhe permite materializar a si mesmo. A transformação da aparência, portanto,
não se limita a uma necessidade de adaptação ao que a sociedade estabeleceu
como fisionomia masculina, mas é também um ato de transgressão que usa a
construção social do que significa ser homem como fonte de realização e prazer.
As ações de Brandon para se passar como homem – ataduras nos seios, uso de
dildo, cabelo curto, roupas masculinas, trejeitos – revelam que, para ser homem,
não é preciso ter um sexo biológico específico, mas uma série de aparatos, ferramentas e conhecimento para performar a masculinidade do jeito “correto” (DAWSON, 2015).
Ao menstruar, o corpo desestabiliza a identidade masculina de Brandon
e lhe coloca diante da dura realidade de que, mesmo contra sua vontade, ainda
funciona, biologicamente, como uma mulher. É o sexo traindo o gênero e revelando a fragilidade e o limite da tentativa de “passar despercebido” como outro. Mas
a menstruação de Brandon é também o gênero traindo o sexo definido pela radicalidade médica, cujo conhecimento oficial é o de que apenas mulheres menstruam. Desse modo, Brandon não é, necessariamente, um homem incompleto
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ou falso, mas incompleto é o conhecimento fisiológico que ainda não pode compreender que certos homens possuem útero e vagina e, portanto, menstruam.
O corpo de Brandon não é apenas um lugar de questionamentos, mas
também de dor. Em uma sociedade de conhecimento estreito, não pode ser lido
como autêntico e nem tem existência própria, mas só pode ser visto como um
desvio em relação à norma dos corpos cis. Uma imitação frágil, limitada, imperfeita, repugnante e que demanda ser corrigida, consertada. Nesse sentido, o estupro “corretivo” é um violento rito de passagem às avessas que obriga Brandon
a ser, novamente, interpelado como uma mulher lésbica em um mundo machista
e patriarcal.
No longo depoimento que precisa dar aos policiais que investigam o estupro, Brandon passa pelo mesmo processo de culpabilização e revitimização por
que passam as tantas mulheres vítimas de violência nos mais diversos lugares
do mundo – urbanos e rurais. O questionamento do investigador sobre sua virgindade reforça, ainda, a ideia machista de que apenas um pênis biológico pode
configurar “sexo de verdade”, deslegitimando qualquer outra experiência sexual.
A pergunta perversa, “onde eles tentaram penetrar primeiro?”, à qual Brandon
precisa responder duas vezes – “minha vagina”, “onde?”, “minha vagina” – é uma
armadilha que o aprisiona no único lugar em que a lei e a sociedade podem reconhecê-lo (DETLOFF, 2006): Brandon é biologicamente uma mulher e esse é um
lugar sem valor nenhum.
As negociações de pertencimento acontecem também no âmbito social
da performatividade de gênero. Para provar sua masculinidade, que inevitavelmente tem como referência a masculinidade hegemônica (CONNELL, 2005), Brandon se submete a ações autodestrutivas, como o abuso de álcool, o envolvimento
em brigas de bar, a direção em alta velocidade, a fuga de policiais e até mesmo a
escolha de se segurar em uma corda na carroceria aberta de uma caminhonete
em movimento. “Achei que era o que garotos faziam por aqui” é sua justificativa.
John e Tom trazem ao espectador a perspectiva de que performar a masculinidade hegemônica tem um alto custo para quem quer que seja que se proponha a fazê-lo. E a necessidade de reafirmá-la constantemente não tem fim, de modo que
qualquer hesitação em dar o próximo passo para prová-la pode arruinar o projeto
de se apresentar como “homem de verdade”. Isso é evidente na cena em que Tom
instiga Brandon a se cortar para mostrar sua bravura, e Brandon, ao se recusar,
afirma: “Eu acho que, comparado a você, sou uma mulherzinha”. Ironicamente, o
que irrita seus amigos homens não são as falhas da masculinidade de Brandon,
mas sua habilidade de performá-la de maneira tão convincente. Isso é o que consideram um ato de “desonestidade, fraude e decepção” (HALBERSTAM, 2000).
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Brandon performa, ainda, a masculinidade romântica do arquétipo do
príncipe encantado. O tipo de homem capaz de satisfazer uma mulher como nenhum outro. Nesse aspecto, é possível observar uma conotação machista de que
apenas as mulheres vivenciam o ideal romântico e Brandon, por ser biologicamente uma mulher, é capaz de fazê-lo. No entanto, Lana, mesmo não tendo nada
a perder, hesita em fugir com seu príncipe quase-perfeito. Quase, pois Lana compara a condição biológica de Brandon a defeitos e problemas que ela também
tem.
Se negar a Brandon o direito de viver uma história de amor é cruel, torcer
para que ele consiga fugir com Lana e viver em paz em uma cidade maior, é desejar que ele se invisibilize e sucumba à sociedade heteronormativa que tanto o
oprime e massacra. De certa forma, é ignorar uma parte da totalidade de Brandon
e querer que ele passe como um homem cis, heterossexual. Talvez, seja justamente essa a recusa de Lana. Como bem observa Halberstam, “algumas pessoas queer
precisam sair de casa para serem queers, outras precisam permanecer perto para
continuarem sendo diferentes”. Para Lana, é possível que o não pertencimento
lhe traga mais a sensação de identidade do que o próprio pertencer.
Falls City é um exemplo clássico da alegoria foucaultiana do panóptico,
do qual é impossível escapar. Em um sistema hegemônico que se autorregula,
um indivíduo específico que foge à regra serve de oportunidade para reafirmá-la.
Ainda que a vida seja empobrecida, esvaziada de perspectivas e possibilidades,
os próprios indivíduos se vigiam, pois é mais seguro perpetuar a velha miséria
do que dar lugar ao amedrontador e amplo desconhecido. O destino trágico de
Candace nos mostra que não vigiar é também tornar-se inimigo. Nesse cenário,
qualquer negociação de pertencimento será sempre um ato violento.
CONNELL, R.W. Masculinities. Second Edition. Berkeley, CA: University of California
Press, 2005.
CRAWFORD, Lucas Cassidy. Transgender without Organs? Mobilizing a Geo-Affective Theory of Gender Modification Women’s Studies Quarterly, 1 October 2008,
Vol.36(3/4), pp.127-143.
DAWSON, Leanne. Passing and policing: controlling compassion, bodies and
boundaries in Boys Don’t Cry and Unveiled/Fremde Haut. Studies in European
Cinema, 02 September 2015, Vol.12(3), p.205-228. Routledge.
DETLOFF, Madelyn. Gender Please, Without the Gender Police: Rethinking Pain in
Archetypal Narratives of Butch, Transgender, and FTM Masculinity. Journal of Lesbian Studies, 2006, Vol.10(1-2), p.87-105. Taylor & Francis Group.
HALBERSTAM, Judith. Telling Tales: Brandon Teena, Billy Tipton, and Transgender
Biography. Auto/Biography Studies, 2000, Vol.15(1), p. 62-81. Routledge.
WITTIG, Monique. The straight mind. Feminist Issues, 1980, Vol.1(1), pp.103-111.
Meninos Não Choram é uma narrativa fundamental de denúncia das diversas formas de violência contra a população queer. No entanto, se, como afirma
Butler (1990), assumir uma posição de resistência é criar para além da oposição,
cabe também ao cinema queer contar histórias que construam espaços mais amplos, em que seja possível pertencer além da artificialidade binária, em que não
seja preciso segurar o choro como prova de coisa alguma, mas em que também
não haja tantas dores para chorar.
Referências Bibliográficas
BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. London:
Routledge, 1990.
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QUERO SER JOHN
MALKOVICH
Being John Malkovich | 1999 | 112min
Elenco: John Cusack, Cameron Diaz, John Malkovich,
Catherine Keener.
Sinopse: Um homem consegue um novo emprego no 7º
e meio andar de um edifício comercial, onde todos os funcionários devem andar curvados. Lá encontra uma porta,
escondida, que leva quem ultrapassá-la até a mente do
ator John Malkovich, onde pode permanecer durante 15
minutos, até ser cuspido numa estrada na saída de Nova
Jersey. Impressionado com a descoberta, resolve alugar a
passagem para outras pessoas, dentre elas o próprio John
Malkovich.
Direção: Spike Jonze
Roteiro: Charlie Kaufman
Produção executiva: Charlie Kaufman, Michael Kuhn
Produção: Steve Golin, Vincent Landay, Sandy Stern, Michael Stipe
Direção de fotografia: Lance Acord
Montagem: Eric Zumbrunnen Casting: Justine Arteta, Kim Davis-Wagner Música: Carter Burwell
Direção de arte: Peter Andrus
Equipe de arte: Gene Serdena, Casey Storm, Lynn Barron,
Fanée Aaron
Equipe de som: David W. Alstadter, Richard L. Anderson,
Victoria Bowes, Forrest Brakeman, John T. Cucci
Efeitos especiais: Ryan Arndt, John E. Gray, John Ziegler,
Jason Barnett
Festivais: Festival de Veneza (1999), Festival de Nova York
(1999), Festival de Hong Kong (2000) etc.
Prêmios: Indicado a 3 prêmios Oscars 2000 (Diretor, Atriz
Coadjuvante [Catherine Keener] e Roteiro Original). Vencedor do BAFTA 2000 de melhor Roteiro Original.
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CORPOS QUE CAEM
Mateus Nagime
O ano de 1999 parece ter sido especial na história do cinema norte-americano. No fim do século, a Guerra Fria e a ameaça comunista já eram coisa do passado e o politicamente correto estava em seu auge. O lado obscuro da sociedade
americana começava a ficar mais evidente também com a escalada de massacres
em escolas e demais locais públicos, a ponto deles serem considerados uma coisa
“tipicamente norte-americana”.
O cinema independente teve alguns anos para analisar a fundo essa sociedade, antes que o 11 de setembro e o clima de terror impusessem uma autocensura. Não que em 1999 os melhores filmes tenham sido melhores que os
melhores filmes de outros anos - ainda que talvez seja verdade. Mas de qualquer
modo foi uma brecha, em que filmes que desafiavam frontalmente o sistema viraram sucessos de bilheteria ou de crítica.
Depois dos ataques terroristas em 11 de setembro de 2001, em pleno
solo norte-americano, os filmes mais ousados não teriam tanto acesso ao público
ou ainda o respaldo de uma crítica mainstream em um país que entrava a fundo
em uma guerra após a outra. Por isso, 1999 surge como um alento no cinema
norte-americano engajado, que está pronto a dissecar as feridas de forma mais
direta, buscando um espectador contemporâneo. É ainda mais impressionante
o fato de não percebermos essa tendência em filmes mais obscuros, que foram
sendo descobertos ao passar do tempo, mas sim nos grandes títulos do ano, lembrados em festivais ou que tiveram bom resultado de bilheteria e que trataram de
personagens contemporâneos, estabelecendo um diálogo direto com o público1.
Tudo isso através de uma renovação do cinema de autor, seja através de
filmes de cineastas consagrados, como De Olhos Bem Fechados (Eyes Wide Shut),
primeiro filme de Stanley Kubrick a liderar as bilheterias, O Informante (The Insider, Michael Mann), e O Talentoso Ripley (The Talented Mr. Ripley), primeiro filme
de Anthony Minghella pós-Oscar, ou de novos cineastas em construção de carreira, como Paul Thomas Anderson em Magnólia (Magnolia), David Fincher em Clube
1 A “safra” de 2002, por exemplo, ainda que igualmente interessante, era mais alegórica, com filmes
que se passavam em outras épocas, como As Horas (The Hours, Stephen Daldry); Chicago (Rob Marshall), Longe do Paraíso (Far from Heaven, Todd Haynes); Gangues de Nova York (Gangs of New York,
Martin Scorsese) etc., ou ainda faziam alusões a personagens e histórias antigas, como A Estranha
Família de Igby (Igby Goes Down, Burr Steers), uma releitura de O apanhador no campo de centeio, de
J. D. Sallinger.
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da Luta (Fight Club), M. Night Shyamalan em O Sexto Sentido (The Sixth Sense),
Daniel Myrick e Eduardo Sánchez em A Bruxa de Blair (The Blair Witch Project) e
os irmãos Wachowsky em Matrix (The Matrix). Ou ainda através de estreias, como
Sam Mendes em Beleza Americana (American Beauty) e Spike Jonze em Quero Ser
John Malkovich (Being John Malkovich), o assunto deste texto.
Malkovich marca também a estreia do roteirista Charlie Kaufman. A trama apresenta uma história bem surrealista, em todos os detalhes possíveis: seja
o escritório que fica no andar 7 ½ de um prédio em Nova York ou a ideia de que
possa existir um portal que leve à cabeça de John Malkovich, ou ainda que isso
seja algo recorrente - é possível seguir “pulando” de portal em portal e viver eternamente, como alguns dos coadjuvantes.
A primeira vista, o filme conquista o espectador pelo seu humor absurdo, em que por 200 dólares (ou um punhado de sorte) alguém pode entrar no
cérebro de um ator famoso. A cena em que John Malkovich entra em sua própria
mente - onde todo mundo se parece e fala “Malkovich” - ou ainda de Maxine (Catherine Keener) e Lotte (Cameron Diaz) entrando no subconsciente do ator são
pequenas obras-primas de um cinema surrealista contemporâneo.
Porém, numa revisão, alguns aspectos ficam mais evidentes: o filme
se inicia com um casamento entre duas pessoas um tanto fracassadas em um
apartamento sujo, bagunçado, e pouco iluminado: Craig (John Cusack) e Lotte
Schwarz. Ele, um desempregado obcecado por suas marionetes, apresentando
histórias eróticas no meio da rua tentando convencer a todos que se trata de uma
arte; ela, uma atendente de loja de animais que leva trabalho para casa e vive em
meio a chipanzés com problemas psicológicos e outros tipos de animais: serpentes, pássaros, cachorros etc.
Tudo começa com uma escapada típica: o marido que não dá atenção
para a esposa e passa a flertar com a colega de trabalho, no caso Maxine. Mas
Maxine não dá atenção a Craig, até que ele entra sem querer no portal que leva à
cabeça de Malkovich e que o permite a ver o mundo pelos olhos do ator.
Quem não desejaria ser outra pessoa? Para Craig, esse é o local perfeito
onde ele pode brincar de marionete: ao conseguir controlar o corpo de Malkovich, ele vira o titereiro perfeito, manipulando um ser humano. Para Maxine, é a
grande oportunidade de ganhar dinheiro e alcançar a fama: ela é a única a não ter
vontade em ver o mundo através de Malkovich. Para Lotte, uma transformação
maior ainda acontece: ela se descobre transexual e se sente finalmente confortável com seu corpo, ou melhor, o seu novo corpo.
Mesmo que seja numa chave de comédia de absurdos, o filme vai explorar muito o próprio absurdo que é a ideia de nos identificarmos objetivamen77
te com nossos corpos. Maxine parece só desejar Malkovich quando ela imagina
perceber a presença de Lotte nos olhos do ator. Se a identificação de Lotte com
Malkovich é mais intensa e reveladora, a identificação de Craig também é importante, afinal ele parece se sentir melhor dentro da pele de outra pessoa.
Maxine vai ao ponto máximo de falar que Lote é o “pai da criança... ou
a segunda mãe”, pois afirma que era com ela que estava fazendo amor ao ficar
grávida. Se as duas terminam o filme juntas, criando uma criança, constituindo
uma família, numa relação lésbica cis um tanto estranha - Maxine nunca tinha
tido desejos por outras mulheres, aparentemente, e Lotte teria se “descoberto”
trans e não exatamente lésbica ou bi durante a trama -, isso não importa muito.
O que o filme pretende é desestabilizar o status quo, argumentar que as ideias
pré-concebidas e fixas sobre sexualidade e gênero não têm lugar num mundo
contemporâneo.
O grande destaque do filme é John Malkovich, não só interpretando
Malkovich, o ator, mas também as várias versões de Malkovich, à medida que outras pessoas assumem seu corpo. Quando as cortinas se abrem no início do filme,
talvez seja difícil imaginar um estudo de domínio de corpo mais impressionante
que o engendrado por Jonze e Kaufman: afinal o que/quem nos controla e o que/
quem nós controlamos?
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TABU
Gohatto | 1999 | 100min
Elenco: Takeshi Kitano, Ryuhei Matsuda, Shinji Takeda,
Tadanobu Asano, Yoichi Sai
Sinopse: Sozaburo, um jovem de dezoito anos, torna-se um dos membros de uma tropa de samurais especialmente selecionados pelo Shogun, conhecidos
como Shinsengumi. Os guerreiros, extremamente hábeis no uso de espadas, são treinados para matar quem
se opuser ao regime do Shogun. Sozaburo se envolve
numa relação homossexual com alguns dos guerreiros
do grupo. Ele se considera culpado pelo crime envolvendo dois guerreiros que se apaixonaram por ele.
Direção: Nagisa Ôshima Roteiro: Nagisa Ôshima, Ryôtarô Shiba
Produção executiva: Jean Labadie, Jeremy Thomas,
Nobuyoshi Ôtani
Produção: Shigehiro Nakagawa, Eiko Oshima, Kazuo
Shimizu
Direção de fotografia: Toyomichi Kurita Montagem: Tomoyo Oshima Direção de arte: Yoshinobu Nishioka Equipe de arte: Shoichi Yasuda, Emi Wada, Kiyomi
Hirose
Música: Ryuichi Sakamoto
Equipe de som: Hiroshi Abe, Kunio Ando, Hiroshi Ishigai, Takako Kawamoto
Festivais: Festival de Cannes (2000), Festival de Nova
York (2000), Festival de Vancouver (2000), Festival de
Toronto (2000) etc.
Prêmios: Indicado à Palma de Ouro 2000, e vencedor
de 4 Prêmios Blue Ribbon (jornalistas japoneses): Melhor filme, direção, ator revelação (Ryûhei Matsuda) e
ator coadjuvante (Shinji Takeda).
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BELEZA
DESCONCERTANTE
Aleques Eiterer
Canto do cisne de um diretor que elevou o sexo explícito ao patamar de
obra de arte com o clássico O Império dos Sentidos (Ai no korîda/ L’Empire des
Sens), de 1976, Nagisa Oshima constrói uma bela e enigmática obra com Tabu
(Gohatto/Taboo), seu último filme, realizado em 1999.
Os caminhos abertos pelos jovens diretores e a ampliação da circulação
de filmes promovidos pelo New Queer Cinema, no começo dos anos 1990, contribuiriam para que uma leva de filmes asiáticos que tratava o homoerotismo de
forma mais aberta e com protagonistas LGBTs circulasse em festivais e logo em
seguida chegasse ao circuito de filmes de arte. Como define Erly Vieira Jr. em seu
texto no catálogo da mostra New Queer Cinema – Cinema, Sexualidade e Política,
esses filmes “foram recebidos, num contexto global – e, em especial, pelas plateias LGBT –, como se fizessem parte de uma ‘nova onda’ queer, desta vez asiática”.
Esses fatores, aliados aos avanços sócio-político-culturais LGBTs, sobretudo, podem ter estimulado Oshima a tratar mais abertamente sobre um tema
que já tinha abordado de forma mais sutil em Furyo, Em Nome da Honra (Merry
Christmas Mr. Lawrence, 1983), em que a presença de Jack ‘Strafer’ Celliers (David
Bowie) causa profundo efeito no Capitão Yonoi (Ryuichi Sakamoto, também compositor de trilhas de diversos filmes de Oshima). E também como observa Erly, ao
contrário do New Queer ocidental, que, na sua maioria era composto por jovens
cineastas que transpunham para telas, muitas vezes, suas próprias experiências,
como parte do enfrentamento ao discurso conservador que relacionava os gays
diretamente com a epidemia de aids do começo dos anos 1980, os filmes asiáticos, por sua vez, traziam em seu seio diversos diretores já consagrados e/ ou de
longa trajetória, como é o caso de Oshima.
Baseado nos contos Maegami no Sozaburo e Sanjogawara Ranjin, do livro
Shinsengumi keppuroku, do escritor Ryotazo Shiba, Tabu foi o último filme realizado por um Oshima que já contava com 66 anos e convivia com as consequências
de um derrame. Porém, o filme é cuidado em todos os detalhes, do rigor e da
beleza na construção dos planos, passando pela impecável direção de arte, até a
atuação de todo o elenco. Oshima faleceria em 2013, aos 80 anos.
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Estamos em Quioto, no ano de 1865, fim da Era dos Samurais, e acompanhamos a inserção de novos membros na milícia Shinsengumi. É então que entra
em cena, pontuado pela bela música de Ryuichi Sakamoto, o rosto enigmático,
belo e andrógino de Sozaburo Kano (Ryuhei Matsuda), que demonstra grande
habilidade com a espada. Em seguida, também se destaca como espadachim
o personagem Tashiro (Tadanobu Asano), e ambos são escolhidos como novos
membros da milícia.
A evolução do Sozaburo é vista pelos olhos do Tenente-Comandante
Hijikata (Takeshi Kitano, aqui creditado como Beat Takeshi, em uma grande atuação, cheia de nuances). Hijikata, como nós, tenta decifrar o que há por trás do
enigmático rosto de Sozaburo. Como prenúncio, o próprio Kitano, que também
atuou em Furyo, anuncia, em Tabu, que a homossexualidade não é temida pelos
samurais, embora a primeira cena do filme seja uma severa punição a dois prisioneiros (um holandês e um coreano) que são flagrados tendo relações sexuais. A
admiração de Hijikata pela beleza de Sozaburo recorda também a admiração de
Gustav von Aschenbach (Dirk Bogarde) pelo jovem Tadzio (Björn Andresen) em
Morte em Veneza (Morte a Venezia, 1971, Luchino Visconti), embora aqui ela vá
ganhando outros contornos.
Vindo de uma família abastada, quando questionado porque entrou
para a milícia, Sozaburo apenas dá um leve sorriso. Sua primeira missão, após
sua aceitação na milícia, é executar por decapitação um membro que descumpriu o rígido código de conduta do grupo. Ele cumpre a missão sem pestanejar;
quando o comandante Kondo (Yoichi Sai) afirma: “Ele tem coragem”, e Hijikata
pensa: “Não, algo mais que coragem”.
Sozaburo rejeita as investidas de Tashiro e nada nos é mostrado do que
se passa entre eles. Apenas outros personagens afirmam que os dois vivem um
romance. Para ter certeza, Hijikata coloca os dois para se enfrentarem com espadas. E em mais uma cena intrigante, Sozaburo, um espadachim bem melhor,
perde para Tashiro. A situação faz Hijikata concluir que eles são amantes, fato que
é reafirmado pelo intertítulo.
A evolução da narrativa nos propõe mais questões do que necessariamente explicações. Oshima desconstrói várias tradições do cinema japonês: filme
de samurai, câmera à altura de pessoa ajoelhada no tatame, intertítulos explicativos e realização em estúdios, com poucas cenas externas. Todas essas tradições
parecem usadas por ele para subverter os próprios sentidos delas e para nos confundir, no bom sentido do termo.
Sob uma perspectiva queer, um dos muitos pontos curiosos do filme é
que a homossexualidade não é encarada como um mal, um desvio e/ou uma
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aberração, como dentro de uma lógica religiosa/ocidental. A única ressalva enunciada por Kondo é que “corações inflamados pela paixão” trouxeram problemas
no passado, por tirá-los do foco principal, o combate, e podem comprometer a
segurança de todos.
Segundo Ruy Gardnier, em sua crítica publicada na revista eletrônica
Contracampo na época do lançamento do filme, “em toda a narrativa de Tabu,
diversos homens deixam-se contaminar, ao menos em pensamento, por essa
inclinação. O sexo não é encarado do ponto de vista da reprodução, da procriação, mas da produção de desejo, de um ideal propriamente de beleza que povoa
aquele mundo”.
Quem espera encontrar um filme de samurais e/ou um romance gay entre espadachins ao estilo O Segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain,
2005, Ang Lee), nesse caso, entre cowboys, isto é, estereótipos de masculinidade,
pode se decepcionar, pois Tabu tem outra complexidade em seu enredo e forma.
Da mesma forma que Furyo, que se passa num campo de prisioneiros ingleses,
dentro do seio do exército japonês, tudo em Tabu é muito mais sugerido do que
explicitado.
Assim como Furyo, Tabu é um filme essencialmente de personagens masculinos, com poucas personagens femininas nesse e nenhum no anterior. Também não se deve esperar grandes arroubos sexuais, como no já citado O Império
dos Sentidos. Há apenas uma discreta cena de sexo no filme, embora de grande
força.
as novas informações sobre a relação entre Hijikata e Kondo, as possibilidades de
histórias imaginadas por Hijikata, o diálogo que escutamos e que não escutamos
entre Sozaburo e Tashiro. Tudo isso coroado com uma incrível cena metafórica da
bela árvore sendo decepada.
Referências Bibliográficas
GARDNIER, Ruy. Tabu, de Nagisa Oshima. In: http://www.contracampo.com.br/
criticas/tabu.htm. Acesso em 15/06/2016.
RICH, B. Ruby. New Queer Cinema – Versão da diretora. In: MURARI, Lucas e NAGIME, Mateus (org.). New Queer Cinema – Cinema, Sexualidade e Política. Juiz de Fora,
LDC, p. 18-29.
VIEIRA JR., Erly. Em busca de um cinema queer asiático. In: MURARI, Lucas e NAGIME, Mateus (org.). New Queer Cinema – Cinema, Sexualidade e Política. Juiz de Fora,
LDC, p. 164-171.
Ainda segundo Gardnier, na mesma crítica, Tabu é “um filme sobre a beleza: de forma alguma sobre os poderes benéficos e límpidos dela, mas justamente sobre sua parte soturna, obscura. Tabu exprime a parte excessiva da beleza,
tudo aquilo nela que é prejudicial a todo sistema porque o excede em energia,
suga dele tudo que pode e se apropria, tal qual vampiro ou sanguessuga ou parasita, de tudo que pode até adquirir o estatuto de peça imprescindível do sistema.
A beleza torna-se um vírus”.
Sozaburo seria um psicopata? Pelos olhos de Hijikata e por algumas pistas que o filme dá, sim. Porém, a construção de sua psicopatia também é muito
mais sutil do que costumamos ver nos filmes ocidentais, sobretudo os norte-americanos. Uma certeza que o filme deixa clara é que Sozaburo usa sua beleza e
o sexo como poder de dominação e gosta disso, como nos diz mais um dos intrigantes intertítulos. Ele seduz quase todos os personagens do filme, como Terence
Stamp em Teorema (1968, Pier Paolo Pasolini).
Porém, nada em Oshima é simples. Na bela sequência final, novas camadas e interrogações são colocadas: a bela história contada por Soji (Shinji Takeda),
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O PÂNTANO
La Ciénaga | 2001 | 103min
Elenco: Mercedes Morán, Graciela Borges, Martín Adjemián
Sinopse: A cidade de La Cienaga é conhecida pelas extensões de terra que se alagam com as chuvas repentinas e
fortes, formando pântanos que são armadilhas mortais para
os animais da região. Perto da cidade fica o povoado de Rey
Muerto, em que está localizado o sítio La Mandrágora, onde
são cultivados pimentões vermelhos. Para ele vão duas famílias, lideradas por Mecha (Graciela Borges) e Tali (Mercedes
Morán). Mecha é uma mulher em torno de 50 anos, que tem
4 filhos e um marido que procura ignorar bebendo cada vez
mais. Já Tali é prima de Mecha e também tem 4 filhos, sendo
que ama seu marido e sua família. Em meio a um verão infernal, as duas famílias entram em conflito quando a tensão
entre elas aumenta.
Direção: Lucrecia Martel
Roteiro: Lucrecia Martel
Produção executiva: Ana Aizenberg, Diego Guebel, Mario
Pergolini
Co-Produção: José María Morales
Diretor de Produção: Marta Parga
Direção de fotografia: Hugo Colace
Montagem: Santiago Ricci
Casting: Florencia Blanco, Martín Mainoli, Luciana Rico,
Natalia Smirnoff
Direção de arte: Graciela Oderigo
Equipe de arte: Cristina Nigro, Sebastián Molchasky, Marisa
Amenta, Cristina Nigro
Equipe de som: Guido Berenblum, Emmanuel Croset,
Adrián De Michele, Hervé Guyader
Efeitos especiais: Rubén Santeiro
Operador de câmera: Hugo Colace
Festivais: Festival de Berlim (2001), Festival de Mar del Plata
(2001), Festival de Cinema de Karlovy Vary (2001), Festival de
Toronto (2001), Festival de Nova York (2001), Festival de Chicago (2001) etc.
Prêmios: Vencedor do Prêmio Alfred Bauer no Festival de
Berlim 2001. Indicado a 8 prêmios da Associação Argentina
de Críticos Cinematográficos 2002 (incluindo melhor filme e
direção), vencedor de melhor atriz (Graciela Borges), filme de
estreia e fotografia.
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O PÂNTANO
Chico Lacerda
A inclusão do filme O Pântano (La Ciénaga, 2001, Lucrecia Martel) na
mostra New Queer Cinema – a segunda onda poderia ser justificada pela personagem de Momi, filha da matriarca Mecha, e seu desejo por Isabel, empregada
doméstica da mãe. Isto se tomássemos queer por sua acepção habitualmente utilizada pelo senso comum, ou seja, como um conjunto de identidades que se contrapõem à heterossexualidade e à cisgeneridade, algo próximo à expressão LGBT.
Sendo, porém, um pouco mais rigorosos com as ramificações do conceito, o filme
parece, para além disso, dialogar de forma mais ampla e profunda com a noção
de sexualidade queer desenvolvida por Teresa de Lauretis (2011).
De acordo com Lauretis, o conceito de sexualidade foi historicamente
reduzido à reprodução biológica e ao enlace entre indivíduos, ou seja, tomada
somente a partir do ponto de vista do desejo que leva à cópula com um indivíduo do sexo oposto (e logo à reprodução) ou do desejo que une dois indivíduos,
sejam do sexo oposto ou não. Tal noção, longe de operar uma desconstrução de
identidades e estruturas consolidadas, como propõe a teoria queer, tanto se baseia quanto reforça os papéis de gênero e as estruturas de enlace hegemônicos.
Nesse sentido, “se quisermos resgatar o caráter contestatório e verdadeiramente
inclusivo da sexualidade queer, precisamos de uma concepção de sexualidade
que vá além dos equívocos nebulosos de gênero e da função reprodutora” (LAURETIS, 2011, p. 249, tradução minha). Lauretis encontra tal concepção na noção
freudiana de pulsão de morte:
A teoria da sexualidade de Freud supõe a presença
de duas forças psíquicas ou pulsões contrárias, coexistindo e agindo juntas por meio de diferentes combinações em diferentes momentos da vida psíquica
do indivíduo. A pulsão de vida é uma energia psíquica
ligada a objetos – pessoas, fantasias, ideais, o próprio
ego – e, portanto, ao apego, aos laços sociais, à criatividade (não por acaso ele usa o termo platônico Eros,
definindo-a como “o Eros dos poetas e filósofos”). A
pulsão de morte, ao contrário, é pura negatividade;
é uma energia psíquica solta, sem amarras com qual-
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quer objeto específico, que sabota a coerência do ego
e, consequentemente, a coesão social. (p. 250)
A pulsão de morte seria característica da sexualidade infantil, “polimorfa,
não reprodutiva, compulsiva, incontrolável e irrefreável em sua busca pelo prazer” (p. 249), ou seja, não colonizada por noções de desejo e gênero, que confinam e ditam os caminhos da sexualidade dita normal (inclusive das identidades
LGBT). Nesse sentido, a persistência de tal conduta na idade adulta constituiria-se,
no senso comum e em certos campos do conhecimento, como uma patologia,
bem representada pelas noções de perversão e parafilia.
Não só a sexualidade queer, como veremos adiante, mas diversos outros
elementos de O Pântano apontam para uma situação onde as normas sociais estão em suspensão. Não por acaso, o filme se passa em uma casa de campo decadente da região noroeste argentina exatamente durante uma temporada de
férias, período apartado do tempo funcional e regrado do calendário de trabalho
e estudos. Nesse sentido, seja o marido e as filhas e filhos de Mecha, a matriarca,
sejam os amigos da família que passam pela casa, todos no filme estão imersos
em tédio e imobilidade, numa temporalidade circular em que tudo se repete e
nada parece avançar. Além disso, a lógica da casa e de seus visitantes impossibilita qualquer noção de privacidade, com camas e banheiros, banhos e trocas de
roupa sendo constantemente invadidos e compartilhados com outros personagens. Tampouco os horários de sono e rituais de higiene são obedecidos, com
pessoas adormecendo e acordando em horas aleatórias do dia e da noite ou uma
mesma roupa sendo usada e repetida ao longo de dias e dias.
Se, nesse cenário, os personagens mais velhos estão em constante estado de torpor, é nos mais jovens que a pulsão própria de uma sexualidade queer
apresenta-se mais claramente. Mimo deseja Isabel, a empregada doméstica da
casa, mas esse desejo é tanto permeado por pequenas crueldades que a posição
hierárquica daquela permite quanto não avança em direção a qualquer resolução, girando no vazio ao longo de todo o filme. O desejo de Agustina, sobrinha
de Mecha, por José, filho desta, segue o mesmo modelo, atravessando o filme
em aproximações e afastamentos abruptos, com pequenas violências e violações
substituindo a sua consumação propriamente dita. A própria Mecha alimenta,
durante todo o filme, ciúmes e rancores de sua antiga amiga, Mercedes, que, supõe-se, teve um caso com seu marido Gregorio e agora namora seu filho José.
Quando Gregorio passa a dormir no quarto dos fundos da casa, é com José que
Mecha passa a dividir a cama de casal, tornando ambígua a real fonte dos ciúmes.
Em todos os casos, os indivíduos parecem submissos a tais pulsões, sem conse89
guir transcendê-las nem tampouco resolvê-las, numa lógica de imobilidade e repetição que o filme alimenta ao longo de toda a sua duração.
Se essa pulsão sexual atravessa eminentemente os personagens jovens,
às crianças ficam reservadas pequenas obsessões destrutivas e auto-destrutivas
mais diretamente associadas à pulsão de morte (à exceção das crianças nativas
do local, que são, em determinado momento, acusadas de manterem uma relação supostamente sexual com o cachorro da família). Os filhos mais novos de Mecha e seus amigos, por exemplo, estão sempre carregando espingardas de caça
em suas incursões nas florestas no entorno da casa. Nessas, a balbúrdia do grupo
cria repetidos riscos de acidente, cuja tensão é explorada pelo filme de forma recorrente. O mesmo ocorre numa visita ao açude, em que o uso descontrolado de
facas peixeiras expõe os corpos seminus a toda sorte de riscos. Além disso, são
inúmeras as brincadeiras entre as filhas e o filho de Tali, amiga de Mecha, que
teatralizam violência e morte. Nesse sentido, o filme dá especial atenção à história contada por Agustina às crianças a respeito de uma espécie de rato selvagem
que, confundido com um inocente cãozinho, despedaçou o gato de sua dona. A
partir desse ponto, as crianças passam a manter uma relação de atração mórbida
com qualquer cão que cruze seu caminho, situação que leva um dos personagens
a um desfecho trágico.
A ligação de tais condutas compulsivas e mórbidas com a noção de perversão fica ainda mais clara a partir da irrupção física de sinais de uma suposta
degenerescência familiar, como no dente que começa a nascer no céu da boca
do filho de Tali, ou no olho deformado do filho de Mecha, ou ainda nas feridas
abertas no colo da própria Mecha que, ainda que tenham uma causa bem definida – o acidente com taças de vinho –, são visualmente exploradas ao longo de
todo o filme.
Por fim, a aposta de O Pântano nas pulsões negativas e destrutivas é ratificada pela interdição das únicas possibilidades de transcendência, representadas
pela viagem das amigas Mecha e Tali à Bolívia – sabotada pelo marido desta – e
pela imagem da Virgem Maria vista em uma caixa d’água na cidade vizinha à casa
de campo, que irrompe de tempos em tempos nos noticiários de TV. Em seu tédio, a própria Momi vai até o local para conferir a aparição. Porém, como afirma à
prima, seca e concisa, não viu nada.
Referências Bibliográficas
LAURETIS, Teresa de. “Queer Texts, Bad Habits, and the Issue of the Future.” In:
GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies. 2011, pp. 243-263.
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MADAME SATÃ
2002 | 105min
Elenco: Lázaro Ramos, Flávio Bauraqui, Marcélia Cartaxo,
Ricardo Blat, Renata Sorrah, Emiliano Queiroz, Marcelo
Valle, Floriano Peixoto, Gero Camilo, Guilherme Piva
Sinopse: O filme retrata a vida da referência na cultura
marginal urbana do século XX, o célebre transformista
João Francisco dos Santos- malandro, artista, presidiário,
pai adotivo de sete filhos, negro, pobre, homossexual - conhecido como “Madame Satã” e frequentador do bairro
boêmio da Lapa, no Rio de Janeiro. Mostra seu círculo de
amigos, antes de se transformar no mito Madame Satã,
lendário personagem da boêmia carioca.
Direção: Karim Aïnouz
Roteiro: Karim Aïnouz, Marcelo Gomes, Sérgio Machado,
Mauricio Zacharias
Produção: Marc Beauchamps, Isabel Diegues, Vincent
Maraval, Walter Salles,
Assistente de Produção: Dominique Welinski, Gustavo
Pizzi
Direção de fotografia: Walter Carvalho Montagem: Isabela Monteiro de Castro
Música: Sacha Amback, Marcos Suzano
Casting: Luiz Henrique Nogueira
Equipe de arte: Jorge de Tharso, Sonia Penna, Rita Murtinho
Equipe de som: Aloisio Compasso, Marcel Costa, Dominique Hennequin, Waldir Xavier
Festivais: Festival de Cannes (2002), Festival de Chicago
(2002), Festival de Stockholmo (2002), Festival de Rotterdam (2003), Festival de Sundance (2003) etc.
Prêmios: 15 indicações ao Grande Prêmio Cinema Brasil 2003, incluindo Melhor Filme e Direção; vencedor de
5 prêmios (ator [Lázaro Ramos], atriz [Marcella Cartaxo],
direção de arte, figurino e maquiagem).
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MADAME SATÃ
1
Chico Lacerda
Os filmes [do New Queer Cinema], como apontou
Rich, têm em comum algumas estratégias estéticas e
narrativas, mas o que eles parecem realmente compartilhar é sua postura. Ela os considerou ‘irreverentes’ e ‘enérgicos’, e, de acordo com J. Hoberman, seus
protagonistas eram ‘orgulhosamente assertivos’. Na
verdade, o que une o grupo, na minha opinião, pode
ser melhor descrito como afronta (AARON, 2004, p.3,
tradução minha).
Se em 2002 o cinema e o ativismo LGBT brasileiros estavam ainda bastante preocupados com representações positivas e respeitáveis, numa busca por
aceitação e assimilação, Madame Satã (2002, Karim Aïnouz), dada a sua postura de afronta, pode ser considerado o representante nacional mais próximo no
NQC. O filme retrata parte da vida de João Francisco dos Santos, pernambucano
que morou no Rio de Janeiro entre as décadas de 1920 e 1970 e ficou conhecido
tanto por sua insolência e violenta resistência ao controle oficial quanto por suas
performances femininas nos palcos de diversos cabarés, bailes e blocos da Lapa.
A abertura do filme, um close no rosto surrado de João Francisco (Lázaro
Ramos) enquanto ele ouve as acusações pelas quais foi preso, pode inclusive ser
lida como uma resposta direta às demandas normalizadoras das representações
positivas, ao assumir sem subterfúgios características consideradas negativas por
tal estratégia:
“O sindicado, que também diz chamar-se Benedito
Emtabajá da Silva, é conhecidíssimo na jurisdição
deste Distrito Policial como desordeiro, sendo frequentador costumaz da Lapa e suas imediações. É pederasta passivo, usa as sobrancelhas raspadas e adota
atitudes femininas, alterando até a própria voz. Não
1 Este texto consiste em uma condensação da análise do filme Madame Satã realizada por Chico Lacerda em sua tese de doutorado intitulada Cinema Gay Brasileiro: políticas de representação e além.
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tem religião alguma. Fuma, joga e é dado ao vício da
embriaguez. Sua instrução é rudimentar. Exprime-se
com dificuldade e intercala em sua conversa palavras
da gíria do seu ambiente. É de pouca inteligência.
Não gosta do convívio da sociedade por ver que esta
o repele, dados os seus vícios. É visto sempre entre
pederastas, prostitutas, proxenetas e outras pessoas
do mais baixo nível social. Ufana-se de possuir economias, mas como não aufere proventos de trabalho
digno, só podem ser estas economias produtos de
atos repulsivos ou criminosos. Pode-se adiantar que o
sindicado já respondeu a vários processos e, sempre
que é ouvido em cartório, provoca incidentes e agride mesmo os funcionários da polícia. É um indivíduo
de temperamento calculado, propenso ao crime e
por todas as razões inteiramente nocivo à sociedade.”
(MADAME SATÃ, 2002, 00:01:07)
O filme elege João Francisco como seu herói, aderindo a um perfil diametralmente oposto ao encontrado na maior parte do cinema gay brasileiro pós-Retomada, eminentemente branco, cisgenênero e de classe média, e o enredo
acompanha uma trajetória marcada por repetidos confrontos com os códigos
de conduta vigentes que restringiam as ações e desejos de João Francisco não
somente no âmbito sexual e de gênero, mas também no que diz respeito a raça
e classe social. Além disso, seu personagem atravessado por contradições e ambiguidades coloca em cheque as identidades precisas e bem resolvidas do movimento LGBT, especialmente em sua cisão entre homoerotismo e transgeneridade.
O filme traz, pelo contrário, posturas extremas de ambos os gêneros coabitando o
personagem de João Francisco: por um lado, malandro violento e chefe de família
rígido; por outro, dançarina sensual e sofisticada em suas diversas personas apresentadas no palco e fora dele.
Tais contradições tornam-se particularmente visíveis na relação dele com
Tabu (Flávio Bauraqui), fresco2 amigo e protegido de João e que trabalha também
como empregado doméstico para ele. A relação entre os dois conta com repetidas e repentinas passagens de um extremo a outro, com o desconforto causado
pelo chefe de família e patrão que faz cobranças de forma despótica e violenta
2 A expressão fresco foi bastante utilizada no Brasil da primeira metade do século XX para descrever o
homoerotismo masculino com fortes traços de transgeneridade da época.
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sendo sempre, de súbito, substituído pela cumplicidade afetada e afetiva da troca
de confidências entre os dois frescos, como mostra o seguinte diálogo:
João: Que chão imundo é esse, Laurita? Termina de
limpar essa porcaria. [Para Tabu] Já terminou de costurar o vestido da Vitória?
Tabu: Já.
João: E as toalhas do Amador, já lavou?
empoderamento que lhes são dados pela abordagem, potencializando seu efeito
político de confronto com o status quo.
Referências Bibliográficas
AARON, Michele. New Queer Cinema: A Critical Reader. New Jersey: Rutgers University Press, 2004.
Tabu: Tudo.
João: Então já podia ter lavado o vestido da Madame
também.
Tabu: Eu já lavei.
João: Já secou?
Tabu: Meu nome não é sol!
João [arremetendo contra Tabu e jogando-o no chão]:
Teu nome é trovão, desgraçado!
Tabu: Ai!
João [acalmando-se, suavizando a expressão e afetando a voz]: E o cu, já deu hoje?
Tabu [sorrindo malicioso]: Hoje ainda não...
(MADAME SATÃ, 2002, 00:10:50)
A própria instituição familiar, cara à representação positiva, sofre uma
série de deslocamentos no filme: João Francisco, fresco e transformista, ocupa
o posto de pai e chefe da família; Laurita (Marcélia Cartaxo), prostituta a quem
João serve de cafetão e de amigo, é a mãe; sua filha pequena é a prole amada
pelo casal; por fim, Tabu (Flávio Bauraqui) faz as vezes de empregada da casa.
O movimento aqui é contrário: ao invés de um apagamento de especificidades
do homoerotismo e da transgeneridade em direção ao modelo heteronormativo,
é a instituição familiar que é tensionada de modo a acomodar subjetividades e
práticas deslegitimadas pelas operações de normalização.
Se o uso do estereótipo da bicha efeminada de classe baixa e ligada à
marginalidade não era novidade no cinema brasileiro, como mostra a sua recorrência nas décadas de 1970 e 1980, a grande diferença entre boa parte delas e
João Francisco é a mesma que existe entre os personagens do New Queer Cinema e os estereótipos nos quais eles se baseiam e que atualizam: a agência e o
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ELEFANTE
Elephant | 2003 | 81min
Elenco: Alex Frost, Eric Deulen, John Robinson, Elias McConnell
Sinopse: Um dia aparentemente comum na vida de um
grupo de adolescentes, todos estudantes de uma escola
secundária de Portland, no estado de Oregon, interior dos
Estados Unidos. Enquanto a maior parte está engajada
em atividades cotidianas, dois alunos esperam, em casa,
a chegada de uma metralhadora semi-automática, com
altíssima precisão e poder de fogo. Munidos de um arsenal de outras armas que vinham colecionando, os dois
partem para a escola, onde serão protagonistas de uma
grande tragédia.
Direção: Gus Van Sant
Roteiro: Gus Van Sant
Produção executiva: Diane Keaton, Bill Robinson
Produção: Dany Wolf
Direção de fotografia: Harris Savides
Montagem: Gus Van Sant
Casting: Mali Finn, Danny Stoltz
Direção de arte: Benjamin Hayden Equipe de som: Felix Andrew, David A. Cohen, Neil Riha,
Leslie Shatz
Assistente de câmera: Christopher Blauvelt Festivais: Festival de Cannes (2003), Festival de Karlovy
Vary (2003), Festival de Toronto (2003), Festival de Nova
York (2003) etc.
Prêmios: Palma de Ouro e Melhor Direção no Festival de
Cannes 2003; Melhor Fotografia no Ciclo de Críticos Cinematográficos de New York; 2º Melhor Filme do Ano pela
Liga dos Blogues Cinematográficos (Brasil) no Prêmio Alfred 2004.
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ELEFANTE
Luiz Carlos Oliveira Jr.
Quando estreou, em 2003, Elefante (Elephant) nos impactou de maneira
indescritível. Nem tanto por aquilo que mostrava (uma reconstrução do massacre de Columbine), mas, antes, pela forma como mostrava ações reduzidas à sua
qualidade mais primária, ou seja, a de constituir uma simples passagem de forças.
Deve ter sido mais ou menos o impacto que, vinte anos antes, um filme como O
dinheiro (L’Argent, 1983, Robert Bresson), provocou em seus espectadores.
O que mais choca em Elefante, porém, é a sua beleza, tanto no sentido de uma beleza sensória, corpórea (beleza das imagens, dos corpos, da luz, do
balé sensual que antecede o massacre), quanto de uma beleza da ideia, do conceito (Elefante é um filme-dispositivo em que cada operação plástica encontra
correspondência exata na estrutura conceitual que preside à obra). Por mais
que o cinema de Van Sant sempre tivesse se dedicado a belos corpos, rostos,
imagens, paisagens, seria demais imaginar que seu filme mais violento e pesado
seria também o mais belo e etéreo. E, no entanto, Elefante se provou exatamente
isso. Daí o choque. “Com a sutileza de um elefante”: essa famosa frase (usada para
apontar ironicamente uma falta de medida) estranhamente adquire sentido não
irônico se aplicada a esse filme.
Revisto treze anos depois, Elefante continua pungente e, o que é o principal, sua reserva de significações, longe ter se esgotado, parece ter se renovado
com o passar do tempo. Toda vez que um novo episódio similar acontece em alguma escola ou universidade, entendemos e atualizamos o sentido do filme de
Gus Van Sant: diante da avalanche de simplificações jornalísticas grosseiras, de
explicações psicológicas ou sociológicas (as quais o cineasta rechaça em bloco),
cabe dar um passo atrás e buscar o que vem antes do discurso sobre o acontecimento, a saber, o olhar, a percepção, a duração. Em outros termos, trata-se de não
subordinar os fatos às explicações dos fatos; trata-se de mostrar pessoas atirando
(evidência, fato bruto) em vez de falar de assassinos psicopatas (predicação, adjetivação, interpretação). É sempre mais fácil atribuir esse gênero de tragédia a um
desvio psicológico individual do que tentar entender a sua complexa trama de
determinações. Mas Van Sant felizmente não escolheu o caminho mais fácil. Em
Elefante, o mal é estrutural, sistêmico, produz-se no dia a dia da escola, da família,
da sociedade, e não apenas no ato do massacre. Era curioso notar, na ocasião do
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lançamento do filme, que muita gente se incomodava com a sua falta de didatismo ou, mais radicalmente, com a sua falta de discurso. O pecado de Van Sant terá
sido não dar nenhuma chave de explicação para o horror. Em vez de articular um
discurso fechado, o diretor concebeu uma minuciosa máquina de mostração que
inscreve os corpos e gestos como eventos cinematográficos puros. Imperdoável
atitude de cineasta. O “erro” de Van Sant, concluir-se-ia, foi ser honesto demais, foi
abordar o massacre com as ferramentas que melhor conhecia, isto é, as ferramentas do cinema.
Na verdade, várias explicações aparecem no filme, ou melhor, atravessam a tela, passam por ela com a mesma indiferença das nuvens (típico leitmotiv
de Van Sant, que nunca se encaixou tão bem em seu esquema figural como nesse
filme): bullying, jogos eletrônicos violentos, asfixia institucional, pais alcoólatras
ou negligentes, facilidade para comprar armas de fogo, banalização dos traumas
históricos, homossexualidade reprimido... Todas essas pistas falsas são sugeridas
em algum momento. Mas as virtuais explicações daí deriváveis permanecem desarticuladas, despregadas de qualquer cadeia causal. Não me lembro de nenhum
outro filme que demonstre com tanta simplicidade e concreção o fato de que, na
vida, e sobretudo na adolescência, muitas coisas são ditas e feitas sem que ninguém (nem aqueles que as dizem e fazem) saiba qual é o seu sentido.
O dispositivo formal mais recorrente no filme consiste num travelling que
acompanha as longas deambulações de um dos estudantes pelos corredores da
escola. Essas sinuosas viagens de steadycam compõem, sem dúvida, um dos capítulos mais fascinantes da história de um movimento de câmera que Stanley Kubrick, Béla Tarr, Martin Scorsese e Alan Clarke já tinham também desbravado. Van
Sant monta um espaço-tempo regido por leis próprias, uma arquitetura de durações que a câmera percorre repetidas vezes, variando o ponto de vista. Assim, um
mesmo evento – como o momento em que Elias faz uma foto de John enquanto
Michelle passa correndo atrás deles, atrasada para seu estágio na biblioteca – poderá ser mostrado três vezes, por três perspectivas diferentes, cada uma delas
correspondendo ao ponto de vista de um dos três adolescentes envolvidos na
cena. Essa ação funciona como um dos momentos-charneira do filme, um dos
pontos nodais em que trajetos se cruzam, linhas se interceptam somente para
se separarem novamente e seguirem seus destinos solitariamente. A lógica dos
planos-sequência de Elefante não é a mesma dos filmes de autores interessados
na dilatação temporal ou no tour de force de encenação: é antes a lógica do videogame de última geração, em que o jogador explora sistematicamente um mesmo
continuum espaciotemporal, ao qual pode voltar repetidas vezes, optando por
caminhos diferentes a cada rodada ou a cada “vida”.
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Ainda no começo do filme, os membros de um grupo de discussão estão
reunidos numa sala e debatem sobre a possibilidade de se reconhecer ou não
uma pessoa como gay somente por sua aparência. De maneira tão sutil quanto
certeira, o filme afirma, nas entrelinhas da conversa, a insuficiência dos signos
exteriores como dados confiáveis para a interpretação correta da realidade. O que
está em jogo nessa cena é nada menos que a demolição de uma semiologia das
aparências, que poderia minar o filme desde a origem. Van Sant trata de tirar isso
do caminho já nos primeiros minutos.
O debate em torno das aparências está em todo lugar no filme. Uma das
primeiras cenas mostra Elias, o fotógrafo, convencendo um casal gótico a se deixar fotografar por ele. Os cliques da câmera de Elias (não um aparelho digital, mas
uma câmera de processo analógico-mecânico) antecipam os cliques de destrave
dos rifles dos atiradores. A morte já está presente ali. A maquiagem dark, mórbida, quiçá cadavérica dos dois adolescentes góticos já prefigura suas mortes, da
mesma forma que o próprio registro fotográfico, cuja relação de intimidade com
a morte já foi salientada por tantos teóricos (Roland Barthes, André Bazin, Edgar
Morin, Laura Mulvey), antecipa inequivocamente o destino trágico, sela as aparências sob o registro da fatalidade. A fotografia, traço material de um instante
fugidio, o mais banal e literal dos signos, marca presente de um passado ausente,
emanação de um real que se faz visível mais ou menos como a luz de uma estrela
morta; enfim, a fotografia, como dizíamos, serve como metonímia do filme em
seu conjunto. Elias, segundos antes de morrer, aponta a câmera fotográfica para
os atiradores: seu clique é o primeiro a ser ouvido, antes de os tiros começarem;
de certo modo, é ele (ou sua câmera) que desencadeia o massacre. Elefante traz
um pouco essa condição fantasmática: ser o testemunho in loco de um evento,
todavia, irreconhecível em todas as suas nuances (como se explica na fábula budista que inspirou o filme). Um tatear no escuro, até o clique que anuncia o fim de
tudo. E as nuvens...
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MAL DOS TRÓPICOS
Sud Pralad | 2004 | 118 min
Elenco: Banlop Lomnoi, Sakda Kaewbuadee, Huai Dessom
Sinopse: Keng é um soldado e Tong trabalha no campo. O
tempo passa, ritmado pelas noites na cidade, pelos jogos
de futebol e pelas agradáveis reuniões na casa da família
de Tong. Um dia, quando as vacas da região começam a
ser decapitadas por um animal selvagem, Tong desaparece. A lenda diz que um homem pode se transformar em
animal selvagem. Keng parte então sozinho para o coração da floresta tropical, onde o mito muitas vezes se torna
realidade.
Direção: Apichatpong Weerasethakul
Roteiro: Apichatpong Weerasethakul
Produção executiva: Olivier Aknin
Produção: Charles de Meaux
Co-Produção: Paiboon Damrongchaitham, Marco
Mueller, Axel Möbius, Christoph Thoke, Pantham Thongsangl Direção de fotografia: Jarin Pengpanitch, Vichit Tanapanitch, Jean-Louis Vialard
Montagem: Lee Chatametikool, Jacopo Quadri
Equipe de som: Lee Chatametikool, Thitipant Chongcharoen-choke-skul, Sirapob Tungkasaeranee, Narathip Tungkaseranee, Jasmin Vorabutr
Figurino: Pilaitip Jamniam Efeitos visuais: Manfred Büttner, Markus Degen, Florian
Gellinger, Caterina Schiffers
Festivais: Festival de Cannes (2004), Festival de Melbourne (2004), Festival de Toronto (2004), Festival de Nova
York (2004), Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
(2004) etc.
Prêmios: Grande Prêmio de Júri no Festival de Cannes
2004.
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O DIA DA CAÇA
Rodrigo de Oliveira
“Para mim, a palavra queer significa que tudo é possível”, respondia Apichatpong Weerasethakul, em entrevista à revista tailandesa Encounter, em 2003,
quando questionado sobre sua identificação com o queer cinema. Identificação
“casual”, mas bem informada. Weerasethakul chega aos Estados Unidos para estudar cinema em 1994, auge da onda, momento da confirmação dos cineastas e
dos temas apresentados em Sundance dois anos antes, o que significava também
o momento sempre terrível para qualquer movimento contracultural: a hora da
assimilação e da transformação em cânone. Se, anos depois, os filmes concebidos
por Weerasethakul parecerão tão “exóticos” e ainda assim tão misteriosamente
envolventes, é porque partiam de uma consciência profunda das normas do dito
“cinema de arte” que os precediam e só assim podiam navegar por águas tão distantes dessa norma sem nunca soarem a-históricos. Mais que isso, partiam de um
cineasta a cuja identidade sexual clara se juntavam outras, definidoras. Depois
dos anos do “cinema do corpo” (o corpo perecível, sobretudo), quase materialista
em sua fé desesperada nas coisas físicas e no desejo de retomada política do real
negado à população homossexual, o queer só poderia mesmo ser transtornado e
virado ao avesso diante de alguém que filmasse e acreditasse no espírito.
“Tudo é possível” é o oposto da afirmação da identidade homossexual como expressa no New Queer Cinema, que parecia dizer que “agora é possível ser exatamente quem se é”. A identidade é o orgulho da diferença, e ao cinema de Weerasethakul parece interessar mais a beleza da indistinção. Mal dos Trópicos (Sud pralad,
2004) carrega, em sua primeira metade, um traço típico do NQC: a cooptação de
um gênero cinematográfico tradicional para dentro do qual se contrabandeia
uma história gay. É o boy meets boy das comédias românticas, com uma diferença
– como eram Veneno (Poison, 1991, Todd Haynes) e o cinema de horror, Garotos
de Programa (My Own Private Idaho, 1991, Gus Van Sant) e o road-movie, Eduardo
II (Edward II, 1991, Derek Jarman) e o drama de época. Os amantes Tong e Keng
não só passam por todos os estágios da representação tradicional do romance,
como o fazem de maneira prazerosamente conservadora: a mão sobre a perna
na sessão de cinema, o bilhetinho amoroso deixado no bolso da calça, deitar a
cabeça no colo ao pôr-do-sol, cantar uma música no karaokê olhando nos olhos
da figura amada. É aquela mesma retomada política do real: “agora é possível”
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experimentar o amor gay dentro dos códigos da heteronormatividade, a céu
aberto.
A essa altura, Weerasethakul já tinha lidado frontalmente com outros
temas caros ao NQC, à sua moda: a autópsia coletiva do corpo de um menino
como reposicionamento político diante da história repressiva de um país, em Objeto Misterioso ao Meio-Dia (Dokfa mai Meuman, 2000); outro corpo masculino,
extremamente sexual e, por isso mesmo, coberto por chagas inexplicáveis, que
se descamam feito as chagas da Aids, como em Eternamente Sua (Sud Sanaeha,
2002); o delírio camp do travestismo como unidade de poder ideal, o melhor do
masculino e o melhor do feminino, como em As Aventuras de Iron Pussy (Hua jai
tor ra nong, 2003). Todos eles já carregavam este traço da diferença, mas Mal dos
Trópicos é o filme que a escancara e o que aposta mais fundo no abandono da
identidade.
“Sud Pralad”, o título original em tailandês, significa literalmente monstro:
implica a imagem de uma besta que é produzida pela união de dois animais de
espécies diferentes. As platitudes da homossexualidade como a atração de iguais,
incesto de segunda ordem, um caso ligeiro de síndrome de Narciso não se aplicam aí. O espelhamento é de outra ordem; e, quando Mal dos Trópicos é reiniciado
em sua metade – créditos e tudo o mais –, reencontrar os amantes Tong e Keng
em novos papéis significa reconhecer não só a fluidez de seus papéis românticos
(Keng, o caçador mais velho e voraz da primeira parte, passa a ser alvo da caça de
Tong na parte final), mas o transtorno da própria ideia do ser.
Na reencarnação, a identidade (individual e de grupo) é um detalhe menor. Ter vidas múltiplas é, de fato, ser tudo o que for possível, às vezes ao mesmo
tempo – ou na duração de um mesmo filme. Keng é um soldado no interior, figura
máxima da autoridade e da violência; no entanto, é a figura mais desbragadamente apaziguadora (“os soldados têm o coração solitário e nunca morrem de
morte natural”, a não ser quando se apaixonam). Tong trabalha numa fábrica de
gelo, mas veste uma farda de soldado para viver uma outra vida mais impressionante, e no namoro é quem tem o poder – o oprimido potencial se veste de
opressor potencial, mas só porque junto da fita cassete do The Clash, Keng esqueceu de dar a Tong seu coração. A segunda parte de Mal dos Trópicos explode as
inversões e cruzamentos identitários: o jovem analfabeto vira tigre, vira fantasma,
impressiona não ao se vestir, mas ao se despir; o velho soldado vira presa (“e companheiro”), retoma o mote das chagas no corpo, tendo seu sangue literalmente
sugado por insetos ao longo de todo o percurso na selva, eventualmente até se
duplica, completa a transformação, atinge a dualidade máxima, atira em si mesmo, persegue-se.
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O que permite esse escambo todo? Justamente um senso de unidade, de
pertencimento a um todo que o New Queer Cinema, na sua raiz, sequer vislumbrava. Contra a noção das comunidades fechadas, dos pequenos grupos radicais
que se reúnem para implodir o establishment ou, no mais das vezes, apenas para
reconhecer pares, olhar nos olhos dos iguais enquanto lá fora pesa o caráter de
minoria, estes dois homens gays, apaixonados no limite do sublime/ridículo em
Mal dos Trópicos se atrevem a serem comuns, porque comungam de uma mesma
natureza, a própria Natureza em maiúsculo. Trata-se de uma guinada ilusória, e
Weerasethakul sabe bem disso: a discriminação na Tailândia é imensa, mesmo o
enorme contingente de travestis e pessoas transgêneras ainda ocupam posições
sociais subalternas e são consideradas cidadãs de segunda classe, os guetos gays
prevalecem, homofobia como conhecemos bem do lado de cá do mundo. Mas
a utopia de Mal dos Trópicos vai além da simples ficcionalização política de um
ambiente interiorano que abraça o amor destes homens como natural.
Está tudo lá no plano mais memorável do filme, talvez a imagem mais
forte que o cinema contemporâneo produziu nos últimos quinze anos: o confronto cara-a-cara entre algoz e vítima, entre presa e companheiro, entre amantes de
espécies diferentes que formam juntos o mesmo monstro – Keng, ajoelhado na
selva escura, diante de Tong, em sua forma de tigre selvagem, equilibrando-se sobre o galho de uma árvore. É a imagem-síntese, a que equilibra as duas naturezas,
a que informa a constituição desse universo místico, mas tomado pela câmera
de Weerasethakul como a própria manifestação “realista” dessa unidade cósmica
que aproxima bichos e homens, vacas, vagalumes, insetos e amantes, diferentes
e iguais, sempre.
Mas a essa imagem sucede uma outra, idêntica, e que Mal dos Trópicos
nos convence ser a imagem originária: uma pintura tradicional, ícone religioso de
um povo, de uma cultura, milenar em sua construção. Estão lá o tigre e o soldado,
pintados na mesma posição, no mesmo quadro: a lenda do Xamã que se transformava em várias criaturas e de sua vítima final, de joelhos, suplicando ao monstro,
“eu te dou meu espírito, minha carne e minhas memórias” – há definição mais
exata do amor? O que une estes homens é o que constitui a própria fundação
da humanidade. Está aqui desde que o mundo é mundo, desde que o homem
começou a contar suas histórias em papel, pedra, tinta e celuloide. O amor entre
esses homens faz parte de todos nós, é matéria da nossa unidade, é manifestação
do mesmo espírito. “We’re here, we’re queer!”, é claro que terão que se acostumar
conosco. Mas que bonito saber, através de Mal dos Trópicos, que sempre estivemos aqui, desde o começo do tudo, como nós mesmos e como quem diabos mais
quisermos e que – como é próprio das pinturas rupestres – temos milênios pela
frente. Bicha é História.
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BIOGRAFIAS
ALEQUES EITERER
Graduado em Cinema pela Universidade Federal Fluminense. Como cineasta, realizou O Livro (1999), O Vestido Dourado (2000). Verdade ou Conseqüência (2002),
Ausência (2004), A Demolição (2007), Abismo (2011), Araca – O Samba em Pessoa
(2014) e Um Pouco a Mais (2015). Produziu diversas mostras de filmes. Organiza o Cineclube LGBT e é também coordenador do Festival Brasileiro de Cinema
Universitário (FBCU) e do Primeiro Plano - Festival de Cinema de Juiz de Fora e
Mercocidades.
CHICO LACERDA
É professor do Departamento de Comunicação da UFPE, onde ministra as disciplinas de edição audiovisual e cinema queer. Doutor em Comunicação, discutiu em
sua tese questões em torno do chamado cinema gay brasileiro. Fez filmes com o
coletivo Sunab Filmes (sunabfilmes.wordpress.com) e agora faz com o coletivo
Surto & Deslumbramento (deslumbramento.com).
DENILSON LOPES
É professor associado da Escola de Comunicação da UFRJ, pesquisador do CNPq e
autor de No Coração do Mundo: Paisagens Transculturais (Rocco, 2012), A delicadeza: estética, experiência e paisagens (EdUnB, 2007), O homem que amava rapazes e
outros ensaios (Aeroplano, 2002) e Nós os mortos: melancolia e neo-barroco (Sette
Letras, 1999), coorganizador de Silviano Santiago y los Estudios Latinoamericanos
(Iberoamericana, 2015), de Cinema, globalização e interculturalidade (Argos, 2010)
e organizador de Cinema dos Anos 90 (Argos, 2005). Acaba de concluir livro com
título provisório de Caminhando nas Folhas Secas: Encontros com Filmes Brasileiros
Contemporâneos.
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ÉRICA SARMET
É roteirista e pesquisadora em comunicação e cultura, com ênfase em questões
relacionadas a gênero e sexualidade no audiovisual. Mestre em Comunicação
pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal
Fluminense, integra desde 2009 o NEX – Núcleo de Estudos do Excesso nas
Narrativas Visuais, grupo de pesquisa vinculado ao PPGCOM/UFF. É também
fundadora do cineclube Quase Catálogo, dedicado a filmes dirigidos por mulheres.
JOÃO MARCOS DE ALMEIDA Formado em Rádio e Televisão em São Paulo, pela Faculdade Cásper Líbero,
João Marcos de Almeida é diretor, roteirista, montador, designer e arquivista. É
membro do Filmes do Caixote, um grupo de jovens diretores, responsáveis por
trabalhos como Trabalhar Cansa (2011), O que se move (2013) e Sinfonia da Necrópole (2014). Como diretor, é responsável pelos curtas A Bela P... (2008), Eva Nil
cem anos sem filmes (2009) e Meu amigo que trabalhou com Manoel de Oliveira,
que fez cem anos (2012), entre outros. Como designer, fez o cartaz de dezenas
de filmes brasileiros. É colaborador da Cinemateca Brasileira, no Setor de
Documentação e Pesquisa.
LUCAS MURARI Pesquisador, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e
Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Comunicação pela
mesma instituição. Atua como programador e curador de cinema.
LUIZ CARLOS OLIVEIRA JR. É doutor em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA-USP. Autor do livro A mise
en scène no cinema: Do clássico ao cinema de fluxo (Papirus, 2013). Ex-editor da revista eletrônica Contracampo. Já colaborou para as revistas Bravo! e Cult e para o
Guia Folha – Livros, Discos e Filmes. Ministrou cursos e oficinas em espaços como
Centro Cultural Banco do Brasil, Centro Cultural São Paulo, CineSESC, Cine Humberto Mauro e Fundação Getulio Vargas.
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MARÍLIA LIMA
RODRIGO DE OLIVEIRA
É mestre em Comunicação pela UFJF. Dirigiu o curta Minas Hotel (2015) e co-dirigiu o curta Quase que só há estrelas, 2012. Foi curadora da Mostra François Ozon
(2016, Caixa Belas Artes de São Paulo). É coordenadora de comunicação e curadora do Primeiro Plano – Festival de Cinema de Juiz de Fora e Mercocidades.
É crítico e cineasta. Organizador do livro Diário de Sinta – Reflexões sobre o filme de Paula
Gaitán (ed. Confraria do Vento/2011), roteirista do longa-metragem Exilados do Vulcão e
roteirista e diretor do curta Eclipse Solar e dos longas As Horas Vulgares e Teobaldo Morto,
Romeu Exilado.
MATEUS NAGIME
Graduado em cinema e vídeo pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e mestre em Imagem e Som pela UFSCar Pesquisador, Preservador Audiovisual e às
vezes professor. Curador de mostras cinematográficas como New Queer Cinema
(2015) e Cinema Mexicano Contemporâneo (2016). Membro da Diretoria da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual, como tesoureiro (2013-14), secretário-geral (2014-16) e atualmente como diretor técnico. Trabalhou nos setores
de revisão e catalogação do arquivo audiovisual do Centro Técnico Audiovisual
(CTAv) entre 2009 e 2013 e no centro de pesquisa e documentação da Cinemateca do Museu de Arte Moderna entre 2012 e 2014, onde organizou o Home Movie
Day - Rio de Janeiro em 2013. Membro do comitê editorial da Imagofagia.
PABLO GONÇALO
Professor adjunto do curso de cinema e audiovisual da UNILA, Universidade da
Integração Latino-Americana. É doutor em comunicação pela UFRJ, foi bolsista
do DAAD com doutorado-sanduíche pela Universidade Livre de Berlim e realizou
mestrado em comunicação pela UnB. Sua pesquisa foca nas trajetórias históricas
de roteiristas e como eles estabelecem diálogos intermediáticos entre o teatro,
as artes visuais, a literatura e o cinema. É autor do livro O cinema como refúgio
da escrita: roteiros e paisagens em Peter Handke e Wim Wenders, Annablume, 2016.
PEDRO MACIEL GUIMARÃES Professor do Departamento de Cinema (Instituto de Artes/Unicamp) e do Programa de Pós-Graduação em Multimeios da mesma universidade. Mestre e doutor
em Cinema e Audiovisual pela Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3. Desenvolve pesquisas sobre história e estética do cinema clássico e cinema moderno, atores de cinema, gêneros cinematográficos (melodrama, musical, noir) e as
transferências culturais entre Europa e Hollywood.
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SERGIO SILVA
É roteirista, diretor e programador. Dirigiu vários curtas e médias-metragens. Fez
a pesquisa do acervo de Rogério Sganzerla para o longa Mr. Sganzerla - Os Signos
da Luz (2011, Joel Pizzini) e assistência de produção executiva em Luz nas trevas
– a volta do Bandido da luz Vermelha (2010, Helena Ignez, Ícaro C. Martins). Programador da Cinemateca Brasileira, onde realizou inúmeras retrospectivas desde
2012. É integrante do coletivo Filmes do Caixote realizando várias funções em
filmes do grupo.
THAYS PRADO
É jornalista, roteirista e mestre em Gênero, Mídia e Cultura, pela London School
of Economics and Political Science, onde se dedicou a estudar representações de
gênero e sexualidade no cinema. Está particularmente interessada em investigar
a representação da adolescência como potencial para a desconstrução de estereótipos machistas e LGBTQI-fóbicos. Feminista, trabalha atualmente como coordenadora de programas na ONU Mulheres Brasil.
WILL DOMINGOS
É realizador, montador e fotógrafo. Mestre em Estudos do Cinema e Audiovisual
pela UFF, onde estudou as formas de encenação do cotidiano e da intimidade
nas vivências homoafetivas no cinema contemporâneo. É também integrante do
coletivo OSSO OSSO (ossoosso.tumblr.com) e da produtora independente Farpa
Filmes. 115
CRÉDITOS
Realização
Luzes da Cidade – Grupo de Cinéfilos e
Produtores Culturais
Insensatez Audiovisual
Curadoria
Denilson Lopes
Mateus Nagime
Coordenação de Produção
Aleques Eiterer
Marília Lima
Pedro Nogueira
Produção de Cópias
Raquel Rocha
Produção Local
Daniela Marinho e Rafaella Rezende
Galvão - Brasília
Cesar Teixeira - Fortaleza
Editoração do Catálogo
Mateus Nagime
Lucas Murari
Textos
Aleques Eiterer
Chico Lacerda
Denilson Lopes
Érica Sarmet
João Marcos Almeida
Luiz Carlos Oliveira Jr
Marília Lima
Mateus Nagime
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Pablo Gonçalo
Pedro Maciel Guimarães
Rodrigo de Oliveira
Sérgio Silva
Thays Prado
Will Domingos
Revisão dos Textos
Fabricio Felice
Marcelo Silveira
Larissa Helena
Tradução e Legendagem dos Filmes
Felipe Gonçalves
Mesa de Debates
Ailton Monteiro
Aleques Eiterer
Denilson Lopes
Fernando Pocahy
Henrique Codato Ilda Santiago
Luiz Carlos Oliveira Júnior
Mariana Baltar
Mateus Nagime
Ruy Gardnier
Tania Montoro
Projeto Gráfico, Web Designer e Vinheta
Inhamis Studio
Assessoria de Imprensa
Marina Fernandes – Brasília
Eduardo Vanini – Rio de Janeiro
Sarah Coelho - Fortaleza
Redes Sociais e Assistência de Produção
Fausto Junior
Registro Fotográfico e Videográfico
Marília Lima
Pedro Nogueira
Louise Ralola
Fotografias
Divulgação
O Luzes da Cidade é composto por:
Aleques Eiterer
Fausto Junior
Marília Lima
Nilson Alvarenga
Pedro Nogueira
Tamires Fortuna
AGRADECIMENTOS
Amanda de Andrade, Amélie Rayroles,
Bruce LaBruce, Cleo Chang, Dulce Maria
de Carvalho, Giulia Côrtes de Carvalho,
Janaina Bernardes (Studio Karim Aïnouz),
Jürgen Brüning, Karen Lima, Luiza Paiva,
Max Färberböck, Patricia Barbieri, Rumeysa
Boz, Sompot Chidgasornpongse (Boat),
Ulrike Weis e Vanda Eiterer.
e os/as cineastas com filmes presentes na
mostra e todas outras pessoas que nos
ajudaram neste projeto
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