Corpos em concerto - Universidade Federal de Pernambuco

Transcripción

Corpos em concerto - Universidade Federal de Pernambuco
Corpos em Concerto:
diferenças, desigualdades e desconformidades
Cuerpos en Concierto:
diferencias, desigualdades y disconformidades
Corpos em Concerto:
diferenças, desigualdades e desconformidades
Cuerpos en Concierto:
diferencias, desigualdades y disconformidades
Jonatas Ferreira
Adrián Scribano
Editores/Compiladores
2011
Editora
Universitária
UFPE
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos e videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total
ou parcial em qualquer sistema de processamento de dados e a inclusão de qualquer parte da obra em qualquer programa juscibernético.
Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração.
Capa: Romina Baldo
Diagramação: Elvira de Paula
Revisão: Autores
Catalogação na fonte: Bibliotecária Joselly de Barros Gonçalves, CRB4-1748
C822
Corpos em concerto : diferenças, desigualdades, desconformidades
= Cuerpos em concierto : diferencias, desigualdades y
disconformidades / organizadores, compiladores : Jonatas
Ferreira, Adrián Scribano. – Recife : Ed. Universitária da UFPE,
2011.
364 p.
Vários autores.
Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-7315-884-7 (broch.)
1. Sociologia. 2. Corpo humano – Aspectos sociais. 3. Diversidade
cultural. 4. Ciência política. 5. Igualdade. 6. Discriminação. I.
Ferreira, Jonatas (Org.). II. Scribano, Adrián (Org.).
301
CDD (22.ed.)
UFPE (BC2011-068)
Autores
Adrián Scribano é investigador independente do Consejo Nacional
de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET); coordenador
do Programa de Estudios de Acción Colectiva y Conflicto Social do
Centro de Estudios Avanzados, Unidad Ejecutora do CONICET na
Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Coordenador do Grupo
de Estudios Sociales sobre los Cuerpos y las Emociones, do Instituto de
Investigaciones Gino Germani da Universidad de Buenos Aires, Scribano
conta com ampla produção acadêmica nas áreas de sociologia do corpo e
das emoções. E-mail: [email protected].
Carolina Ferrante é formada em Sociologia pela Universidad
de Buenos Aires (UBA) e doutoranda em Ciencias Sociales na mesma
instituição. Bolsista do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas
y Técnicas (CONICET) no Instituto de Ciencias de la Rehabilitación y el
Movimiento (ICRM), na Universidad Nacional de San Martín (UNSAM),
ela investiga questões relacionadas ao corpo, deficiência física e práticas
esportivas. Dentre suas publicações podemos mencionar: Ferrante,
Carolina y Ferreira, Miguel Angel V. (2009), “El habitus de la discapacidad:
la experiencia corporal de la dominación en un contexto económico
periférico”. Política y Sociedad, Vol. 46, No. 3; Ferrante, Carolina y Miguel
Angel V. Ferreira (2008), “Cuerpo, discapacidad y trayectorias sociales: Dos
estudios de casos comparados”. Revista de Antropología Experimental, No.
8; Ferrante, Carolina (2008), “Corporalidad y temporalidad, fundamentos
fenomenológicos de la teoría practica de Pierre Bourdieu”. Nómadas: Revista
crítica de ciencias sociales y jurídicas, Vol. II, No. 20; Ferrante, Carolina (2008),
“Cuerpo, discapacidad y posición social: una aproximación indicativa al
habitus de la discapacidad en Argentina”. Intersticios: Revista sociológica de
pensamiento crítico, Vol. 2, No. 1. E-mail: [email protected].
Cynthia Lins Hamlin é professora do Departamento de Ciências
Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE.
Doutora em Pensamento Político e Social pela Universidade de Sussex,
Inglaterra, seus principais temas de pesquisa incluem Teoria Social,
Metodologia das Ciências Sociais e Epistemologia Feminista. Entre
suas principais publicações destacam-se: Hamlin, Cynthia (2002), Beyond
Relativism: Raymond Boudon, Cognitive Rationality and Critical Realism.
Londres e Nova York, Routledge; Hamlin, Cynthia e Brym, Robert (2006),
“The Return of the Native: A Cultural and Socio-Psychological Critique
of Durkheim’s Suicide based on the Guarani-Kaiowá of South-Western
Brazil”. Sociological Theory, Vol. 24, No. 1. Brym, Robert; Lie, John, Cynthia
Hamlin, Remo Mutzenberg, Eliane Veras Soares, Heraldo Souto Maior
(2006), Sociologia: Sua Bússola para um Novo Mundo. São Paulo, Cengage;
Hamlin, Cynthia (2008), “Ontologia e gênero: realismo crítico e o método
das explicações contrastivas”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 23.
E-mail: [email protected].
Erliane Miranda é doutoranda em Sociologia pela Universidade
Federal de Pernambuco, bolsista Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), membro do grupo Ciência, Tecnologia
e Sociedade e colaboradora do Comitê de Ética em Pesquisas com Seres
Humanos do Hospital Oswaldo Cruz. Atualmente pesquisa reflexividade
e consumo de psicofármacos. Entre suas publicações, mencionamos:
Miranda, Erliane e Marcelo Pelizzoli (2008), “Melhorado geneticamente,
patenteado e ameaçado: cuidado de si e dignidade humana em tempos
biotecnológicos”. Revista Veritas, Vol. 53; Erliane Miranda e Raphael
Douglas Tenório Filho (2007), “Da eugenia à algenia e o paradigma
bioético”. In Marcelo Pelizzoli (org.). Bioética como novo paradigma. Petrópolis,
Vozes. E-mail: [email protected].
Gabriela del Valle Vergara é licenciada em Sociologia pela
Universidad Nacional de Villa María, mestra em Ciencias Sociales pela
Universidad Nacional de Córdoba e doutoranda em Ciencias Sociales
pela Universidad de Buenos Aires. Bolsista do CONICET, ela investiga
temas relacionados a pobreza, trabalho, corpos e percepções. Entre suas
publicações, encontramos: Scribano, Adrián y Gabriela Vergara (2009),
“Feos, sucios y malos: la regulación de los cuerpos y las emociones en
Norbert Elías”. Revista Caderno CRH, Vol. 22, No. 56; Vergara, Gabriela
(2009), “Conflicto y emociones. Un retrato de la vergüenza en Simmel,
Elías y Giddens como excusa para interpretar prácticas en contextos de
expulsión”. In Figari, C. y A. Scribano (comps.), Cuerpo(s), Subjetividad(es) y
Conflicto(s). Hacia una sociología de los cuerpos y las emociones desde Latinoamérica.
Buenos Aires, Centro de Integracion, Comunicacion, Cultura y Sociedad/
Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CICCUS/CLACSO).
E-mail: [email protected].
Glauber Lemos é mestrando em Sociologia no Instituto Universitário
de Pesquisas do Rio de Janeiro, Brasil. Rua da Matriz, 82, Botafogo, 22.260100, Rio de Janeiro-RJ, Brasil. E-mail: [email protected].
Graciela Magallanes é mestra em Educación Superior pela
Universidad Nacional del Comahue, doutoranda em Ciências Sociais pela
Universidad de Buenos Aires e Professora Associada em Metodología de
la Investigación Social del Instituto Académico Pedagógico de Ciencias
Sociales, Universidad Nacional de Villa María. Entre suas publicações,
podemos citar: Graciela Magallane, C. Gandía, F. Llorente, A. Peano e R.
Cena (2010), El Humor en tiempos de crisis. Acerca de su placer, disfrute y goce.
Buenos Aires, Ediciones Ciccus; Magallanes, Graciela (2009), “Los placeres
y sus vicisitudes”. Intersticios: Revista sociológica de pensamiento crítico.
Vol. 3, No. 2; Magallanes, Graciela (2009), “Los surcos de las experiencias
placenteras en la vida escolarizada y no escolarizada”. In Adrián Scribano
y Carlos Figari (orgs.) Cuerpo(s), Subjetividad(es), Conflicto (s). Hacia una
sociología de los cuerpos y las emociones desde Latinoamérica. Buenos
Aires, CICCUS/CLACSO. E-mail: [email protected].
Jonatas Ferreira é professor adjunto do Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Inovação Terapêutica
da Universidade Federal de Pernambuco, bolsista do CNPq e coordenador
do grupo Ciência, Tecnologia e Sociedade. Doutor em Sociologia pela
Lancaster University, Inglaterra, foi durante oito anos editor da revista
Estudos de Sociologia. Seu campo de interesses acadêmicos compreende
o estudo das novas tecnologias da vida, a exemplo das técnicas de
recombinação genética, nanobiotecnologia, produção de fármacos, além
de temas relacionados à sociologia do corpo. Nesse campo amplo, tem
publicado no Brasil e no exterior. E-mail: [email protected].
Jorge Ventura de Morais é professor e pesquisador do Programa de
Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco.
PhD em Sociologia pela London School of Economics (Reino Unido),
investiga atualmente temas relacionados à sociologia do futebol. Entre suas
publicações recentes, encontram-se: Morais, Jorge V. e Túlio V. Barreto
(2008),“As Regras do Futebol e o Uso de Tecnologias de Monitoramento”.
Estudos de Sociologia, Vol. 14; Morais, Jorge V. e Túlio V. Barreto (2009), “La
Regla del Fuera de Juego y la Dinámica del Fútbol: un Análisis a Partir de
la Sociología Figuracional”. In Carina V. Kaplan & Victoria Orce (orgs.).
Poder, Prácticas Sociales y Proceso Civilizador: los Usos de Norbert Elias. Buenos
Aires, México (DF), Editora Noveduc. E-mail: venturademorais@gmail.
com.
Juan Pablo Aranguren Romero é formado em Psicologia pela
Universidad Nacional de Colombia, historiador pela Pontificia Universidad
Javeriana, mestre em Antropología Social y Política e doutorando em
Ciencias Sociales pela Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales,
Argentina. Bolsista do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y
Técnicas no Museo de Antropología da Universidad Nacional de Córdoba,
Argentina, e investigador do Consejo Latinoamericano de Ciencias
Sociales, Romero é autor de diversos artigos sobre corpo, subjetividade,
memória, guerra e sofrimento. E-mail: [email protected],
[email protected].
María Belén Espoz Dalmasso é licenciada em Comunicación Social
e doutoranda em Semiótica pelo Centro de Estúdios Avanzados-Unidad
Acadêmica (CEA-UA) da Universidad Nacional de Córdoba (UNC).
Bolsista de pós-graduação do CONICET, integrante do Programa
de Estúdios de Acción Colectiva y Conflicto Social do CEA- Unidad
Ejecutora do CONICET (CEA-UE) e Profesora Ayudante da cátedra de
Antropología Sociocultural da Escuela de Ciências de la Información da
UNC. Entre suas publicações recentes, encontram-se: Espoz, María Belén,
Cecilia Michelazzo y Patricia Sorribas (2010), “Narrativas en conflicto
sobre una ciudad socio-segregada. Una descripción de las mediaciones
que las visibilizan”. In Adrián Scribano e Eugenia Boito (orgs.) El purgatorio
que no fue. Acciones profanas entre la esperanza y la soportabilidad. Buenos Aires,
CICCUS/CLACSO; Espoz, M. (2010), “Crear umbrales para explotar los
límites de las ‘ciudades-barrio’: sensaciones y vivencias de jóvenes que
habitan “Ciudad de mis Sueños””. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção
(RBSE), Vol. 9, No. 26; Espoz, M. (2009), “La Ciudad y las ciudadesbarrio: tensión y conflicto a partir de una lectura de la producción
mediática de miedos en el marco de espacios urbanos socio-segregados”.
Revista RELACES, No. 1. E-mail: [email protected]
Maria Ester Lima Oliveira é doutoranda em Sociologia pelo
Programa de Pós- Graduação em Sociologia da Universidade Federal de
Pernambuco e mestra em Sociologia pelo mesmo Programa. Bolsista do
Conselho de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),
pesquisa atualmente cultura corporal em homens de diferentes perfis
socioeconômicos na cidade do Recife. E-mail: [email protected].
María Eugenia Boito é doutora em Ciencias Sociales, pela Universidad
de Buenos Aires. Pesquisadora Assistente do CONICET, co-coordenadora
do Programa de Acción Colectiva y Conflicto Social, Professora Adjunta
encarregada do Seminario de Cultura Popular y Cultura Masiva na Escuela
de Ciencias de la Información e Professora Adjunta en Comunicación
y Trabajo Social na Escuela de Trabajo Social, Universidad Nacional de
Córdoba. Entre suas últimas publicações, destacamos: Adrián Scribano
y María Eugenia Boito (orgs.) (2010), El purgatorio que no fue. Acciones
profanas entre la esperanza y la soportabilidad. Buenos Aires, Ciccus;
Adrián Scribano e María Eugenia Boito (2010), “La ciudad sitiada: una
reflexión sobre imágenes que expresan el carácter neocolonial de la
ciudad”. Revista Actuel Marx Intervenciones, No. 9. E-mail: meboito@yahoo.
com.ar.
Micheline Dayse Gomes Batista é formada em Jornalismo pela
Universidade Católica de Pernambuco e mestra em Sociologia pelo
Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de
Pernambuco. Como jornalista, integra a equipe do Caderno Economia
do Diário de Pernambuco, dedicando-se a temas relacionados às novas
tecnologias de informação e comunicação. E-mail: micheline.batista@
gmail.com.
Mauro Guilherme Pinheiro Koury é doutor em Sociologia e professor
do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba,
onde coordena os grupos de pesquisa GREM – Grupo de Pesquisa em
Antropologia e Sociologia das Emoções – e GREI – Grupo Interdisciplinar
de Estudos em Imagem. E-Mail: [email protected].
Roberta de Sousa Melo é doutoranda em Sociologia no Programa de
Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco.
E-mail: [email protected].
Túlio Velho Barreto é pesquisador da Diretoria de Pesquisas Sociais da
Fundação Joaquim Nabuco, Brasil, onde se dedica a temas relacionados ao
futebol e ao uso de tecnologias de monitoramento. Suas publicações mais
recentes são: Morais, Jorge V. e Túlio V. Barreto (2011), “The Flexibility
of Football Rules and the Dynamics of the Game: a Figurational Analysis
of the Offside Law”. Soccer & Society, Vol. 11, No. 1 (no prelo); Morais,
Jorge V., Túlio V. Barreto e Simone Magalhães de Brito (2011),“Regras do
Jogo vs. Regras Morais: Para uma Teoria Sociológica do Fair Play”. Revista
Brasileira de Ciências Sociais (no Prelo). E-mail: [email protected].
Victoria D’hers é licenciada em Sociologia pela Facultad de Ciencias
Sociales da Universidad de Buenos Aires (UBA) e bolsista de doutorado
do CONICET no Instituto de Investigaciones Gino Germani, Facultad
de Ciencias Sociales, UBA. Seus interesses acadêmicos estão voltados
para os estudos sociais dos corpos e das emoções, e para a sociologia
ambiental. Entre suas publicações, destacam-se: D’hers, Victoria (2009),
“En cuerpo (y) alma.” Revista Intersticios, Vol. 3, No. 2; “Reflexión en torno
a la relación enfermedad-contaminación. Hacia la emocionalidad.” Boletín
Onteaiken, No. 8; “Exclusión. Discurso del cuerpo/en el cuerpo/sobre el
cuerpo… ¿A pesar del cuerpo?” In Julio Mejía Navarrete (org.) Sociedad,
Cultura y Cambio en América Latina. Universidad Ricardo Palma, Perú.
E-mail: [email protected].
Sumário
INTRODUÇÃO ........................................................................................................
UN ANÁLISIS SOCIOLÓGICO DE PRÁCTICAS
DISCRIMINATORIAS HACIA LAS PERSONAS CON
DISCAPACIDAD A PARTIR DE LAS CATEGORÍAS DE LO
NORMAL Y LO PATOLÓGICO ....................................................................
Carolina Ferrante
REGRAS E CÓDIGOS DE CONDUTA MORAL E ÉTICA:
um passeio pelo imaginário urbano e pelas vivências, reflexões e
comparações sobre a noção de sujo de homens comuns de
classe média no Brasil Urbano do século XXI ..................................
Mauro Guilherme Pinheiro Koury
NOTAS ACERCA DO ESTATUTO DA PELE CORROMPIDA.
Roberta de Sousa Melo
NEGRO DE MIERDA, GEOMETRÍAS CORPORALES Y
SITUACIÓN COLONIAL ..................................................................................
Adrián Scribano e María Belén Espoz
13
25
51
81
97
EL CUERPO SUFRIENTE DEL MERCADO: “Sweat the Fat” .... 127
Juan Pablo Aranguren Romero
ASCETISMO E CULTURA CORPORAL .................................................
Maria Ester Lima Oliveira
139
LAS REPRESENTACIONES ACERCA DEL CUERPO .................
Graciela Magallanes
155
O SECOND LIFE E A VIVÊNCIA DO “SEGUNDO CORPO”
Micheline Dayse Gomes Batista
TREINAMENTO DE TÁTICAS COLETIVAS E
DISCIPLINAMENTO DOS CORPOS NAS CATEGORIAS DE
BASE DO FUTEBOL: uma Análise das Práticas Sociais de
Aquisição de Técnicas Futebolísticas ...............................................................
Jorge Ventura, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos
179
201
CONSUMO DE PSICOFÁRMACOS: entre o cuidado consigo e a
sintetização da catarse ..............................................................................................
Jonatas Ferreira e Erliane Miranda
227
BASURALES Y DISCRIMINACIÓN.
Cuerpos y Justicia Ambiental...................................................................
Victoria D’hers
249
TRAMAS CORPORALES, PERCEPCIONES Y EMOCIONES
EN LAS MUJERES RECUPERADORAS DE RESIDUOS DE
CÓRDOBA (Argentina) . .......................................................................................
Gabriela del Valle Vergara
273
CORPOS-TEXTO: a Colonização do Sexo pelo Gênero na obra
de Judith Butler ........................................................................................................... 319
Cynthia Lins Hamlin
LA TAUTOLOGÍA DEL SOLIDARISMO EN EL
BICENTENARIO: “Argentina abraza a Argentina” ...............................
María Eugenia Boito
333
Corpos em Concerto: diferenças, desigualdades e desconformidades
Introdução
O tema do corpo está inextricavelmente ligado à história do
pensamento ocidental. E, no entanto, essa ligação opera-se como algo
que permanece impensado, algo sempre pressuposto e nunca trazido
resolutamente à luz como questão prioritária. Assim como ocorre com o
animal - que na história da metafísica é sempre o impensável a partir do
qual uma essência humana se destaca, ganha sentido e contorno -, o corpo
surge no ocidente como metáfora da organização política, estética, de
coerência interna de um sistema de argumentação etc., porém ele nunca é
explicitamente visado. Ao falar da especificidade do ser humano como ser
da fala, como ser político que decide entre o justo e o injusto, por exemplo,
Aristóteles o diferenciará do animal, da condição eminentemente corpórea
deste. Neste conhecido momento da Política, uma imagem fundamental da
ordem política lhe ocorre: “Ademais, a cidade é, por natureza, anterior
à família e a cada um de nós tomados individualmente. É, com efeito,
necessário que o todo seja anterior à parte; pois, uma vez destruído o
corpo inteiro não haveria mão nem pé, a não ser por homonimia”
(ARISTÓTELES, 1253a-1253b). Algo curioso acontece no recurso a
esse tipo de tropo, todavia. Ora, o emprego da metáfora resulta em um
deslocamento do sentido daquilo que, em princípio, deveria elucidar,
prometendo acesso a um significado que, afinal, permanece suspenso,
uma promessa.
Os exemplos do corpo como metáfora da ordem poderiam se
multiplicar. A cultura que corresponde ao ocaso da Idade Média, para
a qual ainda há um lugar próprio para cada coisa e criatura, concebe o
mundo também a partir dessa imagem. “A terra é como um corpo cuja
parte mais nobre é o rosto. [...] É evidente que só podemos habitar a parte
superior do universo, ‘a dianteira da terra’, ou seja, a parte que está voltada
para a ‘dianteira do céu’. [...] O hemisfério de baixo estaria, de algum modo,
‘estragado’, corrompido, pois foi nele que Satã se enfiou como ponto final
da queda” (KAPPLER, 1994, p. 32). Ai de nós, criaturas do sul!
13
A ideia de um corpo político e social é ainda a base da concepção
hobbesiana de governabilidade. Nas primeiras linhas do famoso livro,
Hobbes nos propõe: “Pois por arte é criado aquele grande Leviatã chamado
bem comum, ou o Estado (em latim, Civitas), que é apenas um homem artificial,
apesar da estatura e força maiores que o natural, para cuja defesa e proteção
ele foi concebido; e no qual a soberania é a alma artificial, como que dando
vida e movimento a todo o corpo; os magistrados e outros funcionários da
judicatura e execução, juntas artificiais; recompensa e punição [...] são os
nervos [...]”1. O modelo de coesão social e política proposto por Hobbes,
a capacidade de produzir unidade a partir da diferenciação orgânica, é, por
seu turno, frequentemente mobilizado pelo positivismo francês quando este
procura explicar fenômenos sociais. É evidente que poderíamos afirmar
que, de um modo ainda mais explícito, o corpo é preocupação central do
darwinismo social, da criminologia lombrosiana, de uma antropologia que
busca explicações para a cultura na ideia de raça. Nesse caso, porém, o campo
das ciências sociais reduz o corpo à sua condição de fenômeno biológico.
Seriam nossos corpos apenas um produto orgânico, natural, biológico?
Em contraposição a esse tipo de formulação, o corpo que surge
na obra de Gilberto Freyre, na década de 1930, é prenhe de significados
culturais, signo fundamental que teremos de descolonizar, que teremos
de livrar de certo determinismo biológico, para nos capacitarmos a
compreender a especificidade da civilização portuguesa nos trópicos.
É precisamente o biologismo, portanto, que Freyre (1999, p. xlvii) terá
de superar para compreender o lugar do corpo na economia e cultura
colonial, como o mostra a seguinte passagem de Casa Grande e Senzala:
“Vi uma vez, depois de mais de três anos maciços de ausência do Brasil,
um bando de marinheiros nacionais – mulatos e cafuzos – descendo não
lembro se do São Paulo ou do Minas pela neve mole do Brooklyn. Deramme a impressão de caricaturas de homens. E veio-me à lembrança a frase
de um livro de viajante americano que acabara de ler sobre o Brasil: “the
fearfully mongrel aspect of most of the population”2. A miscigenação
resultava naquilo. Faltou-me quem me dissesse então, como em 1929
Disponível em http://oregonstate.edu/instruct/phl302/texts/hobbes/leviathan-contents.html;
acessado em 30 de setembro de 2010.
2
Traduzimos livremente: “o aspecto medonhamente vira-lata da maioria da população”.
1
14
Roquette-Pinto aos arianistas do Congresso Brasileiro de Eugenia, que
não eram simplesmente mulatos ou cafuzos os indivíduos que eu julgava
representarem o Brasil, mas cafuzos e mulatos doentes”. O corpo como
chave de indagações sobre a sociedade é um tópos recorrente nas ciências
sociais (clássicas e contemporâneas), e na latinoamericana em particular.
O status helicoidal e mobesiano do corpo na constituição da
sociedade e da subjetividade não apenas teve impacto nas reestruturações
dos processos sociais como também nos modos de os conhecer. A
centralidade epistemológica da temática aludida pode ser observada em
três níveis: as implicações metodológicas, o impacto na redefinição das
relações entre conhecimento e “sujeito cognoscente” e a multiplicidade
dos estudos específicos que suscitou.
As formas sociais de dominação, a presença de regimes e políticas
corporais que acompanharam a hegemonia neoliberal, a presença cada
vez mais pronunciada da estetização da corporalidade (e da política) e as
múltiplas lutas por reconhecimento das diferenças e contra a discriminação
puseram os estudos sobre o corpo em primeiro plano das ciências sociais.
Neste contexto, a via privilegiada de conexão entre estruturação social
e ciências sociais configura o fato de entender que o corpo é o locus da
conflitividade e da ordem. É o lugar da conflitividade por onde passa boa parte
das lógicas dos antagonismos contemporâneos. É daqui que é possível
observar a constituição de uma economia política da moral, quer dizer, modos
de sensibilidades, práticas e representações que põem em questão a
dominação.
Se o corpo é político, isso se deve ao fato de que ele é objeto de
investimentos técnicos. Já em 1935, Marcel Mauss publica no Journal de
Psychologie (v.32) o ensaio “As técnicas do corpo”. Seu foco de interesse
seria a aquisição de um habitus corporal, técnico, e seu significado social.
“Assim, durante muitos anos tive a noção da natureza social do ‘habitus’.
Observem que digo em bom latim, compreendido em França, ‘habitus’.
[...] Ela não designa os hábitos metafísicos, a ‘memória’ misteriosa, tema
de volumosas ou curtas e famosas teses. Esses ‘hábitos’ variam não
simplesmente com os indivíduos e suas imitações, variam sobretudo com
as sociedades, as educações, as conveniências e as modas, os prestígios”
(MAUSS, 2003, p. 404).
15
De fato, muito deve a sociologia do corpo ao pensamento
francês. Consideremos, por exemplo, a fenomenologia que nos propõe
Merleau-Ponty, seu postulado epistemológico, ontológico, ético e político
de que não temos um corpo; de que somos um corpo. ‘Desabrochamos’
para o mundo de forma corpórea; e esse gesto nos determina a própria
possiblidade de perceber o mundo. Se seguirmos o raciocínio fundamental
da Fenomenologia da Percepção, descobriremos que esse nascer para o mundo,
esse mover-se em direção ao mundo, é também técnico. Desde que
nos habituemos a ele, que o integremos automaticamente aos nossos
movimentos, um chapéu, um carro, passam a fazer parte da unidade de
nosso corpo. A pergunta que a partir de Merleau-Ponty passamos a nos
fazer é: que tipo de abertura para o mundo nossos envolvimentos técnicos
nos possibilitam? Consideremos também as contribuições de Foucault e
Bourdieu, ambos interessados num corpo político, cada um a seu modo;
ambos contribuindo de forma substantiva para conferir relevância a esse
tema que ganha visibilidade bastante particular a partir da segunda metade
do século XX.
Em que contexto histórico, cultural, uma atenção particular, ou seja,
uma atenção de caráter sociológico, antropológico, político, com respeito
ao corpo pode ser entendido? Em Hominescências, Michel Serres nos fala
de uma revolução tecnológica, uma revolução na medicina, que nos faz
considerar nossos corpos como algo mais do que um constrangimento,
do que sofrimento, dores insuportáveis, algo mais do que aquele corpo
que a filosofia e a religião precisam negar precisamente por ser palco de
misérias e padecimentos atrozes. Ocorrem-nos os famosos versos de um
nonagenário Sófocles falando, pela boca do coro, acerca da condição de
Édipo, idoso e exilado em Colono – versos que ecoaram no pensamento
ocidental desde então. O pessimismo acerca da vida faz sentido quando
pensamos em seu corpo alquebrado pelos rigores da idade, em uma
sociedade sem certas comodidades da vida moderna.
Não haver nascido se avantaja
a qualquer outra consideração, e, de haver nascido,
voltar o quanto antes para lá precisamente de onde se veio
é quando muito o segundo melhor[...].
16
Uma cultura do corpo, por outro lado, pressupõe descobertas como
antibióticos, anti-inflamatórios, analgésicos, pílulas anticoncepcionais, que
tornem possível pensar e lutar pelo prazer em lugar de negá-lo junto a
todo padecimento físico. Esse contexto técnico deve ser associado às lutas
pela liberação dos corpos femininos, pela adoção de alternativas sexuais
diferentes daquelas ditadas pela heteronormatividade, pelo próprio direito
de redefinir e ressignificar esse corpo. No entanto, os corpos desidratados,
torturados, famintos, adoecidos, de vastas parcelas da população mundial
são produzidos e reproduzidos em meio a essas mesmas possibilidades.
Consideremos, por exemplo, o valor da produção global de medicamentos.
No ano de 1999, 15% da população mundial que vivia em países ricos
consumiam aproximadamente 90% dos medicamentos produzidos no
mundo (WHO, 2004). Essas informações nos remetem a uma situação
altamente desigual; elas nos indicam que os países pobres testam
medicamentos que os países ricos irão consumir.
Em todo caso, a separação entre desejo e reprodução que a pílula
anticoncepcional propiciou, ofereceu de fato momentum à luta feminista
pelo controle do desejo, pelo controle sobre os corpos. E se o feminismo
de primeira onda foca bem mais claramente questões relativas à igualdade
civil entre homens e mulheres, a própria luta feminista é também uma
oportunidade para que pensadoras como Elizabeth Grosz, Judith Butler,
Barbara Creed, Anne Fausto-Sterling, Donna Haraway, considerem
as diferenças que produzem corpos femininos. Bebendo de vertentes
filosóficas sensíveis à diferença e ao tema da politização dos corpos
nas sociedades industriais, como o pós-estruturalismo de Foucault,
por exemplo, essas feministas passam a contribuir decisivamente para
fortalecer o campo que constitui o tema de nosso livro. O corpo feminino
assume sua dimensão política, tornando problemático pensá-lo como
entidade natural, como substrato anterior à cultura, como algo que nos
ancoraria a um real elementar. Quais são as implicações de entendermos,
com Michel Foucault, o corpo como lugar em que a política se realiza em
última instância? Que ele possa significar a partir de discursos diferentes
em contextos culturais diferentes e que, portanto, a ideia de agonismo seja
fundamental em sua delimitação histórica.
17
Dizer, portanto, que o corpo é lugar da política significa dizer
que ele é espaço de embates, que a partir dele falaremos não apenas
de emancipação, mas também de opressão. Na contemporaneidade,
o corpo é aquilo sobre o qual o capitalismo investe estética, libidinal e
economicamente. Em sua edição de 8 de setembro de 2010, a revista
Carta Capital trazia matéria sobre modelos convertidas em out-doors, como
a paraguaia Larissa Riquelme que tatuou em seu corpo propaganda
de uma conhecida marca de desodorante. Perfurado, esquadrinhado,
medido, cortado, medicalizado, potencializado, para alguns teóricos, o
corpo será finalmente superado como objeto político. E, se para David
le Breton (2005), ou Habermas (2000), haveria o que lamentar no fato de
tratarmos a concretude biológica do nosso ser como coisa, como objeto,
como acessório, para os teóricos do trans-humanismo, a exemplo dos
extropianos, deveríamos trabalhar para dar um “adeus ao corpo” o mais
rapidamente possível. Sob a forma de delírio ou da pragmática lógica do
consumo, mesmo quando constatamos que ele vem se convertendo em
coisa manipulada pela técnica, em “vida nua” constante e plenamente
mobilizada pelos ditames biopolíticos do capitalismo, de sua promessa de
prazer perpétuo, o corpo torna-se tema privilegiado das ciências sociais.
Por isso, é necessário empreendermos esforço para compreender
os envolvimentos culturais, discursivos, dentro dos quais nossos corpos
do sul significam. Isto é o que propomos neste livro. E se acreditamos
que essa iniciativa é modesta diante das complexas e infinitas perspectivas
de entender a especificidade de nossa realidade, ela é também oportuna.
Pois é preciso que comecemos a analisar a forma como nossa condição
histórica, política, cultural, econômica, particular, nos é apresentada como
concretude corpórea; do mesmo modo, é necessário entender o que a
imanência desta concretude pode significar. Urge que pensemos, em todo
caso, o que chamaríamos aqui de “nosso” no contexto desse horizonte
fenomenológico mais íntimo e primordial.
O presente livro inscreve-se dentro de uma tendência política ampla
que aponta no sentido da integração econômica, cultural e científica SulSul. Mais especificamente, trata-se de um projeto de cooperação acadêmica
e editorial entre o Programa de Estúdios sobre Acción Colectiva y
Conflicto Social, Grupo de Estúdios Sociales sobre Cuerpos y Emociones
18
do Instituto de Investigaciones Gino Germani da Universidade de Buenos
Aires, e o Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade
Federal de Pernambuco, através do grupo de pesquisa Ciência, Tecnologia
e Sociedade. De um ponto de vista amplo, entendemos essa iniciativa
no contexto de um conjunto amplo de iniciativas de integração regional
entre as quais podemos listar a proposta de uma Universidade Federal de
Integração Latino-americana (UNILA) e, mais proximamente, a realização
do XVIII encontro da Associação Latino-americana de Sociologia, na
cidade do Recife, em 2011. Trata-se aqui, pois, de propor uma reflexão
ampla e variada no campo da sociologia do corpo que seja, de algum
modo, representativa de nossa diversidade cultural.
Assim, em “UN ANÁLISIS SOCIOLÓGICO DE
PRÁCTICAS DISCRIMINATORIAS HACIA LAS PERSONAS
CON DISCAPACIDAD A PARTIR DE LAS CATEGORÍAS DE LO
NORMAL Y LO PATOLÓGICO”, Carolina Ferrante trata do “asco e da
pena como emoções estruturantes da percepção social da descapacidade
nas sociedades contemporâneas. A partir das análises de Foucault e
Canguilhem em torno do normal e do patológico, iluminados à luz dos aportes
de uma sociologia dos corpos e emoções, intenta dotar de significação
tais fatos, reduzidos pelo chamado senso comum à falta de educação ou à
mera irracionalidade”. Seu objetivo último é refletir acerca da ‘incapacidade
física’ “como relação de dominação, propondo um enquadramento teórico
que amplie e complexifique as miradas tradicionais” sobre este assunto.
A partir de investigação empírica realizada em 2009 nas cidades de
João Pessoa, Recife, Belém, São Paulo, Curitiba e Brasília, Mauro Koury
busca compreender a ideia de sujeira corporal através do imaginário urbano
brasileiro. Em "REGRAS E CÓDIGOS DE CONDUTA MORAL E
ÉTICA: Um passeio pelo imaginário urbano e pelas vivências, reflexões
e comparações sobre a noção de sujo de homens comuns de classe
média no Brasil Urbano do século XXI", Koury propõe "analisar o país
em termos de sua cultura política e do seu sistema de classificação social,
dos medos e receios, do comportamento e dos costumes dos informantes".
O texto nos proporciona "um passeio pelas vivências, ansiedades, reflexões
e comparações emitidas e traçadas pelos entrevistados", traçando, enfim,
19
"um panorama sobre como pensa o habitante urbano das grandes cidades
e metrópoles brasileiras sobre o conceito de sujeira".
Em “NOTAS ACERCA DO ESTATUTO DA PELE
CORROMPIDA”, Roberta Melo se debruça sobre cirurgias cosméticas
mal sucedidas e se pergunta como esse malogro é simbolizado. Fantasmas
de descontrole, desordem e impureza, ostentando cicatrizes, hematomas,
necroses, esses corpos circulam como lugar da confusão entre morto
e vivo, artifício e natureza. Sua degenerescência remete a algo sobre o
qual se perdeu o controle, constituindo uma ameaça ao olhar civilizado,
precisamente na medida em que “representa a natureza deslocada e os
arranjos culturais desestabilizados pelo descontrole da organização
biológica do corpo”.
Em “NEGRO DE MIERDA, GEOMETRÍAS CORPORALES
Y SITUACIÓN COLONIAL”, Adrián Scribano e María Belén Espoz
refletem acerca das estruturas experienciais e políticas dos corpos que
permitem compreender o sentido da negritude nas sensibilidades sociais
argentinas. Neste sentido, interessa também “dar conta das características
do cenário geral (a cidade colonial) que o “negro de mierda” condensa, a
expropriação e despossessão material ancoradas em políticas corporais...”
e “da trama corporal de uma cidade colonial onde corpo-classe-espaço
estruturam-se mediante um cromatismo sociovivencial que regula as
geometrías corporais na situação colonial”.
Juan Pablo Aranguren Romero analisa as formas retóricas sob as quais
o corpo surge na publicidade contemporânea. Considerando criticamente
os modelos clássicos de beleza, os sofrimentos pressupostos em processos
de embelezamento por meio de cirurgias plásticas, seu ensaio constitui
uma reflexão sobre o modo como as campanhas publicitárias realizamse na contemporaneidade – “um giro teórico que incorpora um discurso
acerca do cuidado de si e uma política das emoções”. No artigo “EL
CUERPO SUFRIENTE DEL MERCADO: “Sweat the Fat””, ele
sustenta a necessidade de problematizar tanto este “giro teórico” como
uma guinada das ciências sociais em direção ao corpo.
Maria Ester Lima Oliveira propõe em “ASCETISMO E
CULTURA CORPORAL” analisar os aspectos ascéticos da cultura
corporal contemporânea. Levando em conta o contexto secular em que
20
tal ascese é realizado, a autora adota o conceito de bioascese proposto por
Francisco Ortega como forma de compreender a disciplina, a valorização
do sofrimento que se depreendem da cultura corporal produzida em
academias de ginástica do Recife. Este trabalho visa ainda a contribuir
para verificar a aplicabilidade do conceito de Ortega, procurando perceber
seus limites.
O ensaio “LAS REPRESENTACIONES ACERCA DEL
CUERPO”, de Graciela Magallanes, descreve as representações acerca
do corpo que são desenvolvidas por estudantes de ciências sociais. Sua
“estrutura argumentativa está organizada do seguinte modo: em primeiro
lugar, realiza-se uma análise teórica das representações sociais e suas zonas
problemáticas. Em seguida, analisam-se as representações dos regimes, da
sensualidade e do porte corporais, além da aparência física. Finalmente,
algumas conclusões são estabelecidas sobre a representação do corpo na
instituição universitária”.
Micheline Dayse Gomes Batista busca realizar uma reflexão sobre
as novas configurações que o corpo humano assume no ciberespaço e que
questões esse fenômeno traz para pensarmos as identidades dos sujeitos
no mundo contemporâneo. Em “O SECOND LIFE E A VIVÊNCIA
DO “SEGUNDO CORPO””, a autora verifica que o jogo oferece
a oportunidade de realizar a fantasia de plena customização de nossos
corpos, no ritmo e ao sabor dos nossos desejos; e que esses desejos podem
reproduzir padrões de beleza dominantes, mas que também podemos
questioná-los. Tendo como limite virtual a imaginação e a fantasia, a
sensação de controle absoluto proporcionada pela transformação corporal
vivenciada no Second Life, o rompimento dos limites do corpo biológico
mostra-se, no entanto, apenas ilusória.
Em “TREINAMENTO DE TÁTICAS COLETIVAS E
DISCIPLINAMENTO DOS CORPOS NAS CATEGORIAS DE
BASE DO FUTEBOL: uma Análise das Práticas Sociais de Aquisição de
Técnicas Futebolísticas”, Jorge Ventura, Túlio Velho Barreto e Glauber
Lemos desafiam a crença popular de que o jogador de futebol tem um
dom natural para este esporte. Em lugar dessa crença, os autores propõem
que esse tipo de capacidade “é resultado de práticas sociais que visam ao
disciplinamento e disposição dos corpos dos jovens atletas, aspirantes a
21
jogadores de futebol”. Para defender essa tese, estudam um repertório
variado “de técnicas e táticas utilizadas por treinadores de futebol para
conformar os corpos dos atletas aos ditames do jogo coletivo. Na base do
“jogo bonito”, […] do dom concedido por Deus, estão o treinamento e
disciplinamento de corpos através de práticas sociais coletivas amplamente
conhecidas e utilizadas por profissionais deste esporte”.
A partir de dados empíricos de uma pesquisa realizada entre os
anos 2008 e 2009 na Região Metropolitana do Recife, Jonatas Ferreira e
Erliane Miranda analisam a relação entre o consumo de psicofármacos
(antidepressivos e ansiolíticos, especificamente) e a reflexividade exercida
pelos sujeitos-consumidores destes tipos de medicamento. Indagando
acerca do lugar do sofrimento na contemporaneidade, e postulando o
que chamam de crise do pensamento trágico no ocidente, isto é, o fim
da ideia de aprendizado pela dor, de uma experiência transformadora da
própria finitude humana, a medicalização do sofrimento é apontada como
radicalização do niilismo no ocidente. De acordo com o argumento central
de “CONSUMO DE PSICOFÁRMACOS: entre o cuidado consigo e a
sintetização da catarse”, esse é, no limite, a essência cultural daquilo que se
poderia chamar, tomando de empréstimo o conceito de Giddens e Beck,
de reflexividade no consumo de medicamentos psicoativos.
Victoria D’hers nos traz uma reflexão acerca da gestão dos lixões a
céu aberto na cidade e na província de Buenos Aires. Em “BASURALES
Y DISCRIMINACIóN. Cuerpos y justicia ambiental”, ela revisa esta
problemática a partir da perspectiva dos estudos sociais dos corpos e
das emoções, afirmando a existência de espaços urbanos onde se realiza
uma violência dupla: que ali residam seres humanos confundidos com o
lixo, e que estes possam encarar tal experiência como “melhoras em suas
trajetórias de vida”. A análise de tal situação, considera a autora, “pode
dar pista para a compreensão dos fenômenos de racismo e discriminação
ambiental, assim como suas estreitas conexões com uma dinâmica na qual
a suportabilidade social é produzida”.
Em “TRAMAS CORPORALES, PERCEPCIONES Y
EMOCIONES EN LAS MUJERES RECUPERADORAS DE
RESIDUOS DE CÓRDOBA (Argentina)”, Gabriela del Valle Vergara
propõe analisar as experiências de mulheres catadoras de resíduos em
22
Córdoba e San Francisco a partir do enfoque da sociologia dos corpos e
das emoções. “Tomando como base um conjunto de entrevistas realizadas
durante o ano de 2008, postula a articulação das noções de tramas corporais,
percepções e emoções que mostram como vivem e sentem cotidianamente
a experiência deste tipo particular de trabalho extradoméstico. Para
tal, apresentam-se três sessões nas quais se desenvolvem os conceitos
principais e expressões das mulheres catadoras. Finalmente, afirma-se que
a articulação conceitual proposta constitui uma ferramenta válida para os
estudos das mulheres e do trabalho”.
Para Cynthia Lins Hamlin, a obra de Judith Butler representa o
ápice de um movimento a que poderíamos chamar de colonização do sexo
pelo gênero. Analisando criticamente a obra de Butler, Hamlin propõe
em “CORPOS-TEXTO: a Colonização do Sexo pelo Gênero na obra
de Judith Butler” que “ao enfatizar o caráter socialmente construído
não apenas do gênero, mas também do sexo, a natureza é totalmente
subsumida na cultura e os corpos são tratados como epifenômenos, como
meras superfícies textuais nas quais o discurso imprimiu sua marca”.
Com base em uma ontologia realista, a autora argumenta que “embora o
discurso tenha um impacto causal na constituição dos sujeitos, inclusive
em seus corpos, este impacto é tanto possibilitado quanto restringido por
uma dimensão material e, em larga medida, extradiscursiva. Ao minimizar
a importância dessa dimensão, um movimento reconstrutivo central às
nossas práticas culturais e políticas torna-se impossível, reduzindo seu
papel à critica dos significados socialmente instituídos”.
Finalizando este volume, com o artigo “LA TAUTOLOGÍA
DEL SOLIDARISMO EN EL BICENTENARIO: “Argentina abraza
a Argentina””, María Eugenia Boito “retoma reflexões prévias sobre
solidarismo e pretende debater sobre a “revolução solidária””. Sua estratégia
interpretativa inscreve-se fora do discurso da solidariedade, “instância
a partir da qual é possível questionar a doxa que remete à apoliticidade
da solidariedade, como fantasia social que gera práticas que se instituem
repudiando o antagonismo de classe constituinte da formação social
contemporânea”. “Para alcançar tal objetivo, em primeiro lugar, realizamse considerações teóricas sobre a operatória do solidarismo na regulação da
suportabilidade/desejabilidade social, retomando a perspectiva de S. Žižek
23
sobre a ideologia; em segundo lugar, aborda-se a convocatória Argentina
abraça Argentina dentro do marco da comemoração do Bicenteário, por
parte da Red Solidaria, Margarita Barrientos e do ator Ricardo Darín;
em terceiro lugar, como conclusão, retoma-se o percurso proposto, com
vistas a expor alguns traços da “religião do desamparo neo-colonial” nos
termos de A. Scribano, que expressa nas práticas do solidarismo analisadas
uma máscara humanitária, adoção do capitalismo como religião-profana
da qual ninguém renega ser praticante”.
Jonatas Ferreira e Adrián Scribano
Referências
ARISTÓTELES (1986). Obras. Madrid, Aguilar.
FREYRE, Gilberto (1999). Casa-Grande e Senzala. Rio de Janeiro e São
Paulo, Editora Record.
HABERMAS, Jürgen (2000). O Futuro da Natureza Humana. São Paulo,
Martins Fontes.
KAPPLER, Claude (1994). Monstros, demônios e encantamentos no fim da Idade
Média. São Paulo, Martins Fontes
LE BRETON, David (2005). Adeus ao Corpo. São Paulo, Papirus Editora.
MAUSS, Marcel. (2003). Sociologia e Antropologia. São Paulo, Cosac-Naify.
SERRES, Michel (2001). Hominescências. O começo de uma outra humanidade.
São Paulo, Bertrand - Brasil.
WORLD HEALTH ORGANIZATION (2004). The World Medicines
Situation. WHO.
24
Corpos en Concierto: diferencias, desigualdades y disconformidades
UN ANÁLISIS SOCIOLÓGICO DE PRÁCTICAS
DISCRIMINATORIAS HACIA LAS PERSONAS CON
DISCAPACIDAD A PARTIR DE LAS CATEGORÍAS DE
LO NORMAL Y LO PATOLÓGICO
Carolina Ferrante
Introducción
Es posible pensar a la discapacidad como una relación de
dominación, en la cual hay un opresor y un oprimido, conectados por una
relación de violencia simbólica (BOURDIEU, 1999) que permite justificar y
naturalizar dicha situación arbitraria (FERRANTE, FERREIRA, 2008).
En la vida cotidiana de las personas con discapacidad esto se traduce en
discriminación, opresión y exclusión (BARNES, 1998; FERREIRA, 2008,
2007; FILKEINSTEIN, 1980; OLIVER, 2008, 1998, 1990). Este trabajo
nace a partir de una doble inquietud: una teórica, surgida de la lectura del
texto de Patricio Pedraza (2009) en relación al asco y la discapacidad en la
cultura griega y, otra, empírica, nacida de una investigación en curso referida
al tema discapacidad y deporte3. En la misma busco analizar cómo influye
en la experiencia de la discapacidad motriz adquirida la práctica deportiva.
Para ello privilegio el uso de dos técnicas de recolección de investigación
cualitativas: entrevistas en profundidad y auto-etnografía4 (MONTEROLa misma se enmarca en las tareas de investigación referidas a mi tesis doctoral en curso en la
Facultad de Ciencias Sociales de la Universidad de Buenos Aires a través de una Beca Interna Tipo
II otorgada por el CONICET (2007/2012). Título del proyecto de tesis: “Cuerpo, discapacidad
y deporte. Análisis de las prácticas deportivas de los adultos con discapacidad motriz adquirida
durante su vida en la Ciudad de Buenos Aires actualmente”. Directora: Graciela Ralón de Walton.
Co- director: Adrián Scribano.
4
El trabajo de campo se realizó entre noviembre de 2007 y agosto de 2010. Siguiendo criterios de
saturación teórica se trabajó con una muestra compuesta por 20 personas con discapacidad motriz
adquirida que realizan deporte en la Ciudad de Buenos Aires. La misma se compuso de varones y
mujeres, con un fuerte predominio de los primeros debido a una masculinización del campo. Para
dar cuenta del carácter relacional de la discapacidad, asimismo, se reconstruyó la mirada experta, a
3
25
Carolina Ferrante
SIEBURTH, 2006; SMITH, 2005; WALL, 2006). Un elemento emergente
del análisis de entrevistas es la existencia, en la vida cotidiana, de prácticas
discriminatorias surgidas en la interacción en espacios “convencionales”
(en palabras de los entrevistados) o “normales”. En dicha situaciones, los
protagonistas son personas sin discapacidad y personas con discapacidad;
los escenarios los constituyen espacios (físicos o símbolicos) reservados
para las personas “normales”: un colectivo, un cine, la escuela, una oficina
estatal, un club deportivo, una reunión familiar. Por ejemplo:
La otra vez un colectivero que no me quería frenar me dijo “vos deberías ser
un hijo de puta antes, por eso quedaste así”… (Jugador de rugby en silla de
ruedas, 30 años)
Un chico en la escuela venía y me pateaba el bastón, después lo echaron
(Nadador con lesión medular, 31 años).
Estamos en el entrenamiento, sentados en el banco mientras los jugadores
terminan la jornada con un partido. La conversación vuelve sobre la
situación de las personas con discapacidad. El entrenador me dice: “La
sociedad no está preparada para ver esto. A nosotros (un club de básquet
en sillas de ruedas) ha venido gente a vernos y se ha descompuesto”.
Carolina: Descompuesto… ¿por qué?
Entrenador: Y te dicen pobres los chicos que están en la silla… Y te
pasa con gente cercana eh, un amigo mío vino a verlos y tuvo que salir
porque no podía parar de llorar y sufre del corazón. Y me decía no ver a
los chicos (Nota: son adultos de entre 25 y 65 años) no tienen las piernas, o no
pueden caminar, no pueden trabajar, no pueden tener hijos… [Nota del
12 de agosto de 2010].
Estas actitudes que emergen cuando la persona con discapacidad
ocupa un lugar no esperado de acuerdo a las expectativas colectivas en el
espacio físico, son variantes de las surgidas cuando ocupa roles no
esperados, como por ejemplo, el ser sexualmente activos:
través de la realización de (19) entrevistas en profundidad a profesores de educación física, médicos
fisiatras, terapistas ocupacionales, clasificadores internacionales, representantes de federaciones y
clubes.
26
Un análisis sociológico de prácticas discriminatorias [...] categorías de lo normal y lo patológico
A Gabriel (un múltiple amputado en silla de ruedas) la familia de la novia
no lo acepta. Imaginate cuando cayó este a la casa (risas), la abuela dijo
“mi nieta sale con un monstruo”… El padre no entiende que su hija
quiera estar con un (múltiple) amputado, fue al psicólogo, pero no hay
caso. La chica para
estar con Gabriel tiene que dejar a la familia, tiene que elegir (Jugador
de básquet en silla de ruedas, 65 años) [Nota del 4 de agosto de 2010].
Tales escenas remiten a dos emociones: el asco y la pena despertada
frente a ese otro en silla de ruedas o con un bastón. Asimismo, a través del
desarrollo de la auto-etnografía, técnica de recolección de información en la
cual el sociólogo pone en juego sus vivencias despertadas en el proceso
de investigación, un elemento que llama mi atención es la tendencia de
colegas, amigos y familiares a señalarme que el tema de investigación
es muy “duro” y una recurrente inquietud en preguntarme si “estar con
esa gente no te hace mal, no te da impresión”. La base de ese juicio,
evidentemente, es la mirada médico rehabilitadora que reduce la discapacidad
a una tragedia médica individual (FERREIRA, 2008), pero además, refleja
el miedo a ver en cuestión la presunta propia normalidad. Es decir, las
emociones despertadas por el cuerpo “anormal”, (en términos de Foucault)
o el cuerpo no legítimo (como prefiero denominar siguiendo a Bourdieu
(1991)) constituyen un elemento riquísimo para analizar la discapacidad
como construcción social5.
Sin embargo, ante esta situación, tradicionalmente, la investigación
social se ha concentrado en el estudio de las personas con discapacidad.
Ahora bien, la pregunta que surge al leer los relatos antes expuestos
conduce la interrogación del lado del discriminador: ¿cómo comprender
estás prácticas?; ¿qué siente la persona discriminadora al ver a alguien con
discapacidad?; ¿cómo dotar de racionalidad a esta conducta y no caer en
una explicación que reduzca este acto a cuestiones morales (como por
ejemplo, la alusión a la “maldad humana”)? Se vuelve necesario, entonces,
Los aportes más significativos al interior de las ciencias sociales para comprender la discapacidad
como construcción social y fenómeno opresivo provienen del denominado modelo social de la
discapacidad (BARNES, 1998; OLIVER, 2008, 1998, 1990; FILKEINSTEIN, 1980). Más adelante
ampliaremos este tema.
5
27
Carolina Ferrante
poner la atención en la sociedad que discrimina y no en la persona con
discapacidad (MORRIS, 2008).
Un lugar común, muy presente en los medios masivos de
comunicación6, pero también en algunos abordajes desde las ciencias
sociales, es analizar estos fenómenos reduciéndolos a la “falta de
concientización de la ciudadanía” o a la “falta de educación de las
personas”. Sin embargo, tal lectura resulta simplificadora y, a mi entender,
errónea.
En primer lugar, es necesario partir del supuesto que afirma que
las emociones surgidas en el acto de discriminación (asco, desprecio,
odio, pena) poseen una significación y no son reducibles al plano de lo
irracional (SARTRE, 1980). Las emociones no remiten, exclusivamente,
a un fenómeno individual sino que son expresión de un a-priori histórico
en el cual está inmerso el agente (MERLEAU PONTY, 1975). Es decir,
que es imperioso recortar el análisis al mundo social en el cual surgen
dichas emociones, o sea, en nuestro caso, un contexto capitalista en su
fase neo-colonial dependiente (SCRIBANO, 2008). Por esto, los estudios
que, para explicar el sentido de las prácticas discriminatorias en la sociedad
occidental remiten a las prácticas exterminadoras de la antigua Grecia
resultan, tal como señala Pedraza (2009), simplificadoras. Mi intención es
enfantizar, siguiendo al autor español, que tales estudios corren el riesgo
de esencializar la relación de dominación que sostiene a la discapacidad
como fenómeno opresivo.
La segunda objeción que se puede señalar es que lejos de ser hechos
sociales reducibles a la conciencia, o a la falta de conciencia, constituye un
error pensarlos en el orden de la conciencia tética. Es decir, parten de un
supuesto sobre la acción erróneo que obstaculiza un análisis de la relación
de dominación que expresan (BOURDIEU, 1991). Tales situaciones deben
ser pensadas en el orden de la conciencia no tética, en el plano de aquello
que fue sedimentado en el cuerpo como habitus, es decir, como esquema de
percepción, pensamiento y acción (MERLEAU-PONTY; BOURDIEU,
1991). Completando las objeciones realizadas podemos decir que subyace
en estos abordajes una mirada cartesiana del hombre, donde la educación
Y por ello es que resultan preocupantes en función del rol que cumplen los medios de comunicación
en la configuración del sentido común en las sociedades actuales (BOURDIEU, 1996 ).
6
28
Un análisis sociológico de prácticas discriminatorias [...] categorías de lo normal y lo patológico
correspondería al plano de lo mental. Por el contrario, es necesario
comprender estas emociones como hechos corporales. Insistimos una
vez más, no se trata de entenderlos en el orden de lo irracional, sino
simplemente en un plano de una lógica no lógica (BOURDIEU, 1991) pero
dotados de una significación que remite a una estructura social. No debe
ser leída esta crítica bajo una lógica dualista que escinde el cuerpo de la
mente, sino que comprendemos el cuerpo como lugar de la emoción o,
pivote de la experiencia (MERLEAU PONTY, 1975).
La tercera objeción es que la lectura que reduce los hechos
discriminatorios a una falta de educación o ausencia de conciencia de
la población omite el dato de que muchas veces tales situaciones de
discriminación son reproducidas por algunas personas con discapacidad7.
Una de las constantes que emerge del análisis de entrevistas en profundidad,
realizadas a personas con discapacidad en el contexto de mi tesis en curso,
es la distinción entre normales y anormales al interior del mundo de la
discapacidad8. Sólo a título ilustrativo:
Ahora acá estoy ayudando a dos hermanos, que son solitos, solos, solos,
solos, no tienen a nadie, y una vez por mes vienen a comer a casa…
Lejos de buscar generalizar esta afirmación, intención no contemplada en una investigación
cualitativa y asumiendo la complejidad del universo de estudio (y que se relaciona con múltiples
entrecruzamientos de la discapacidad con variables como: género, nacionalidad, etnia, tipo de
deficiencia), lo que busco es exponer cuestiones emergentes del trabajo de campo realizado entre
diciembre de 2007 y agosto de 2010. Tal vez el ámbito del deporte adaptado propicie esta especie
de anatomía moral (EPELE, 2002) existente intra-discapacidad motriz.
8
La noción nativa de rengo, término a través del cual las personas que realizan deporte en silla de
ruedas se identifican, remite a la idea de un caminar torcido, desviado. Dicha noción se remonta
a la historia de la principal institución en la que se práctica el deporte adaptado, institución creada
para el “tratamiento” de la poliomelitis en 1959. Las personas con secuela de polio, suelen caminar
con bastones canadiense, rengueando, de donde viene el mote “rengo”. Hoy, erradicada la polio en
Argentina, tal noción constituye un núcleo identitario de las personas con discapacidad. Asimismo
es posible rastrear en las entrevistas realizadas pares opuestos que remiten a la familia normal//
anormal, por ejemplo: Normal//Enfermo; Normal//Chiquitos con problemas/ Me ponía mal/
Tratar de evitarlo; Rápido, dinámico// Tonto, le faltan jugadores, boludo, lento; Salud//Piltrafa;
Movimiento//No me podía mover; Normal//Gente con problemas; Normal//Circo de Moscú;
Normal//Grupo muy cerrado; Normal//Robocop; Normal//Robot; Normal//Para; Normal//
Cuadri; Convencional//Rengo; Rengo//Rengo de la cabeza; Rengo/ /Turu-rú; Rengo// Le faltan
jugadores; Normal//discapacitados; Normal// amputado, polio, medulares; Llamar la atención//
Esconder, Cosa que estorbaba; Linda, rubia, grandota, doctora// Feo; Trabajar/ /Ser un pobrecito.
7
29
Carolina Ferrante
Hay uno que es el normal y otro que está enfermo, uno tiene 48 años,
el normal, y el enfermo tiene 30… Se fue con una moto debajo de un
colectivo y quedó viste, camina, pero habla que no se le entiende y este
pobre lo atiende, porque no tienen ni madre, ¡y si vos vieras cómo lo
atiende! Yo los veía acá en el club, que lo traía, le daba de comer, viste
parece, carbura un poco, pero carbura poco… Y una vez al mes ellos
vienen viste, yo les hago ñoquis, comidas caseras con rico tuco viste, y
ellos van a comer... (risas) y el enfermo me dice (risas) coca cola trucha
nooo eh!, trucha nooo!! (lo dice burlándose, imitando a alguien que no
puede hablar claro) (risas) y yo digo ¡la puta madre! (risas) este pobre,
pretencioso. Entonces al otro viste le compro un vinito viste no tan
caro… (…) (Marisa, 74 años).
La gente de acá, los turu-rú, (risas) porque yo les digo los turu-rú (risas)
porque acá al que camina acá algo le falla en la cabeza, le faltan los
jugadores viste, (risas) Y mi hija, mirá lo que es la casualidad que me
hija estudió de maestra paralítica cerebral, antes de que a mí me pasara
esto, y yo le decía, ay Verónica, tantas cosas habrías sido maestra, pero de
normales, (muchas risas) ¡yo me quería morir! viste y ella me decía, viste
mami, vos no te tenés que quejar porque vos estás muy bien… (risas),
yo estaba hecha una piltrafa y decía ¡esta chica me está tomando el pelo!
Pero bueno es así… Yo veo los ciegos cómo se dan cuenta, porque yo
pienso que hay muchas discapacidades, pero la más dura es para mí la
ceguera… Después acá están los mentales, pero ¿sabés qué? ellos no se
dan cuenta, le afecta a la familia… Si vos vieras acá los ciegos, soy amiga
de una pareja de ciegos, él tiene 60 años, ciego de nacimiento, vos vieras
yo digo, yo hablo castellano nada más y este ciego habla 4 idiomas! (risas),
sabe tocar la guitarra, ¡tiene una amigovia! ¡una novia! (Marisa, 74 años).
Los anormales son los cuadri, después los amputados, después vienen
los para, y después los convencionales, los que caminan (Elena, 36 años).
Cuarta objeción, supuesto de partida de este trabajo, la discapacidad
es una relación de dominación, por lo cual la cuestión de la discriminación
remite a una cuestión política (ABBERLEY, 2008). De hecho, las categorías
del juicio de las personas con discapacidad reflejan aquellos esquemas de
percepción expresados en las situaciones de discriminación y que remiten
30
Un análisis sociológico de prácticas discriminatorias [...] categorías de lo normal y lo patológico
a dispositivos de regulación de las emociones y mecanismos de soportabilidad social
propios de la sociedad industrial (SCRIBANO, 2007). En el origen de los
mismos debemos remitirnos a un proceso de normalización desarrollado
en el siglo XVIII ya que ponen en palabra el origen del acto de desprecio.
Ahora bien, el fin de este trabajo es desentrañar cuál es el sentido de estas
prácticas discriminatorias y mostrar cómo funcionan los dispositivos de
regulación de las emociones en el cual se enmarcan.
Para ello, partiremos de algunos abordajes sociológicos referidos a
la discapacidad y el asco y, retomando tales señalamientos, describiremos el
análisis de lo normal y lo patológico de Foucault y Canguilhem9. Finalmente,
procederemos a dar respuesta a nuestra pregunta de origen. Nuestra tesis
es que los fenómenos de discriminación sufridos por las personas con
discapacidad pueden ser referidos al par normal/patológico y que no es
posible comprender su significado sino son enmarcados en los dispositivos
de regulación de las emociones y los mecanismos de soportabilidad que se
erigen al interior del capitalismo. El proceso de normalización que sufre
la sociedad industrial en el siglo XVIII constituye el principal dispositivo
de regulación de las emociones que permite comprender el rechazo de
aquello que se aleja de la norma; pero este análisis sería incompleto si no
tenemos en cuenta los mecanismos de sorpotabilidad (SCRIBANO, 2007)
que activa la presencia de un cuerpo “anormal”. Los mismos, anidados en
juegos de fantasmas y fantasías sociales que permiten ocluir el conflicto
(SCRIBANO, 2005).
Un aspecto señalado por Hughes y Paterson (2008) es que pese a la importancia que tiene al
interior de la teoría social la obra de Foucault, su uso en estudios en el campo de la discapacidad ha
sido relativamente escaso. Estos autores sostienen que “claramente una historia o una genealogía
foucaultianas del impedimento y la discapacidad serían un buen vehículo para el trazado del mapa
de los parámetros de construcción social del impedimento y para examinar la manera en que los
‘regímenes de verdad’ sobre los cuerpos con discapacidad fueron fundamentales para su gobierno
y control” (HUGHES y PATERSON , 2008: 115). Un trabajo en esta línea es el realizado por
Ferreira y Rodríguez Díaz (2009) “Desde la discapacidad a la diversidad funcional: un ejercicio de
dis-normalización, Revista Internacional de Sociología (en prensa). La única diferencia entre este
trabajo y el citado es en las fuentes utilizadas: los autores mencionados se basan en los planteos
realizados por Foucault en Vigilar y Castigar y Genealogía del Racismo, mientras que yo en el presente
limito el análisis exclusivamente a la obra Los anormales.
9
31
Carolina Ferrante
El asco y la discapacidad abordado sociológicamente
Diversos autores han señalado que el rechazo que despiertan las
personas con discapacidad en el mundo occidental se relaciona con una
imagen fantasmagórica de desintegración representada por un cuerpo
alejado de los mandatos del “cuerpo normal”, o, como prefiero denominar,
cuerpo legítimo (BOURDIEU, 1982). En esta línea, Le Bretón (2002) y
Goffman (2001) señalan que la presencia de un cuerpo discapacitado genera
sentimientos de odio y desprecio debido a la ambigüedad que genera su
rol social: la persona con una discapacidad es dejada de lado de la vida
social normal, aunque formalmente se le reconoce que es un miembro
pleno de la sociedad (LE BRETÓN, 2002). Según estos pensadores, la
ambivalencia existente en el rol social de las personas con discapacidad
es la que genera sentimientos o emociones como la de odio y desprecio.
Afinando estas reflexiones, es posible pensar con Hanna y Rogovsky
(2008) que en realidad tal ambigüedad no existe, y que el sentimiento de
asco ante una persona con discapacidad se relaciona con la reducción de
la persona al rol del enfermo y el etiquetamiento de anormal. La búsqueda
de distinción a partir del refugio en la (propia) normalidad funciona y
devela un proceso de normalización que conduce a despreciar a través del
asco todo aquello catalogado de anormal. En este sentido, Foucault señala
que si existe la expresión “vas a terminar en el patíbulo” (FOUCAULT,
2000: 41) es porque la misma posee una base histórica que incluye desde
la medida correctiva hasta la muerte.
Ahora bien, ¿cuál instancia de saber será la que definirá quienes
entran en la categoría anormal? Esta respuesta es brindada por Foucault
en Los anormales: la hipótesis central de este libro es que las técnicas de
normalización y el poder de normalización no constituyen una mera
conexión entre el saber médico y el poder judicial sino que a través de la
pericia médico judicial, se configura la categoría de los anormales. Para
este autor, el par normal-anormal surge en la modernidad, con el fin
de tornar “previsibles, dóciles y útiles a los sujetos” (VALLEJOS, 2009:
96), intención vehiculizada a través de tres estrategias complementarias:
la constitución discursiva del concepto anormal, la medicalización de la
sociedad y la moralización de la sociedad” (VALLEJOS, 2009: 96). En el
32
Un análisis sociológico de prácticas discriminatorias [...] categorías de lo normal y lo patológico
próximo apartado retomaremos el análisis de la configuración histórica
de la categoría anormal realizado por Foucault en Los anormales, ya que el
mismo nos ayudará a llegar a una respuesta a nuestra pregunta de trabajo.
Constitución histórica de lo anormal.
El abordaje de Michel Foucault.
Michel Foucault a través del análisis de la transformación de la
pericia psiquiátrica rastreará la constitución de lo que el denomina “poder
de normalización”. La pericia médico-legal tal como establecía el Código
Penal de 1810 instituía en Francia “que no hay crimen ni delito si el
individuo se encuentra en estado de delirio” (FOUCAULT, 2000: 39). Así,
a través de la práctica de la pericia se debía discernir si el sujeto acusado
es enfermo (y, por tanto, el castigo que se le impone es terapéutico) o no
(y, por ello, deviene responsable de su desvío, y como medida punitiva
se establece la prisión). Pues bien, la pericia contemporánea sustituirá, a
través de una serie de mecanismos que se entretejen en el siglo XIX, la
exclusión recíproca entre el discurso médico y el discurso judicial por un
juego de “doble calificación: médica y judicial” (FOUCAULT, 2000: 40) y
sustituirá la disyuntiva institucional prisión versus hospital, castigo versus
curación por el principio de una “homogeneidad de la reacción social”
(FOUCAULT, 2000: 41). Este giro en la pericia médico-legal permite
justificar socialmente la existencia de un continuo de instituciones que
se ubican entre el delito y la enfermedad y que tendrán como objeto de
atención al peligro, o más exactamente, al individuo eventualmente peligroso,
que no es reducible ni a la figura del delincuente ni a la del enfermo sino a
la del anormal. Así, el par perversión/peligro constituirá el núcleo de la pericia
médico legal en donde, el primer elemento del par, lo perverso, a través
de categorías morales (como las de maldad, orgullo, empecinamiento)
hará posible unir conceptos médicos y legales, mientras que el segundo,
el individuo peligroso, justificará la existencia de una serie de instituciones
médico-legales que protegerán al cuerpo social de lo abyecto. Más
precisamente, es posible afirmar que existe un poder, que no es médico ni
judicial, sino de normalización que a través de la pericia médico legal funda
la categoría de los anormales y deviene instancia de control del individuo
33
Carolina Ferrante
anormal. Así, según Foucault la categoría de anormal surgirá en el siglo
XIX y se organizará en torno a tres figuras: el monstruo humano, el individuo
a corregir y el onanista. Estos elementos no poseen una aparición sincrónica.
El monstruo humano englobará personajes que reúnen la característica
de ser considerados a medias hombres y a medias bestias (como el
hombre bestia y los hermafroditas). Su protagonismo se desarrolla
durante los siglos XVII y XVIII. Esta figura se configura en el dominio
de lo jurídico-biológico, constituyendo una doble infracción de las leyes
biológicas y sociales: 1) se aleja de la forma de la especie y 2) plantea
problemas en las regularidades jurídicas (como por ejemplo las leyes de
matrimonio, el bautismo, la sucesión). Así, existe una anormalidad estética
y una anormalidad ética-moral, en la cual se combinará lo imposible y lo
prohibido. Se inaugura un juego entre ambas dimensiones en donde la
excepción a la naturaleza genera modificaciones en los efectos jurídicos
de la trasgresión del derecho, sin suspender los efectos de la ley, sino
exigiendo la creación de instituciones “parajudiciales y marginalmente
médicas”. Asimismo, a través de la figura del monstruo se observa la
evolución de la pericia médico legal que señalábamos más arriba, desde el
acto monstruoso, problematizado en el siglo XIX hasta el surgimiento de la
noción de individuo peligroso, noción central de las pericias contemporáneas.
El individuo a corregir es un personaje más reciente que el monstruo.
Su aparición es contemporánea a la inauguración de las técnicas de
disciplina que se introducen en los siglos XVII y XVIII, tales como el
ejército, las escuelas, los talleres y las familias. Concretamente, estas nuevas
instituciones de domesticación “del cuerpo, del comportamiento y de las
aptitudes” (FOUCAULT, 2000: 298) crearán el problema de aquellos que
escapan a una normatividad que ya no será la de la ley. Pues bien, el marco
jurídico negativo será reemplazado por un conjunto de métodos positivos
de rectificación a través de las cuales se procurará la corrección de aquellos
que se resisten a la domesticación. Una figura intermedia entre los métodos
negativo y positivo de ejercicio del poder lo constituye el “gran encierro”
del siglo XVII. A través del mismo, se excluye aquello que perturba las
leyes de la ciudad, es decir, la conciencia burguesa y que incluye todas
las formas de “inutilidad social”, pero se establece como justificación la
necesidad de corregir una “ausencia moral” a través del trabajo forzado
34
Un análisis sociológico de prácticas discriminatorias [...] categorías de lo normal y lo patológico
(FOUCAULT, 2006). Es decir, entre las prácticas de internación y las
exigencias del trabajo se establece una relación que se basa en la moral
burguesa: en la Edad clásica la locura es percibida por medio de la condena
ética al ocio y la valoración positiva del trabajo (FOUCAULT, 2006).
En este sentido, el poder de normalización debe ser enmarcado dentro
de un proceso de invención de nuevas tecnologías de poder, en el cual las
técnicas de disciplina constituyen un punto central llevado adelante por la
burguesía en los siglos XVIII y XIX10. Según Foucault, en los márgenes
de las técnicas modernas de domesticación se dará el origen institucional
de las principales discapacidades que hoy conocemos: discapacidad visual,
sensorial, intelectual y motriz.
Por último, en el siglo XVIII aparece la figura del onanista. La
misma surge de la mano de las nuevas relaciones que se establecen entre
sexualidad y familia y con el nuevo rol que cumplirá el niño al interior
del grupo parental, caracterizado por una nueva importancia y valoración
atribuida al cuerpo del niño y a la salud. Tal surgimiento se relaciona con
el desarrollo de las técnicas de dirección de conciencia (como la confesión
penitenciaria) y las instituciones educativas. En el siglo XVIII, la medicina,
a través de una campaña contra-masturbación creará el cuerpo sexual del
niño. En relación a él todo un saber y una nueva moral médica situará la
etiología de múltiples y disímiles enfermedades en la masturbación infantil.
Pero aún más, quienes serán responsabilizados de la práctica masturbatoria
serán los padres del niño (se los acusará de falta de vigilancia, falta de
interés por su hijo). Entonces, los efectos de la cruzada anti-masturbatoria
exceden al rol del niño, ya que constituye una reconfiguración de la familia
como nuevo aparato de saber/poder. A través de la misma se establece
una nueva “economía de las relaciones intrafamiliares” que implica una
solidificación de las relaciones padres-hijos y una inversión de la estructura
de las obligaciones familiares (que antes iban de los niños a los padres y
que ahora se revertirá). Pero a esta reestructuración de los lazos familiares
corresponderá un cambio en el valor que une a los miembros del grupo: el
principio de salud constituirá la ley fundamental de la vida filial. Asimismo,
Para una descripción de las anatomopolíticas y biopolíticas se recomienda la lectura de Ferreira,
M. A. V. y Rodríguez Díaz, S. (2009). “Desde la dis-capacidad hacia la diversidad funcional, un
ejercicio de dis-normalización” (op. cit.).
10
35
Carolina Ferrante
la nueva distribución familiar implicará una organización de un vínculo
cuerpo a cuerpo entre padres e hijos el cual se estructurará en base al deseo
y al poder. Finalmente, la necesidad de un control y una mirada médica
externa para regular estas nuevas relaciones habilitará la medicalización de
la familia (y, a través de ella, de la sociedad).
De esta forma, en torno a la categoría de individuo anormal,
expresadas en las figuras del monstruo humano, el incorregible y el
onanista, desde fines del siglo XIX, se instaurarán una serie de instituciones,
discursos y saberes. Cada una de estas figuras tendrá sus sistemas de
referencia científica autónoma. En el caso del monstruo se tratará de la
teratología y la embriología; en el caso del incorregible la psicofisiología de
las sensaciones, la motricidad y las aptitudes y en el caso del onanista, una
teoría de la sexualidad.
A la vez, señala Foucault, hay que enmarcar estos saberes específicos
en tres fenómenos básicos que en parte modifican y anulan:
1) La elaboración de una teoría general de la degeneración, que a partir de
la obra de Morel de 1857, “va a servir durante más de medio siglo de
marco teórico, al mismo tiempo que de justificación social y moral de
todas las técnicas de señalamiento, clasificación e intervención referidas
a los anormales” (FOUCAULT, 2000: 301).
2) La organización de una red institucional compleja, que en el entre de la
juridicción médica y la legal, cumpla un doble rol: el de recepción de los
anormales y el de la defensa de la sociedad.
3) El giro por el cual el problema de la sexualidad infantil va englobar a los
problemas del monstruo y el individuo a corregir, hasta convertirse en
el siglo XX, “en el principio de explicación más fecundo de todas las
anomalías” ( FOUCAULT, 2000: 301).
En síntesis, hasta aquí hemos visto que a través de la construcción
del individuo anormal, acaecida en el siglo XIX, el poder de normalización
cumple una función política de control social de aquellos individuos que
escapan a la norma.
36
Un análisis sociológico de prácticas discriminatorias [...] categorías de lo normal y lo patológico
Poder de normalización en Foucault y Canguilhem
El poder de normalización debe ser comprendido en el contexto
de lo que el pensador francés denomina la invención de “tecnologías
positivas de poder”. Foucault rastrea en occidente dos grandes modelos
de control de los individuos: 1) la exclusión de los leprosos (desarrollados
en los siglos XVII y XVIII) y 2) la inclusión del apestado (propio del
siglo XVIII). Mientras que el primer modelo se basa en la expulsión y
separación de la ciudad, el segundo se ancla en una intención de fijar a la ley
al individuo alejado de la norma en base a su ubicación en una cuadrícula.
En la lepra se separan los enfermos de los “normales” mientras que en la
peste no se da una marcación definitiva sino un examen continuo dentro
de un campo de regularidad para saber si el individuo se ajusta a la norma
de salud que se ha establecido. Entonces, una diferencia importante entre
el primer modelo y el segundo la constituye el fin último que cada uno
persigue: mientras que en la lepra se busca retirar la impureza que amenaza
el cuerpo social, en el caso de la peste se intenta maximizar “la salud, la
vida, la longevidad, la fuerza de los individuos” (FOUCAULT, 2000: 55),
es decir, se promueve la producción de un cuerpo social sano. Ahora bien,
en el siglo XVIII, la peste, como modelo de control político reemplazará
al modelo de la lepra. Este proceso histórico que se acuña en la Edad
clásica11 implica el pasaje de una tecnología de poder que “expulsa, excluye,
prohíbe, margina y reprime, a un poder que fabrica, que observa, un poder
que sabe y se multiplica a partir de sus propios efectos” ( FOUCAULT,
2000: 55)12.
Tanto la noción de proceso de normalización, como las cuestiones
metodológicas referidas a la concepción de la norma, Foucault las toma de
Así, en la Edad clásica se elabora un arte de gobernar que incluye tres elementos en los cuales se
puede distinguir niveles diferenciados: teórico, institucional y práctico: 1) una teoría jurídico-política
del poder anclada en la noción de voluntad (su alienación, su transferencia, su representación
política); 2) un aparato de estado y su red institucional y 3) una técnica general del ejercicio de poder
transferible a diversas instituciones. Esta técnica posee un dispositivo tipo que es la organización
disciplinaria y culmina en la normalización.
12
Desaparecida la lepra, sus estructuras organizativas permanecerán y dos o tres siglos más tarde, en
esos mismos sitios, los “juegos de exclusión” (FOUCAULT, 2006: 18) se repetirán con un sentido
completamente nuevo: será exclusión social, pero sobre todo “reintegración espiritual” (Ibid.).
11
37
Carolina Ferrante
la obra Lo normal y lo patológico de Canguilhem a quien remite expresamente
en Los anormales. Concretamente rescata tres ideas del filósofo francés.
1) La referencia a un proceso general de normalización social, política y
técnica que se desarrolla en el siglo XVIII y que posee efectos en los
campos de la salud, la educación, la producción fabril y el ejército.
2) La norma es política, no puede ser entendida como una ley natural
sino que posee un rol de exigencia y coerción en los espacios que se
aplica. Por eso, la norma es portadora de una pretensión de poder, más
precisamente, funda y legitima cierto ejercicio de poder.
3) La norma está relacionada a un principio de calificación y corrección,
su función no es excluir y rechazar sino enderezar. Así, constituye una
técnica positiva de transformación, correspondiente a un proyecto
normativo.
Pues bien, completando y discutiendo estos aspectos referenciados
por Foucault en relación a Lo normal y lo patológico es posible realizar los
siguientes señalamientos:
Foucault sostendrá que es un error metodológico e histórico
considerar al poder como un mecanismo negativo de represión cuya
función es proteger, conservar o reproducir relaciones de poder de una
clase determinada. Esto lo lleva a rechazar una explicación materialista del
proceso de normalización. Sin embargo, esta afirmación resulta ambigua
ya que en Los anormales, con posterioridad a esta afirmación, relacionará la
invención de tecnologías positivas de poder con la revolución burguesa.
Planteos similares pueden encontrarse en Historia de la locura en la
época clásica. En Canguilhem (1978) tal ambigüedad no existe y hay una
clara concepción materialista del proceso de normalización: el mismo
constituye la manifestación de exigencias colectivas que son definidas
por una sociedad histórica en virtud de aquello que es considerado “su
bien propio” (CANGUILHEM, 1978: 186). Así como para el organismo
vivo es necesario un dispositivo que regule sus necesidades fisiológicas, la
sociedad requiere la regulación de las necesidades sociales; función que
es llevada adelante por una clase normativa. Insistimos en este aspecto
porque es clave para comprender las emociones despertadas por el
cuerpo discapacitado en la actualidad. Según Canguilhem, el proceso de
normalización se enmarca en un proyecto normativo instaurado entre el siglo
38
Un análisis sociológico de prácticas discriminatorias [...] categorías de lo normal y lo patológico
XVIII y XIX por una clase normativa que fija su propia percepción de lo
normal como normal:
Se podría decir, con otras palabras, tratando de reemplazar por un
equivalente el concepto marxista de clase ascendente: entre 1759, fecha de
aparición de la palabra “normal”, y 1834, fecha de aparición de la palabra
“normalidad”, una clase normativa conquistó el poder de identificar –
hermoso ejemplo de ilusión ideológica- la función de las normas sociales
con el uso que ella misma hacía de aquellas cuyo contenido determinaba
(CANGUILHEM, 1978: 193).
Lejos de implicar un mecanicismo, esta mirada considera como
propiedad intrínseca del proceso de normalización la anticipación de una
posible flexibilidad. Para Canguilhem la norma es aquello que instaura lo
normal a partir de una decisión normativa, y, es por ello que considerará
que la decisión en torno a tal o cual norma sólo puede ser entendida en
el contexto de otras normas. En este sentido afirma que, la intención
normativa en una sociedad histórica dada es indivisible. Así puede observar
una interrelación entre las diferentes normas e inclusive una mutación
de normas éticas a políticas, estéticas, técnicas o jurídicas. Dada esta
correlatividad es que las normas siempre deben prever ciertas tolerancias
de desvío. En síntesis, en Canguilhem existe una clara vinculación entre
el carácter político de la norma y la identificación con una clase social
determinada, planteo no realizado en Foucault de forma rotunda.
Foucault señalará que la función de la norma no es excluir y
rechazar, sino enderezar. Pues bien, Canguilhem no dirá exactamente esto:
asumiendo el carácter inverso de la norma, es decir, señalando que una
norma no es tal sino es puesta en relación con su opuesto, sostendrá que
toda predilección a un orden dado es acompañada, la mayoría de las veces,
por la aversión del orden posible inverso: “Lo diferente de lo preferible –en un
dominio dado de evaluación- no es lo indiferente, sino lo rechazante o, más
exactamente, lo rechazado, lo detestable” (CANGUILHEM, 1978: 188).
Justamente, este planteo es el que permite hacer el puente con la intención
correctiva de la norma: “La regla comienza a ser regla cuando arregla y esta
función de corrección surge de la infracción misma” ( CANGUILHEM,
1978: 188). Esto es lo que permite afirmar el carácter históricamente
39
Carolina Ferrante
previo de lo anormal sobre lo normal, cuestión empíricamente demostrada
por Foucault a través de la puesta en manifiesto de que es a través de la
construcción de la categoría de los anormales, en el siglo XIX, cómo se
instaurará el control sobre la normalidad.
Estas dos observaciones las señalamos porque es fundamental para
comprender el asco presente en las prácticas discriminatorias que buscamos
analizar. Debe quedar claro, que pese a estas diferencias de interpretación
en la lectura de Canguilhem, se considera sumamente valioso el análisis de
Foucault y que sólo tratamos de hacer una lectura interesada de los textos
para la comprensión de nuestra pregunta de trabajo.
Consideraciones finales
Retomando nuestra pregunta inicial estamos en condiciones de
abordar una respuesta provisoria a la misma. Para ello volveremos sobre
algunas reflexiones anteriormente esbozadas.
Siguiendo a Ricoeur podemos señalar que existen dos sentidos de lo
normal en Canguilhem: se puede identificar la norma a la media estadística
o se puede comprender a la norma como un ideal. En este mismo sentido,
lo patológico admite también dos significaciones de la norma: en lectura
negativa se reduce a déficit, deficiencia mientras que en sentido positivo,
implica una organización diferente, con sus propias leyes. Pues bien, en
nuestra sociedad se establece una noción que Ricoeur denomina insolente de
la salud “que tiende a erigir lo normal, en el sentido de la media estadística,
en norma, entendida como ideal” (RICOUER, 2008: 176). Podemos
afirmar que el poder de normalización instaura esta noción insolente de
la salud. La misma debe ser comprendida en el marco de la estructura
social que la genera: “en una sociedad individualista que coloca en su
cima la capacidad de autonomía, la gestión propia de su estilo de vida, es
considerada una merma toda incapacidad de sustraerse de una relación de
tutela bajo su forma de asistencia y de control” ( RICOUER, 2008: 177).
Según Ferreira y Rodríguez Díaz y Toboso y Guzmán el cuerpo normal es
definido en base a una norma médica que socialmente construida define
determinadas capacidades requeridas “por las necesidades asociadas a
nuestros patrones culturales de vida” (TOBOSO y GUZMÁN, 2009: 10).
40
Un análisis sociológico de prácticas discriminatorias [...] categorías de lo normal y lo patológico
Pues bien, creemos importante retomar los planteos de Canguilhem para
resaltar que la organización de lo normal debe enmarcarse en el modo
de respuesta a las necesidades sociales. Es por esto, que consideramos
fundamental relacionar aquello que se erige como cuerpo normal, capaz o
mejor, legítimo, aquél que cumple los requisitos y propiedades exigidas por
la división social del trabajo (BOURDIEU, 1991). Tomando los aportes del
modelo social se puede comprender a la discapacidad como el resultado
de una estructura social opresiva que se adapta a las necesidades de las
personas sin discapacidad y que homologa sus condiciones de existencia
como clase oprimida (BARNES, 2008, 1998; OLIVER, 2008, 1998, 1990;
FILKEINSTEIN, 1980). Así, las personas con discapacidad en tanto se
alejan del “cuerpo capacitado” (anclado en el mito de perfección corporal
e intelectual) constituyen una fuerza de trabajo no productiva y por ello son
reducidos al rol de enfermos, formando parte de aquél ejército de reserva
descripto por Marx (BARNES, 2008). Si bien compartimos lo supuestos
del modelo social, se debe indicar su tendencia a olvidar que el cuerpo es
el locus del conflicto y del orden (SCRIBANO, 2009: 14). Paradójicamente el
modelo social en su versión materialista, tras el intento de desmedicalizar la
discapacidad, olvidó el cuerpo deficiente como sujeto y objeto de estudio
tras el miedo a caer en el ámbito de la biología asumiendo que así también
se caía en el campo rehabilitador. Es necesario incorporar al abordaje del
modelo social, una concepción del cuerpo como producto social y pivote
de la experiencia (BOURDIEU, 1982; MERLEAU PONTY, 1975). Tal
esfuerzo puede observarse es versiones recientes del modelo social, (como
por ejemplo en los trabajos de Shakeaspeare y Watson (1996), Hughes y
Paterson (2008) y Morris (2008) o en producciones enmarcadas en tal
tradición como los de Ferreira (2009) y Kippen y Zuttion (2009)) que
incorporan los aportes de la sociología del cuerpo13, centrando su interés
en la problematización de la categoría impedimento o deficiencia14.
En relación a la necesidad de incorporar al modelo social los aportes de la sociología del cuerpo
Hughes y Paterson señalan: “Disponemos de un lenguaje elaborado, interpretativo y psicosocial para
dar sentido a ese mundo de encuentros corporeizados (estigma, prejuicio, ansiedad) y la miríada de
efectos que desempeñan una función en él, pero el modelo social lo dejó de utilizar basándose en
que enmascara problemas políticos y de poder” (HUGHES y PATERSON, 2008: 120).
14
Estos estudios reconocen al cuerpo discapacitado como focus del poder, pero, a la vez, señalan
que la misma es una relación encarnada y singular, variable de acuerdo a la condición de clase, etnia,
13
41
Carolina Ferrante
Realizada esta aclaración, consideramos que la discapacidad
constituye una relación de dominación que no puede ser pensada al interior
del capitalismo sino es relacionándola a su alejamiento al cuerpo legítimo
(BOURDIEU, 1982). En un contexto capitalista neocolonial y dependiente el
cuerpo legítimo es aquel que es flexible (SCRIBANO, 2007), aparentemente
independiente y está físicamente conservado de acuerdo a reglas de
productividad (LOUVEAU, 2007). El Estado como denominador de las
identidades sociales legítimas otorga la hegemonía al modelo médico hegemónico
(MENÉNDEZ, 1990) para reducir a la discapacidad al diagnóstico de un
déficit anclado en un organismo individual.
Si bien la medicina tradicional de occidente posee la hegemonía
para definir qué es salud y enfermedad, sin embargo, creemos que resulta
reduccionista limitar exclusivamente el poder de definición de la norma
de salud a la medicina. Sostenemos que la definición de “cuerpo sano”
se disputa en el campo de la salud, campo más amplio que el médico y
que intervienen en esta puja diversos actores pertenecientes al llamado
complejo moda-belleza (BOURDIEU, 2000). Podemos ver cómo la norma
de la salud muta en una norma estética (belleza) y ética (bueno). Salud
y enfermedad son normadas socialmente (RICOEUR, 2008) y se hacen
cuerpo en propiedades corporales valoradas o despreciadas. A través de
una economía política de la moral (SCRIBANO, 2007) se inculca el habitus de
la discapacidad a partir del cual se asocia el cuerpo enfermo/feo/inútil al
cuerpo sano/bello/útil (FERREIRA, 2007; FERRANTE, FERREIRA,
2008, 2007). De esta forma, la portación de una deficiencia conduce a
la encarnación de un cuerpo discapacitado al cual corresponderá (o no)
una definición estatal del cuerpo discapacitado (o “cuerpo no-legitimolegitimado”), concepción que no puede ser entendida si no es en relación a
la definición del cuerpo legítimo al interior del modo de producción capitalista
(BOURDIEU, 1999). En este sentido, la imagen social del cuerpo con la
que cada agente cuenta desde su niñez, se obtiene a través de la aplicación
“una taxonomía social cuyo principio con el de los cuerpos a los que se
aplica” (BOURDIEU, 2000: 85). Las personas con discapacidad, al interior
género, tipo de deficiencia. Con otras palabras, si es cierto que el cuerpo discapacitado es un cuerpo
construido y reproducido por el saber médico, también es un cuerpo que resiste, produce quiebres
y cuestionamientos a la norma médica que define qué es deficiencia.
42
Un análisis sociológico de prácticas discriminatorias [...] categorías de lo normal y lo patológico
de este a-priori histórico, se transforman en portadoras de un cuerpo
socialmente descalificado y rechazable (FERRANTE; FERREIRA, 2008).
Si pensamos en las prácticas discriminatorias señaladas en un
comienzo, son situaciones en las cuales el único elemento indicador de una
deficiencia es el cuerpo (o más precisamente, la hexis corporal). Así, dada la
importancia que adquiere en la estructuración de las sociedades capitalistas
el acercamiento al cuerpo legítimo (con sus consecuentes ganancias y
pérdidas en diferentes especies de capital), se puede comprender el valor
negativo que adquiere el cuerpo discapacitado (BOURDIEU, 1991) en
tanto estigma (GOFFMAN, 2000). En su hexis, el cuerpo discapacitado se
aleja del patrón de salud/belleza establecido, encarnando la infracción a
que ello establecido como normal en sentido de valor ideal. Reconociendo
este aspecto, Hughes y Paterson (2008) señalan que “los prejuicios que
sirven de sostén a la construcción de la moda y lo bello se encuentran en
el centro de la biopolítica contemporánea” (HUGHES y PATERSON,
2008: 114), y caracterizan a la sociedad capitalista actual como una “tiranía
de la perfección”15.
La reproducción de la mirada discriminadora al interior del mundo
de la discapacidad puede ser comprendida con el producto de la aplicación
de unos esquemas de percepción que son el resultado de la dominación
(BOURDIEU, 2000) Así las prácticas discriminadoras intra-discapacidad
es un acto de reconocimiento de la sumisión.
En este sentido, las emociones despertadas por el cuerpo
discapacitado en las prácticas discriminatorias se relacionan estrictamente
con el poder de normalización. Toda la estructura social está viva en la
interacción entre la persona con discapacidad y la persona sin discapacidad,
bajo el modo de esquemas de percepción y apreciación inscriptos en los
cuerpos de los agentes interactivos (BOURDIEU, 2000). A partir de
diversos “filtros sociales” (FROMM, 1967) o habitus se aprehende la
discapacidad como una tragedia médica personal (OLIVER, 2008) que se
aleja de la norma socialmente establecida de cuerpo sano-bello, acarreando
la aversión y el rechazo. Tal como señala Ricoeur, en tanto las personas
Es en este sentido, que estos autores consideran que una política emancipadora de la situación de
opresión y discriminación sufrida por las personas con discapacidad la constituye la de adoptar una
política del cuerpo en la cual se cuestione la distinción entre discapacidad e impedimento.
15
43
Carolina Ferrante
con discapacidad escapan a la norma de salud socialmente establecida, no
pueden vivir en comunidad y por ello se las expulsa:
La sociedad querría ignorar, esconder, eliminar a sus discapacitados.
¿Y por qué? Porque ellos constituyen una amenaza sorda, un recuerdo
inquietante de la fragilidad, de la precariedad de la mortalidad (RICOEUR,
2008: 177).
El asco despertado por el cuerpo discapacitado se relaciona con el
miedo al aislamiento moral (FROMM, 1967) que implica el cuestionamiento
a la norma. En la infancia, a través de la inculcación de habitus se incorpora
la amenaza de aislamiento y ostracismo, constituyendo este el miedo
humano más importante en la estructuración de la conciencia (FROMM,
1967; FOUCAULT, 2006). En palabras de Ricoeur:
La línea de exclusión no está solamente trazada entre los sujetos
considerados con buena salud y los sujetos discapacitados, atraviesa
también la conciencia de cada uno. La perspectiva de la locura reemplaza
el miedo al infierno, al mismo tiempo que se acerca la amenaza de la
retribución social. La exclusión procede de cada interioridad propia;
reemplazando la trascendencia, la inmanencia se revela más cruel que
ella. El loco es mi doble infinitamente próximo (RICOEUR, 2008).
Según Ricoeur, estos son los prejuicios que la educación pública no
ha podido detener. Podemos comprender que esto deba su razón a que las
fantasías sociales constituyen mecanismos ideológicos que conducen a la
aceptación de eso que supuestamente suprimen.
Llegada esta instancia, para comprender el acto de discriminación
podemos valernos de los aportes de la sociología del cuerpo y las emociones
en lo relativo a funcionamiento del capitalismo en su fase actual. Siguiendo
los planteos de Scribano (2005, 2007) podemos afirmar que el capitalismo
funciona a partir de la existencia de dispositivos de regulación de las
emociones y mecanismos de soportabilidad social que operan a partir
de juegos de fantasmas y fantasías sociales. Así podemos pensar que el
poder de normalización constituye un dispositivo de regulación de las
emociones que nos explica por qué es rechazado el cuerpo discapacitado,
mientras que los mecanismos de soportabilidad nos permiten comprender
44
Un análisis sociológico de prácticas discriminatorias [...] categorías de lo normal y lo patológico
cómo es que opera el mismo. En este sentido, el temor a la muerte social
que activa la presencia de un cuerpo discapacitado es ocluida por la
emoción del asco a través de la fantasía de acercamiento al cuerpo sanobello. En este sentido, las fantasías actúan haciendo olvidar lo histórico
(la definición arbitraria de la categoría anormalidad), y es por ello que
regulan las sensaciones, haciendo que el conflicto pase desapercibido. Con
otras palabras, la eficacia de las fantasías sociales en tanto mecanismos
de regulación de las sensaciones radica en su capacidad de ocultar los
antagonismos de un modo pornográfico: los hace visibles eliminando el
antagonismo inherente. De esta forma, permiten naturalizar situaciones
conflictivas como formas no disruptivas (SCRIBANO, 2005).
Finalmente, en la línea de realizar un aporte desde el pensamiento
crítico a la revelación de la relación de dominación socialmente reprimida
que ancla la discapacidad en el campo de la enfermedad y la anormalidad
podemos tomar la investigación empírica como fuente de cuestionamiento
de tales prejuicios y repensar contra-hegemónicamente las nociones de
normal y patológico, salud y enfermedad. Si tomamos con Canguilhem la
afirmación de que la salud es la capacidad de instaurarse una nueva norma,
no cabría lugar a considerar a alguien que circula en silla de ruedas en lo
plano de lo abyecto. Tal como plantea la intelectual y militante feminista
Morris:
Las experiencias de envejecer, de estar enfermo, de sufrir dolor, de tener
limitaciones físicas e intelectuales, son todas parte de la experiencia
de vivir. Sin embargo tener miedo significa que existen muy pocas
representaciones culturales que generen una compresión subjetiva. El
movimiento de la discapacidad necesita incorporar el principio feminista
de que lo personal es político y afirmar el valor de nuestras vidas al darle
voz a esas experiencias subjetivas. La investigación en el ámbito de la
discapacidad, si es emancipadora, puede desempeñar un papel clave en
este aspecto (MORRIS, 2008: 323).
En este mismo sentido, resulta interesante el planteo de Ricoeur:
la enfermedad puede ser pensada en vez de cómo un defecto otro modo
45
Carolina Ferrante
de ser en el mundo, y es por ello sujeto digno de respeto16. Sin dudas
una lucha por este reconocimiento podrá darse en el cuestionamiento de
aquello que se erige como cuerpo legítimo.
Bibliografía
ABBERLEY, P. (2008). “El concepto de opresión y el desarrollo de una
teoría social de la discapacidad”. En: Barton, L. (Comp.), Superar las barreras
de la discapacidad. Madrid, Morata.
BARNES, C. (1998). “Las teorías de la discapacidad y los orígenes de la
opresión de las personas discapacitadas en la sociedad occidental”. En:
Barton, Len (Comp.) Discapacidad y sociedad. Madrid, Morata/Fundación
Paideia.
BOURDIEU, P. (2000). La dominación masculina, Anagrama, Barcelona.
--------------- (1999). Meditaciones pascalianas, Barcelona, Anagrama.
--------------- (1996). Sobre la TV, Barcelona, Anagrama.
--------------- (1991). El sentido práctico, Madrid, Taurus.
CANGUILHEM, G. (1978). Lo normal y lo patológico, México, Siglo XXI
editores.
EPELE, M. (2002). “Scars, Harm and Pain. About Being Injected among
Latina drug using women”. Journal of Ethnicity in Substance Abuse. Vol. 1, Nº
1: 47-69. New York, The Haworth Press.
“Es por ello que para el individuo considerado sano es importante encontrar en el individuo
discapacitado los recursos de convivencia, de simpatía, de vivir y de sufrir con, ligados expresamente
al estar enfermo. Que aquellos que tienen buena salud reciban esta proposición de sentido de la
enfermedad y que ello les ayuda a soportar, su propia mortalidad” (RICOEUR, 2008:182).
16
46
Un análisis sociológico de prácticas discriminatorias [...] categorías de lo normal y lo patológico
FERRANTE, C. y FERREIRA, M. A. V. (2007). “Cuerpo y habitus: el
marco estructural de la experiencia de la discapacidad”. Revista Argentina de
Sociología (en proceso de evaluación).
-------------- (2008). “Cuerpo, discapacidad y trayectorias sociales: Dos
estudios de casos comparados”. Revista de Antropología Experimental. Nº. 8,
http://www.ujaen.es/huesped/rae/articulos2008/29ferrante08.pdf.
FERREIRA, M. A. V. (2007). “Prácticas sociales, identidad y estratificación:
tres vértices de un hecho social, la discapacidad”. Revista Intersticios, Vol. 1,
Nº 2. http://www.intersticios.es/article/view/1084/854.
--------------- (2008). “Una aproximación sociológica a la discapacidad
desde el modelo social: apuntes caracteriológicos”. Revista Española de
Investigaciones Sociológicas. Nº 124, Madrid. http://www.um.es/discatif/
TEORIA/REIS_discapacidad.pdf.
--------------- (2009a). “Discapacidad, corporalidad y dominación: la lógica
de las imposiciones clínicas”. XXVII Congreso ALAS, Buenos Aires.
FERREIRA, M. A. V. y RODRÍGUEZ DÍAZ, S.(2009). “Desde la discapacidad hacia la diversidad funcional, un ejercicio de dis-normalización”.
Revista Internacional de Sociología, (en prensa).
FINKELSTEIN, V. (1980). Attitudes and Disabled People: Issues for
Discusión. New York, World Rehabilitation Fund.
FROMM, E. (1967). “Conciencia y sociedad industrial” en La sociedad
industrial contemporánea, México, Siglo XXI.
FOUCAULT, M. A. V. (2000). Los anormales. Buenos Aires, FCE.
--------------- (2006). Historia de la locura en la época clásica. Buenos Aires,
FCE..
GOFFMAN, E. (2001). Estigma. La identidad deteriorada, Buenos Aires,
Amorrortu.
47
Carolina Ferrante
HANNA, W. J. y ROGOVSKY, B. (2008), “Mujeres con discapacidad. La
suma de dos obstáculos”. En: Barton, L. (Comp.), Superar las barreras de la
discapacidad. Madrid, Morata.
HUGHES, B. y PATERSON, K. (2008). “El modelo social de discapacidad
y la desaparición del cuerpo. Hacia una sociología del impedimento”. En:
Superar las barreras de la discapacidad. Madrid, Morata.
KIPEN, E., LIPSCHITZ, A. (2009). “Demasiado cuerpo”. En: Rosato, A.,
Angelino, M. A (Coord.) Discapacidad e ideología de la normalidad. Denaturalizar
el déficit. Noveduc, Buenos Aires.
LE BRETÓN, D. (2002). La sociología del cuerpo. Buenos Aires, Nueva Visión.
MENENDEZ, E. (1990). Morir de alcohol. Saber y hegemonía médica. México,
Alianza Editorial Mexicana.
MERLEAU-PONTY, M. (1975). Fenomenología de la Percepción, Barcelona,
Península.
MONTERO-SIEBURTH, M. (2006). “La Auto etnografía como una
Estrategia para la Transformación de la Homogeneidad a favor de la
Diversidad Individual”. En: la Escuela Universidad de Massachussets-Boston.
Instituto para el Estudio de Etnias y la Inmigración Universidad de Ámsterdam.
http://www.uned.es/congreso-inter-educacion-intercultural/Grupo_
discusion_1/74.pdf.
MORRIS, J. (2008). “Lo personal y lo político. Una perspectiva feminista
sobre la investigación de la discapacidad física”. En: Barton, L. (Comp.),
Superar las barreras de la discapacidad, Madrid, Morata.
MUNCEY, T. (2005). “Doing autoethnography”. International Journal
of Qualitative Methods. 4(3), acesso: http://www.ualberta.ca/~iiqm/
backissues/4_1/pdf/muncey.pdf
OLIVER, M. (2008). “Políticas sociales y discapacidad. Algunas
consideraciones teóricas”. En: Barton, L., Superar las barreras de la
discapacidad. Madrid, Morata/ Fundación Paideia.
48
Un análisis sociológico de prácticas discriminatorias [...] categorías de lo normal y lo patológico
--------------- (1998). “Una sociología de la discapacidad o una sociología
discapacitada” en Barton, L. (Comp.): Discapacidad y sociedad. Madrid,
Morata/ Fundación Paideia.
--------------- (1990). The Politics of Disablement. London, The MacMillan
Press.
PEDRAZA, P. (2009). El mito de Hefesto: la constitución ambivalente
de la discapacidad en los orígenes de la cultura occidental. Mimeo.
RICOEUR, P. (2008). “La diferencia entre lo normal y lo patológico como
fuente de respeto” en Lo Justo 2. Estudios, lecturas y ejercicios de ética aplicada.
Madrid, Trotta.
SMITH, C. (2005). “Epistemological intimacy: A move to autoethnography”,
International Journal of Qualitative Methods. Vol. 4, Nº. 2. Acessado em
http://www.ualberta.ca/~iiqm/backissues/4_2/pdf/smith.pdf.
TOBOSO MARTÍN, M. y GUZMÁN CASTILLO, F. (2010). “Cuerpos,
capacidades, exigencias funcionales… y otros lechos de Procusto”. Política
y Sociedad. Vol. 47, N°1. Madrid, Universidad Complutense de Madrid.
VALLEJOS, I. (2009). “La categoría de normalidad. Una mirada sobre
viejas y nuevas formas de disciplinamiento social” en Rosato, A. y Angelino,
M. A. (Coords.), Discapacidad e ideología de la normalidad. Desnaturalizar el
déficit. Buenos Aires, Noveduc.
SARTRE, P. (1980). Bosquejo de una teoría de las emociones. Madrid, Alianza
Editorial.
SCRIBANO, A. (2005). “La fantasía colonial argentina” en www.rebelion.
org en el “El reino del revés”.
SCRIBANO, A. y DE SENA, A. (2009). “Construcción de Conocimiento
en Latinoamérica: Algunas reflexiones desde la Auto-etnografía como
estrategia de investigación”. En Cinta de Moebio, (en prensa).
49
Carolina Ferrante
WALL, S. (2006). An autoethnography on learning about autoethnography.
International Journal of Qualitative Methods. Vol. 5, No. 2, acessado em http://
www.ualberta.ca/~iiqm/backissues/5_2/pdf/wall.pdf.
50
Corpos em Concerto: diferenças, desigualdades e desconformidades
REGRAS E CÓDIGOS DE CONDUTA MORAL E ÉTICA:
um passeio pelo imaginário urbano e pelas vivências, reflexões
e comparações sobre a noção de sujo de homens comuns de
classe média no brasil urbano do século XXI
Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Introdução
O principal objetivo deste artigo é o de levar o leitor para uma
viagem no imaginário urbano brasileiro e nas vivências, reflexões e
comparações emitidas pelos entrevistados no decorrer de uma pesquisa
maior, em andamento, sobre “Medos Corriqueiros e Imaginário Urbano”17. O
trabalho de campo durante o ano de 2009 foi acrescido de uma enquete
sobre o que é sujo ou sujeira, aplicada nas cidades de João Pessoa (Paraíba),
Recife (Pernambuco), Belém (Pará), São Paulo (São Paulo), Curitiba
(Paraná), todas capitais de estados brasileiros, e Brasília (Distrito Federal).
São os resultados desta enquete, no interior da supracitada pesquisa maior
em andamento, do que trata este artigo.
Este trabalho, portanto, busca compreender o imaginário social
urbano do homem comum brasileiro contemporâneo através de uma
discussão sobre o que é sujo ou sujeira. Apresenta as principais categorias
emitidas sobre o que é considerado como sujo e discute a importância da
categoria Sujeira para o entendimento do Brasil urbano atual.
Sujeira e Imaginário Urbano
Um balanço da literatura sobre a importância da noção de sujo
ou sujeira nas ciências sociais se faz necessário. Os significados do
adjetivo “sujo”, encontrados em vários dicionários da língua portuguesa
Pesquisa coordenada pelo autor, no GREM – Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia
das Emoções, Universidade Federal da Paraíba, campus I, Brasil.
17
51
Mauro Guilherme Pinheiro Koury
(BUARQUE DE HOLANDA, 1980; 1992), vão dos sentidos da falta de
limpeza à sordidez; de algo manchado a maculado; de algo ou alguém
infeccionado ou contagiado até a referência a alguma coisa com muitas
incorreções ou emendas.
Dentro de um contexto físico, a noção de sujo ganha o significado
de um horizonte brumoso e mal definido. Em termos figurativos, sujo
tem o significado de algo ou alguém que encerram elementos, dados,
informações inconvenientes ou prejudiciais; bem como sinaliza algo ou
alguém indecente, indecoroso e imoral. Chega mesmo a afirmar alguma
coisa ou pessoa indigna, desonesta, sórdida ou canalha.
O emprego da palavra em evidência, no Brasil, ganha os sentidos
de alguém desmoralizado e que perdeu o crédito, alguém em quem não
se pode confiar. Contém ainda uma concepção relacional disposta nos
ditados “rir-se o sujo do mal lavado” ou “rir-se o roto do esfarrapado”, onde se
zomba de alguém por falha que também lhe é própria. Em muitos casos,
inclusive, chega a comparar o sujo e a sujeira ao diabo, demonizando o
outro e/ou a coisa considerados sujos.
A ação de sujar, deste modo, tem o sentido de tornar ou tornar-se
sujo e, ao assim fazer-se, emporcalhar. A ação de sujar não apenas atinge
o próprio indivíduo, mas possibilita a contaminação espaço-temporal
onde o ato se realizou, infectando ou poluindo o ambiente e o outro ao
redor. O objeto, o indivíduo ou a instituição onde existe, ou possuidora de
sujeira tornam-se não confiáveis, porque a sujeira comporta o elemento
do impuro, da impureza, que corrompe o espaço, o tempo e as relações
ao seu redor. Assim, corromper, perverter, depravar faz parte da ação do
sujo, de alguém ou algo que comporta sujeira. Esta ação tende a manchar,
a macular, a conspurcar, a profanar, em si, tudo o que se toca ou tudo o
que se encontra no entorno.
O simbolismo religioso está cheio da dualidade limpo-sujo, puroimpuro, como parte da trajetória do sagrado e os compromissos dos
homens para com ele; a literatura médica, também, coloca na relação entre
o puro e o impuro toda uma discussão sobre o contágio e a transmissão
de doenças, criando regras e códigos de conduta que procuram barrar
a contaminação do ambiente e dos outros por aqueles impuros ou
tocados pela impureza em sua volta. As ciências sociais estudam estas
52
Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI
duas representações da dualidade limpo-sujo, mostrando a construção
social e cultural por trás destas práticas; e demonstram a sujeira como
elemento de estratificação social (DUMONT, 2007; DOUGLAS, 1976).
Elas compreendem que as práticas sociais pressupõem regras e códigos
de conduta morais e éticos, construídos por cada cultura ou sociedade
determinada, e que essas práticas e etiquetas estão dispostas e hierarquizadas
conforme uma possibilidade hegemônica de bem estar e harmonia social.
Durkheim (2000), em seus estudos sobre o social e sua relação com a
construção societária, coloca a religião e a questão do sagrado no palco
central da constituição da racionalidade social primeva e de uma teoria do
conhecimento, e acrescenta as disposições e cuidados com a saúde como
extensão deste esforço de racionalidade.
A razão social constituída, assim compreendida, leva a crer a
religião como esforço humano e social para a compleição do indivíduo
social e suas instituições. Colocando a religião como elemento primevo de
uma explicação da relação do homem com a natureza e o sobrenatural ao
seu redor, e o colocando no centro deste universo simbólico desenhado.
Marcel Mauss (1974), em seus estudos, amplia o caráter simbólico da
formação cultural e social e põe a sociedade como instância motriz da
própria simbolização e da criação de um sistema de classificação social
que lhe é próprio, em um jogo permanente entre os homens em relação
entre si e os elementos que adotam nos avanços para a compreensão da
natureza e o sobrenatural ao seu redor, e os resultados desta relação social
corporificada como cultura.
A cultura daí emergida funda e refunda as disposições erigidas
através de um código de condutas morais e éticas, que visam a assegurar
a harmonia, o bem estar e a sempre instável relação dos homens com os
elementos da natureza e do sobrenatural ao seu redor. Criam códigos de
pureza, de purificação, e separam em graus variados os diversos tipos de
puros até o mais impuro e sujo existente.
Pureza e sujeira, portanto, são dois elementos de uma mesma
relação. Dispostos, porém, em campos hierárquicos opostos, encontrandose em eterna tensão pela possibilidade de um intervir no outro: na ação de
purificar o contaminado, ou na ação de contaminação do puro. A ordem e
a organização social estando no equilíbrio entre as duas esferas.
53
Mauro Guilherme Pinheiro Koury
A sujeira, assim, como contraponto da pureza, encontra-se no
reino da desordem, da desorganização social. É elemento que conduz à
ideia imaginária da evitação e do impedimento: do que deve ser evitado,
impedido, visto, sentido; enfim, a sujeira é vista como algo do reino da
feiúra, do abominável, e que deve ser impedido e excluído.
O sujo é aquele que provoca medo, receio. O apenas olhar o sujo ou
a sujeira provoca sentimento de nojo, de enjoo e receio de contaminação.
A ideia de polução e seu corolário contágio traz em si o desejo simultâneo
de contenção, controle e, até, extermínio.
A sujeira e tudo o que é considerado sujo remete à evitação, seja pela
busca de contenção, pela segregação, pelo isolamento, ou pelo extermínio
e morte. O imaginário social causado pelo que é considerado sujo, deste
modo, cria campos de entendimento e visão de mão dupla: de um lado,
a visão preconceituosa, que vê o outro, o contaminado, como aquele que
deve ser isolado ou excluído. De outro lado, a visão envergonhada, que
compreende e enxerga o outro através de si mesmo, como consequência da
falta de um atributo que também é seu, e que deve ser escondido do olhar
de um terceiro, ou cujos meios para a sua superação devem ser procurados.
Elias (1990 e 1993), em seus estudos sobre a conformação dos
costumes na sociedade alemã a partir do século XVIII e, principalmente,
XIX, demonstra as bases de atribuições de novos costumes e as formas
como antigos costumes foram depreciados como sujos e sujeira, no
processo de individualização crescente da sociedade alemã do período.
Mostra, ainda, como esse processo se fez pela interiorização da disciplina
e do aumento da vergonha, como movimentos de afirmação da pessoa e
do julgamento moral de si próprio e dos demais.
A sujeira vista através da vergonha, então, era sentida como
problema pessoal de cada indivíduo, não apenas no olhar para si próprio,
mas – e principalmente – no olhar para o outro. O controle social, desta
forma, colocava-se entre o indivíduo e o outro, através da vergonha e da
exposição. Tudo era permitido desde que em uma intimidade pessoal ou
dentro de uma intimidade compartilhada, nunca pública.
No público, a exposição de uma intimidade não condizente com o
social e culturalmente desejado transformava-se em abjeção, em punição,
em risco de contaminação, em desordem.
54
Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI
Sennett (1998) segue e amplia esta análise e coloca a individualidade
resultante do crescimento da esfera da intimidade como um declínio
acentuado na sociedade ocidental do homem público. O que provoca dois
processos antagônicos e simultâneos: o aumento da vergonha de exposição
em público e um aumento do controle da desordem e da contaminação
proveniente das esferas do considerado sujeira; e um desenvolvimento
enorme do reino das perversões, como possibilidade de ação pessoal ou
compartilhada no consentido, e da curiosidade de verificação do outro, do
íntimo através do buraco da fechadura.
O abjeto passa, assim, por uma mão dupla: o medo da contaminação
e a busca do controle sobre ele; e o olhar curioso, que busca flagrar o
outro em situações constrangedoras, em ambientes íntimos. Ou ainda, ao
mesmo tempo, fazendo condenar aqueles que ousam expor a si mesmos
em público e, simultaneamente, exibem-se perante o pressentimento de
que alguém disfarçadamente os observa.
O público, deste modo, coloca-se como prisioneiro do privado
e, como tal, fragmenta-se e é apropriado pelo espaço da intimidade:
ampliando as bases do individualismo e subsumindo o sujeito à esfera do
desejo e da ampliação do sentimento da vergonha, e da ação envergonhada
sobre seus próprios atos e da própria sociedade que o cerca.
Simmel, em seu texto A tragédia da cultura (1998), dá as bases teóricas
iniciais que orientariam posteriormente as análises de Sennett (1998) e
Elias (1990; 1993).
Goffman (1967), perseguindo os caminhos inspirados na análise
simmeliana, estuda os processos de interação ritual e apreende que as
relações entre os indivíduos são executadas e preenchidas por um ritual
de conveniências e convenções sociais, onde o um e o outro respondem
aos sinais esperados no decorrer do processo interativo: desde a forma de
sentar, os gestos, as expressões e ruídos corporais e da face, até o expresso
através da fala fazem parte de uma ritualística que, se falha, causa no outro
constrangimento, deste modo, simultaneamente, a constranger o outro
da relação. A falha desorganiza e é considerada como algo que provoca
sujeira, ou que suja o ambiente, podendo, em determinadas situações,
contaminar a todos os presentes.
55
Mauro Guilherme Pinheiro Koury
O processo de desorganização social causado pelo constrangimento
afeta as relações entre os parceiros da conversação, podendo o que falhou
ser desculpado ou até ser expulso e evitado de novas possibilidades
interativas. O ritual poluído indica situações de desordem que desorganiza
todo o ambiente, quando não o contamina.
Em outro estudo sobre o estigma, Goffman (1988) vai mais além e
revela que essa desordem não só se coloca nas formas de comportamento
e de expressão, mas também em situações onde o outro da relação
possui algum traço que o diferencia negativamente do parceiro ou dos
parceiros da relação. Ele cita exemplos que vão do uso de óculos com um
grau elevado para correção de miopia até a presença de sinais e marcas
corporais: de uma simples pinta inconveniente em uma parte exposta do
corpo do parceiro até um diferencial ligado a questões étnicas, posturas
ou má-formação.
Em outros exemplos, ele coloca aspectos mais diretamente ligados
a costumes e moda: como o fato de não estar vestido de forma condizente,
e o de não possuir vocabulário harmônico com o ambiente em que se
encontra. Em mais outros exemplos, fala diretamente de aspectos sociais
ligados à esfera econômica, como ser pobre ou aparentar pobreza, ou
como ser de classe social considerada inferior à do ambiente em que se
encontra, entre outros.
O constrangimento podendo mesmo transformar o ambiente em
um meio hostil, pondo fim à relação encetada, chegando a conduzir à
promoção do isolamento ou à expulsão do constrangedor; ou, mesmo,
concedendo formato de humilhação àquele que constrangeu o ambiente
com o seu diferencial, servindo aquele de chacota e piadas entre os pares.
A sujeira e a convivência com o sujo provocam um sentimento moral
de rejeição que, se levado a extremo, conduz à busca de exclusão ou
de extermínio do agente contaminador, ou provoca vergonha sobre o
ambiente que o recebeu.
Do mesmo modo, no indivíduo possuidor de algo considerado
diferente e visto como desagradável ao ambiente em que se encontra, é
provocado um sentimento de humilhação, de acovardamento, de vergonha
pessoal por ser possuidor de algo que constrange o outro, ou por não
se encontrar à altura do outro, ou dos outros, da relação. Assim, este
56
Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI
indivíduo vive em permanente culpa por não ser igual, e sua baixa estima
o faz sentir-se inferior.
Simone Weil (1979) - em seus estudos sobre a opressão e a condição
operária - relata, em seu diário, o processo de vergonha e baixa estima
que acompanha o ato cotidiano da pobreza operária. Relata a vergonha
e a culpa sentida por ela, quando, ao sair da fábrica, depois de um dia
extenuante de trabalho, senta-se em um ônibus para voltar para sua casa.
Ela fala do sentimento de aversão à sua condição, que possivelmente iria
causar no outro usuário, interiorizado, e se pergunta se ela tem o direito,
mesmo pagando pelo transporte público, de sentar-se e sujar com sua
pobreza e cansaço o ambiente do ônibus.
Esse estado-limite de emoção demonstra como o sentir-se impuro,
sujo, indigno, incapaz, diferente, advoga ao espírito de quem assim se
sente, e dá o direito, àqueles que assim o consideram, da atribuição de um
estigma social. Deste modo, desenvolve-se um conceito moral socialmente
produzido que objetiva algo ou alguém que não é limpo, em todas as
acepções.
Lévi-Strauss (1970, pp. 107 a 164), analisando o mito “a viagem
de canoa da lua e do sol”, na série: Mitológicas – A origem dos modos à mesa,
diferencia a sujeira em três tipos: a sujeira no sentido próprio (representada por
excrementos, bichos peçonhentos, inabilidades e falta de aproveitamento
pessoal, falta de higiene etc.); a sujeira no sentido metafórico ou figurada
(vergonha da condição pessoal, feiúra, velhice, entre outros aspectos)
e a sujeira metonímica (no sentido de que eles, os outros, a produzem e,
portanto, podendo ser nominada como um tropo onde o que ou quem
produz sujeira pode ser designado como a própria sujeira; no caso do
mito analisado, os urubus). Essa diferenciação metodológica é importante
nos estudos da polução, pois ajuda a compreender a separação da sujeira
em si das formas de assimilação cultural e simbólica do que é sujo, e
dos sentimentos que envolvem os personagens na cena social: os que se
sentem sujos, os que são tocados pela sujeira e podem ser contaminados
e a própria nominação do sujo, como apropriação do universo por ele
desorganizado para designar a própria sujeira e, assim, objetificar um
preconceito ou estigma social.
57
Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Em alguns estudos realizados por acadêmicos brasileiros, como os
de Barbosa (2006) e de Fleischer (2002), que trabalham com o imaginário
sobre a sujeira no Brasil contemporâneo e entre as housecleanners brasileiras
nos Estados Unidos, por sua vez, a diferenciação metodológica do sujo
é feita entre a sujeira física e a sujeira simbólica. A sujeira física tendo, em si,
o próprio significado do que é considerado impuro, e a sujeira simbólica
representando o imaginário social sobre o considerado impuro (sujeira
física) e as formas de controle cultural e social sobre ele. Neste universo
trazido por Barbosa e Fleischer, balizados nos estudos de Mary Douglas
(1976 e 2005), da sujeira como algo fora do lugar, a questão da ordem é
vista como não apenas a organização da desordem provocada pela sujeira
(física), mas no seu combate permanente.
Este mesmo sentido de diferenciação é trazido à tona no estudo de
Caldeira (2000), ao estudar o sentimento de medo e a fragmentação dos
laços sociais na cidade de São Paulo. Para ela, baseada nos estudos sobre
pureza e polução de Mary Douglas, é “a clareza das categorias que permite o
controle do perigo e a manutenção da ordem social” (p. 41).
Adrian Forty (2007), ao estudar os objetos de desejo na sociedade
ocidental desde o ano de 1750, também se baseia em Mary Douglas para
discutir a arquitetura, o designer e o conceito de limpeza, e a imagem da
higiene das formas. Diz que, principalmente, a partir do século XIX, o
conceito de limpeza ocuparia um lugar significativo na obra de muitos
designers, chegando mesmo a ser confundido com o conceito de ordem e
beleza.
A sujeira é, então, definida por ele, também com base em Douglas
(1976), como “matéria fora do lugar: o sujo é o rótulo que atribuímos ao que
percebemos como desordem, estado muitas vezes considerado ameaçador” (FORTY,
2007, p. 217). Segundo Forty (2007, p. 221), nas campanhas para a melhoria
dos padrões de limpeza foram utilizados pelos reformadores e higienistas
dois tipos de argumentos. Estes dois argumentos influenciavam um ao
outro de forma concomitante, produzindo um imaginário social propício
para uma sociabilidade em que a vigilância constante de si e do outro era o
lema de sua própria existência e sentido (FOUCAULT, 1986).
O primeiro tipo de argumentos recorria à razão e se baseava em
critérios científicos, como foi o caso da ordem médica e os perigos de
58
Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI
contaminação causados pela falta de higiene e doença. Este primeiro tipo
de argumento atingiria a arquitetura e as formas criadas por designers, em
ambientes claros, de formas precisas, que exalassem funcionalidade e
asseio, bem como um conjunto de ordens médicas e sociais de controle
do impuro: ampliação de vias públicas; disciplinamento das casas;
combate à doença e a insalubridade; desqualificação do saber popular
sobre higiene e saúde; criação de espaços exclusivos para os mortos: os
cemitérios; comparação da pobreza à sujeira e delinquência; criação de
asilos de mendicância, entre outros18. O segundo tipo de argumento era,
sobretudo, de ordem emotiva, e estimulava os sentimentos de ansiedade
e culpa em relação à sujeira.
A dimensão da desordem social é igualada à sujeira, e os esforços
para combatê-la considerados como possíveis ajudas para unificar a
experiência. “Só exagerando a diferença entre dentro e fora, acima e abaixo, macho e
fêmea, a favor e contra, é que uma aparência de ordem é criada” (DOUGLAS, 1976,
p. 4). Para Mary Douglas (1976, p. 5), portanto, rejeitar a sujeira equivale
a rejeitar a ambiguidade, a anomalia e a desordem dentro de um contexto
de uma ordem social e cultural específica: “a reflexão sobre sujeira envolve
[sempre uma] reflexão sobre a relação entre ordem e desordem, ser e não ser, forma e
ausência de forma, vida e morte”.
Vernant (2002, p. 281), resenhando Mary Douglas, acrescenta que
“é sujo o que só pode ser pensado como anomalia, aquilo cujo estatuto aparece como
ambíguo, marginal e que questiona, por não ser integrado, a ordem da qual o grupo é
solidário e cuja perpetuação deseja garantir”. Desta forma, a sujeira, e tudo o que
representa o negativo e o outro com relação a um sistema de organização
social e cultural, deve ser enfrentado com vistas à reconfiguração da ordem
social.
A sujeira também pode vir a ser integrada, - quando submetida a
uma adaptação e uma acomodação dos preconceitos culturais existentes
sobre ela; neste formato é remetida à ordem social como nova forma de
expressão do olhar sobre o real. No movimento fotográfico dos anos de
1920, alguns aspectos da feiúra, do abominável, do que causava asco e
Para uma visão de autores que trabalharam com essas questões ver, entre outros, Thompson
(1989); Áries (1989); Davis (1990); Foucault, (1986 e 2007), entre outros. No Brasil ver os estudos
de Koury (1986 e 2003); Diniz (2001); Reis (1991); Sá (1999), David (1995), entre outros.
18
59
Mauro Guilherme Pinheiro Koury
aversão, foram reconfigurados sob uma nova estética que os transformava
em beleza. O feio é belo. A diferença marca, então, o elogio do plural
(SONTAG, 1977; KOURY, 1998). Satisfaz a reflexão de que as coisas e as
pessoas nunca são sujas em si, mas tornam-se sujas quando ocupam lugar
que contradiz o sistema de classificação social determinado, nos quadros
de uma cultura e de uma sociabilidade dadas.
Toda análise e indagação que se debrucem sobre a sujeira, desta
forma, têm por base uma reflexão das relações entre a ordem e a desordem
e das relações possíveis entre os aspectos positivos e negativos dos
processos de criação social. Processos que envolvem o binômio limpo e
sujo, puro e impuro, os silêncios ou silenciamentos, e os discursos mortos
e esquecidos ou subsumidos na lógica hegemônica social (KRISTEVA,
1986), que podem ampliar conceitos, revisá-los e integrá-los à ordem, em
uma subversão de identidade, onde se acomoda a outrora desordem à
lógica contemporânea da ordem.
Estudar o comportamento e o imaginário social urbano do
brasileiro atual sobre sujeira, deste modo, leva à reflexão e à busca de
compreensão sobre as mudanças no comportamento e nos costumes dos
homens comuns, moradores das grandes cidades brasileiras, e dos medos
e receios por eles enfrentados na cotidianidade.
Informações básicas sobre a pesquisa
Durante o primeiro semestre de 2009 foi realizada uma enquete
em cinco capitais de estados brasileiros (João Pessoa, Recife, Belém, São
Paulo, Curitiba) e no Distrito Federal com o objetivo de saber qual o
imaginário urbano sobre sujeira e o que é sujo no Brasil de hoje.
A aplicação dos questionários para o desenvolvimento desta
enquete se deu durante o trabalho de campo para a coleta de dados para
uma pesquisa maior, intitulada Medos corriqueiros e Sociabilidade urbana
no Brasil19, sob a coordenação do autor. A questão de “o que é sujo”
relacionado com “o que é medo” apareceu várias vezes em entrevistas
Para resultados relativos à pesquisa Medos corriqueiros e sociabilidade urbana no Brasil, ver, entre outros
trabalhos: Koury (2005, 2006, 2007 e 2008).
19
60
Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI
realizadas na primeira e segunda fases da pesquisa Medos Corriqueiros,
chamando a atenção do autor. Daí haver aproveitado um momento de
treinamento e aproximação com os locais onde a nova fase da pesquisa
se daria para trabalhar a problemática do que é sujeira para os habitantes
urbanos de seis capitais de estados do Brasil.
Uma enquete nada mais é do que uma fotografia de um momento
determinado, um instantâneo das inquietações dos entrevistados na ocasião
em que foram abordados e concederam a entrevista. Assim, reflete apenas
um momento, um estado de espírito dos acontecimentos e situações que
interferem nas suas vidas em um tempo-espaço específico; o que pode
mudar, se a mesma enquete for aplicada em outro dia, mês ou ano.
Esta indicação é importante para enfatizar o aspecto superficial
para o conhecimento científico de uma enquete e, também, para indicar
que fotografias de momentos, se aplicadas em vários períodos de tempo
nos mesmos espaços, podem ser comparadas e podem indicar conjuntos
de inquietações identificadoras de um perfil comportamental de uma
comunidade ou de uma nação. Daí sua significância para a pesquisa social.
Mesmo que uma enquete seja aplicada apenas em um tempoespaço, a fotografia revelada através das respostas dos entrevistados
fornece ao pesquisador subsídios importantes para a compreensão de
hábitos, costumes, anseios, problemas e inquietações de uma população
dada, que podem servir para a ilustração de fenômenos, mesmo que
flutuantes, já que compõe apenas um instantâneo, na análise social.
Portanto, a fotografia conseguida pela enquete do país, através
de uma amostragem em seis capitais, permite indicadores analíticos em
termos da cultura política, dos medos, receios e anseios, dos costumes,
a partir das informações obtidas dos entrevistados, tornando possível
ao pesquisador levar o leitor a um passeio sobre o imaginário brasileiro
urbano nacional. Permite, também, revelar ao leitor as vivências, reflexões
e comparações emitidas pelos entrevistados da enquete, acionadas por
uma temática específica: no caso a enquete proposta pelo autor, sobre “o
que é sujeira, ou sujo” para o entrevistado.
61
Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Uma breve análise das categorias encontradas
nas falas dos entrevistados
Foram entrevistadas 390 pessoas de ambos os sexos, com idade
mínima de 15 anos, no conjunto das seis cidades trabalhadas, sendo 90
entrevistados para a cidade de São Paulo e 60 para as demais cidades da
amostra. A abordagem foi feita de forma aleatória, em pontos de grande
movimento ou aglomerações de pessoas, em diversos locais de cada
cidade pesquisada. As pessoas que se dispuseram a conceder a entrevista
ao pesquisador foram colocadas frente a duas questões básicas: “o que é
sujo ou sujeira?” e “o que indica como sujo ou sujeira?”.
As respostas a estas questões foram tabuladas e agrupadas em
12 grandes categorias analíticas: Falta de Higiene, Fluidos, Imoralidade,
Falta de Confiança, Gente Fraca, Preconceito Étnico, Mendicância
(Gente Pobre e Suja), Homossexualidade, Falta de Consciência Ecológica,
Violência Urbana, Desrespeito ao Cidadão e Falta de Zelo com a Coisa
Pública. Estas categorias ajudaram o pesquisador a perceber as grandes
temáticas indicadas pelos entrevistados dentro de uma perspectiva de cada
cidade pesquisada e sua comparação, fornecendo um mapa do imaginário
sobre o que é sujeira ou sujo para o homem comum urbano brasileiro.
Para a análise deste trabalho, estas 12 grandes categorias encontradas
nas falas dos entrevistados foram sintetizadas em quatro: a categoria
de Moralidade (que engloba as categorias de falta de higiene, fluidos,
imoralidade, falta de confiança e gente fraca); a categoria de Preconceitos
(que engloba as categorias de homossexualidade, etnia e mendicância,
gente pobre e gente suja); a categoria de Violência Urbana; e, por fim, a
categoria de Ética, política e cidadania.
Interessa, aqui, apenas apresentar as categorias indicadas, tendo em
vista a discussão feita acima sobre sujeira e sociabilidade. Não interessa,
contudo, no âmbito deste artigo, trabalhar a questão no âmbito de gênero,
nem de faixa etária ou econômica. Privilegiar-se-ão, sobremodo, as respostas
dadas pelos informantes, de uma forma geral, na medida em que se quer
entender o homem comum brasileiro e o seu pensamento imaginário sobre
a questão da sujeira e do sujo, independentemente do cruzamento por sexo,
62
Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI
idade, escolaridade, renda ou religião; mesmo sabendo dos perigos que se
corre na utilização de generalizações que poderiam ser aprofundadas pelas
categorizações dos agentes das informações: os entrevistados.
A categoria de Moralidade
QUADRO I – A Categoria Moralidade - %
Moralidade
João Pessoa Recife Belém São Paulo Curitiba Brasília Brasil
Falta de Higiene
16,7
11,7
10,0
8,9
23,3
13,3
13,6
Fluidos
13,3
3,3
5,0
4,4
15,0
6,7
7,7
Imoralidade
11,6
5,0
6,7
3,3
-
5,0
5,1
Falta de Confiança
8,3
5,0
8,3
4,4
11,7
-
6,2
Gente Fraca
5,0
1,6
1,6
-
-
-
1,3
Total
54,9
26,6
31,6
21,0
50,0
25,0
33,9
Como pode ser visto no Quadro I, acima, esta categoria engloba o
maior numero de indicações dos entrevistados sobre o que eles afirmaram
por sujeira. Dos 390 entrevistados no Brasil, 33,9% significaram a sujeira
através de uma categoria que remete diretamente para o campo simbólico
do puro-impuro, da limpeza-sujeira. Dualidades que operam com um
conjunto de classificações sociais que remetem o sujo à desordem, à
desorganização, à mentira e à perversão.
As subcategorias que compõem a categoria de Moralidade podem
ser divididas em dois grupos de situações. O primeiro dizendo respeito à
sujeira física do corpo e do ambiente, onde se encontram a falta de higiene
e os fluidos (escarros, excrementos, saliva, sangue, urina, lágrimas, cheiros
etc.); e o segundo, que diz diretamente da questão do caráter, e encontra-se
presente entre as perversões, a fraqueza pessoal, a preguiça, o cansaço, a
falta de vontade, e a falta de confiança: traição, mentira, desonestidade etc.
Ao se olhar a categoria de Moralidade, vê-se que ela corresponde a
33,9% da resposta dos brasileiros e varia de acordo com a cidade pesquisada:
chega a 54,9% em João Pessoa e 50% em Curitiba, descendo para 31,6%
na cidade de Belém, 26,6% em Recife, 25% em Brasília e 21% em São
Paulo. O apontar como sujeira esses aspectos morais, associados à questão
63
Mauro Guilherme Pinheiro Koury
da falta de educação e da conformação do caráter, parece demonstrar uma
preocupação com a desordem inerente à própria subjetividade que cada
subconceito emite: os riscos com a saúde, provocados pela falta de higiene
doméstica e da cidade, e a possibilidade de transmissão de vírus pela falta
de cuidados básicos são receios emitidos e são exemplos desse processo;
assim como, como lembra Rebouças (2000), a desordem causada pela
sujeira, como falta de ordenação, causando desequilíbrio nos indivíduos
em relação e no todo social.
Do mesmo modo que o elemento de sujeira, apontado nos atos
obscenos e na sociedade que não põe limite à exposição dos corpos e das
perversões, fala da desordem e dos perigos inerentes a se viver em uma
época onde “o respeito aos costumes e às tradições, ao bom comportamento e à família
não mais existem”, como argumentou uma entrevistada.
Esta categoria, com suas subcategorias, assim, parece apontar para
a análise de Elias (1990 e 1993) sobre a autodisciplina e a vergonha causada
pela desordem do outro, porque reflete a sua própria indisciplina e da sua
cultura; e de Sennett (1998) e Giddens (2004), que direcionam o olhar para
o declínio do público e a ascensão da intimidade. E uma e outra levam na
direção de alguma coisa fora do lugar, no sentido dado por Mary Douglas
(1976), que incomoda e que causa vexame, que enoja e causa vergonha e
receio de contaminação.
Os elementos físicos da sujeira, presentes nas subcategorias da
categoria Moralidade, por outro lado, parecem direcionar a reflexão dos
entrevistados para a dimensão metonímica da sujeira sugerida por LéviStrauss (1970), apontando aqueles que a cometem como porcos, como
imundos e, na direção da perversão, de amorais e permissivos; são eles quem a
produzem, são eles os sujos, os que causam sujeira e poluem o ambiente,
contaminando o ambiente ao redor e, pior, envergonhando e contagiando
a todos, pois a sujeira, nesse momento, passa a ser representada na sua
dimensão simbólica e generalizante; é a sociedade permissiva que fecha os
olhos à falta de educação e à quebra dos laços da tradição, ocasionando
uma fragmentação que atinge a todos: a sujeira produzida emporcalha não
só quem a produziu ou consentiu, mas a todos.
Esse corromper simbólico, que contamina o social, parece produzir
um sentimento de impotência em cada indivíduo presente, o que aumenta
64
Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI
o receio de contaminação e o medo de relacionar-se, ocasionando um
sentimento de reserva pessoal e a ampliação do isolamento pessoal ou
familiar, ao mesmo tempo em que provoca o crescimento de uma aversão
sobre aqueles causadores da sujeira. O nojo incitado parece ser pertinente a
emoções, comportamentos ou impressões que causam vergonha e pudor:
as funções de excreção e sexuais do corpo humano (CONY, 2005, p. 52).
A indicação da categoria Moralidade como sujeira traz em si uma espécie
de reação que condena qualquer pessoa, qualquer objeto ou qualquer ideia
que seja capaz de confundir ou contradizer as classificações tidas como
ideais e colocadas, pelos entrevistados, no plano de um passado fantasiado
como melhor, mas perdido e sem retorno.
Reflexão esta que encaminha a análise para a segunda categoria: a
dos Preconceitos.
A Categoria Preconceito
Quadro II – A Categoria Preconceito - %
Preconceito
Homossexualidade
Mendicância,
Gente pobre,
gente suja
Preconceito
Étnico
Total
João Pessoa Recife Belém São Paulo Curitiba Brasília Brasil
6,7
6,7
13,3
5,6
1,7
5,0
6,4
10,0
11,7
6,7
10,0
6,7
11,7
9,5
-
-
-
3,3
3,3
-
1,3
16,7
18,4
20,0
18,9
11,7
16,7
17,2
A categoria Preconceito agrupa três subcategorias analíticas
que dizem respeito à questão da homossexualidade, da pobreza e do
preconceito étnico. Ela traz a indicação de 17,2% dos brasileiros, que
a veem como sujeira. É uma categoria que permanece uniforme nas
indicações em cada cidade pesquisada, como pode ser visto no Quadro II.
Exceto o preconceito étnico, apontado apenas por duas capitais, São Paulo
e Curitiba, as outras duas outras subcategorias possuem variação mínima
entre as cidades, com ressalva da cidade de Belém para a subcategoria
Homossexualidade, que aparece com um índice de 13,3%, diferenciandose dos apresentados nas demais cidades.
65
Mauro Guilherme Pinheiro Koury
A categoria Preconceito revela a formação de estigmas sociais
graves segundo os quais os outros da relação encontram-se fora dos
padrões classificatórios da cultura de que fazem parte. Dentro de uma
relação sujeira-limpeza, puro-impuro, estes estigmas se constituem em
marcas que procuram naturalizar e impor modos de agir e posturas sociais
e culturais através dos quais fabrica o outro da relação como alguém
fora do lugar, como um desclassificado social, como um ser de segunda
categoria, ou mesmo, nas formas mais radicais de comportamento, como
um não ser.
No caso da homossexualidade, a aversão aos que a praticam é vista
através da desordem causada no sistema classificatório macho-fêmea,
causando ansiedades. Estas estigmatizações aparecem quando as fronteiras
externas de uma dada cultura, ou quando as linhas que delineiam as
relações internas de uma sociabilidade, são ameaçadas. O medo do perigo
das situações que não se encaixam nos sistemas classificatórios ideais
parece pôr a pessoa em constante tensão e medo, daí a tendência a isolar
o elemento da desordem e impor a ele atributos de demonização, como
produto de forças malignas, impondo uma eterna vigilância.
Em uma sociedade carnavalizada como a brasileira, os espaços de
identificação da hierarquia macho-fêmea se fazem sentir no crescimento
da homofobia, mas, ao mesmo tempo, parece haver relativa tolerância ao
macho (hetero) que se veste de mulher em momentos festivos; bem como
com relação ao lado festivo das bichinhas20, claro, “desde que elas se coloquem no
seu lugar”, como afirmou um entrevistado, isto é, em uma espécie de limbo
onde não reivindiquem inclusão social, nem busquem quebrar os limites
classificatórios do entendimento do gênero.
“Elas lá e nós cá”, afirmou outro entrevistado, que diz, inclusive, que
gosta de ver “as bichinhas desfilarem em frente do meu ponto de ônibus, quando volto
para casa no final do expediente”. Ou, como afirma outro entrevistado:
Gosto de ver essa viadagem na televisão, imitando cantoras, sorridentes, umas
verdadeiras artistas... Acho mesmo que é lá, do outro lado do vidro da televisão, que
Bichinha, viadagem são termos muito usados no vocabulário popular brasileiro para designar o
homossexual masculino, individual ou em grupo. Vários entrevistados usaram os termos na busca
de desqualificar o ser humano homossexual e reclassificá-lo sob a ótica do pejorativo.
20
66
Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI
elas deveriam permanecer, como artistas inatingíveis, deusas. Mas isso não acontece.
Elas são homens, e como tal ameaçam a nossa própria integridade moral.
A essa altura, o discurso muda para o preconceito e aversão mais
aguda, simbolizando o lado diabólico do homem-mulher e a desordem
provocada por essa desorganização.
A maior parte dos que informaram a homossexualidade como
sujeira, porém, advogam o isolamento e a rejeição total daquele que se
desvirtua. Na cidade de Belém, várias mulheres e homens chegaram a
aplaudir mães e pais de família que, ao descobrirem a tendência dos seus
filhos para a homossexualidade, os expulsarem de casa. Em João Pessoa e
São Paulo muitos creditam a desordem provocada pela homossexualidade
aos males contemporâneos, entre eles, a AIDS é apontada como produto
gay, bem como a degeneração dos costumes sociais em que vive o Brasil
atual.
A questão do preconceito étnico, por outro lado, só apareceu
diretamente e de forma irrisória em duas capitais pesquisadas, as cidades de
São Paulo e de Curitiba, ambas com 3,3% das indicações dos entrevistados.
Nas duas cidades, embora os negros apareçam como a indicação mais
precisa, chineses (coreanos), árabes, judeus e ciganos surgem também
como indicações de estigmas sociais e são motivos de chacotas. Judeus e
árabes aparecem como agiotas e ladrões no imaginário dos entrevistados
que o afirmaram como sujos, os chineses e coreanos aparecem como
contrabandistas, e os ciganos como marginais em potencial.
São vistos como elementos de desordem e perigo, principalmente
se além de problemas étnicos apresentarem a questão da pobreza em seu
currículo. Se ricos, ou de classe média alta, a questão da etnia deixa de ser
significativa, passando a haver certa tolerância em aceitar a diferença no
ambiente social e mesmo familiar.
A subcategoria Pobreza, assim, funda o grande hiato entre os
brasileiros. Esta subcategoria presente na categoria Preconceito aparece,
no imaginário dos entrevistados, ligada ao estigma de classe. São os pobres,
os mendigos, considerados sujos, sem educação, sem acesso aos códigos
de higiene e que enfeiam e sujam a cidade. São ameaçadores em si, vistos
67
Mauro Guilherme Pinheiro Koury
como marginais e ladrões, que provocam medo e receio na população.
São vistos como drogados, maltrapilhos, que surgem de repente nos
sinais de trânsito de cada cidade pedindo dinheiro ou assaltando. São não
confiáveis, abjetos, elementos estranhos estabelecidos pela extrusão e
que devem ser mantidos sob rígido controle social para que não avancem
sobre o organizado e ameacem os cidadãos. Sim, a pobreza não é vista
pelos entrevistados através do conceito de cidadania, mas, ao contrário,
como elemento da desordem e da fragmentação social. Ou, como afirmou
um entrevistado:
[...] vejo um maltrapilho na rua e fico trêmulo, confuso, com medo. Se houver um canto
que eu possa atravessar, eu sigo, mesmo que aumente o caminho, pois me sinto mais
seguro por não passar frente a ele... Eu tenho pena das crianças, mas é uma pena de
uma criança geral, não aquela que está ali, com um vidro de cola, drogado, na minha
frente. Dessa eu corro, como corro do seu pai, da sua mãe, de quem lá que seja... Acho
que o governo deveria achar um jeito de por essa gente sob controle, pois vai chegar o
dia em que essa gente vai nos por sob controle, o controle do medo. Como já existe por
aqui... é só olhar em volta e ver; é só olhar os jornais e vê....
Ao ser vista como bandida, através da ótica do medo de que “vai
chegar o dia em que essa gente vai nos por sob controle...”, a pobreza urbana é
estranhada, e sobre ela paira o desejo dos cidadãos de que seja retirada do
corpo social, afastando o perigo que ameaça o entrevistado, sua família e
a sociedade em geral.
A categoria Violência Urbana
QUADRO III – A Categoria Violência Urbana - %
Violência
Urbana
João Pessoa Recife Belém São Paulo Curitiba Brasília Brasil
Violência Urbana
5,0
11,7
10,0
39,0
20,0
23,3
19,7
Total
5,0
11,7
10,0
39,0
20,0
23,3
19,7
Esta categoria está associada à pobreza urbana e a sua demonização,
situação em que pobres e mendigos são vistos como sujos, como bandidos
68
Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI
em potencial. Ela responde por 19,7% dos brasileiros que a indicaram
como sujeira (Quadro III). O medo da violência e sua associação com a
pobreza, porém, varia para cada cidade pesquisada em particular. Assim, na
cidade de João Pessoa apenas 5% dos entrevistados indicaram a violência
urbana como algo sujo e que lhes incomodava; na cidade de Belém, por
seu turno, o índice é de 10%; na cidade do Recife, apesar de a cidade
ser considerada pela mídia e pelas estatísticas nacionais como uma das
cidades mais violentas do país, o índice de indicação dos entrevistados é de
11,7%. Em Brasília e Curitiba, as indicações da violência como algo sujo
e que amedronta e intimida os entrevistados sobem para 23,3% e 20%
respectivamente; a cidade de São Paulo, por sua vez, apresenta o índice de
39% e detém o maior índice de indicações da violência urbana como algo
sujo, que assusta os informantes.
Muitos dos entrevistados são claros na relação que estabelecem entre
pobreza e violência, e no medo e sentimento de insegurança permanente
que apresentam, mesmo no interior de suas casas. Uma entrevistada da
cidade de São Paulo, por exemplo, fala do pânico diário de sair de casa,
depois que “fui encurralada no meio de um tiroteio entre polícia e moradores da
favela próximos” a sua residência. Um entrevistado de Brasília informa sobre
os sequestros-relâmpago que assolam a cidade, “onde qualquer um pode ser
vítima, e se não tiver dinheiro, pior, bau, bau, é morte certa”. Uma respondente
de Curitiba, por seu turno, fala dos assaltos nos pontos de ônibus e nos
parques da cidade, que a fazem ter medo de se deslocar; ela afirma que
“se eu não tivesse que trabalhar vivia trancada em casa, sem sair para nada. Pedia
tudo por telefone ou internet”. Um entrevistado de Recife fala que “nunca fui
assaltado, mas morro de medo de que isso aconteça”, e conta que o vizinho ao
lado de sua casa teve um revólver apontado para a sua cabeça na hora em
que abria a garagem e que, por sorte, só lhe foi tirado apenas o carro. Um
respondente de Belém fala da insegurança de viver na cidade, com assaltos
constantes e arrastões. Um entrevistado de João Pessoa fala do gasto com
a segurança que vem tendo nesses últimos anos. Informa que o bairro em
que mora, Cabo Branco, transformou-se de um bairro pacato, onde todos
se conheciam, para um lugar perigoso, onde os moradores têm medo de
sair de suas casas; contou-nos que vive trancado, com muros altíssimos,
cheio de grades e apetrechos de segurança: “Vivo numa prisão”, informa,
69
Mauro Guilherme Pinheiro Koury
“com medo até de botar o nariz pra fora de casa”. Todos os depoimentos relatam
o medo generalizado, reforçando a ideia de “separação, purificação, demarcação
e punição das transgressões” (DOUGLAS, 1976, p. 4), e dos transgressores
como pobres e bandidos, em uma correlação onde um e outro se misturam
e tornam-se um todo homogêneo e indiferenciado, como categorias
excluídas da estrutura formal do poder e consideradas sujas, poluidoras e
ameaçadoras.
A associação entre pobreza e crime acompanha as sociedades
ocidentais de longa data. No Brasil, desde o final do século XIX, com o final
da escravidão, a necessidade de conter um contingente de trabalhadores
livres, em número crescente, que aportavam nas cidades, levou a todo um
processo de formação de leis que objetivavam a disciplina e o controle
social, moral e higiênico das classes trabalhadoras. Novos controles
prisionais, orfanatos, abrigos de mendicância, registros profissionais
como controle e garantia do pobre trabalhador, entre outras formas de
contenção, são produtos desta fase de consolidação do capitalismo no
ocidente e no país.
No século XXI, esta associação tem provocado novas formas de
reconfigurações sociais nas cidades. Caldeira (2000), por exemplo, estuda as
transformações ocorridas na cidade de São Paulo nas duas últimas décadas
do século XX, apontando para a crescente fragmentação dos laços sociais
entre cidadãos e pobres. Pobres, aqui, considerados como o outro, como
o fora de lugar na ordem classificatória social, a não ser como um não ser,
via desordem, isto é, como bandidos em potencial.
Sonia Ferraz (2001), em um trabalho sobre as formas de morar
nas cidades brasileiras neste início do século XXI, analisa a intensificação
do medo generalizado de morar nas cidades e a arquitetura resultante da
relação entre violência e pobreza. Para ela, o estreitamento da relação
homem pobre e violência urbana é um fato construído diariamente
pela mídia e que vem sendo capaz de produzir a sensação crescente de
insegurança e medo das elites em relação à pobreza, contribuindo para
uma maior segregação social e física e para o crescimento do mercado de
proteção.
Marcelo Souza (2008), discutindo a relação entre medo e cidade,
e tendo como referência as grandes cidades brasileiras, fala sobre o
70
Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI
sentimento de insegurança que parece cada vez mais compor o cenário das
cidades brasileiras, como se estivesse presente em todo lugar, a qualquer
momento. Afirma que esse sentimento crescente e generalizado de
insegurança toma conta de todos os habitantes urbanos. E, deste modo, é:
[...] como se a ‘geografia do medo’... muitas vezes parece deslocar-se em parte da
incidência objetiva dos crimes violentos, [e] se superpusesse à ‘geografia da violência’...
[provocando] um medo generalizado... matizado de acordo com a classe, a cor de pele,
a faixa etária, o sexo e o local de residência, [que] toma conta de corações e mentes
(SOUZA, 2008, p. 54).
Tal medo generalizado atua recondicionando hábitos de
deslocamento e lazer, influenciando formas de moradia e modelando
discursos-padrão sobre a violência urbana, que reascende, amplia e
consolida o próprio medo no íntimo de cada habitante em toda a cidade.
A categoria Ética, Política e Cidadania
Quadro IV – A Categoria Ética, Política e Cidadania - %
Ética, Política e
João Pessoa Recife Belém São Paulo Curitiba Brasília Brasil
Cidadania
Desrespeito ao
6,7
23,3
11,7
10,0
8,3
10,0
11,5
Cidadão
Falta de Zelo com
16,7
15,0
16,7
11,1
8,3
25
15,1
a coisa pública
Falta de
Consciência
5,0
10,0
1,7
2,6
Ecológica
Total
23,4
43,3
38,4
21,1
18,3
35,0
29,2
Esta categoria foi a que mais chamou a atenção do pesquisador
pelo grande número de respondentes que afirmaram a política brasileira
como algo sujo, 29,2%, o que corresponde a 114 entrevistados.
Como pode ser visto no Quadro IV, os 29,2% de brasileiros que
indicaram como sujeira a política brasileira encontram-se distribuídos
pelas seis pesquisadas capitais de estados brasileiros do seguinte modo:
71
Mauro Guilherme Pinheiro Koury
23,4% na cidade de João Pessoa (PB); 43,3% em Recife (PE); 38,4% em
Belém (PA); 21,1% em São Paulo (SP); 18,6% em Curitiba (PR) e 35%
em Brasília (DF). O maior índice de indicação da política nacional como
algo sujo foi encontrado entre os moradores da cidade do Recife, seguido
de perto por Brasília; e os menores entre os respondentes de Curitiba,
seguidos pelos residentes na cidade de São Paulo.
As três grandes subcategorias onde as diversas respostas individuais
dos entrevistados foram agregadas, relativas à questão da política como algo
sujo, falam da Falta de Zelo com a Coisa Pública, com 15,1% das indicações,
do Desrespeito ao Cidadão, com 11,5% das respostas, e Falta de Consciência
Ecológica, com 2,6% das indicações.
A subcategoria Falta de Consciência Ecológica foi indicada
apenas por três das seis cidades pesquisadas: com 5% dos entrevistados
da cidade do Recife; 10% dos respondentes da cidade de Belém; e 1,7%
dos de Curitiba. Os entrevistados dispostos nesta subcategoria procuram
ligar a questão da falta de consciência ecológica com o conceito de
desenvolvimento sustentável, e elaboram uma crítica aos planos diretores
da cidade. Os entrevistados apontam como sujeira a poluição do ar e
dos rios, o desmatamento desenfreado, as queimadas, bem como o lixo
acumulado nas encostas dos morros ou jogados nos rios e canais das
cidades, entre outros aspectos.
Coligando esta subcategoria com a do Desrespeito ao Cidadão,
falam da falta de saneamento, com esgotamento sanitário a céu aberto
ou ligado clandestinamente aos rios e às praias, prejudicando o lazer, a
reserva de água potável e a saúde pública, causando epidemias e perigos
de diversas espécies. Indicam ainda os gases poluentes, o mau cheiro
das cidades, o chorume e os gases produzidos pelo lixo acumulado em
depósitos de acolhimento sem nenhuma estrutura. Acusam os políticos de
não se preocuparem com a questão, com grande prejuízo para as cidades e
para os cidadãos que nela vivem. Remetem, assim, as suas narrativas para
a associação da falta de consciência ecológica com as questões de falta de
zelo com a coisa pública e do desrespeito com os cidadãos.
A subcategoria Falta de Zelo com a Coisa Pública, por sua vez,
fala diretamente contra a falta de ética na política e na administração
pública brasileiras. Os entrevistados estabelecem claras comparações entre
72
Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI
a política praticada por políticos profissionais no Brasil e a sujeira, isso
nas esferas federal, estadual e municipal, apontando elementos como a
corrupção ativa, o desvio de verbas, a má aplicação dos recursos públicos,
o descaso com as políticas públicas, principalmente ligadas à educação e
à saúde e no controle da criminalidade, a questão da fome associada ao
desvio de verbas e ao legislar e agir em causa própria.
Esta subcategoria também fala da política como politicagem, e
aponta os escândalos que a sociedade brasileira vivencia desde os anos
finais do século XX até agora: como o desvio de verbas públicas, o mensalão,
a operação vampiro e outras; ou como subornos, contratações ilícitas,
enriquecimentos rápidos e inexplicáveis de políticos, e uso da máquina
pública para cabide das mais diversas práticas abusivas de beneficiamento
da família ou pessoal; ou ainda, como o eterno acabar em pizza das CPIs,
os partidos como cabides de interesses estratégicos para uso pessoal, a falta
de ética como fundamento partidário, entre inúmeros outros, como males
do Brasil contemporâneo. Males que são apontados pelos entrevistados
como sendo a prática política no Brasil, e que os fazem desabafar o nojo
que sentem da política e dos políticos, considerados, como disse um
entrevistado recifense, “como um bando de porcos no chiqueiro, quando aparece
alguma lavagem (a mistura de restos de comida com que são alimentados os
porcos criados em fundos de quintais)”.
A subcategoria Desrespeito ao Cidadão, por outro lado, engloba
respostas associadas à cidadania e à qualidade de vida dos habitantes da
cidade, e onde se veem respostas ligadas a problemas de saneamento básico,
de esgotamento sanitário, de falta de estrutura de transportes públicos,
das condições das vias expressas (calçadas, ruas, avenidas, estradas), da
carência de iluminação pública, da condição de higiene da e na cidade,
entre outros. Esta subcategoria, também, encontra-se umbilicalmente
associada com a da Falta de Zelo com a Coisa Pública, com comparações
depreciativas alusivas às políticas legislativa e executiva do país, como as
estabelecidas por um entrevistado insatisfeito com a falta de estrutura
urbana do seu bairro, havendo sido recebidas promessas de melhorias,
feitas por um vereador que recebera muitos votos dos moradores de lá:
“pois é, doutor, os políticos são como gatos de rua, só aparecem quando querem se eleger,
depois esquece o eleitorado”. Esta afirmação geral, dada por um entrevistado
73
Mauro Guilherme Pinheiro Koury
da cidade de Belém, sintetiza, grosso modo, uma boa parte das mágoas
com os políticos por parte do homem comum, urbano, brasileiro. Essa
queixa traz embutida outras tantas, que dizem respeito, principalmente, ao
poder executivo, embora, em muitos casos, revele ainda uma mentalidade
clientelista, por parte do eleitorado, quanto à relação político-eleitor.
Promessas pessoais a possíveis eleitores – feitas durante a
campanha por políticos e depois por estes esquecidas ao conseguirem
assumir algum posto no poder legislativo ou no executivo – são apontadas
por alguns entrevistados, que se colocam descrentes do voto e aproximam
a prática política da podridão, e que veem o político como aproveitador
e a política como sujeira. Por outro lado, a grande maioria das respostas
reside no descumprimento de promessas de campanha para melhorias na
infraestrutura urbana a partir do próprio bairro ou comunidade do eleitor.
Outro conjunto significativo de indicações do desrespeito ao
cidadão é colocado em alguns problemas de âmbito mais geral, que atingem
os moradores das cidades dos entrevistados, como o episódio até hoje não
resolvido do lixo na cidade do Recife (KOURY, 2009a); os problemas de
transporte urbano; o estado de falência em que se encontram estradas,
avenidas e ruas em todo o país, dificultando a circulação de automóveis e
pessoas, aumentando o número de acidentes de trânsito e dificultando o
tráfego diário nas vias públicas.
Outro conjunto de respostas fala da falta de policiamento nas
ruas, da falta de iluminação pública, dificultando a circulação de pessoas,
principalmente das mais pobres, gerando medo. Outro aspecto associado
como desrespeito ao cidadão e indicativo da política como algo que dá
nojo fala da saúde pública e das dificuldades de seus usuários perante o
desaparelhamento dos hospitais e postos de saúde no Brasil; da educação
formal e do esfacelamento da escola pública nos três níveis, no país; fala
ainda do distanciamento salarial dos políticos profissionais, bem como dos
outros poderes, em relação ao salário do trabalhador comum, entre outros
tantos aspectos.
Outro núcleo de indicações fala diretamente da questão do trato da
violência como fazendo parte de um comércio e uma indústria do medo.
O que mostra a associação da política e do desrespeito ao cidadão com
relação ao trato da violência pela res publica, isto é, como uma coisa do
74
Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI
povo. Este núcleo indica os políticos em cargos legislativos e executivos
como os responsáveis pelo acirramento da violência no país, não por
falta de recursos aplicados, mas pelo desvio destes recursos, seja em
propaganda, seja por outras formas: despreparo das forças públicas, falta
de policiamento estratégico, desinteresse real sobre a questão, embora
com aparente interesse sobre a eterna fonte de recursos para estimular este
comércio e indústria nos municípios, estados e país, ampliando a cultura
do medo entre os cidadãos.
Esta categoria mostrou-se importante nesse estudo por apontar
aspectos acerca de como a população brasileira se relaciona com a política
em desenvolvimento no país por intermédio de seus políticos profissionais.
A falta de ética, o uso pessoal e partidário da máquina política, o desrespeito
ao cidadão, são apontados como problemas estruturais da política no país
que levam a descrença do eleitor para o destino de seu voto: “em qualquer
político novo ou antigo que se vote, ele assumiu o poder vira um safado igual aos demais
que só pensa no seu bolso e no seu benefício”, sintetiza uma entrevistada de João
Pessoa; ademais, tais problemas apontados fazem com que a política seja
vista como algo sujo. Esta categoria mostra também o lado clientelístico
por trás das reclamações dos eleitores em relação aos políticos nacionais,
e também indica um lado trágico desse desordenamento: a descrença na
política e a anomia produzida por este ceticismo, bem como uma visão da
política como um lugar onde “o sujeito pode se dar bem”, como insinuou um
entrevistado de São Paulo.
Uma enquete realizada em 2005, pelo Ibope, mostrou que 67%
dos entrevistados afirmaram que, se estivessem no poder, fariam a mesma
coisa que fazem os políticos que lá estão: roubar e colocar a máquina
política a seu favor. Dados constrangedores que demonstram o imaginário
do jeitinho pessoal, já tratado pelo antropólogo carioca Roberto DaMatta
(2001), sobre a forma de ser do brasileiro; ou, da expressão popular: “rouba,
mas faz”, como forma-síntese do político que se dá bem, mas também
executa obras, tão comum na política nacional desde meados da década de
cinquenta do século passado.
Nunca, porém, a política foi tão mal vista no imaginário popular
como nos últimos anos. Em várias respostas, os entrevistados ampliaram
75
Mauro Guilherme Pinheiro Koury
seu argumento com a indicação de “voto porque sou obrigado”, e da intenção
de votar nulo ou em branco, “pois todos os políticos, no fundo, são iguais”: o que
equivale a serem políticos desonestos e a só pensarem em si. Assim, sendo
espelhada a desilusão com a política, com os políticos e com os poderes
constituídos no país.
Conclusão
A categoria Sujeira - analisada neste trabalho, e como foi visto
no seu decorrer - é uma categoria analítica importante para a reflexão
e compreensão do comportamento e do pensamento social do homem
brasileiro urbano sobre o Brasil e sobre o imaginário acerca do que
é considerado sujo e sentido como ameaça na vivência cotidiana dos
informantes.
Pelo demonstrado, parece haver ficado clara a relevância da sujeira
para a reflexão antropológica e sociológica, na medida em que são destacados
os elementos ou ideias que preenchem os sistemas de classificação social
hegemônicos na cultura nacional, por trás daquilo pensado e afirmado
como anomalia, como ambiguidade e como marginal e excluído. Mostrou,
ainda, que a noção de sujeira traz em si, umbilicalmente situada, a ideia de
ofensa contra a ordem e os valores sociais positivos - idealmente regidos
e alimentados pelo sistema de classificação hegemônico-cultural - e suas
ambiguidades na prática diária de sua vivência.
A categoria Sujeira, aqui analisada, por fim, pôs ainda em relevo
as correlações estabelecidas entre as estruturas do sistema social nacional
e as formas mais ou menos explícitas de autoridade, com os elementos
de polução e infração que com eles interagem como tensão e como
enfrentamento.
Dentro de um ângulo da moralidade, mostrou o sentimento
de vergonhae baixa estima dos entrevistados ao informarem o sujo no
cotidiano da cidade, das residências e das pessoas, permitindo uma via
de mão dupla: de um lado, permitindo a formação de estigmas sociais, na
objetivação de que algo ou alguém não é limpo, de acordo com os critérios
de uma moralidade que classifica e desclassifica os outros da relação;
dentro de um ângulo onde a ética espelha as classificações sociais ideais,
76
Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI
por outro lado, o trabalho mostrou a importância da categoria Sujeira para
explicitar e apontar falhas no caráter e nas instituições sociais, como dito
pelos entrevistados com relação à política e aos políticos nacionais.
Este artigo, por fim, é uma tentativa de compreensão da categoria
Sujeira através do imaginário urbano brasileiro. Nele se buscou analisar
a cultura política do país e o seu sistema de classificação social, a partir
dos medos e receios, do comportamento e dos costumes narrados pelos
entrevistados que se dispuseram a apresentar ao pesquisador suas versões
sobre o tema tratado. A forma como o artigo foi conduzido permite
levar o leitor a um passeio através das vivências, ansiedades, reflexões e
comparações emitidas pelos entrevistados em suas narrativas, esboçando
um panorama sobre como pensa o habitante urbano das grandes cidades
e metrópoles brasileiras sobre o conceito de sujeira.
Bibliografia
ÀRIES, Philippe (1989). O homem diante da morte, 2ª edição, 2 vols. Rio de
Janeiro, Francisco Alves.
BARBOSA, Lívia (2006). “Cultura, consumo e identidade: limpeza e poluição
na sociedade brasileira contemporânea”. In, Lívia Barbosa e Colin Campbell
(Orgs.), Cultura, consumo e identidade. Rio de Janeiro, Editora da FGV.
BUARQUE DE HOLANDA, Aurélio (1980). Dicionário da língua portuguesa.
Rio de Janeiro, Nova Fronteira
BUARQUE DE HOLANDA, Aurélio (1992). Pequeno dicionário brasileiro
da língua portuguesa – ilustrado. 15ª edição, São Paulo, Civilização Brasileira
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio (2000). A cidade dos muros. São Paulo,
editora 34 e EDUSP.
CONY, Venus Brasileira (2005. Mural dos nomes impróprios. Ensaio sobre o
grafito de banheiro. Rio de Janeiro, sete letras.
77
Mauro Guilherme Pinheiro Koury
DAMATTA, Roberto (2001). O que faz Brasil, Brasil? 11ª edição, Rio de
Janeiro, Rocco.
DAVID, Onildo Reis (1995). O inimigo invisível. A epidemia do cólera na Bahia.
1855-1856. Salvador, Edição do Autor.
DAVIS, Natália Zemon (1990). As culturas do povo. Rio de Janeiro, Paz e
Terra.
DINIZ, Ariosvaldo da Silva (2001). “A iconografia do medo”. In:
Mauro Guilherme Pinheiro Koury (Org.), Imagem e Memória. Ensaios em
Antropologia Visual. Rio de Janeiro, Garamond.
DOUGLAS, Mary (1976). Pureza e Perigo. São Paulo, Perspectiva.
DOUGLAS, Mary (2005). De la souillure: Essais sur les notions de pollution et de
tabou. Paris, La Découverte.
DUMONT, Louis (2007). Homo Hierarchicus: o sistema de castas e suas
implicações. 2ª edição. São Paulo, EDUSP.
DURKHEIM, Émilè (2000). As formas elementares da vida religiosa. São Paulo,
Martins Fontes.
ELIAS, Norbert (1990 e 1993). O processo civilizador. 2 vols., Rio de Janeiro,
Jorge Zahar.
FERRAZ, Sonia Maria Taddei (2001). Arquitetura da violência: morar com
medo nas cidades. Quem tem medo de que e de quem nas cidades brasileiras
contemporâneas? http://br.monografias.com/trabalhos/arquitetura-violencia-cidadescontemporaneas/arquitetura-violencia-cidades-contemporaneas.shtml (baixado em
10.6.2009)
FLEISCHER, Soraya Resende (2002). Passando a América a limpo. O trabalho
de housecleanners brasileiras em Boston, Mass. São Paulo, Annablume.
FORTY, Adrian (2007). Objetos de desejo. Design e sociedade desde 1750. São
Paulo, Cosac & Naify.
78
Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI
FOUCAULT, Michel (1986). Vigiar e punir. Nascimento da prisão. 4ª edição,
Petrópolis, Vozes.
FOUCAULT, Michel (2007). História da sexualidade, vol. I: a vontade do
saber. 18ª edição, São Paulo, Graal.
GIDDENS, Anthony (2004). A Transformação da Intimidade – Sexualidade,
Amor e Erotismo nas Sociedades Modernas. São Paulo, Editora da UNESP.
GOFFMAN, Erving (1967). Interaction ritual. New York, Anchor Books.
GOFFMAN, Erving (1988). Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade
deteriorada. 4ª. Edição, Rio de Janeiro, Guanabara.
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro (1986). “Trabalho e disciplina. Os
homens pobres nas cidades do Nordeste: 1889 a 1930. In Vários Autores,
Relações de trabalho e relações de poder: mudanças e permanências, Vol. 1. Fortaleza,
Editora Universitária UFC.
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro (1998). “Fotografia e Pobreza”. In:
Mauro Guilherme Pinheiro Koury (Org.). Imagens & Ciências Sociais. João
Pessoa, Editora Universitária UFPB.
--------------- (2003). Sociologia da Emoção. O Brasil urbano sob a ótica do luto.
Petrópolis, Vozes.
--------------- (2005). Medos corriqueiros e sociabilidade. João Pessoa, Editora
Universitária UFPB.
--------------- (2006). O vínculo ritual. João Pessoa, Editora Universitária UFPB.
--------------- (2007). Sofrimento social. João Pessoa, Editora Universitária
UFPB.
--------------- (2008). De que João Pessoa tem medo? João Pessoa, Editora
Universitária UFPB.
KRISTEVA, Julia (1986). The Power of horror: an essay on abjection. New
York, Columbia University Press.
79
Mauro Guilherme Pinheiro Koury
LÉVI-STRAUSS, Claude (1970). El origen de las maneras de mesa. México,
Siglo Veintiuno.
MAUSS, Marcel (1974). Sociologia e Antropologia. 2 vols., São Paulo, EPU/
EDUSP.
REBOUÇAS, Lídia Marcelino (2000). O planejado e o vivido: o reassentamento de
famílias ribeirinhas no Pontal do Paranapanema. São Paulo, Fapesp/AnnaBlume.
REIS, João José dos (1991). A morte é uma festa. Ritos fúnebres e revolta popular
no Brasil do século XIX. São Paulo, Companhia das Letras.
SÁ, Lenilde Duarte de (1999). Parahyba - uma cidade entre miasmas e micróbios.
Os serviços de higiene pública, 1985-1918. Tese. Ribeirão Preto, USP.
SENNETT, Richard (1998). O declínio do homem público. As tiranias da
intimidade. São Paulo, Companhia das Letras.
SIMMEL, Georg (1998). “O conceito e a tragédia da cultura”. (Org.)
Jessé Souza e Berthold Öelze, Simmel e a modernidade. Brasília, Editora da
Universidade de Brasília.
SONTAG, Susan (1977). On photography. Middlesex, Penguin Books.
SOUZA, Marcelo Lopes de (2008). Fobópole. O medo generalizado e a
militarização da questão urbana. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.
THOMPSON, Edward Palmer (1989). A formação da classe operária inglesa.
2ª edição, 3 vols. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
VERNANT, Jean-Pierre (2002). Entre mito & política, 2a edição. São Paulo,
EDUSP.
WEIL, Simone (1979). A condição operária e outros estudos sobre a opressão.
(Org.) Ecléa Bosi. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
80
Corpos em Concerto: diferenças, desigualdades e desconformidades
NOTAS ACERCA DO ESTATUTO
DA PELE CORROMPIDA
Roberta de Sousa Melo
A disposição a modelar a pele, torneá-la, perfurá-la e recortá-la
inaugura alterações nas capacidades físicas e afetivas daquele ou daquela
que se entende como proprietário de um corpo. Tal disposição, por seu
turno, é fundamentalmente concebível mediante o recurso a algum tipo
de intervenção técnica por meio da qual busca melhoria de sua disposição
orgânica e aprovação social. Com isso, intenta a recriação de si, bem como
novas possibilidades de atuação nas relações sociais em que a aparência
física aparece como elemento central. Nesses termos, partimos de uma
perspectiva segundo a qual o corpo é um complexo de símbolos, e, nesse
mesmo e único signo, reúnem-se o que Rodrigues (1983) classificou como
as duas modalidades da existência humana: a ordem fisiológica material
e a ordem ideológica moral. Num primeiro momento, interessa-nos a
concomitância desse sensível e desse inteligível no corpo, elementos de
fundamental importância na reflexão acerca da experiência de uma cirurgia
estética mal sucedida, em que ocorre alguma deformação da integridade
física e a frustração de expectativas sociais. Os “ruídos” na pele trazidos
por essas alterações cirúrgicas parecem problematizar as codificações
do corpo que condensam em si as codificações da organização social
(RODRIGUES, 1983), fazendo subsistir um “fundo antropológico
extremamente tenaz”, em que o corpo disforme torna-se a “medida do
distanciamento espacial” (COURTINE, 2008: 257).
Já nos disse John Merrick, no filme “Homem Elefante”, de David
Lynch: “As pessoas se assustam com aquilo que não compreendem”.
As transformações físicas acarretadas pelo malogro dessas cirurgias
categorizam tal corpo como algo novo, estranho, desconhecido, e que
ilustra o perigo das forças do organismo que transbordam os limites que
lhes foram estabelecidos, ignorando o controle social e ameaçando-o.
Seus resultados se refletem em reações orgânicas que entram em conflito
81
Roberta de Sousa Melo
com expectativas estéticas de caráter claramente normatizador. Essas
reações não previstas criam corpos “não civilizados”, desproporcionais,
desarranjando uma série de elementos que garantiam alguma estabilidade
nas relações entre os corpos. Tais formas materializam a desordem de
uma série de categorias antagônicas, a começar pela antinomia natureza/
cultura, estendendo-se a outros dualismos como puro/impuro, íntimo/
público, aceitação/recusa, vida/morte. Esta última oposição nos interessa
de modo particular, uma vez que é precisamente a simultaneidade entre o
vivo e o morto que encontramos em indícios de cirurgias mal sucedidas:
em suas cicatrizes e necroses, por exemplo. Para os nossos fins, portanto,
pretendemos nos concentrar no caráter específico dessas “rebeldias
orgânicas”, ou seja, na experiência ambígua do “corpo morto” dentro de
um “corpo vivo”, e/ou, ainda, na experiência de um corpo que morre para
depois voltar a viver. A ideia de morte nos parece bem próxima da ideia
do “desmembramento” do corpo ao qual corresponde a necrose de um
tecido, por exemplo. Ao mesmo tempo, a cicatrização, que a substitui com
o passar do tempo, parece apontar para o sentimento de “reconstituição”
do corpo, muito embora não se aproxime da sua total recuperação.
Corpos disformes, impurezas e morte
Com certa cautela, podemos aproximar a mutilação desses corpos
à noção de poluição que Mary Douglas (1991) relaciona à vida social ao
argumentar que o sentimento de repulsa que experimentamos diante de
algumas poluições exprime uma ideia genérica da ordem social. A poluição
simbolizada pelos corpos de que falamos parece não escapar disso. De
modo especial, a ideia de “morte” acarretada pelos processos de necrose e
a ideia de impureza se amalgamam, e essa associação parece apontar para
algum perigo. E aqui podemos perceber de modo ilustrativo a forma pela
qual o orgânico e o social se confundem nos modos através dos quais a
apresentação dos corpos é percebida e avaliada: a carne escapa às tentativas
de seu contorno, materializando elementos considerados repulsivos para os
padrões morais e estéticos que significam e orientam a apropriação social
do corpo humano. De tal modo, a morte da parte do corpo que sofreu
a necrose corresponde a uma morte simbólica, já que as consequências
82
Notas acerca do estatuto da pele corrompida
“desastrosas” das cirurgias de embelezamento problematizam o “caráter
eminentemente expressivo do corpo” (MERLEAU-PONTY, 2006: 222),
diminuindo de modo abrupto a sua capacidade física e tornando suas
relações com o corpo do outro uma experiência intimidadora. É assim
que uma mulher pode, por exemplo, ter sua vida sexual comprometida
pela ausência do seio corrompido pelo processo de necrose provocado
por problemas circulatórios e/ou inflamatórios do pós-operatório. Tal
mutilação materializa, de fato, a subversão de certos atributos de beleza e
higiene culturalmente elaborados e instituídos, fazendo emergir na carne
fundamentos de desordem, descontrole e impureza, possibilitando “[...]
uma reflexão sobre a relação entre a ordem e a desordem, o ser e o não
ser, a forma e a ausência dela, a vida e a morte. Onde quer que as idéias de
pureza estejam fortemente estruturadas, a sua análise revela que põem em
jogo estes profundos temas” (DOUGLAS, 1991: 10).
Como sugere Sant’Anna, não é de agora que a cultura ocidental se
vê compelida a se posicionar diante do orgânico e do que é considerado
repulsivo no corpo. A esse respeito, a autora discorre sobre publicações
já da década de 1960 e menciona a emergência de trabalhos de artistas
plásticos e fotógrafos dispostos a evidenciar as centenas de usos do corpo
na sociedade contemporânea: “Corpos em pedaços, corpos híbridos,
monstruosos, estereotipados, mas também corpos que mostravam sem
pudor a homossexualidade, a velhice, as sinuosidades do desejo e do
sofrimento cravadas na carne” (SANT’ANNA, 2000: 239).
As morfologias resultantes das cirurgias embelezadoras mal
sucedidas são consideradas perturbadoras justamente por se guiarem por
“modos de apresentação canônicos” dos quais terminam por se distanciar,
produzindo, ao invés, formas do repulsivo sobre a carne. Sendo assim,
o corpo-signo, que para além de suas particularidades deveria refletir
ambiguamente os elementos promulgados pelos arranjos sociais nos quais
trafega, passa a ser marcado pela desorganização, pelo ruído, pela entropia.
Para abordarmos tais processos, recorremos ao conceito de estigma
trabalhado por Goffman, considerando que esses indivíduos parecem
inabilitados para uma aceitação social plena, uma vez que são portadores
de sinais corporais que, de acordo com seu contexto social, evidenciam
alguma coisa de extraordinário ou mau (GOFFMAN, 1988). É nesse
83
Roberta de Sousa Melo
sentido que, segundo o autor, o estigma termina por reafirmar os limites
da normalidade ( GOFFMAN, 1988). É de fundamental importância
atentarmos para o caráter “compartilhado” da repulsa ao qual o estigma
está fundamentalmente atrelado. E isso parece ser particularmente
verdadeiro nos casos em que o objeto de estigma não existia antes da
intervenção técnica, isto é, antes da cirurgia mal sucedida. Ao contrário,
o “novo estigmatizado” da pós-cirurgia compartilhava com “os outros”
de uma mesma representação e estatuto do corpo e, por meio disso, seu
corpo trafegava de modo fluido nas interações cotidianas.
O estranhamento diante do corpo novo e deformado, diga-se,
não se faz presente apenas como experiência diante do olhar do outro;
ocorre também como transformação do olhar pousado sobre o próprio
corpo, olhar que recua diante de si mesmo. Assim, como sugere Goffman,
a autodepreciação pode ocorrer num momento de solidão do indivíduo
diante do espelho, apesar de essa autoavaliação continuar mediada pelos
códigos compartilhados, como sugere um dos relatos transcritos pelo
autor:
Quando finalmente me levantei (...) apanhei um espelho e me dirigi a
um outro maior, fixo, para me olhar, sozinha. (...) Simplesmente fiquei
estarrecida. Aquela pessoa no espelho não poderia ser eu. Eu me sentia por
dentro como uma pessoa comum, feliz, saudável – não como aquela que
eu via! Ainda assim, quando virei o rosto para o espelho, lá estavam meus
próprios olhos olhando para trás, ardentes de vergonha... Aquele disfarce
foi posto em mim sem o meu consentimento ou conhecimento (...) e foi
a mim mesma que ele confundiu quanto a minha própria identidade. Eu
me olhava no espelho e era tomada de horror porque não me reconhecia
(GOFFMAN, 1988: 17).
Esse indivíduo passa a lidar, agora, em sua própria corporeidade,
com elementos que não condizem com a estrutura inteligível da qual
desfrutava antes da cirurgia, vivenciando um “choque perceptivo” ao olhar
para si mesmo e se enxergar diferente de sua corporeidade anterior, da
corporeidade idealizada, e do corpo dos demais. Disso decorrem elementos
para se pensar nas formas de constituição da identidade relacionada com
84
Notas acerca do estatuto da pele corrompida
o corpo. Afinal, se esse corpo agora se vê como estranho, não o foi por
toda sua vida, o que sugere uma nova percepção de si, concomitante às
alterações físicas.
O conceito de estigma remete a outro conceito, pensado por
Goffman sempre a partir de “contatos mistos” e que dizem respeito
aos “momentos em que os estigmatizados e os normais estão na mesma
‘situação social’, ou seja, em que se encontram na presença física imediata
um do outro” (GOFFMAN, 1988: 22). Assim,
[...] quando normais e estigmatizados realmente se encontram na presença
imediata uns dos outros, (...) ocorre uma das cenas fundamentais da
sociologia porque, em muitos casos, esses momentos serão aqueles
em que ambos os lados enfrentarão diretamente as causas e efeitos do
estigma (GOFFMAN, 1988: 23).
Os ruídos na pele se apresentam como medida daquilo que não
se deseja, corroborando normas, regras e convenções que categorizam
seus portadores como “feios”, “deformados”, “poluídos”, em relação
aos corpos “normais” com os quais interagem nas relações cotidianas. O
corpo que é afetado por ruídos na pele põe-se deslocado em relação a uma
espécie de “média antropomórfica”, cujo esforço passa a ser a tentativa
de regenerar sua “mácula” e de “reorganizar” sua carne. Nesse sentido,
tenta-se esconder as cicatrizes e suprimir ao olhar do outro os resultados
indesejáveis das cirurgias. Em seu “Tabu do corpo”, Rodrigues discorre
sobre o nojo de um modo que nos interessa aqui. De fato, alguns aspectos
de seu estudo parecem relevantes para melhor contextualizar a noção de
“corpo repulsivo”. De acordo com o autor, o nojo dos produtos do corpo
expressa, antes de qualquer coisa, uma transgressão ou um perigo sobre os
limites entre natureza e cultura:
A desordem a que o nojo reage é essencialmente o cruzamento
irregular da linha de separação desses domínios. As coisas nojentas são
frequentemente associadas a ‘formas pouco poéticas’ ou ‘coisas antiestéticas’, e sabemos que a beleza, vista sociologicamente, é antes de mais
nada o produto de uma atividade ordenadora e sistematizadora, a ponto
de estarmos de certa forma moralmente obrigados a preservar a beleza e
85
Roberta de Sousa Melo
adotar dela tudo o que porventura produzamos. (...) Um homem ou uma
mulher são em geral julgados bonitos na medida em que suas formas se
afastam da animalidade (RODRIGUES, 1983: 162).
As sequelas físicas decorrentes das práticas malogradas que nos
interessam neste pequeno ensaio correspondem, portanto, à externalização
de um “interior” tenebroso que sempre estaria na iminência de brotar na
flor da pele, sendo a sua manifestação sempre uma ameaça, pois representa
a natureza deslocada pelo descontrole da organização biológica do corpo,
a natureza que invade os lugares de civilidade.
Cirurgias estéticas e a fabricação dos disformes
Os corpos submetidos às cirurgias estéticas servem de palco
às manifestações de padrões estéticos socialmente valorizados. Neste
sentido, os cortes e perfurações decorrentes deste tipo de intervenção se
diferenciam, por exemplo, das mutilações motivadas pelos ideais estéticos
de expressões artísticas ao modo das performances de body art, com sua
crítica das condições de existência: nesse último caso, “a intenção deixa
de ser a afirmação do belo para ser a provocação da carne, o virar do
avesso o corpo, a imposição do nojo ou do horror, (...) sua recusa dos
limites impostos à arte ou à vida cotidiana” (LE BRETON, 2003: 45). Por
sua vez, a expectativa em torno dos resultados de uma cirurgia com fins
de embelezamento parece buscar renegar qualquer sinal de dilaceramento
da pele, ainda que seja este um item inevitável ao corpo submetido ao
bisturi. Do mesmo modo, sangue, pus, inflamações e mesmo o processo
pós-cirúrgico da recuperação da parte do corpo alterada (o qual remete a
outros atributos de fealdade, como inchaço, por exemplo) tornam-se uma
espécie de tabu, talvez por ameaçar a exaltação do belo com o fantasma
que ameaça todo processo radical de transformação corporal. O período
pós-operatório é o momento obrigatório para o aperfeiçoamento deste
corpo, que precisa ser temporariamente “feio” e incapacitado, mantido na
reclusão, longe do olhar do outro e da cena social, até que esteja totalmente
pronto para retomar suas atividades. O infortúnio dessas cirurgias, ao
86
Notas acerca do estatuto da pele corrompida
contrário, produz um corpo que “não sarou”, que não se recuperou da
mutilação cirúrgica e que, portanto, deve-se manter afastado, sob pena
de fazer circular a incivilidade e o descontrole que tanto se evita. Esses
“corpos sem êxito” remetem à desconfiguração pela qual a carne teve de
passar, fazendo permanente (ao invés de provisória) essa desconfiguração,
expondo a fragilidade dos corpos e aproximando seu desmembramento
a certa angústia de morte (JEUDY, 2002), esta que é o descontrole da
perspectiva da civilidade, da subjetividade, da expectativa de controle
humano sobre as forças naturais.
A anormalidade atribuída a essas marcas corporais é muito
próxima da condenação da obesidade registrada por Pinto Leite (apud
HASSE, 2003: 57). Seu estudo sugere que o problema diz respeito a uma
“deformação indesejada com caráter de inconveniência”, sendo o corpo
obeso tido como doente e inválido, e, dada a “desproporção” de sua
forma, como algo subjugado pela inércia. Para além disso, o autor verifica,
no julgamento do corpo obeso, a existência de um estigma que nos parece
familiar às mutilações que estamos abordando: trata-se da “incapacidade
de conter os excessos que o dominam”, representando uma “aberração da
qual se deseja afastamento” (PINTO LEITE apud HASSE, 2003: 57). A
nosso ver, o exemplo do estado de necrose, o horror que lhe acompanha,
parece materializar um mal, um momento de transição que não foi
ultrapassado, a perda do controle sobre a carne, sufocada por sua inércia,
e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de realização plena das funções do
corpo, quando justamente o que se espera é a manutenção do organismo
desobstruído e, tanto quanto possível, equilibrado (ANDRADE LIMA,
1996). A manifestação de uma necrose evidencia a interrupção das funções
corporais normais, sinalizando algo fora do devido lugar; é o “impuro”
num local que não lhe cabe. Essa ausência de fluidez corresponde, por fim,
ao que Machado e Silva (2008: 168) vislumbrou como sendo o “estatuto
intermediário do homem desfigurado”: “não é doente, nem saudável, (...)
não está fora nem dentro da sociedade”. Logo, essa não contenção dos
excessos figurada sobre a carne significa a sua contaminação; ela, portanto,
passa a ser estigmatizada pelos critérios culturais que orientam a revelação
e a ocultação do corpo.
87
Roberta de Sousa Melo
A necrose, a cicatriz, o pus e toda sorte de mutilação ocasionada
pelos maus resultados dessa técnica de embelezamento são vistos como
sinal tangível da culpabilidade nascida da degradação do corpo (JEUDY,
2002: 86), sendo, por isso mesmo, “escatologias desnecessárias”,
diferentemente da impureza da defecção que, não obstante todo o rigor
civilizatório em torno das práticas de evacuação, estas são necessárias,
justamente, por sua função descongestionante. A esse respeito, Elias
nos mostra a falta de cerimônia com a qual necessidades físicas, naturais
eram tratadas nos manuais de boas maneiras dos séculos XVI, XVII e
XVIII. Essa “libertação escatológica”, de acordo com Andrade Lima,
será substituída pelo que Roger-Henri Guerrand chamou de “a grande
contração” (ou repressão), iniciada no século XIX, ou seja, o controle
social sobre a individualidade passa por tornar algo básico, fisiológico,
objeto de pudor (ANDRADE LIMA, 1996: 11).
Entretanto, a mácula a que correspondem essas lesões póscirúrgicas ultrapassa a fronteira do privado, invadindo o espaço de
ostentação reservado à beleza almejada na decisão de se submeter a uma
cirurgia cosmética. A produção desse novo corpo estranho faz emergir, ao
final das contas, o pavor diante daquilo que não podemos conhecer por
completo, do que da natureza não podemos administrar por inteiro; enfim,
é o drama da morte bem diante da vida (COURTINE, 2009). As sequelas
físicas das cirurgias estéticas mal sucedidas deslocam as estranhezas do
organismo para o jogo das relações sociais, efetivando a indissociabilidade
da pessoa e do organismo. Os elementos de desfiguração do corpo passam
a fazer parte das relações de interação simbólicas entre os indivíduos.
Sob certo aspecto, podemos tomar as próprias marcas da civilização
como um jogo de estratégias políticas para aliviar a sensação de impotência
diante de certas manifestações da natureza, logo categorizadas como
selvagerias, principalmente quando ameaçam os lugares já estabelecidos
das coisas e das pessoas no campo pragmático das relações sociais. Isso se
ilustra muito bem nas políticas corporais exercitadas quando da descoberta
do Novo Mundo, momento em que a exploração dos espaços até então
desconhecidos pelo europeu propiciou o seu encontro com “novos
povos”: passou-se a questionar a condição humana dos recém-descobertos
pelo fato de perceberem a ausência de suas concepções de civilidade na
88
Notas acerca do estatuto da pele corrompida
apresentação corporal do outro (estranhamento dos modos de se vestir
- ou de se despir -, de gesticular, de andar etc.) (LAPLANTINE, 1996).
Tornou-se questão fundamental ao europeu negar um estatuto humano
ao “novo ser”, de modo que não fossem abaladas suas convicções, os
modos de funcionamento de sua vida política e social, nem tampouco sua
condição de raça superior já estabelecida. Alguns dos argumentos usados
para negar-lhe tal condição eram religiosos: foi necessário colocar em
xeque a existência de uma alma nos chamados selvagens. A diversidade
da aparência física e dos modos corporais também soou como forte
critério, levando o homem branco a recorrer constantemente ao que
Laplantine chama de “metáfora zoológica”: “Assim [...] sendo considerado
assustadoramente feio e alimentando-se como um animal, o selvagem é
apreendido nos modos de um bestiário” (LAPLANTINE, 1996: 41).
Interessante notar que juntamente com a repulsa diante do corpo
do “selvagem” existia o fascínio que sua alteridade exercia. Segundo
Laplantine, Montaigne, no século XVI, por exemplo, elogiava a “bondade
natural” e a “ingenuidade original” do estado de natureza em que se
encontravam os povos descobertos, mas sempre tomando o cuidado de
estabelecer fronteiras de civilidade entre o velho e o novo mundo, na busca
de localizar esses novos povos de modo a manter certo distanciamento,
evitando, portanto, o risco de olhar para si mesmo e se descobrir, em
algum aspecto, semelhante ao inusitado do orgânico que tanto inquieta e
amedronta.
Atualizando tudo isso para nossa discussão, notamos que as
cirurgias plásticas que não deram certo exigem ocultar aquilo que
escapa do domínio técnico e que não somos suficientemente capazes de
“domesticar”. É necessário vigiar as formas corporais, mascará-las, ocultar
suas manifestações inesperadas e isso, como sabemos, realiza-se numa
dimensão altamente politizada, na qual se confabulam a gerência e o destino
dos corpos. Essa questão se desdobra em várias outras. Por exemplo, se
formos pensar na “artificialidade” da prótese de silicone ao substituir o
“seio” natural, perceberemos que novas indagações se apresentarão, de
modo a nos levar a refletir sobre o limite do que é artificialmente tolerável.
Por que a imagem de uma cicatriz é mais rejeitada do que da própria prótese
de silicone? Seria a naturalização desse artifício decorrência do controle
89
Roberta de Sousa Melo
e do conhecimento técnico cada vez maiores? Faz-se importante, pois,
uma investigação acerca dos atributos contemporâneos de “desarmonia
corporal”. As cirurgias mal feitas, com todos os seus indícios (cicatrizes,
hematomas, necrose de algumas partes etc.) são parte constituinte do
cenário do “inesperado”, do “não-planejado”, enfim, do tão temido
“desconhecido” que subjaz à transformação corporal. Elas seriam o outro
do ideário higienista pelo qual a impureza se faz desordem, justamente
pela desestabilidade a que diz respeito. A higiene, ao contrário, é revelada
como conhecimento de nós próprios, ou daquilo que nos é próprio (DOUGLAS,
1991: 6).
Entretanto, a parte do corpo necrosada, embora esta seja impregnada
pela ideia de morte que já abordamos, continua fazendo parte da dinâmica
da vida social, justamente por ser o “avesso” sempre recrutado quando
surge a necessidade de se reafirmar “aquilo que somos”. O corpo disforme
é, portanto, uma espécie de corpo-reserva a ser convocado sempre que
a crença do corpo normal necessite ser confirmada. Por essa dinâmica,
os elementos de desfiguração são conduzidos pela “carne animada” até
o plano das relações sociais, onde então se tem contato com o corpo
do outro (momento de surgimento de uma intercorporeidade, segundo
Viviani (2007: 7). Assim, essas formas corporais continuam impondo-se
pelo mistério de sua presença-ausência, nunca totalmente presentes, mas
também nunca totalmente eliminadas, justamente pela função pedagógica
de reiterar os corpos “habituais”. Ainda que o “estranho” traga à tona o
pavor do descontrole, ambiguamente ele reafirma os lugares: ele cria uma
desordem na segurança ontológica e, ao mesmo tempo, garante a ordem
simbólica (LE BRETON, 1992). Queremos dizer com isso que mesmo a
necrose, pela ideia de morte que simboliza, aponta para uma pulsão por
meio da qual o corpo fragmentado é elemento integrante das relações sociais
orientadas pela imagem do corpo, podendo isso ser compreendido como
uma experiência corporal que nunca repousa em si mesma (MERLEAUPONTY, 2006). Muito pelo contrário, o corpo disforme está bem longe
de se encerrar, “é um poderoso atrativo de olhares e de comentários, um
operador de discurso e de emoções” (LE BRETON, 1992: 75).
Em suma, esse “tecido morto” mantém-se, assim, apoiado,
parasitário, num corpo biológico que continua vivo. Porém, o vivo e
90
Notas acerca do estatuto da pele corrompida
o morto significam apenas no cotidiano das relações sociais, o que até
agora nos tem levado a uma espécie de reflexão acerca das experiências
do organismo no mundo-da-vida, ou de uma subjetividade corporificada,
da identidade relacionada com a corporeidade. O dinamismo com que
o corpo se faz, a um só tempo, presente e ausente, perpassado por uma
memória social, psicológica, pelas experiências sensoriais e pela trajetória
de suas vivências, permite-nos pensar no devir desses corpos mutilados,
em seu tráfego, nos agenciamentos que passam a ser realizados por meio
desses “modos corporais de ser-no-mundo” e no contexto da cultura
material de que estamos tratando. Isso significa que tal dilaceramento da
carne não oblitera a abertura do corpo que é, para Merleau-Ponty, condição
ontológica de nossa existência. Podemos, pois, falar de sua “abertura para
o mundo”, de tal modo que se faz pertinente a alusão à busca de um
“novo equilíbrio”, o que se reflete na possibilidade de reação dos corpos
ao poder objetivador e de fechamento do estigma. Ou seja, tal abertura
ocorre apesar das relações de poder que configuram os arranjos em que
esses corpos transitam:
[...] aquilo que em nós recusa a mutilação e a deficiência é um Eu engajado
em um certo mundo físico e inter-humano, que continua a estender-se
para seu mundo a despeito das deficiências ou de amputações, e que,
nessa medida, não as reconhece de jure (MERLEAU-PONTY, 2006a:
121).
Aqui, a ideia de destruição não parece totalmente separada da
organização da ideia de vida. Ao contrário, nesses processos vitais enfatizase a morte como aquilo que abre a verdade desses organismos. Em outras
palavras, o imaginário do corpo desfigurado - ao qual correspondem as
formas alteradas pelas cirurgias mal sucedidas - não coíbe totalmente a
projeção do corpo para fora de si. Este, enquanto suporte original das
metamorfoses, pode muito bem exceder sua capacidade inventiva. Estamos
tratando, portanto, da dinâmica desses corpos estigmatizados no mundoda-vida, os quais se constroem um instrumento e projetam em torno de si
um mundo cultural (MERLEAU-PONTY, 2006a).
91
Roberta de Sousa Melo
Corpos disformes e a abertura para o mundo
Enquanto fundamento descritivo da experiência cotidiana da
corporeidade, a fenomenologia de ser-no-mundo de Merleau-Ponty propõe
uma reflexão filosófica fundamentada no mundo sensível. Cremos que tal
abordagem condiz com as experiências das atividades corporificadas em
seus aspectos sociológicos, tal como estamos abordando, ao sugerirem
que o corpo é o local onde a percepção é realizada. Mais: são corpos que
percebem e que são percebidos, estruturas corporais abertas para o mundo.
A ambiguidade morte e vida marcada nessas carnes não deixa de ser um
fluxo, e justamente por esse teor extático é que os sujeitos reelaboram suas
experiências afetivas e sociais. Destarte, o estigma atribuído a esses corpos
pode tornar-se, ao mesmo tempo, local e instrumento de negociação, já
que os sujeitos necessitam realizar um processo de recriação de si e do
contexto social do qual fazem parte a partir do próprio ato que atribui
significado ao estigma:
Justamente porque pode fechar-se ao mundo, meu corpo é também
aquilo que me abre ao mundo e nele me põe em situação. O movimento
da existência em direção ao outro, em direção ao futuro, em direção ao
mundo pode recomeçar, assim como um rio degela (JEUDY, 2002: 228).
A visibilidade dessas mutilações geralmente envolve a violência do
encontro com o corpo do outro, muito provavelmente porque as imagens
do corpo desmembrado são, na maioria das vezes, consideradas sinais
patológicos de uma perda de unidade (JEUDY, 2002). O aniquilamento,
quando visto no repouso do cadáver que logo será enterrado, talvez seja
mais facilmente aceito do que o fracionamento de um corpo que continua
trafegando, lembrando a si mesmo e ao outro o quão próxima de nós é a
finitude, e, bem sabemos, “a menor subtração traz sofrimentos radicais à
nossa soma indivisa” (SERRES, 2004: 19).
Ainda assim, uma proposta inspirada na vertente pontyneana requer
que a esses corpos deteriorados seja feita a devida menção, no sentido
de localizá-los dentro do arranjo das práticas sociais do qual continuam
fazendo parte e na qual continuam ativos. Dado o “desequilíbrio de suas
92
Notas acerca do estatuto da pele corrompida
proporções”, esses corpos disformes continuam em busca do equilíbrio,
em sua capacidade de percepção motivada incessantemente em suas
relações com os objetos e as pessoas. Reconhecendo as transformações na
percepção de si e nas relações interpessoais acarretadas pelas vicissitudes
da carne decorrentes das cirurgias mal sucedidas, argumentamos que há
espaço para um processo criativo de reinvenção de si; e tanto quanto pode
a pele refazer-se e o corpo ser alterado, as pessoas são capazes de elaborar
novos agenciamentos e modos de ser-no-mundo.
De acordo com Goffman, na tentativa de superação dos atributos
do estigma, “a pessoa pode (...) tentar obstinadamente empregar uma
interpretação não convencional do caráter de sua identidade social”
(GOFFMAN, 1988: 20). Como exemplo, o autor cita a dedicação do
indivíduo estigmatizado a dominar áreas de atividades consideradas,
geralmente, como fechadas - por motivos físicos e circunstanciais - a
pessoas com seu “defeito”. Isso pode ser ilustrado pelo exemplo do cego
que se torna perito em esquiar ou em escalar montanhas (GOFFMAN,
1988).
A potencialidade da experiência dos corpos-no-mundo nos parece
um processo de aprendizado no qual modos de sentir, experimentar,
perceber, ser percebido, são, sobretudo, vivenciados através de técnicas
corporais ao modo de Mauss (1974). Ao mesmo tempo em que opera
com suas qualidades morfológicas, estruturas fisiológicas e capacidades
sensoriais, perpassam pelos códigos sociais e culturais, constituindo,
assim, “uma base concreta e material, viva, vivida e em devir” sendo
culturalmente potencializada (FERREIRA, 2009: 3). Restam ainda, a esses
corpos pós-cirúrgicos, possibilidades de intervenções e utilizações na
vida social, bem como os movimentos que lhes são possíveis, sensações
e emoções que lhes são permitidas, e, ainda, funções e necessidades que
lhes são exigidas (FERREIRA, 2009). Nesse sentido, uma mulher sem
uma das mamas pode recorrer a um implante de silicone na tentativa de
reviver as “memórias do seio”, de renovar suas sensações ao se encontrar
com o corpo de outrem, instalando-se na prótese ou, inversamente,
fazendo-a participar do caráter volumoso de seu corpo próprio. Pode,
também, reelaborar sua vida sexual convivendo com a falta, transgredindo
certas fronteiras pelas quais essa parte suprimida vem a ser um atributo de
93
Roberta de Sousa Melo
sensualidade feminina, renegociando as sensações e experiência afetivas
que até então se realizavam mediante sua presença. Por tudo isso, esses
corpos continuam se refazendo constantemente, apesar da sinalização
de morte ou de aniquilamento demarcada sobre eles, o que significa,
efetivamente, “viver com o corpo” envolvendo-se no mundo, aos moldes
de Merleau-Ponty.
O que pode o corpo é determinado pelo que ele continua a
experimentar no mundo-da-vida. O prelúdio de morte registrado na
necrose ou no fracionamento da carne, a nosso ver, não oblitera as
possibilidades de ação no mundo desses corpos que experimentam esse
jogo de ausência-presença. Ao mesmo tempo sujeito e objeto, o corpo de
que falamos até agora não se fecha em si apesar de suas limitações, porque:
[...] quer se trate do corpo do outro ou de meu próprio corpo, não tenho
outro meio de conhecer o corpo humano senão vivê-lo, quer dizer,
retomar por minha conta o drama que o transpassa e confundir-me com
ele. Portanto, sou meu corpo (MERLEAU-PONTY, 1992: 269).
Referência Bibliográfica
COURTINE, Jean-Jacques (2008). "O corpo anormal: história e
antropologia culturais da deformidade. In Corbin, A.; Courtine, J. J.;
Vigarello, G. (Org.), História do corpo: as mutações do olhar: o século
XX. Petrópolis, Vozes.
DOUGLAS, Mary (1991). Pureza e perigo. Lisboa, Edições 70.
FERREIRA, Vitor Sérgio (2009). Elogio (sociológico) à carne: A
partir da reedição do texto “as técnicas do corpo” de Marcel Mauss.
Disponível em: http://www.letras.up.pt/isociologia/uploads/files/Working37.pdf.
Acesso: 12 de agosto de 2010.
GOFFMAN, Erving (1988). Estigma: notas sobre a manipulação da
identidade deteriorada. Rio de Janeiro, LTC.
94
Notas acerca do estatuto da pele corrompida
HASSE, Manuela (2003). “O processo de apreensão e de re-criação do
mundo”. Revista Pro-Posições. Vol. 14, No 2: 53-60.
JEUDY, Henri Pierre (2002). O corpo como objeto de arte. São Paulo,
Estação Liberdade.
LAPLANTINE, François
Brasiliense.
(1996). Aprender Antropologia.
São Paulo,
LE BRETON, David (2003). Adeus ao corpo. São Paulo, Papirus.
_______________ (1992). A Sociologia do corpo. Petrópolis, Editora Vozes.
MAUSS, Marcel (1974). Sociologia e Antropologia. São Paulo, Edusp.
MERLEAU-PONTY, Maurice (2006a). A estrutura do comportamento. São
Paulo, Martins Fontes.
_______________ (2006b). Fenomenologia da percepção. São Paulo, Martins
Fontes.
RODRIGUES, José Carlos (1983). Tabu do corpo, Rio de Janeiro, Achiamé.
SERRES, Michel (2004). Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro, Bertrand
Brasil.
VERENHITACH, Beatriz Daou (2009). O corpo modificado: implicações
da mastectomia sobre a imagem corporal feminin. Disponível em: http://lasa.
international.pitt.edu/members/congress-papers/lasa2009/files/VerenhitachBeatriz.
pdf Acesso: 13 de agosto de 2010.
VIEIRA, Karine (2006). “O corpo da mulher em correção: subjetividade e
cirurgia estética”. Dissertação de Mestrado em Psicologia pela Universidade
de Fortaleza.
VIVIANI, Ana Elisa Antunes (2007). “O corpo glorioso: um diálogo
entre Merleau-Ponty e Michel Serres”. Revista da Associação Nacional dos
Programas de Pós-Graduação em Comunicação. No 9: 1-20.
95
Corpos en Concierto: diferencias, desigualdades y disconformidades
NEGRO DE MIERDA, GEOMETRÍAS CORPORALES
Y SITUACIÓN COLONIAL.
Adrián Scribano
María Belén Espoz
“…Ya mostraremos cómo lo que se llama el alma negra
es una construcción del blanco”
“…En otras palabras, el negro tiene que evitar el encararse
con este dilema: blanquearse o desaparecer.”
F. Fanon (Piel negra, Máscara Blancas, 1952)
Cuando los argentinos viajamos al exterior se nos suelen
formular una serie de preguntas típicas que aprendemos a contestar casi
automáticamente: ¿sabes bailar tango?, ¿los gauchos cómo son? ¿Uds.
toman mucho mate, no?, pero nunca (o casi nunca) se nos pregunta sobre
la existencia de etnias y/o razas en nuestro territorio. Hay un estereotipo
de “argentino clase media” muy fuerte que, construido desde los relatos
oficiales sobre la “argentinidad”, ha roto todo vínculo con lo negro, lo
andino y/o la existencia de pueblos originarios. La situación paradojal la
vivencia un extranjero que al llegar a nuestro país sabe (más o menos
inmediatamente) que existen negros de mierda (NM) de los cuales hay que
cuidarse y si es posible, evitar.
El objetivo de este artículo es tematizar reflexivamente las
estructuras experienciales y las políticas de los cuerpos a ellas asociadas
que permitan comprender, al menos un poco más, el lugar y “sentido” del
NM en las sensibilidades sociales. En la misma dirección nos interesa dar
cuenta de las características del escenario general (la ciudad colonial) en
que el NM condensa la expropiación y desposesión material anclada en las
políticas corporales.
La estrategia expositiva usada se puede sintetizar de la siguiente
manera: en primer lugar, a modo de introducción una sumaria presentación
97
Adrián Scribano e María Belén Espoz
de la situación del NM en la Argentina. Luego caracterizaremos los
componentes de la operación ideológica mediante la cual se configura
una política de los cuerpos cuya base material es el NM que: 1) es una
manera de cromatizar los espacios coloniales; 2) es un operador corporal;
3) se relaciona con la “gestión” del paisaje de los rostros segregados y; 4)
se conecta directamente con lo prohibido. Por último, daremos cuenta
de la trama corporal de una ciudad colonial donde cuerpo-clase-espacio
se estructuran mediante un cromatismo socio-vivencial que regula las
geometrías corporales en la situación colonial21 actual.
1.- Introducción: ¡Negros en la Argentina…! ¡… ¿De
qué negro me hablas?...!
En Argentina para los/las negros/negras22 está prefigurada una
posición en la gramática de las acciones: la ausencia. Porque efectivamente
no tendría otro significado que no fuera del orden de la primeridad en el
sentido Peirceano (1988): remite a la sensación de ausencia de luz, ‘negrez’
por decirlo de un modo, y por tanto remite en principio a una ‘ausencia
de color’. Esta ausencia que remite a la oscuridad pero en la ambivalencia
de no ser, o ser un grado ‘cero’ del color, es una posible comprensión de
la efectividad del término en sus diferentes aplicaciones a lo largo de la
historia. Por eso mismo podría constituirse en un espacio clave –como
espacio ‘vacío’- en relación a los discursos que se producen alrededor del
conflicto de clase (por su potencial como ‘otras’ inversiones significantes
que se realizan en sobre la materia o como uno de esos “espacios virtuales”
sobre el cual fundar nuevas formas de acción de la multitodo subalterna”23).
Pero también atada a los demás procesos de ‘autentificación’ de los que
son objetos los pobladores del mundo del no.
Sobre lo que aquí se entiende por situación colonial , cfr. (SCRIBANO, 2010d).
En todo el escrito enunciamos en masculino y utilizamos NM para facilitar la escritura pero no
desconocemos la enorme importancia de la visión de género que tiene este eje de la economía
política de la moral cuestión que no podemos abordar aquí pero es de vital importancia para una
mejor comprensión de lo que decimos.
23
CFR. Grüner, E. (2002: 87).
21
22
98
Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial
Es en este marco que existen dos momentos en la tensión narrativa
para el/lo negro en Argentina: la ausencia y la discriminación. Una primera
pista introductoria, que tomamos solo como una huella sociológica, es
parte del discurso estatal al respecto, traído aquí como testigo bajo la
sospecha que servirá de propedéutica indicativa al tema que se desarrolla
en el presente escrito.
Por otro lado, el NM esta -y se hace- en el marco de una pintura de
la situación colonial en la actualidad donde fabrica el escenario privilegiado
de la racialización de las relaciones sociales.
Estas dos referencias nos permitirán, al menos provisoriamente,
“constatar” la vivencialidad expulsógena de que aquello que se materializa
en el NM.
1.1.- Sobre la negritud en nuestro país:
el lugar de un imposible.
En nuestro país, el tema de la ‘negritud’ como punto de inflexión
y reflexión desde las ciencias sociales tiene un carácter ‘naciente’, en el
sentido que no ha sido objeto de estudio recurrente en un campo intelectual
que todavía desconoce la propia condición histórica de dicho objeto como
contexto que posibilito la imposición de una identidad nacional en este
heterogéneo territorio.24
A partir de la creación (1995) del Instituto Nacional contra
la Discriminación, la Xenofobia y el Racismo (INADI), organismo
descentralizado creado por ley nacional (n° 24.512 - año 1995) y
dependiente del Ministerio de Justicia y Derechos Humanos de la Nación
Argentina, la problemática sobre la ‘negritud’ en Argentina adquiere un
nuevo estatuto en tanto objeto de reflexión.
Dicho organismo, funciona como institución de control y
regulación (a partir de la realización de investigaciones volcadas hacia el
diseño de políticas públicas) en relación a prácticas de discriminación y
trato ‘desigualitario’ (en sus diversas dimensiones - ética, racial, sexual,
Algunas líneas de investigación que sí identificaron esta problemática desde hace un tiempo son:
Grosso (2008a; 2008b; 2009a; 2009b); Solomianski (2003) entre otros.
24
99
Adrián Scribano e María Belén Espoz
etaria, socio-económica, por discapacidad etc.) dentro del territorio
nacional argentino.
En este marco, se pueden rastrear algunas de las problemáticas
vinculadas a la ‘negritud’ en nuestro país consideradas en las dos dimensiones
que enunciábamos anteriormente (la ausencia/la discriminación): una
en relación a los afro-descendientes donde se puede identificar cierto
predominio de trabajos historiográficos que plantean la reconstrucción25 de
aquellas identidades ‘negras’ presentes en la constitución identitaria de
Argentina, eliminada – vía diversas políticas de Estado – del horizonte
de lo pensable. En este sentido, el INADI en su Informe preliminar
para el pacto de los derechos civiles y políticos señala a la comunidad
afrodescendiente como,
Sujeto de histórica discriminación (…). Es común escuchar frases como
“en la Argentina no hay negras/os” o lo que es más usual aún es negar
su presencia en la Argentina, desde la época colonial a la actualidad. Para
enfrentar este flagelo, las diversas comunidades se han reagrupado en
torno a diferentes organizaciones que luchan por revertir la histórica
invisibilización de la que han sido objeto. Según la Fundación Gaviria
“Existen investigaciones en diversos países americanos que, basadas en el hallazgo de
objetos precolombinos con figuras de rasgos negros bien definidos, sostienen la teoría de
la llegada de africanos al continente antes de los españoles. Sin embargo, la conformación
de la comunidad negra argentina se desarrolla en tres momentos históricos: “El primer
momento comienza en el siglo XVI y se consolida en los siglos XVII y XVIII con la trata
de africanos esclavizados destinados a servir de mano de obra de los colonos europeos en
América. (…) El segundo momento histórico comienza a fines del siglo XIX, se extiende
hasta mediados del XX y corresponde a las inmigraciones provenientes de la islas de
Cabo Verde, que llegaron en busca de mejores condiciones de vida que las impuestas por
la administración colonial portuguesa en su país. (…) El tercer momento ocurre sobre
todo a partir de la década de 1990. Sus causas son principalmente económicas aunque se
combina a temores de persecución política. En este momento llegaron al país migrantes
de Senegal, Nigeria, Mali, Sierra Leona, Liberia, Ghana y Congo. Asimismo, otros
afrodescendientes arribaron en este período, provenientes de países latinoamericanos:
Perú, Brasil, Cuba, Colombia, República Dominicana, Ecuador y Honduras. (…)
En las últimas décadas, las comunidades afrodescendientes se han reagrupado en torno
a varias organizaciones que luchan por revertir la histórica invisibilización de la que han
sido objeto”. (Texto extraído del Decreto 1086/2005 - “Hacia un Plan Nacional contra
la Discriminación”).
25
100
Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial
y la Universidad de Oxford, en la Argentina existe un 6% de población
afrodescendiente (cerca de 2 millones de personas).26
En este sentido, pensar la ‘negritud’ abre un amplio campo de
indagación que requiere, en principio –aún con anterioridad a reconocer
las prácticas discriminatorias en torno a ellos-, darle estatus a ese ‘grupo’
que forma parte de la argentinidad a partir del reconocimiento –al menos
cuantitativo- de su existencia en tanto tal.
En relación a la segunda dimensión, que distinguimos
analíticamente pero que implica toda una serie de continuidades en
relación a la primera, consideramos lo explicitado por el INADI en torno
al “mapa de discriminación” que éste realiza en el 2006 en todo el territorio
nacional, desglosado por provincias.27 Según este mapa, en la provincia de
Córdoba, la discriminación por ‘color de piel’ representa un 11.1% (con 18
por ciento se encuentra la variable socio-económica en primer lugar) del
total de personas entrevistadas que sufrieron algún tipo de discriminación
y, aparece en primer lugar cuando la pregunta remite ‘a cuantas veces
sufrió dicha discriminación’ (53,8 %) seguida por la variable ‘obesidad y
sobrepeso’ (53,3%).
En relación a la situación y el ámbito de discriminación aparecen
el ‘laboral’ y el ‘escolar’ (33. 3% y 17,9 % respectivamente) como los
más asiduos a tales prácticas. En el caso de la indagación sobre el tipo
de percepciones no sufridas en carne propia, sino observadas en relación
Plan Nacional contra la Discriminación, aprobado por Decreto 1086/2005, Fdo: Presidente de la
Nación, Dr. Néstor Kirchner, Alberto A. Fernández, Alberto J. B. Iribarne, (p. 83)
26
Abarcando cada una de nuestras 23 provincias y la Ciudad de Buenos Aires, este mapa,
constituido a partir de una encuesta cuantitativa que indaga en las representaciones,
acciones y percepciones de las diferentes formas de discriminación de las/os argentinas/
os, pretende asegurar un mayor acercamiento y una mejor identificación de los diferentes
problemas y aspectos de la discriminación con los que cotidianamente estamos
confrontadas/o. A partir de indagar sobre percepciones, experiencias y representaciones,
el mapa tenia como objetivo “De quiénes son las/os discriminadas/os y quiénes las/os
discriminadoras/es. De los lugares donde se discrimina. De la escasa reacción ante un
caso concreto. Del conocimiento o no de las/los argentinas/os sobre la posibilidad de
denunciar los actos discriminatorios. De la responsabilidad que le cabe ante estos hechos
a los poderes públicos. De los conceptos prejuiciosos que permanecen naturalizados”
27
101
Adrián Scribano e María Belén Espoz
a otros, también aparece la discriminación por ‘color de piel’ en primer
lugar (28,8%) seguida por el nivel socio-económico (28,3%). Todos ellos
aspectos que, variaran según género, edad, y nivel socio-económico de los
entrevistados.28
De manera espontánea, según este estudio, los cordobeses definen
a la discriminación como el acto de rechazo de un grupo o persona (74,3
%) seguidos por la ‘falta de respeto y ‘considerar inferior a ese grupo o
persona (10.3 y 8,3% respectivamente).
En relación a la ‘creencia’ sobre los grupos más afectados por
la discriminación en la Argentina aparece en primer lugar los de nivel
socio-económico mas bajo (57,5%) seguidos por la comunidad boliviana
(41,5 %), la variable ‘la gente de piel negra’ se ubica en lugar 11 con un
porcentaje del 8%, diferencia de la categoría ‘la gente de piel oscura’ que
representa un 6,8%.
En esta breve descripción de la problemática podemos intuir la
conexión entre la variable socio-económica y la variable ‘color de piel’ –en
la gama que va del negro al oscuro- : ambas encuentran en los mismos
cuerpos el lugar de inscripción para prácticas discriminatorias.
1.2.- Situación Colonial
y
Pintura del Mundo Colonial29.
Escena 1
“¡El pasaporte es trucho, vengan a buscarla!”, exclamó la funcionaria de Migraciones
en el Aeropuerto de Ezeiza cuando vio el pasaporte de María Magdalena Lamadrid,
parada frente a su ventanilla. Toda la gente que estaba en la cola se dio vuelta para
mirarla y ella se sintió morir de bronca. El argumento de Migraciones es que el
pasaporte era nuevo y tenía códigos de seguridad no reconocidos por el sistema ya que
Policía Federal no había informado sobre los cambios realizados en los documentos
hacía una semana. Sin embargo, la mujer declara que, entre los comentarios que le
http://www.inadi.gov.ar/inadiweb/index.php
El material que se usa en el presente trabajo y que da forma a las “escenas e imágenes” es parte
de los resultados de nuestras investigaciones colectivas en el marco del Programa de estudios sobre
Acción Colectiva y Conflicto Social sobre dichas investigaciones CFR “El Purgatorio que no fue”
(SCRIBANO y BOITO (Comp) CICCUS Bs. As. 2010).
28
29
102
Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial
hicieron hubo uno que la destrozó: “Me decían que no podía ser argentina si era
negra” (…) (Fragmento extraído de Diario CLARIN, 24 agosto 2002).
Escena 2
Yo empiezo a hacer un recuento de las tribus urbanas y ellos van sumando los que
olvido…
‘los cumbieros’…intervengo: y a los que les gusta mucho el cuarteto tienen alguna
forma de identificarse????...
las chicas dicen: ‘cuarteteros’!!!,
los chicos: ‘los negros’!!!(…)
Bueno todos estos podemos decir que son modelos diferentes de la juventud..¿ud
coinciden con eso? Como que se trata de un tiempo en el que uno se puede encuadrar en
cualquiera de estos modelos’…uno responde: ‘mas vale’!!….Alguno alguna vez paso
por alguno de ellos? (cuentan que vieron una vez a un ‘viejo emo’, lo describen) …ud
pasaron por alguna etapa de esas??
J: seee, el ‘cheto’
Yo: Como es eso?
J: me compraba toda ropa de marca, bailar marcha, cambiar los bailes por los
boliches…
YO: que boliches?
J: uy, una banda…a Bateens no se si conoce? El que esta en la Sabatini…
Yo: pero que cambiaste?
J: naa, nada al final porque no me gusta a mi…Naa, porque yo iba con zapatillas
adidas, asi, con gorrita Niké y te discriminan igual…
Yo: aha, pero como es que te sentías discriminado si supuestamente ibas con la misma
ropa?
J: No, qué misma ropa, cada uno iba con la suya!! –risasYo: no digo, con el mismo tipo de ropa…
J: ahh, no si, va, yo iba con zapatillas anchas y ellos con esas lisitas…
Yo: y vos no usabas esas zapatillas?
J: si, si, pero igual
103
Adrián Scribano e María Belén Espoz
Yo: entonces?
J: y si, te discriminaban porque asi como que te empiezan a mirar
Yo: pero te dijeron algo alguna vez?
J: era negro no me dejaron pasar una vez, que se yo…
(Fragmento de un grupo de discusión en “Ciudad de mis Sueños”30).
La(s) pintura(s) del mundo colonial31 está(n) diseñadas y producidas
en un plexo cromático y figuracional que se trama, gira y desenvuelve en
torno a horizontes y personajes. Horizontes cuyos componentes visibilizan
e invisibilizan las cosas y los sujetos en el marco de la perspectiva de una
economía política de la moral cuyo eje vertebrador es la racialización
en tanto practica ideológica. Personajes que, a través de sus relaciones
reciprocas, construyen las maneras adecuadas de mostrar las disposiciones
de los agentes en la usurpación, el saqueo y la expropiación.
Ambas imágenes descriptas en el comienzo de ese apartado,
remiten al ‘negro’ como personaje que demarca limites finos en torno
al “ser” desde un preconcepto, al estar-siendo desde una mirada que
colorea la acción de negro. Ello en relación a las formas de identificación
hegemónica que se coagulan en nuestra sociedad, en un caso a la ‘identidad
nacional’ y en la otra, al tenso juego del ser-parecer que se ata a marcos
más amplios de interpretación amarrados a contextos de pobreza (a las
condiciones de existencia). En uno hay ‘prejuicio’ en torno al ‘color de
piel’, como fenotipo que expresa un malestar que ya está bajo la alfombra
en nuestro país (“En argentina no hay negros de piel”). En el otro, hay un
tipo de de prejuicio en torno a pautas culturales mucho más complejas,
pero donde la clase y su postura como tal, activan los fantasmas de una
diferencia radical (“los negros que quedan, son los mierda”).
“Ciudad de mis sueños” es una ciudad-barrio resultado de la implementación de la política de
hábitat social del Gobierno de Córdoba (Programa “Mi casa, mi vida”).
31
Como en otros trabajo de nuestro Programa de Investigación estamos usaremos en el escrito
laexpresión colono no sólo como expresión metafórica de las clases-en-el-poder sino también más
específicamente para designar a todos aquellos ligados a la gestión directa de las políticas de los
cuerpos en contextos de segregación urbana encarnan dicha posición como los políticos, punteros,
publicistas, etc.
30
104
Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial
Si de alguna manera las dos escenas que abren esta reflexión
evidencian la sensación de un malestar producido en torno a la atribución de
un ‘color’ (perceptual o sentido) como marca identitaria, es porque en ella
se traman las distancias que legitiman un tipo de relación de dominación
característico en nuestras sociedades. Ello en tanto que dicha relación se
produce en el marco de ‘la ciudad colonial’, escenario privilegiado que
estructura las aludidas pinturas: pulcro y racional ordenamiento de la
segregación clasista y habitacional, de los fantaseos y fantásmaticas que
componen las sensibilidades sociales y de las políticas de los cuerpos.
En este sentido, la ciudad de Córdoba, Argentina, no representa una
excepción. Una ciudad que como tantas otras de América Latina, responde
a un orden estratégico de urbanismo que segrega socio-espacialmente los
cuerpos.32 Una ciudad que se vive a partir de una deseable distribución
espacial (condicionando las posibilidades de movilidad y circulación)
estableciendo específicos –y cada vez más restringidos- puntos de encuentro
interclase, y que encuentra, a la vez, en los medios de comunicación
masivos, una instancia fundamental para el despliegue de la producción de
los componentes imaginarios e ‘ideales’33 que la constituyen, estableciendo
así el horizonte deseable de su trama y sus personajes.
Las aludidas tramas en las que se traba esa particular paleta (a)
cromática que las dos escenas relatadas describen, regula las percepciones
y sensibilidades sociales a partir de una figura/personaje cuyos contornos,
en nuestra ciudad, adopta características específicas, a saber: el Negro de
Mierda (NM).
De esta manera, la figura (a las vez simbólica y material) del ‘negro’
como ‘espacio vacío’ se instituye en diversas ‘imágenes’ (como forma
de relación social), asociadas todas ellas a una serie de identificaciones
patológicas producidas en el juego que va de lo cromático a la
discromatopsia. Esta operación es resultado de un procedimiento previo
que en diferentes campos y según diversas estrategias, licua el conflicto
a partir de la relexematización de algunos significantes vinculados a la
Algunas de las reflexiones en torno a esta problemática se encuentran desarrolladas en LevsteinBoito (comps.) (2009), Scribano, (2009a;); Scribano-Boito (2010a); Scribano-Cervio (2010b);
Espoz, (2009); Boito-Cervio-Espoz (2009).
33
CFR. Espoz-Michelazzo-Sorribas (2010).
32
105
Adrián Scribano e María Belén Espoz
noción de “clase”: ésta que ya no pueden ser ‘nombrada’ en su carácter
conflictivo (menos de ‘subalterna’) porque nos encontramos en la ‘sociedad
de la gente’, entonces adviene ‘lo negro’ como una vuelta esencialista a la
naturalización de las relaciones sociales en contextos neo-coloniales.
Este gesto institutivo de inversión producido en el marco de
ciudades coloniales donde, la socio-segregación espacial imprime el sello
del reino de la mercancía en la tierra, produce un ‘borramiento’ de esos
cuerpos conflictivos que son el excedente material de la instancia de
dominación socio-cultural, transfiriendo el conflicto bajo esa figura –a los
ojos del régimen de visibilidad actual ya despojado de su carácter tensivo- del
NM como agente natural de su propia condición de inconmensurabilidad
social.
Desnaturalizar dicha condición comienza con el ejercicio de
desmotar la trama de imágenes por medio de las cuales el NM se instituye
como una pieza clave del régimen de sensibilidad actual: operación que
parte de ‘traer’ a la memoria la condición primera a la que se articula toda
interpretación de la “negritud”/lo “negro” configurada en la narrativa de
los “vencedores” (de la historia, de la sociedad, del orden) en ese juego
de ‘sombras’ y ‘luces’ como espacios de fijación y a la vez, lectura, de los
cuerpos.
Lo negro (como sustantivo34) en un sentido amplio y en primera
instancia, remite a su existencia como categorización de lo ‘otro’, a una
serie de procedimientos de censura que harán posible, bajo la forma de
‘nombrar el peligro’ su existencia en tanto objeto. Sólo ese primer gesto de
violencia permite producir toda la cadena de significantes que precisaran
de una adjetivación “conclusa” para dar cuenta de diversas dimensiones de
tal peligrosidad, que se condensa vía la naturalización del instante que lo
origina como signo, de lo anormal, patológico, perverso, oscuro, demencial.
Las adjetivaciones no son más que las operaciones ideológicas por medio
de las cuales se congela al sujeto a portar ese signo como síntoma de su
existencia.
En nuestro país, las adjetivaciones que acompañan generalmente
al sustantivo ‘negro’ -desde los discursos coloquiales hasta los formalesHablamos de sustantivos en tanto que el ‘negro’ tal como se entiende aquí, remite a una entidad
fija, no contextual del que se predican las demás adjetivaciones.
34
106
Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial
son ‘de mierda’/‘chori’/‘cabeza’/‘villero’/‘alma’. Todas ellas construidas
a partir de un señalamiento argumentativo que explicita la no referencia a
‘negros de piel’, porque claro está ‘es imperdonable la propia identificación
de sí mismo como racista’.35 En este sentido, la adjetivación que acompaña
al ‘negro’ remite entonces a diversas dimensiones espacio/temporales de
anclaje de ese sujeto en relación a sus condiciones de existencia a la vez que
va determinando el horizonte de prácticas, conductas, comportamientos
y apariencias –sobre todo físicas- de los mismos. ‘Mierda’ remite a
excremento, “chori” remite a delincuente, “cabeza” a falto de modales y
conocimiento de las buenas costumbres, simplemente torpe o ignorante
y villero…Y villero remite a una experiencia explicita de condición
socio-habitacional que carga, en la misma noción de vivencia, todas las
otras significaciones. El caso de ‘negro de alma’ se torna más confuso y
paradigmático ya que aquí no habría siquiera una referencia estricta a cierta
‘tonalidad’ de la piel que suele describir en el sentido común al negro (ya que
en nuestro país un ‘negro’ podría ser ‘rubio y de ojos celestes’), sino que
remite a esa ‘original’ relación que se establece entre zonas de iluminación/
oscuridad como primera operación ideológica que sustentó la experiencia
colono/colonizado.36 Como podemos notar, adjetivar implica establecer
una relación con el otro a partir del cuerpo (si porta o no en su cuerpo el
estigma), de la sensación (de repugnancia, asco, miedo, temor) y de la acción
(rechazo, indiferencia, exclusión, supresión).
Pobreza y ‘negrez’ en nuestro país están estrechamente vinculados
como pudimos ver hasta aquí. A partir de la producción de imágenes
de las clases subalternas como ‘portadoras de peligro’ -del originario y el
Es muy interesante destacar la serie de lexemas que se utilizan como sustitutivos para evitar una
interpretación ‘racista’ del propio discurso cuando se hace referencia a los negros en nuestro país.
Dicha operación ideológica desplaza bajo las designaciones ‘tez oscura’, ‘morocho’ la enunciación
de lo ‘negro’ como interpretación del sentido común atado a una práctica racista. De allí que
sin tapujos se pueda decir ‘negro de mierda’ sólo después de haber instalado toda una serie de
caracterizaciones que legitiman el enunciado como interpretación desprovista de dicho carácter
xenofóbico: si son definidos como aquellos de “tez oscura, mechas rubias, gorrita y una dentadura
para nada envidiable” que “te roban, te rayan los autos, mandan a pedir a sus hijos, etc.” queda
claro, sólo para el enunciador, que su interpretación está más que ‘justificada’ por una sucesión de
acción de la cual el objeto de atribución es el responsable
36
Tener un ‘alma oscura’, en este sentido, se asocia a lo perverso, al pecado, a la culpabilidad –
atravesada por toda la moral cristiana- que necesita ser ‘salvada’, es decir, normalizada.
35
107
Adrián Scribano e María Belén Espoz
venidero-, se instala toda una máquina discursiva que satura, ‘iluminando’,
hasta ese aspecto imposible de ser percibido y menos aún, corroborado
como dato: la ausencia de color. De allí que el NM como espacio
vacio, como estructura vicaria, sea objeto de inversiones de sentido que
configuran identidades esencializadas.
Por esta vía podemos visualizar cómo en la pintura del mundo
colonial el NM no es sólo un personaje más sino que emerge constituyendo
el contraste “justo” para el olvido clasista y la expropiación excedentaria.
2.- La ciudad colonial y la operatividad del NM:
una propuesta de lectura en clave cromática.
Hablar de ciudad colonial es confirmar el diagnóstico actual del
capital en su fase ‘imperial, neo-colonial y dependiente’: éste se funda
en un entramado de intereses y sensibilidades que articulan los centros
multipolares a través de sensibilidades vicarias y delegativas, en prácticas
depredatorias de carácter planetario global, y en la amenaza de la fuerza
como garantía de la dominación estructural, más acá de las particularidades
locales. En este sentido, “la ciudad es colonial, porque instancia y reproduce las
prácticas del colonizar”37 (SCRIBANO-CERVIO, 2010b).
En este sentido, la ciudad ‘colonial’ (SCRIBANO-BOITO: 2010a;
SCRIBANO-CERVIO, 2010b) como escenario privilegiado en el cual
se traban y destraban las políticas de los cuerpos (mediante las políticas
de alimentación, de educación, de salud, de hábitat, de transporte, etc.) y
estructurada, como en el caso de la ciudad de Córdoba, por una distribución
clasista de los cuerpos en dicho espacio, encuentra en la reproducción de
ciertos personajes un lugar clave para la comprensión de los dispositivos
de regulación de las sensaciones y los mecanismos de soportabilidad social
(SCRIBANO, 2007a) que operan en la actualidad.
Las pinturas existentes en ese marco, se establecen por la
diagramación de una cartografía especifica en la ciudad colonial, que
requiere, para su aprendizaje, la internalización38 (individual y colectiva)
37
38
Colonizar es ocupar, expropiar y tener el poder de decidir sobre las vida de los otros.
En el sentido del establecimiento de ‘mapas cognitivos’ que nos permiten vivir una ciudad.
108
Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial
de sus contornos, sus bordes y fronteras que demarcan los adentros/
afueras posibles -y deseables- de una Ciudad que se torna cada día más
extraña (e ‘insegura’) para el individuo que la habita. Dicha cartografía,
se configura, en esta perspectiva, a partir de la conexión entre estructuras
narrativas, roles actanciales y máscaras identitarias que dan cuenta de
una particular trama entre las posibilidades del decir-se y el hacer de los
agentes en relación a sus vivencias ‘posicionadas’ socio-espacialmente,
y las operaciones de dispositivos de regulación de la sensibilidad social
sostenidos por un cromatismo de clase. En el juego del como me veo/como
me ven que decanta en las definiciones del ‘cómo/qué soy’, reestructurado
por una gramática del espacio socio-segregada por clases, las acciones se
dejan leer desde prácticas de valoración social que involucran personajes,
figuras ya clasificadas en el marco de esa distribución socio-espacial
desde un cromatismo que activa las fantasías y fantasmas de una sociedad
determinada.
En esta línea de reflexión, uno de los personajes cotidianos y
fantasmáticos de la ciudad en la situación colonial actual es el negro de mierda
(NM) cuya escenificación, caracterización y libreto hunde sus raíces en una
prolongada transposición (micro)-histórica, compleja y contradictoria, que
va del indio, pasa por el gaucho, llega en forma de migrante interno, se
instala como “cabecita”, vuelve como inmigrante sudaca y se consolida
desapercibidamente en la aborrecida y abyecta “pobreza” del colonizado
actual.
Dicha trayectoria remite a instancias paralelas pero a la vez
‘simultáneas’, que sólo a partir de lectura del devenir histórico de las
geometrías corporales, encuentra las huellas que explicitan el lugar iterativo
que ciertos cuerpos ocupan en las instancias de dominación. Cuerpos que
anclados –y moviéndose en las delimitaciones marcadas por una especie
de ruta de la ‘pobreza’- en diversas escalas de la distribución geo-territorial
y política del mundo actual, encuentra una y otra vez en dicho cromatismo
de clase un lugar estratégico para la regulación de una política corporal que
encuentra en la ciudad colonial su materialidad específica: el NM.
Aquí cobra especial relevancia, el lugar de los medios de comunicación masiva (como instancia de
producción social de experiencia en términos colectivos), como hacedores de dichos mapas.
109
Adrián Scribano e María Belén Espoz
En este sentido y como en toda situación colonial, no hay colono
sin un negro de mierda donde descargar la culpabilidad e irracionalidad
de un colonizado dibujado, representado y deseado como objeto de
asistencia, caridad y represión. Ese negro sintetiza con su carne y con su
imagen, el legado de las experiencias pasadas que hacen de su existencia
la razón de la Razón, la libertad de la Libertad, zonas de oscuridad que
devienen en espacios lumínicos del orden imperial. En este contexto es
fácil comprender que la funcionalidad, disposicionalidad y contenidos
ideológicos del NM, más allá que sean cambiantes (qué negro ocupa el
lugar de NM –del afrodescendiente al pobre/paria/migrante-), sea una
piedra angular de la situación colonial y de las sensibilidades sociales a ella
asociadas.
Dicha disposicionalidad –con sus contenidos ideológicos- implica
reconocer varias dimensiones en las que se traman las sensibilidades sociales
a partir de este personaje. Por un lado, con el NM se regulan las distancias
corporales a partir del establecimiento de zonas de luminancia/oscuridad
entre los cuerpos, disponiéndolos en cuerpos ‘para ser vistos’, cuerpos ‘para
ser observados’, cuerpos ‘para pasar/ser desapercibidos’ que van cartografiando
los espacios transitables-habitables-consumibles de la ciudad colonial; de
allí que el NM sea un operador corporal, a partir de él se marca y desmarca con
(y en) su cuerpo la geometría espacial que regula las posibles interacciones
y desplazamientos en la ciudad que se atan a su presencia como punto
de referencia estableciendo todo un sistema de identificación/valoración
social que asigna cuerpos y colores a lugares (esos rostros son también
las zonas de ‘inseguridad’ en tanto que condensan los excedentes de la
lógica colonial y por tanto lo ‘subversivo’ que está latente e intermitente);
en este último sentido, dichos rostros configuran el campo de gestión posible
que resguarda el paisaje a/para los otros (“ciudadanos”) garantizando, hacia
fuera, la evitabilidad de su confrontación39 y, hacia adentro, por medio
de la moralización de esos ‘otros’, los encuentros esperables; finalmente,
En este sentido se vuelve significativo considerar la información que se provee en diversos
sitios web que ofrecen ‘mapas de las ciudades’ para el GPS donde se van demarcando las zonas
‘inseguras’ o ‘peligrosas’, ofreciendo rutas alternativas o de ser imposible, diseñando un camino
lo menos peligroso posible. Un ejemplo es el caso de la página web http://www.proyectomapear.
com.ar/
39
110
Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial
el NM se conecta con lo prohibido en tanto que da cuenta de lo forcluido, lo
reprimido, lo confiscado de la experiencia racional que vuelve, siempre,
violentamente, develando la lógica del deseo en su desnudez.
El NM es así, el resultado de la acumulación diferencial de energías
corporales y sociales que sirve de nodo referencial a las geometrías corporales.
La combinación de factores del cuerpo piel, imagen y movimiento40 que
se anudan en una obscuridad mal oliente. Desde las mismísimas herencias
“genéticas” de la alimentación inadecuada, la socialización en contextos
de violencia(s) de género(s), la laceración corporal por represiones
superpuestas, la cotidianidad de un envenenamiento desapercibido,
(provocado por la consecuencias de la presencia de minerales pesados en
tierra y agua hasta la contaminación con los agrotóxicos del aire, el agua
y los alimentos), son algunos de los factores que preparan y moldean al
NM. En la raíz misma del cuerpo el colono construye, en su depredación
sistemática de lo común, un sujeto que atravesado por las faltas y las
precariedades se convierten en excusa de su moral.
3.- Cromatización de los espacios y operador corporal
- Imagen 1: El NM cromatiza los espacios sociales.
Coord: ¿y cuando van al Patio Olmos41 hablan con todos los otros de las tribus o...?
E: no
F: no
V: es que no te hablan [risas]
Coord: ¿ah, no te hablan? ¿cómo es, a ver?
V: tenés que estar vestida como ellos sino ‘chau’ [se ríe]
Coord: ¿y cómo definirían la...?
E: un día nosotros fuimos con ella y unos chicos, y nosotros quisimos entrar y nos
dijeron “no, esto no es para negros, es para floggers
Para las nociones de cuerpo piel, cuerpo imagen y cuerpo movimiento, CFR Scribano (2007b; 2010c).
Patio Olmos es un Shopping Center ubicado en pleno centro de la ciudad de Córdoba y punto
de encuentro recurrente de jóvenes.
40
41
111
Adrián Scribano e María Belén Espoz
Coord: ¿a dónde?
E: en el Patio Olmos, nos tuvimos que venir todos
(Fragmento de Grupo de discusión con jóvenes de ‘Ciudad de mis
Sueños’).
Las formas sociales del espacio colonial se cromatizan en y desde
el NM. “En” por que el cuerpo cumple una doble función, es a la vez
territorio en donde el colono despliega las apropiaciones excedentarias, y
por que es soporte de lo desechable. La estructura colonial de relaciones
se hace hueso en la falta de nutrientes básicos para los procesos cognitivos,
se hace piel en las arrugas precoses de los jóvenes, se hace acontecimiento
en las modas y tonalidades de peinados. El color que hiede es una señal
que guetifica y marca las zonas habitables por los “cuasi” ciudadanos
condenados a vivir en la levedad de un aislamiento por y en la mirada del
colono. El cuerpo imagen del NM tiene sus respuestas desde el nacer ante
la pregunta sobre quienes creen los otros que soy: esta hecho para orillar
la ciudad para esquivar las miradas.
La ciudad pulcra y ordenada en torno a políticas públicas42 (de las
piedras pero también de las carnes) van asignando ‘zonas’ a cuerpos a
partir de las operaciones cromáticas que condensan la oscuridad (como lo
abyecto) de ciertas corporalidades. En ese sentido, el centro de la ciudad
de Córdoba, como el punto de referencia de lo deseable a la mirada de
‘todos’ (una mirada cada día más regulada por la lógica del consumo y
del turismo de la ‘gente’) y por ende, lugar paradigmático para activar
el deseo de ‘ser visto’, encuentra en el relato introducido, al NM como
indicador de ese plexo de lo vedado/permitido según un index corporal.
Tampoco es azaroso que la identificación sea producida por un ‘agente
de seguridad’: esos ‘especialistas’ en la anatomopolítica del detalle de las
clases subalternas.
Hacemos referencia tanto al orden de las políticas públicas diseñadas e implementadas (en
Córdoba) para ‘hábitat social’ (Programa ‘Mi casa, mi vida’) como así también a aquellas destinadas
a la ‘modificación de normativas’ para el desarrollo inmobiliario privado y las de ‘embellecimiento’
de la Ciudad (Plan Director).
42
112
Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial
Lo que ese cuerpo en ese espacio está marcando, es el juego de
distancias deseables dentro de una ciudad, que evidencia, en su trasgresión
(el salirse de ese espacio que se le asignó por medio de una política de
hábitat social –el vivir en las ‘ciudades-barrios’-) su triple condición, del
régimen de sensibilidad regulado por la predominancia de lo visual (para
ser visto por ‘tv’, para ser observado por los sistemas de seguridad del Estado
y el Mercado; para pasar desapercibido en tanto humano).
Por ello también el NM es el nodo “desde” donde se construye
la geometría de los cuerpos. Desde el NM se calculan las situaciones
expulsógenas, las distancias debidas y esperables que separan el colono del
colonizado, se trazan bordes, cruces, límites y fronteras de las interacciones
posibles de las fracciones de clase de la ciudad colonial. Desde el NM se
hilvana las proximidades y distancias que el colono usa para saber(se) en el
lugar correcto, adecuado y valorable (en este caso, el ‘centro de la ciudad’).
Al ver un NM se trazan líneas “imaginarias” que separan las consecuencias
fantasmáticas del contacto, al sentir(se) próximo al NM se “disparan” los
dispositivos de rechazo preventivo que garantizan el no contacto, al hablar
con un NM se arman los “escudos protectores” propios de lenguajes
inconmensurables.
- Imagen 2: El NM como operador corporal
Coord: ¿cómo que no los dejaron?
Fer: ya me imagino tus amigos cómo llegaron
Eli: no, fuimos con... ¿cómo se llama? con el Ángel y el Sebastián
Fer: ah
Coord: ¿cómo, cómo? a ver...
Eli: o sea, porque entró... estaba un guardia en la puerta y nosotros íbamos a entrar
y nos dice “no chiquita, esto no es para negros, es para floggers”; y nosotros tuvimos...
Vane: pasa que parece que para ellos los floggers son más tranquilos
Fer: sí, y terminan siendo peor
Vane: los peores porque...
113
Adrián Scribano e María Belén Espoz
Coord: ¿ah sí, por qué?
Fer: te miran y te dicen “black” así “negro”
Vane: o sino hay algunos que tienen la vestimenta...
Eli: o sino se hacen cagar entre ellos, los emos y los floggers [risas]
Coord: a ver, vos que hablás de ‘diseño de indumentaria, vestimenta’, a ver, vos
caracterizamelos...
Vane: uh, no tengo ni idea
Coord: estás hablando todo el tiempo de cómo se visten ¿qué es lo que...?
Vane: y, que tienen diferencia para vestirse, todos tenemos diferencias. A veces te podés
vestir como negra y no sos
Coord: a ver, ¿qué es vestirse como negra, qué implica?
Vane: como negra, con unas nike
Fer: y las zapatilllas con tampones así, los jeanes
Vane: o a veces pantalones…
Eli: sí, porque, o sea, nosotros no nos podemos bur.... a nosotros no nos gusta cómo
se visten ellos [risas]
Fer: las musculosas es del barrio, mayormente las musculosas y las mangas cortas
(Fragmento de Grupo de discusión con jóvenes de ‘Ciudad de mis
Sueños’).
En conexión con lo anterior NM opera como una regulación en
sí mismo. El NM es un operador corporal incluido en la estructuración
fantasmática que vértebra los mecanismos de soportabilidad social. Por
un lado, es la cara anversa de lo aceptable tejido desde el doble juego
de la racialización cromática43 y la excremencialidad; por otro lado la
deformación performativa del dualismo colonizador.
Hablar de ‘racialización cromática’ es hablar de las prácticas ideológicas mediante los cuales se
determina una manera de vivenciar las características fenotípicas que son, a la vez, atribuidas a un
sujeto, desde una configuración histórica que adviene como marca corporal vinculada a la categoría
‘raza’ en un sentido más bien étnico según lo entenderíamos en la actualidad. De allí que ‘cromático’
remite a la persistencia de esa fuerza perceptiva a partir de la cual se inyecta a esos cuerpos, una
tradición en el orden de la sensibilidad social, que se reproduce en relación a la pobreza.
43
114
Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial
Así se establece una lógica donde la vivencialidad de esa ‘marca’
corporal encuentra puntos de fuga desde la percepción (también en
clave ‘cromática’) que el ‘portador’ de dicho marcador reencuadra para
soportar ese mundo mal conocido. Se transfiere hacia un juego del ser/
parecer (podes vestirte como negra y no serlo) que legitima el encuadre
de interpretación sobre el sí mismo que se actualizan. El NM como
operador corporal define el ser/ parecer/(comprender(se) desde dicho
cromatismo. Ello en el marco de concebir el régimen visual como locus
en el que se tejen y destejen las formas de ser y sentirse en un mundo en el
cual, cada día nos conocemos más por las imágenes que tenemos de esos
otros y nosotros. En este sentido, ‘basta sólo con mirar’ para percibir al
NM.
Por ello, la economía política de la moral se apoya en la rostrificación
segregacionista para sintetizar en y por el cuerpo el campo de sensibilidades
aceptadas-aceptables y valoradas-valorables. Incluso para el NM que se
somete al mismo régimen de valoración social, tendiendo a explotar la
distancia del ser y parecer, para despegarse de esa aceptabilidad en torno
al horror que implica ser identificado como un NM. La racialización
cromática opera metonímicamente sobre el régimen de los mundos
posibles adosados a la re-invención permanente de los cuerpos pasibles
de expropiación: si se es NM en tanto particularidad indiferenciada se
pertenece a esa clase de individuos en los cuales desprecio y desposesión
coinciden de tal manera que se “merecen” la desafiliación cromática del
mundo. Lo fausto, sombrío, terrorífico de un “cuerpo-en-las-sombras” es
la predicación actuante de un sujeto del mundo del No. Pero también de
su anverso: en su subjetivación esa sombra deviene el propio fantasma de
clase que se activa por la fantasía de la inclusión.
De allí que la excrementalidad subsume en una explicación
odorífica el horror de ver(se) con ese desecho amenazante que emerge
desde lo obscuro. Pero refiere también a la parte de lo social en tanto un
no querido que hay que evacuar más allá que sea el producto “natural”
del régimen de producción de los cuerpos en situación colonial. Ser una
mierda en tanto predicado de una obscuridad lombrosiana inscripta en
el propio cuerpo, es el destino de aquellos personajes a los cuales se los
busca, pero no se les da la bienvenida en la pintura del mundo colonial:
115
Adrián Scribano e María Belén Espoz
“acérquense…pero no entren”; “deseen…pero no toquen”, “consuman…
pero no aquí”, parecen ser las máximas inscritas en el cuerpo del NM que
estructuran las coordenadas de circulación y desplazamiento en la ciudad
colonial. Y cuando se ‘sientan’ como NM, no sólo es porque lo son (así
lo llevan tatuado en el cuerpo –en su disposición corporal, en las maneras
de vestirse, de peinarse, de comportarse) sino porque deben serlo. La
excrementalidad en este sentido, es el procedimiento por medio del cual
se (re)asegura un orden pulcro de la ciudad.
4.- Paisajes daltonificados
y catalizador de lo prohibido
Imagen 3: El NM daltonifica los paisajes de los rostros segregados
Walter – Eso es lo que pasa. En Buenos Aires, esa gente puede protestar tranquila
y que se yo… emmm
Débora – No va la policía.
Walter – emmm, ¿el barbudo como se llama? Que salía a…
Andrés – Castel
José – Biolcatti
Walter – Castel! Salia a protestar con su gente pobre y eran apaleados. Porque son
gente de la villa, son gente negra.
(Grupo de Discusión con diversos ‘actores colectivos’ de Córdoba).
C: Raúl, que por ahí, qué imagen, qué recuerdos te… hace recordar esa época, el
2001, la protesta
R: bue, la protesta del 2001, ¿qué te puedo decir? Yo tengo 53 años, 40 años junté
cartón en la calle junto con mi madre y te digo, los gobiernos que han estado acá en
Villa María, ninguno, ninguno nos dio nada. Los que están ahora lamentablemente,
cuando formamos, fundamos la cooperativa La Unión quisieron vivir a costilla
nuestra. Los que están presentes, nos daban el trabajo pero como nosotros, supimos,
somos más inteligentes porque también éramos negros pobres, pero sabíamos trabajar,
sabíamos lo que era el negocio, dijimos no… Entonces ¿qué es lo que hicieron? En 24
horas formaron una cooperativa y se la dejaron a los que quisieron ellos(…)
116
Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial
C: Usted ve cierta continuidad digamos, como que no hubo una ruptura en esto,
digamos entre…
R: Ahí en esa, te digo, me dio alegría porque por lo menos era triunfar...
(Grupo de discusión con diversos “actores colectivos” de Villa MaríaCba.).
Debora: No, no lo vemos. Nos vemos que nos fuimos, que tenemos una casa mejor que
en la villa, tal vez vos en la villa vos ibas a General paz, Junior, a pedir un trabajo
y te lo daban por limpiar…
Sandra: o te hacian limpiar la vereda, pero no…
Debora: a la ruta 9 me ha tocado ir y … bueno, si sos morocho menos. Totalmente
tenes cara de chorro, así que no te toma. Por mas que tengas el estudio completo
no? Y que vengás… hay chicos que vienen del Presidente Roca, del otro de ahí del
parque….y vienen con una base y no, no los tomaron.
Sandra: a esos chicos los marca el barrio nomas no?
Debora: no, porque tenes que pagar cospeles, que se yo..el colectivo ese no viene nunca
vas, no vas a faltar…
(Grupos de Discusión con diversos ‘actores colectivos’ de Córdoba).
El NM daltonifica el paisaje de los rostros segregados, impulsa una
operación corporal sobre la multitud de tonos del negro y se metamorfosea
con los volúmenes de energía expropiables. 1) Todos los rostros parecen
de mierda en los horizontes, bordes y espacios de contacto del mundo
del no que recorta la segregación. 2) Las gamas de negro establecen un
efecto clasificatorio y disposicional que hace de la diferencia una totalidad
desigual y expulsógena; 3) Las densidades, espesores y pesos de las energías
expropiables de los cuerpos determina la obscuridad de la negritud posible.
De allí que una vez ubicados en la zona de ‘oscuridad’, todos los
‘negros’ sean más o menos iguales. La tonalidad así se despliega en una
línea de discromatopsia que regula las sensaciones de los sujetos hacia
el interior: la villa se convierte así en el borde que difumina esos rostros
como sombras del paisaje.
117
Adrián Scribano e María Belén Espoz
Pero también en este marco, e instituido el NM como operador
corporal, se despliegan nuevos mecanismos para hacer soportable
el compartir la situación de pobreza y exclusión: aquí entran en
funcionamiento toda la serie de operaciones que intervienen moralizando
la pobreza distinguiendo a ‘pobres buenos’/’pobres malos’, donde el NM
como marca corporal ‘inevitable’ reencuadra la escala de ‘negritud’ entre
los que la comparten. El ‘negro trabajador’, ‘el negro inteligente’, ‘el negro
choro’, etc. no es más que la materialización de un orden clasificatorio que
encuentra en una nueva adjetivación puntos de fuga al daltonismo.
A la ‘moralización de la pobreza” se le pliega un “solidarismo
transclasista” (BOITO, 2008) que opera como dispositivo de regulación
de las sensaciones hacia adentro/hacia fuera de las zonas de oscuridad,
estableciendo las brechas corporales que confirman la situación de
colonización: por un lado, el reconocerse cerca de un NM implica a la vez
reconocer que hay excepciones que demarcan la regla, y por el otro,
reconocer a un NM como excepción remarca la necesariedad de que
éstos existan para que el colono se identifique44 como tal. Pequeños haces
de luz artificial, que desde fuera, inundan de oscuridad la situación de
colonialidad que experiencian los cuerpos de un mundo negado.
El mundo del No troquela la ciudad en ese efecto de quiebre en
suspenso que implican las zonas donde habita lo abyecto. El efecto troquel
desdibuja las tonalidades y hace aparecer el mundo desde una negritud
masiva e indolente, pues se aplica a todos más allá de sus colores específicos
y es aceptada desapercibidamente con la impunidad del quien no distingue.
En una torción moebiana las múltiples tonalidades de negro “justifican” la
aplicación nomotética de clasificaciones y en-clasamiento que dejan claro
que no todo negro huele igual. Amabas practicas, la de troquelar y la de
Así por ejemplo, vemos en la televisión continuos relatos que a manera de historias de vida dignas
de ser ‘rescatadas’ nos cuentan de ‘gente pobre que tiene un comedor para pobres’, ‘del cartonero
que encontró un maletín con diez mil pesos y los devolvió’, ‘de la alumna excelente que logro
recibirse más allá de los condicionamientos de su existencia’, etc. Pero también los relatos tejidos
en el marco de la ‘vida privada’ donde no se teme a aceptar en el espacio público (de los medios de
comunicación) que ‘tiene peruanas trabajando, o al cuidado de sus hijos, porque son buena gente,
trabajadora”, o ‘que ayuda/colabora con el comedor de una villa; en una campaña de solidaridad’,
etc. ni que decir de los famosos que ‘bailan, cantan o patinan’, por el sueño de esos otros.
44
118
Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial
clasificar, se anudan en un eje que vincula las tonalidades de negro a las
energías expropiadas y expropiables a través de la daltonificación.
Imagen 4: El NM se conecta con lo prohibido
Ahora sí. Ventajas de ser un negro de mierda:
- Podes fumar, escupir, comer como un cerdo, tirar y romper lo que quieras, escuchar cumbia a
los palos encima con un celular mucho mejor que el mío, colarte, y más desacatadeces (?) en el
colectivo sin sentir siquiera un deje de culpa cuando yo una vez tire el boleto al suelo y hasta el
día de hoy me da culpa. Vos no te quedas con el más mínimo cargo de conciencia porque para
vos todo eso es normal.
- Cuando a muchos nos da vergüenza decir que somos, por ejemplo, diseñadores gráficos, por
más que ejerzamos aunque aún no nos recibamos, vos no tenés problema en llamarle “ir a
trabajar” el entrar a una casa ajena y llevarte el televisor, el DVD y el Home Títere.
- No te hacés tanto problema por la vida y el futuro, vivís el momento y listo. Mientras hoy
tengas droga, cigarrillos, sexo descuidado y unos fideos de ayer, vos sos feliz. No como el resto
de nosotros. Seres torturados por nuestra propia mente al pensar que va a pasar dentro de
unos años: voy a estar en la empresa que tanto deseo, voy a poder cambiar el auto,
llegare con la plata para las vacaciones. Todo nuestro dilema pasa por el dinero, por
como obtenerlo mejor dicho. El tuyo también, pero no te cuesta toda una vida conseguirlo, con
un fierro y un viejo confiado que se cree que todavía esta en el pueblo hacés más en 2 minutos
que yo con todo un mes de trabajo. Y te vuelvo a repetir, no te quedas con el más mínimo cargo
de conciencia porque para vos es absolutamente normal.
No te culpo, es una cadena, tus viejos son así, vos sos así y tus hijos también lo van a ser. Y si
no lo sos, pero vivís en un barrio humilde, cuidalos e imponeles buenos valores mientras puedas,
porque cuando empiece a hacer amistades con otros, conozca la droga, el alcohol y el dinero
fácil, no hay vuelta a atrás. Y cuando sepa lo fácil y rápido que es salir de la cárcel en nuestro
país, menos. En serio, evita todo tipo de maltrato, tanto físico como verbal. Cuida tu lenguaje
e incentivalo a que estudie. No digo que le impongas otra cultura, pero se puede ser humilde
sin rebajarse a ser un ladrón. No te tires bajo la sombra a fumar mientras que con 2 años lo
dejas en medio de una avenida a mendigar. Eso es de hijo de puta, no hay otra palabra. A
veces llego a creer que en esos casos sos capaz de pensar “¿y si lo pisan qué?, total siempre
hay otro en camino…” Más me molesta saber que con lo que el nene junte, primero viene
el vino, segundo los puchos y con lo que sobra algo de comer.
(Fragmento extraído del blog ‘quétupé’45).
45
http://www.quetupe.com.ar/ventajas-de-ser-un-negro-de-mierda/
119
Adrián Scribano e María Belén Espoz
El NM siempre es asociado con lo prohibido, con in-deseable y con
lo in-confesable. El NM hace lo que no se puede hacer, le gustan las cosas
que no se pueden querer, dice las cosas que no pueden ser verbalizadas.
El NM es una corporalización de lo reprimido creada por una economía
política de la moral que desvía hacia él los lados obscuros del buen colono.
Es la encarnación de aquello que el colonizador re-viste de mascaras,
ropajes y caras construyendo una rostricidad clasificante sobre la cual solo
queda alejarse temblando en actitud deseante. En realidad el NM es un
objeto que refleja los múltiples objetos de deseo(s) del buen colono en su
estado de usurpador que reprime todo acto público que no responda a la
pornografía de la desposesión.
El buen colono se significa en esa oposición constituyente tramada
y emergida desde sus propias condiciones materiales de existencia
llamada NM. Qué significa ser un buen colono sino alguien que privatizó
las pasiones en orden al tranquilo transcurrir del dulce comercio (sensu
Montesquieu), qué significa ser un buen colono sino aquel que interiorizó,
en el contexto de mercantilización de la vida, al otro como objeto de
su propio goce (sensu Marx), qué significa ser un buen colono sino aquel
que navega entre el ahorro ascético y el consumo conspicuo. Es decir el
anverso racional y confirmatorio del NM como lo inaceptable y objeto de
castigo.
Ahora bien, es claro que este juego escópico entre colono y NM no
implica la aceptación desapercibida de un mundo binario donde el “mal”
se oculta y la verdad yace en las profundidades. La necesariedad del NM como
emergente de lo prohibido no es más que otra mostración del régimen pornográfico de
una economía política de la moral donde el colono insiste sobre el carácter oculto de ese
sol inmenso e imposible de ocultar que es la negritud mal oliente como cristalización de
enfermedades a erradicar pero que les son dialécticamente “con-figurantes”.
El régimen de lo privado ahora es el estatuto de lo público en tanto
impunidad e impudicia: el NM tiene lo último que se puede tener (su
cuerpo) y vamos por él, afirma el buen colono. La prostitución infantil, la
trata de blanca, el tráfico de órganos, la venta de paco y los trabajos de cama
caliente son sólo algunos de los ejemplos donde deseo y mercantilización
del buen colono se cruzan en el NM.
120
Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial
El estatuto paradojal, contradictorio y pornográfico del régimen
de los dispositivos de regulación de las sensaciones del colono encuentra
los hilos que hilvanan las mediaciones perdidas de su propia configuración
en eso tan “odiado” pero “envidiado” que es el NM como construcción
de un personaje “prohibido” pero “buscado” en la estructuración social.
Algunas consideraciones finales
Estamos ante la naturalización del ‘pobre’ constituido en variable
cuantitativa y cualitativa que da ‘origen’ a un espacio en disputa, también
para las ciencias sociales: ontologizado por las diversas teorías, representado
en el marco de una ‘imagen de mundo’ de la pobreza susceptible de ser
intervenida y corregida, se naturaliza a la misma como ‘parte del paisaje’ de
la ciudad colonial. El ‘pobre’ o la ‘pobre gente pobre’ se ven sumergidos,
en su explicitación y caracterización como habitantes del mundo del No,
en una especie de ‘predestinación’ –en el sentido weberiano-: como los
únicos responsables de su propio transcurrir y devenir. Pero a la vez “se
los necesita”: de su ‘inclusión’ (aunque sea una especie de inclusión por
antropofagia) depende la misma perdurabilidad del colono.
Este segundo procedimiento es el se regula por un cromatismo
de clase donde la sensibilidad social se teje, en la trama de las ciudades
coloniales, a partir de las características que describimos del NM, como
personaje que encastra a la perfección con la actual lógica de dominación.
Toda ciudad, como experiencia moderna, implicó una serie de
transformaciones del sensorium social producidas por el impacto que
las sucesivas experiencias de “shock”46 que vivenciaban sus pobladores.
Experiencia que funda la inversión de nuestro sistema sensorial, hasta la
modernidad definido por su carácter sinestésico en sistema anestésico (BACKMORSS: 2005): la ‘fantasmagoría’ como esa manipulación técnica que
sirve para engañar los sentidos y ‘dar apariencia de realidad’ instaurada por
el fetiche mercantil, debía obturar los sentidos no deseados en este marco
experiencial. La conformación de esta ‘tecnoestética’ tiene entonces una
El ‘shock’ ata la percepción a la experiencia en tanto se conecta con recuerdos sensoriales del
pasado.
46
121
Adrián Scribano e María Belén Espoz
función compensatoria en términos sociales ya que su impacto sobre los
sentidos y los nervios es todavía ‘natural’ (desde lo neurofísico). Esta se
produce por medio de dispositivos de regulación de las sensaciones que
van inyectando dosis de ‘drogas anestesiantes’ ofrecidas como ‘datos
objetivos’, que permiten ‘soportar’ el bombardeo de estímulos con los
que el hombre moderno se encuentra en su ciudad. ¿Cómo sino ver todos
los rostros del dolor, cotidianos, demasiado humanos –el mendigo, el
homeless, pero también el ‘delincuente’, el ‘enfermo’-, con los que nos
topamos cada día?
Así surgen diversos estereotipos, estigmas que tienden cada vez más
a una desrostrificación de lo otro47 para soportar el horror que provoca
la posibilidad de compartir ese espacio con ‘el/lo peligroso’ que, siendo
simple máscara puede ser objeto (porque efectivamente, es objeto, no
sujeto, es animalizado, no humanizado) de las más duras reprimendas o
de la más peligrosa indiferencia. El NM como espacio vacio, se convierte
así en operador corporal que designa los lugares, las disposiciones, las
interacciones, de los cuerpos enclasados en la ciudad colonial.
Pensar entonces problemáticas como el estereotipo, el estigma y
fenómenos cómo la ‘discriminación’ o la ‘portación de cara’ –en un sentido
laxo-, significa interpretarlas en torno a relaciones sociales específicas,
vehiculizadas en torno a significantes (reales o imaginarios) que se
producen en una sociedad y un tiempo determinado. Carácter relacional
que demarca el sentido siempre conflictivo de todo intento analítico de
aprehensión de tales fenómenos. La arena de los signos sigue siendo –
bajtinianamente- un claro campo de batalla.
De allí que escogimos trabajar con un significante particular: el
‘negro’. Figura que condensa de una manera muy compleja, tanto la idea
de conflicto que la atraviesa (¿es el color, la piel, es decir, consideraciones
A nivel ontológico -en la experiencia contemporánea- el Rostro del otro no es algo dado sino
que adquiere esta consideración a partir del reconocimiento que recibe. Es así que en la escena
mediática las vidas y las muertes de algunos grupos o sujetos aparecerían desrealizadas porque han
sido objeto de procedimientos ideológicos de visibilidad/invisibilidad que produjeron la ‘Pérdida
del Rostro’ de esos otros. ‘Pérdida del Rostro’ algunas veces por no aparecer en el régimen de lo
visible; otras, por el tratamiento estadístico de esas vidas/muertes y en otros casos por la puesta
en escena, en primer plano, de caras que no adquieren el carácter significante y la significación de
Rostro según Levinás (BOITO, 2008: 120).
47
122
Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial
perceptúales sobre el otro instituidas desde una potestad eugenésica la
que posibilita el argumento de su exclusión?) como en tanto evidencia
el efectivo silenciamiento de la violencia mimética que caracteriza a las
sociedades modernas en su necesidad de ‘un’ chivo expiatorio.
Pero la figura del ‘negro’ también se transforma de estigma a
emblema. Pero allí no radica su potencial, sino en la posibilidad de intervenir
con (y desde) el silencio allí donde todo se ha dicho y dejar espacio a la
acción. Ejercicio de generar espacios de oscuridad, de invisibilidad que
reinstale, subrepticiamente, el potencial transformador que aún portan las
clases subalternas entendidas en su carácter de representación del conflicto
social.
El puesto del NM en la pintura del mundo colonial del siglo XXI
en nuestro país posibilita pensar en los “olvidos” y “desplazamientos”
que viene sufriendo la re-discusión de lo popular y lo subalterno en tanto
fenómeno de clase.
Bibliografía
BOITO, E. (2008). “Alterida(es) de clase(s) en el espacio social
contemporáneo. El orden solidario como mandato transclasista y la
emergencia de heterogéneas figuras de la crueldad de clase. Descripción
y análisis de algunas escenas televisivas (2006-2007)”Tesis doctoral de la
Facultad de Ciencias Sociales/UBA.
BOITO, M.; CERVIO, A. y ESPOZ M (2009). “La gestión habitacional de
la pobreza en Córdoba: el antes y despuésde las Ciudades-Barrios”. Boletín
Onteaiken. Nº 7. Disponible en http://www.accioncolectiva.com.ar/sitio/
boletines/ver/boletin7.htm.
BUCK-MORSS, S. (2005). “Estética y anestésica: una reconsideración del
ensayo sobre la obra de arte”. En: Walter Benjamin, escritor revolucionario”.
Buenos Aires, Interzona.
123
Adrián Scribano e María Belén Espoz
ESPOZ, M (2009). “La Ciudad y las ciudades-barrio: tensión y conflicto a
partir de una lectura de la producción mediática de miedos en el marco de
espacios urbanos socio-segregados”. Relaces. Nº 1. Disponible en http://
www.relaces.com.ar/index.php/relaces/article/view/espoz1/3.
ESPOZ, M.; MICHELAZZO, C. y SORRIBAS, P. (2010). “Narrativas
en conflicto sobre una ciudad socio-segregada. Una descripción de las
mediaciones que las visibilizan”. En: Boito-Scribano (comps.), El purgatorio
que no fue. Acciones profanas entre la esperanza y la soportabilidad. Buenos Aires,
CICCUS.
GROSSO, J. (2008a). Indios Muertos, Negros Invisibles: Hegemonía, Identidad y
Añoranza. Córdoba Encuentro, Grupo Editor.
--------------- (2008b). “Semiopraxis en contextos interculturales
poscoloniales. Cuerpos, fuerzas y sentidos en pugna”. Revista Espacio
Abierto. Vol 17, Nº: 231-245.
--------------- (2009a). “Desbarrancamiento. Ecos de la fenomenología en
la heteroglosia poscolonial de espacio-tiempos otros”. Revista Convergencias.
Nº 51: 157-179.
--------------- (2009b). “Cuerpos del discurso y Discurso de los Cuerpos.
Nietzsche y
Bajtín en nuestras relaciones interculturales”. Relaces. Nº 1: 44-77.
GRÜNER, E. (2002). El fin de las pequeñas historias. De los Estudios Culturales
al retorno (imposible) de lo trágico. Buenos Aires, Paidós.
LEVSTEIN, A. y BOITO, E (Comps.) (2009). De insomnios y vigilias en
el espacio urbano cordobés. Lecturas sobre Ciudad de mis sueños. Córdoba, Jorge
Sarmiento Editor.
SCRIBANO, A. (2007a). “La Sociedad hecha callo: conflictividad, dolor
social y regulación de las sensaciones”. En: Scribano, A. (Comp.), Mapeando
interiores. Cuerpo, Conflicto y Sensaciones’. Córdoba, Jorge Sarmiento Editor.
124
Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial
--------------- (2007b). “Salud, Dinero y Amor…! Narraciones de estudiantes
universitarios sobre el cuerpo y la salud”. En: Scribano, A. (Comp.),
Policromía Corporal. Cuerpos, Grafías y Sociedad. Córdoba, J. Sarmiento Editor.
--------------- (2009a). “Introducción. Ciudad de mis Sueños: hacia una
hipótesis sobre el lugar de los sueños en las politicas de las emociones”.
En: Levstein, A. y Boito, E. (Comps.), De insomnios y vigilias en el espacio
urbano cordobés. Lecturas sobre Ciudad de mis sueños. Córdoba Jorge Sarmiento
Editor.
--------------- (2009b). “Capitalismo, cuerpos, sensaciones y conocimiento:
desafíos de una Latinoamérica interrogada”. En: Mejía Navarrete (Comp.)
Sociedad, Cultura y Cambio en América Latina, Perú, Universidad Ricardo
Palma.
--------------- (2010c). “Estados represivos. Políticas de los cuerpos y
prácticas del
sentir”. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção. Vol. 9, No 25: 98-140.
--------------- (2010d). “Un bosquejo conceptual del estado actual de la
sujeción colonial”. Boletín Onteaiken. Nº 9. Disponible en http://www.
accioncolectiva.com.ar/sitio/boletines/ver/boletin9.htm.
SCRIBANO, A. y BOITO, E. (2010a). “La ciudad sitiada: una reflexión
sobre imágenes que expresan el carácter neocolonial de la ciudad”. En:
Actuel Marx Intervenciones:, Cuerpos contemporáneos: nuevas prácticas, antiguos
retos, otras pasiones. Santiago de Chile, Ediciones y Universidad Bolivariana.
SCRIBANO, A. y CERVIO, A. (2010b). “La ciudad neo-colonial:
Ausencias, Síntomas y Mensajes del poder en la Argentina del siglo XXI”.
Sociológica, Revista del Colegio de Sociólogos del Perú. N° 2. Disponible en http://
www.colegiodesociologosperu.org/revista_sociologica.html.
SOLOMIANSKI, A. (2003). Identidades Secretas: la negritud argentina. Rosario,
Beatriz Viterbo Editora.
125
Adrián Scribano e María Belén Espoz
Otras fuentes consultadas
Plan Nacional contra la Discriminación, aprobado por Decreto 1086/2005.
Página del INADI: http://www.inadi.gov.ar/inadiweb/index.php (15/07/08).
Pagina www.proyectomapear.com.ar/
Página del blog quétupé: www.quetupe.com.ar/ventajas-de-ser-un-negro-demierda/
126
Corpos en Concierto: diferencias, desigualdades y disconformidades
EL CUERPO SUFRIENTE DEL MERCADO:
“sweat the fat”
Juan Pablo Aranguren Romero
El capitalismo en su versión neoliberal ha implicado profundas
transformaciones en las formas en las que opera la política. A las prácticas
policiales y vigilantes se sumarán las prácticas de gobierno sobre la vida y
la muerte, posibilitadas en gran medida por las formas disciplinares que
estimularon la incorporación de normas sociales. A partir de los análisis
de Michel Foucault se entrevé que tras la articulación entre una biopolítica
de la población y una anatomopolítica del cuerpo:
[…] la vida ingresará en la historia de un modo doble: por un lado,
ella será una fuerza que subyace en cada cuerpo individual, haciéndolo
posible pero también aniquilándolo como particularidad. Por otro lado,
la vida será una fuerza que proporcionará a la población su carácter y
su capacidad productiva más allá de las variaciones individuales que, no
obstante, son la instancia necesaria a partir de la cual la vida misma puede
ser caracterizada y controlada (SÁNCHEZ, 2007: 32).
Una de las particularidades que tiene el capitalismo, sobre todo
en su versión contemporánea, es la apelación a formas de seducción
renovadas surgidas a partir de los flujos de imagen y de la necesidad de
exacerbar las prácticas de consumo. La renovación viene dada sobre todo
porque aquello que se visualizaba como antítesis o incluso resistencia
al mercado y al consumo, retorna como parte de él. Tal tendencia a la
mutación, sin embargo, es justamente lo que lo sostiene.
En América Latina, estas “mutaciones” estuvieron acompañadas
de profundas reestructuraciones en el orden político, pero también en
el orden del cuerpo y el deseo (a nivel micropolítico). En el escenario
latinoamericano este proceso de transformación del mercado vino de
la mano con prácticas genocidas y autoritarias tanto en gobiernos de
127
Juan Pablo Aranguren Romero
facto como gobiernos democráticos. La contracara del neoliberalismo
latinoamericano (ARANGUREN, 2010) fue la de la tortura, la
desaparición y la militarización de las relaciones sociales hechos todos
que terminaron por llevar las subjetividades al límite, deshumanizando
el trabajo, descolectivizando las organizaciones sociales, pero también
desapareciendo lo que consideraban anómalo o indiscreto. Inscrito en
el cuerpo, este orden político y económico apuntará a desmembrar los
procesos de organización política y movilización social, a la vez que
buscará acallar las voces y las memorias de estas experiencias límite.
Las subjetividades llevadas al límite en el marco de estas violencias
suponen que la vida quede más que nunca anclada a un orden social que
convoca al sufrimiento, al terror y al miedo y que desdibuja los rasgos de
humanidad sobre las que se ancla esta vida. Es al mismo tiempo un miedo
y un sufrimiento generalizados. Y es justamente este desdibujamiento de la
vida el que se correlaciona funcionalmente con el mercado autorregulado,
con el hecho de que la actividad humana, la naturaleza y el intercambio,
siguiendo a Polanyi (2007), queden constituidas como mercancía. Un buen
ejemplo de ello se puede entender a partir de lo que significa el trabajo
humano que hace que la potencia de vida que lo moviliza retorne como
mercancía destructora, como fuerza de muerte.
El trabajo deshumanizado pierde todo rasgo vital, además la
descolectivización se generaliza: se trata también de las subjetividades
llevadas al límite por vía de la desregulación. El trabajo poco a poco iría
dejando de ser fuente de vida para empezar a ser fuente de sufrimiento,
pena y aflicción (CIFUENTES, 2007). Una realidad tan desoladora para
la vida misma pues supuso que el cuerpo humano, llevado al límite en
la explotación, convertido en cuerpo-sufrimiento siguiera, no obstante,
rodeado y convocado a su explotación por vía del espectáculo atractivo,
reluciente y brillante del mercado. Se trata de las relaciones abstractas
e imaginarias que el mismo Marx señalaba a propósito de la formamercancía, es decir aquella relación cuasi fantasmal o fantasmagórica que
posibilita que la mercancía desdibuje sus condiciones de producción y se
presente a sí misma como en un mudo ilusorio (MARX, 1999).
128
El cuerpo sufriente del mercado: “sweat the fat”
Como se sabe, los flujos de imagen constituyen una parte esencial del
éxito expansivo del mercado. Es justamente lo que indica Walter Benjamin
(1973, 1978) al subrayar cómo el mundo de ilusión creado por el capitalismo
ejerce tal grado de fascinación sobre los seres humanos que termina
dirigiéndose específicamente hacia sus deseos ocultos. Los estereotipos de
belleza, salud y superación personal instalaron ideales corporales y estéticos
que a su vez trazaron los rasgos de la vida posible de ser soñada; dietéticas
y estéticas movilizaron también los cuerpos a la necesidad y urgencia de
la modificación, la tonificación, el ensanchamiento o la reducción. Las
necesidades de transformación corporal que acompañan las búsquedas de
vínculos identitarios, serán parte esencial del sostenimiento del mercado.
Lo que dinamiza esta movilidad de la búsqueda identitaria son también
otras identidades esporádicas cuyo brillo dura un parpadeo; imágenes –
modelos de vida en permanente cambio: cuerpos recubiertos por una piel
sin cicatrices, sin humores, sin enfermedad; cuerpos que reemplazan a
otros cuerpos para mantener vigente la infinitud de su imagen: cuerpos
caducos que paradójicamente sostienen la eterna vigencia de la imagen. Se
trata de lo que Bauman (2007) refiere cuando compara el lugar del cuerpo
en la sociedad de productores y en la sociedad de consumidores. En la
primera:
[…] era el cuerpo del futuro obrero o soldado lo que contaba, mientras
que sus espíritus debían ser silenciados y por lo tanto “desactivados”,
dejados de lado, soslayados y obviados a la hora de evaluar políticas y
tácticas. La sociedad de productores y soldados se dedicaba al manejo del
cuerpo de sus integrantes para adaptarlos a las condiciones imperantes
en el entorno en que tendrían que vivir y actuar: la fábrica y el campo de
batalla (BAUMAN, 2007: 79–80).
Mientras que en la segunda:
[…] concentra sus fuerzas de coerción y entrenamiento, ejercidas sobre
sus integrantes desde la más tierna infancia y a lo largo de todas sus
vidas, en el manejo del espíritu, y deja el manejo del cuerpo en manos
de los individuos y sus tareas de bricolaje, supervisados y coordinados
personalmente por individuos entrenados y coercionados espiritualmente
(BAUMAN, 2007: 80).
129
Juan Pablo Aranguren Romero
Por eso a la metáfora del panóptico benthamiano se le superpone la
del sinóptico: muchos se dedican a observar a unos pocos: “los espectáculos
ocupan el lugar de la vigilancia sin perder nada del poder disciplinario
de su antecesora” (BAUMAN, 2002: 92). La seducción y la persuasión
emergen vigentes en el proceso de construcción de subjetividades: “Hoy,
la obediencia al estándar […] tiende a lograrse por medio de la seducción,
no de la coerción […] y aparece bajo el disfraz de la libre voluntad, en vez
de revelarse como una fuerza externa” (BAUMAN, 2002: 92).
Expuestos ante sí mismos, los sujetos – individuos se enfrentan
ante un inagotable proceso de búsqueda tanto de sentido (BERGER y
LUCKMAN, 1997), como de recubrimientos y encubrimientos; revestir
el cuerpo con los ropajes del éxito, la moda y la pasarela o enfrentar
ante el espejo la desnudez del abandono, del riesgo, la incertidumbre y la
inutilidad. Esta última confrontación es la cotidianidad de «los excluidos»,
según Castel (2004) de «los perdedores» descritos por Dahrendorf (2005)
o de la infraclase retomada por Bauman (2007).
Al transferir la responsabilidad y preocupación de la “aptitud
social” a los individuos, según Bauman, los mecanismos de exclusión de la
sociedad de consumidores serán más fuertes, inflexibles e inquebrantables
que en la sociedad de productores. Los anormales o inaptos de la sociedad
no serán más, como en la sociedad de productores, los que al no poder
ser integrados al orden social requieren de terapia o de ordenamientos
correccionales, sino los que no son capaces de entrar en el orden del
consumo: “A causa de esa presunción, en la sociedad de consumidores
toda “invalidez social” seguida de exclusión sólo puede ser el resultado de
falencias personales” (BAUMAN 2007: 82).
Ahora bien, ¿qué sucede si los discursos sobre los que se instalaban
las prácticas de seducción y persuasión del mercado contemporáneo de
repente incorporan lo que en otrora se les criticaba; de repente aluden a
prácticas comerciales justas, al cuidado del medio ambiente, e incluso al
cuidado de sí? ¿Qué significa esta transformación?
130
El cuerpo sufriente del mercado: “sweat the fat”
Suda el Jamón: (“sweat the fat”)
En 2008 Nike emprendió una nueva campaña publicitaria, en
el marco de su slogan base “Body by” que ha venido sosteniendo en los
últimos años con distintas versiones (Body by Run; Body by Dance, etc.).
La apelación al cuerpo como punto esencial de su campaña no fue para
nada una novedad, ya que las marcas deportivas han recurrido siempre
a la imagen del cuerpo atlético y en vez de usar modelos de pasarela
emplean a deportistas famosos. La campaña de 2008 tuvo como énfasis
el “body by dance” y estuvo dirigida fundamentalmente al público hispano
teniendo sendas discusiones en internet (foros de discusión, blogs, etc.)
por polémicas de distinto orden.
La campaña publicitaria se llamó “Suda el Jamón” y muestra a
una mujer delgada de aproximadamente 30 años que llega a un hospital
a realizarse una cirugía estética. En el hospital se muestran algunas
imágenes que revelan su preparación para la cirugía (su cuerpo es rayado
en diferentes zonas, usa una bata verde de hospital, etc.). Finalmente es
llevada a una sala de operaciones donde se le ve nerviosa y angustiada.
Entre estas imágenes se muestra a manera de flashes una máquina que
corta trozos de jamón en fetas. Justo cuando la mujer se encuentra acostada
en el quirófano a punto de ser anestesiada, se levanta y sale corriendo de
la sala de cirugía y empieza a bailar al son de una canción de reggaetón48.
Otras mujeres se suman al baile y todas se van quitando la bata verde de
hospital y se colocan ropa deportiva. La canción y las mujeres bailarinas se
muestran como impugnantes ante el orden estético del cuerpo femenino
intervenido quirúrgicamente. La campaña al final, apunta a subrayar la
importancia de hacer sudar el cuerpo (a través del baile y el ejercicio) en
oposición a las cirugías estéticas. La idea de cuerpo que circula en esta
campaña publicitaria propone una resistencia contra el cuerpo sufriente
de la cirugía: mientras las mujeres bailan con total cadencia y libertad por
los pasillos del hospital, otra mujer llena de vendas en todo el rostro y en
silla de ruedas las mira con cierto grado de desazón, envidia e impotencia.
48
Ver la letra en el anexo.
131
Juan Pablo Aranguren Romero
Un análisis de la letra de la canción que acompaña este baile,
revela que la impugnación que traza frente a la cirugía: “ahora que yo te
lo digo, un cuchillo, lejos de mi ombligo, ahora que yo te lo digo, ya verás que no
puedes conmigo […] Yo te lo digo, mi cirujano, estas carnes no pasan por tus manos.”
no se da contra el patrón estético del cuerpo femenino, ya que lo que
estaría aparentemente cuestionado es el sufrimiento que encarna la cirugía
estética: “Lo que prometieron, fue por mejores de liposucciones y también otros peores,
de tanto jamones, con bisturís, cicatrices, moretones y dolores”. Una vez emergida
la impugnación: “No quiero el culo de otra, quiero el mío tal cual” aparece, sin
embargo, la forma desterritorializada, liberada, si se quiere del mercado,
aquella que constituye el ejercicio físico: “si querés tener dos peras, pero de veras,
mejor es que te pongas la sudadera” […] “soy la que te mueve, antes que lo
pruebes soy la que te enseña y te quita las vendas, soy la que te importa y
te tira la bomba, es estar en forma mi única norma”.
El grupo de mujeres bailarinas, una vez se han quitado el
constreñimiento que “encubre” su cuerpo, materializado en la bata verde
del hospital, se revisten con la línea deportiva de Nike. Su cuerpo, después
de tremendos movimientos coreográficos, transpira y diluye la tinta con
la que ha sido marcado previo a la cirugía. El cuerpo sufriente se diluye
con el sudor del cuerpo ejercitado: “esta transpiración es cosa sexy jugosa […] a
quemar las grasas, para moldear la masa y no verse como pasa”.
Los axiomas reconfiguran identidades y prácticas sociales y así el
cuerpo del mercado sigue ligado a la necesidad de transformación pero sobre
la base de una impugnación y de una resistencia que son complacientes con
los reclamos a la intervención quirúrgica. Una cierta “naturalidad” enmarca
esta nueva práctica pues al hacer visible la artificialidad de la cirugía “no
me quiero emplasticar”, reivindica un cuerpo natural, fisiológicamente
dispuesto para traspirar: “quiero mi cuerpo tal cual”.
Lo que se pone en evidencia en la campaña de Nike, es una
forma particular de transgresión de los patrones de imagen del mercado,
como estrategia de seducción y persuasión. Se trata de una suerte de
descodificación que de repente pasa de ser problemática a útil y necesaria.
Aquello que aparecía como desorganizado, descodificado, como puro
flujo, entra ahora en el orden del capital, es funcional y útil a él:
132
El cuerpo sufriente del mercado: “sweat the fat”
Y es que el capitalismo dispone de una especie de axiomática, dispone
entonces de algo nuevo que no se conocía. Y esta es, como sucede con
todas las axiomáticas, una axiomática, al límite, no saturable; lista para
añadir siempre un axioma de más que hace que todo vuelva a funcionar
(DELEUZE, 1997).
Las estéticas del cuerpo que habían sido acalladas, las posturas y
composturas que habían sido condenadas a la corrección, las experiencias
sensoriales que fueron relegadas a charlatanerías y los goces que habían
sido objeto de todos los controles, son ahora parte de la máquina: a mayor
descodificación mayor extensión de la máquina. Más flujo, más desorden,
más cuerpos al límite, más capital:
Hay una paradoja fundamental del capitalismo como formación social: si
los flujos descodificados han sido el terror de todas las otras formaciones
sociales, el capitalismo se ha constituido históricamente sobre algo
increíble, a saber, lo que era el terror de las otras sociedades, la existencia
y la realidad de flujos descodificados y que de hecho son asunto suyo
(DELEUZE, 1997).
Pero ¿significa esto que siempre se estaría al borde de que las
impugnaciones al orden social y las resistencias sean reabsorbidas por la
cadena de significantes que se agrupan en el mundo de la publicidad y
el mercado? ¿Qué implica que el cuerpo llevado al límite de sus tramas
capitalísticas sea el movilizador de “consumos solidarios”, “moda étnica”,
“responsabilidad social empresarial”, o “modelos reales” como las mujeres
de la campaña de Dove? Si esta movilización, si este efecto descodificador
y expansivo se da será acaso porque ¿las tramas del capitalismo siguen allí,
pero ahora bajo la ilusión de una desubjetivación cautivante y persuasiva?.
La dignidad y libertad promulgadas como punta de lanza del
proyecto neoliberal se sostienen en el marco del capitalismo contemporáneo
gracias a este juego de persuasiones, gracias a estos giros retóricos que
posibilitan la emergencia de un cuerpo que deja de operar como objeto de
los encierros, disciplinamientos y sufrimientos sino que se promulga como
133
Juan Pablo Aranguren Romero
el cuerpo digno que resiste a la cirugía estética y el cuerpo que se libera en
el ejercicio físico y el baile49.
El gran problema de estas formas de resistencia política es que
supone contar con el hecho de que si el poder produce subjetividad termina
al mismo tiempo por definir las reglas de despliegue de la vida, de modo
que no habría impugnación que no tenga como correlato la desaparición
de ese sí-mismo moderno-capitalista:
El orden capitalístico es proyectado en la realidad del mundo y en la
realidad psíquica. Incide en los esquemas de conducta, de acción, de
gestualidad, de pensamiento, de sentido, de sentimiento, de afecto, etc.
Incide en los montajes de la percepción, de la memorización y en la
modelización de las instancias intrasubjetivas (GUATTARI y ROLNIK,
2005: 60).
Por otra parte, si el Estado moderno latinoamericano se funda
sobre la base de una serie de clasificaciones sociales coloniales (QUIJANO,
2007) y si dicho Estado encubre bajo las tramas de la ciudadanía el racismo,
la marginalización y la exclusión que lo hicieron posible (ARANGUREN,
2009), la impugnación y la rebelión tendrán que buscar no sólo poner
en evidencia esta ocultación sino que tendrá que buscar otras formas de
construir ese lazo social y de situar los lugares de enunciación. En otras
palabras implicaría descolonizar el cuerpo y llevarlo más allá o más acá
de lo molar: “Es muy fácil hablar de una «decolonialidad» a nivel molar
sin ver la colonialidad alojada en las propias estructuras del deseo que
uno mismo cultiva y alimenta” (CASTRO-GÓMEZ, 2007: 171). Ello,
siguiendo con la idea de Castro-Gómez y otros autores de lo que se ha
dado a llamar el grupo modernidad/colonialidad supone la descolonización
En el mismo sentido se puede emprender la reflexión sobre terapias alternativas. En ese
sentido considero que la vigencia de las terapias alternativas y de formas ‘novedosas’ de
acceder al conocimiento personal debe ser leída a la luz de los giros contemporáneos que
ha tomado las formas sólidas de verdad hacia marcos fluidos de verosimilitud. Con todo,
esta fluidez, no se expresa, ni se entiende, como una mera reabsorción del capitalismo
de estilos de vida, ni mucho menos como sólo un escenario para un nuevo paradigma
estético-político (tal como plantea Pedraza (2007). Creo que puede moverse en uno y
otro lugar: reabsorbido por el capital o como una autoconciencia liberadora.
49
134
El cuerpo sufriente del mercado: “sweat the fat”
del ser (MIGNOLO, 1995; MALDONADO, 2007). ¿Es posible entonces,
descolonizar el cuerpo? ¿Es posible liberarlo de las tramas del mercado?
¿Cuál es la responsabilidad que le atañe a las ciencias sociales que han
hecho eco del «giro corporal» al mismo tiempo que la publicidad y el
mercado?
Anexo
LETRA DE “SUDA EL JAMÓN”
Lo que prometieron,
fue por mejores de liposucciones
y también otros peores
De tanto jamones, con bisturís, cicatrices, moretones y dolores
Yo no me quiero emplasticar
No quiero el culo de otra, quiero el mío tal cual
Acá estamos las mujeres para moverlo todo
pone ritmo, abdominal
Mira como sube, que adrenalina
Estoy rociada como con aceite de oliva
Soy tu perra la que no te esquiva
la que te transpira, la que te aniquila
ahora que yo te lo digo
un cuchillo, lejos de mi ombligo
ahora que yo te lo digo
ya verás que no puedes conmigo
Suda el jamón
Suda el jamón que así te pones bombón
(repite)
Mueve el jamón
Acá está la perra
la más sucia del planeta Tierra
y me voy para que no me digas mentirosa
135
Juan Pablo Aranguren Romero
esta transpiración es cosa sexy jugosa
Yo te lo digo, mi cirujano
estas carnes no pasan por tus manos
A quemar las grasas
para moldear la masa
y no verse como pasa
Si soy grosera
que me desespera, sobre manera
de lo que te espera si querés tener dos peras
pero de veras
mejor es que te ponga la sudadera
soy la que te mueve
ante que lo pruebes
soy la que te enseña y te quita las vendas
soy la que te importa y te tira la bomba
es estar en forma mi única norma
Suda el jamón, suda el jamón
para que te pongas bombón
Artista: Debi Nova
Música: Gustavo Santaolalla y Adrián Sosa
Para ver el video: http://www.youtube.com/watch?v=4913hf9RprU
Bibliografía
ARANGUREN, Juan Pablo (2009). “Subjetividades al límite. Los bordes
de una psicología social crítica”. Universitas Psychologica. Vol. 8, No 3: 601–
613.
ARANGUREN, Juan Pablo (2010). “Del barroco colonial al biopoder
neocolonial: giros retóricos y persuasiones del cuerpo”. En: Biopolítica,
reflexiones sobre la gobernabilidad del individuo. Madrid, S&S Editores.
136
El cuerpo sufriente del mercado: “sweat the fat”
BAUMAN, Zigmunt (2002). Modernidad líquida. Buenos Aires, Fondo de
Cultura Económica.
BAUMAN, Zigmunt (2007). Vida de consumo. Buenos Aires, Fondo de
Cultura Económica.
BENJAMÍN, Walter (1973). “La obra de arte en la época de su
reproductibilidad técnica”. En: Discursos Interrumpidos I. Madrid, Taurus
Ediciones.
BENJAMÍN, Walter (1978). “Surrealism. The Last Snapshot of the
European Intelligentsia”. En Peter Demetz (Comp.), Reflections. New York,
Schocken Book.
BERGER, P. y THOMAS LUCKMANN (1997). Modernidad, pluralismo y
crisis de sentido. Barcelona, Paidós.
CASTEL, Robert (2004). La inseguridad social ¿Qué es estar protegido? Buenos
Aires, Manantial.
CASTRO-GÓMEZ, Santiago (2007). “Michel Foucault y la colonialidad
del poder”, Tabula Rasa. No 6: 153–172.
CIFUENTES, Luis (2007). “El suplicio de la carne y la potencia del
trabajo”. Bogotá, Editorial Pontificia Universidad Javeriana.
DAHRENDORF, Ralf (2005). En busca de un nuevo orden. Una política de la
libertad para el siglo XXI. Barcelona, Paidós.
DELEUZE, Gilles (1997). Curso del 16 de noviembre de 1971. (Traducción
de Ernesto Hernández B. Santiago de Cali). Disponible en: http://www.
con-versiones.com/nota0383.htm.
GUATTARI, Félix y Rolnik Suely (2005). Cartografías del deseo. Buenos
Aires, Tinta Limón.
MALDONADO-TORRES, Nelson (2007). “Sobre la Colonialidad del
Ser. Aportes para el desarrollo de un concepto”. En: S. Castro-Gómez y R.
137
Juan Pablo Aranguren Romero
Grosfoguel (Comps.), El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica
más allá del capitalismo global. Bogotá, Siglo del Hombre Editores.
MARX, Karl (1999). El Capital, vol. 1. México, Fondo de Cultura
Económica.
MIGNOLO, Walter (1995). “Decires fuera de lugar: sujetos dicentes, roles
sociales y formas de inscripción”. Revista de crítica literaria latinoamericana.
Vol. 11: 9-32.
NEGRI, Antonio y Guattari, Félix (1999). Las verdades nómadas & General
Intellect, poder constituyente, comunismo. Madrid, Akal.
PEDRAZA, Zandra (2007). “Saber emocional y estética de sí mismo: la
perspectiva de la medicina floral”, Anthropologica. No 25: 5-30.
POLANYI, Karl (2007). La Gran Transformación. Buenos Aires, Fondo de
Cultura Económica.
QUIJANO, Aníbal (2007). “Colonialidad del poder y clasificación social”.
En: S. Castro Gómez y R. Grosfoguel (Comps.), El giro decolonial: reflexiones
para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá, Siglo del
Hombre Editores.
SÁNCHEZ, Rubén (2007). “Alcances y límites de los conceptos Biopolítica
y Biopoder en Michel Foucault”. En: Sánchez, Rubén (Comp.), Biopolíticas
y formas de vida. Bogotá, Editorial Universidad Javeriana.
138
Corpos em Concerto: diferenças, desigualdades e desconformidades
ASCETISMO E CULTURA CORPORAL
Maria Ester Lima Oliveira
É possível analisar o discurso da produção corporal contemporânea
a partir da lógica do esforço disciplinado e laborioso para conquista
do corpo desejado? A resposta a essa questão seria positiva, caso nos
reportássemos aos resultados obtidos na dissertação A produção corporal em
academias de musculação50, de 2009, e que constituirá o eixo de argumentação
do presente ensaio. Ali encontramos um discurso comum: a necessidade
de se trabalhar arduamente para obtenção do corpo almejado, que atuaria
como recompensa pelo sacrifício, privações e esforço empreendidos. De
um modo semelhante, poderíamos afirmar, o céu na terra era o horizonte
do calvinista que acreditava numa redenção mediante o trabalho, como
relatou Weber na Ética Protestante e o espírito do Capitalismo. Nos dois casos, num
labor que visa ao corpo e num labor que orienta a ascese intramundana, a
transcendência subjetiva se coloca não para além das penas, do sofrimento
pressuposto na disciplina, mas a partir destas penas e sofrimento. Ou
seja, temos, nos dois casos, o desenvolvimento de um ethos cuja ascese,
cujo esforço e disciplina constituiriam o caminho para graça; porém, a
promessa constantemente postergada de gozo é terrena. Alguns autores
- e aqui a ênfase em Francisco Ortega, com quem esse trabalho pretende
dialogar - preferem enfatizar a ausência de sentido moral, o hedonismo, o
gozo imediato, que orientam a cultura corporal. Porém, os praticantes das
atividades físicas em questão, ao enfatizarem a necessidade do trabalho
corporal, do exercício físico extenuante, a renúncia de diversos prazeres
mundanos para obtenção de determinado modelo de aparência corporal,
indicam a existência de um sentido moralizante nessas práticas.
Oliveira, Maria Ester L. (2009). A produção corporal em academias de musculação. Programa de Pósgraduação em Sociologia/UFPE. Inédita.
50
139
Maria Ester Lima Oliveira
Asceses clássicas e bioascese
No contexto da cultura corporal contemporânea, entre outras
coisas, fitness é um ideal apresentado como remédio que garante a proteção
contra todos os males da sociedade moderna. Às drogas, ao consumo
excessivo, às depressões e distúrbios alimentares, a tudo o exercício físico
responderia como “receita de felicidade e possibilidade de construção de
uma biografia íntegra em tempos de desordem e desintegração social”
(GLASSNER apud ORTEGA, 2005: 164). Assim, encontramos certo
sentido moral no cuidado com o corpo, ou uma moral ancorada no corpo
e não mais relacionada às virtudes de personalidade como outrora51; sendo
o cuidado corporal, com a saúde e com a aparência o espaço onde se situa a
moral na contemporaneidade. Se existe um espaço moral para o indivíduo
na contemporaneidade, esse seria o cuidado com a própria saúde, com a
própria imagem corporal. É a partir disso que podemos compreender o
seguinte depoimento retirado de nossa dissertação.
Eu lembro que eu li num livro que você ser uma pessoa muito relaxada
com o corpo e com o jeito de se vestir transmite que você é ou pode
ser assim no trabalho. Eu também acho que a pessoa... Não acho que é
assim: o cara é gordo ele vai ser um funcionário mau. Para mim, não. Eu
já tenho até uma certa experiência e sei que não é assim. [...] Mas eu acho
que o corpo reflete um pouco não totalmente o que a pessoa é. Se eu
cuido do meu corpo eu também cuido de outras coisas. Se eu sou uma
pessoa relaxada, não é uma regra, mas pode transmitir isso, não é regra.
[...]
O corpo de uma pessoa transmite um pouco do que ela é, a menor
parcela, a maior é você conhecer ela.[...] mas transmite um pouco [...] mas
em excesso, relaxado gordão demais não se preocupa com outras coisas
mais. Não é o cara que tem um ‘buchinho’ aqui um ‘buchinho’ ali não
Há aqui um fato curioso. De acordo com Sfez, há ou houve uma distinção – de longa tradição
remontando à Grécia antiga – entre a aparência e o ser: a aparência seria tudo que nos é exterior
e o eu seria algo bem distinto do conjunto de traços ou qualidades secundárias – forma, peso e
tamanho. O que significa que a essência do ser estaria resguardada, enfurnada no espaço mais
profundo do sujeito, invisível, secreta e indecifrável, senão ao criador. Já o exterior seria a aparência,
a contingência, o não necessário, fadado à mudança, à corrupção e à morte (1995:48-49).
51
140
Ascetismo e cultura corporal
transmite, porque aí é só um pequeno descuido ou uma falta de tempo,
porque às vezes ele é tão dedicado ao trabalho que não tem tempo de
cuidar do corpo, vive viajando... Mas, quando é demais não tem pra
onde... Alguma coisa ele está relaxado demais! (S. 31 anos, engenheiro).
Jean-Jacques Courtine, em seu texto sobre a origem da cultura
corporal nos EUA e mais especificamente do body-building, encontra traços
muito fortes da inconfundível influência do puritanismo ascético nessas
práticas. A essa influência já havíamos aludido acima, ao comparar o
ethos calvinista aos princípios morais que norteiam as práticas corporais
em academias de ginástica. É necessário marcar, entretanto, que na
sociedade brasileira o puritanismo não tem sido historicamente um traço
tão marcante quanto o é na norte-americana. Nossa tradição religiosa é
católica – marcada por forte sincretismo - cujo ascetismo predominante é
extramundano, o que significa que os compromissos com a racionalização
do mundo, traço do puritanismo, não orientariam fortemente as práticas
que este ethos determina. Não obstante, podemos afirmar que uma
sensibilidade muito mais puritana vem se desenvolvendo na cultura
brasileira nas últimas décadas. Basta que observemos a expansão recente
de formas neoprotestantes e/ou neopentecostais de culto – o que depõe
acerca da importância que vem adquirindo formas intramundanas de
ascetismo e também da expansão da cultura religiosa norte-americana no
Brasil. Neste contexto, o sucesso nos negócios, o cuidado com a própria
imagem, têm um sentido que a cultura religiosa brasileira pouco conhecia.
Dito isso, retomemos Courtine e sua análise da cultura corporal
estadunidense. De acordo com ele, no presente momento histórico, o
puritanismo voltou-se para o corpo, de modo que cuidar do corpo tornase o novo método adotado para assegurar a salvação, o que significa que
“vosso corpo testemunha vossas qualidades morais” (WILLIAN BLAIKIE52 apud
COURTINE 2005: 89 e 94). Assim,
Willian Blaikie foi um dos autores pioneiros sobre corpo e atividade física; na verdade, ele foi
autor e disseminador de um modo de vida, nos últimos anos do século XIX. Suas obras obtiveram
grande sucesso nos EUA, estas, de acordo com Courtine, eram espécies de fisiognomonias para a
glória do músculo e propunham como exemplo para todos esses rapazes ‘metade construídos’ um
Panteão de corpos dos grandes homens (ibidem: 94).
52
141
Maria Ester Lima Oliveira
O fracasso em atingir e manter os ideais de saúde e perfeição corporal
são vistos como expressão da acrasia, de uma vontade fraca, cujo ‘único
tirano é sua própria inércia e ausência de vontade - a crença de que você
está demasiado ocupado para se responsabilizar por seu próprio bemestar e que a procura de sua saúde por meio de um estilo de vida que
promova o bem-estar é demasiado duro, complicado ou inconveniente’.
A ideologia da saúde e da perfeição corporal nos faz acreditar que uma
saúde pobre deriva exclusivamente de uma falha de caráter, um defeito de
personalidade, uma fraqueza individual, uma falta de vontade (ARDEL,
apud ORTEGA, 2005: 172).
Tais afirmações remetem diretamente às questões problematizadas
por Weber na Ética Protestante, especificamente ao elemento da “prova”
– comportamento observado em alguns dos grupos de protestantes por
ele estudados –, que decorre do fato de os escolhidos para o paraíso já
nascerem definidos, o que significa que a salvação não seria conquistada
nem pelas boas obras nem pela fé, tampouco poderia ser obtida por
elementos mágicos. Tal ideologia poderia levar facilmente a um niilismo
não fosse a ideia da prova, que afirmava que os eleitos, os portadores
da graça, eram passíveis de reconhecimento por sua diligência nas suas
tarefas, por sua dedicação à sua vocação e por seu sucesso (WEBER,
1989: 68-83). Supomos aqui que alguns traços da cultura puritana foram
globalizados pela própria influência da cultura americana no mundo – e
isso independentemente de essa influência se operar no terreno religioso.
Retomando o que já foi dito, pois, a diligência para com o corpo passou a
ser um elemento cultural, o espaço onde “a graça é percebida”. O corpo
definido, malhado pela ginástica, testemunha algo sobre o individuo, algo
que ele quer transmitir a partir deste corpo:
Que eu me cuido, que sou saudável, quero... saúde. No dia que eu tiver
um filho eu não quero que ele fume, que ele se drogue que ele beba em
excesso, que ele cuide da saúde se inspirando, me tendo como exemplo
[...] (S. 31 anos, engenheiro).
A idéia seria de uma pessoa que gosta, se dedica, que malha e... [...]
Muitas vezes eu passo isso que tomo anabolizante [...] ai o pessoal vê e
142
Ascetismo e cultura corporal
diz ‘ah, não toma bomba!’. Não, eu queria passar que me dedico, sempre
me dediquei com meu corpo e estou bem com isso. Então a mensagem
é essa: quero mostrar que malho, que tenho dentro da minha rotina um
esporte que eu gosto de fazer um esporte, trabalhar [...] (V. 23 anos,
estudante).
A mensagem que eu tento passar é essa de disciplina, de não desistir fácil
das coisas, de correr atrás, passar que não é tão fácil tem que ter paciência,
tem gente que entra na academia e acha que em um mês vai estar com um
copo maravilhoso que sempre sonhou (J. 28 anos, administrador).
E se o trabalho árduo é um meio fundamental para atingir esse
objetivo, é preciso que nos detenhamos em seu sentido não apenas
instrumental, mas moral. A valorização do esforço, do trabalho disciplinado
para obtenção de um corpo atlético, é usada também como justificativa
para a não realização de cirurgias estéticas, a exemplo da lipoaspiração,
como modo rápido, fácil demais de obter os resultados corporais visados.
É possível perceber essas posturas a partir da fala de alguns entrevistados:
Não, não tenho vontade, prefiro pelo meu próprio esforço [sobre cirurgia
plástica] (S. 31 anos, engenheiro).
[..] mas assim é justamente isso eu vou trabalhar pra isso, trabalhar o
corpo para deixar ele nivelado, deixar ele todo proporcional (V. 23 anos,
estudante).
O esforço atua como meio, modo pelo qual se obtém esse corpo,
e tudo se passa como se o obter tal corpo com seu próprio esforço, fruto
do seu trabalho, fosse um plus, uma vantagem, como se esse esforço
tivesse conotação e força simbólica próprias. Em grande medida, isso
corresponde à eficácia ritual que Sabino (2004: 325) percebeu entre os
fisiculturistas, em decorrência do consumo de anabolizantes. Para estes
últimos, no entanto, o risco de consumir uma substância perigosa constitui
um elo. Em sentido distinto, mas compatível com a ideia de que ritos
são elementos importantes na produção de culturas corporais, conseguir
determinada aparência corporal por meio do trabalho árduo, do esforço e
da disciplina, parece assumir uma conotação também simbólica, embora
143
Maria Ester Lima Oliveira
não se possa afirmar que essa busca por aparência promova elos entre os
praticantes de musculação.
Essa lógica do esforço e do trabalho remete às posturas ascéticas que,
segundo Foucault, são “um conjunto ordenado de exercícios disponíveis,
recomendados e até obrigatórios, utilizáveis pelos indivíduos num sistema
moral, filosófico e religioso para atingir um objetivo espiritual específico”
(apud ORTEGA, 2005: 145). De acordo com Ortega, o ascetismo é um
fenômeno universal, pois todas as culturas apresentam disponibilidade
para ele, embora esse ascetismo se manifeste sob diversas formas, variando
conforme a cultura. Assim, “o asceta pode desafiar a cultura, integrar-se
nela, transcendê-la, viver em tensão com ela ou transformá-la” (2005: 140),
o que faz com que definições muito fixas de ascetismo, tomadas a partir
de algum modelo relativo a dado momento histórico e cultura específica,
percam “o alcance geral do fenômeno como operador de formação e
transformação cultural” (ibidem).
Segundo o autor, houve, no decorrer do processo histórico,
diversos tipos de ascese, desde a clássica greco-romana até as cristãs,
com características e objetivos distintos, e por vezes opostos, que vão do
alheamento do mundo até aquela que tem por fim melhor servir a sua
cidade. Nesta, a:
Dimensão político–social [era] fundamental, visando sempre o outro e a
cidade, eram expressão do amor pelo mundo. A presença do outro e do
mundo garantiam a realização do cuidado de si. Os ascetas representavam
a solidariedade do grupo e canalizavam valores, necessidades, medos e
esperanças da comunidade (ORTEGA, 2003: 71).
No entanto, mesmo com distinções, elas guardam entre si
elementos similares, como o fato de o corpo ser submetido a uma
dietética (sexual e alimentar, entre outras) com objetivo de superação
e transcendência – ascese corporal associada a ascese espiritual - como
prova de capacitação para a vida pública, de contato com a divindade ou
da superação da condição humana e da adoção da perspectiva da natureza
universal (ORTEGA, 2003).
144
Ascetismo e cultura corporal
Nos processos clássicos de subjetivação ascética53, o corpo possuía
valor simbólico, base da constituição de um self dono de si. Mediante a
ascese corporal e espiritual, o self se preparava e se legitimava para a vida
política, atingindo um conhecimento de si ou se anulando na procura de
Deus (ORTEGA: 2005). Ou seja, nessas “[...] asceses da Antiguidade, o
self almejado pelas práticas de si representava frequentemente um desafio
aos modos de existência prescritos, uma forma de resistência cultural, uma
vontade de demarcação, de singularização, de alteridade [...]” (ORTEGA,
2003: 63). As asceses, de maneira geral, possuem quatro aspectos que
podem ser listados como presentes em toda postura ascética:
• Primeiro, “a ascese implica em um processo de subjetivação. Ela
constitui um deslocamento de um tipo de subjetividade para outro tipo,
a ser atingido mediante a prática ascética. O asceta oscila entre uma
identidade a ser recusada e outra a ser alcançada” (2003: 141).
• Segundo, “a ascese implica na delimitação e reestruturação das relações
sociais, desenvolvendo um conjunto alternativo de vínculos sociais e
construindo um universo simbólico alternativo” (2003: 142).
• Também, “A ascese é um fenômeno social e político. O ascetismo é
uma prática social. [...] os ascetas ressaltavam a solidariedade do grupo
tornando-se acessíveis aos valores e necessidades da comunidade”
(CLARK,BROWN, ROUSSEAU e RAPP, apud ORTEGA, 2003: 143).
• E, finalmente, “está ligada à vontade. [...] Ascese é ascese da vontade,
exercício da vontade. [...] Através do exercício ascético, o asceta
recupera o conhecimento e o uso da vontade, a unidade da vontade, isto
é, consegue retornar à situação paradisíaca do homem antes da queda:
a ascese é a imitatio Christi corporal e espiritual (DRIJVERS, HORN,
BROWN e FOUCAULT, apud ORTEGA, 2003: 143-144).
Nesse sentido, a ascese se constitui como elemento de mudança, de
construção de universos simbólicos alternativos, assim como configuração
de novas subjetividades e novas relações sociais (VALANTASIS, apud
ORTEGA, 2003: 145). Porém, a partir da modernidade e no momento atual,
Porque nestes casos o corpo possuía valor simbólico, base da constituição de um self dono
de si, que mediante a ascese corporal e espiritual legitimava-se para a vida política, atingia um
conhecimento de si ou se autoanulava na procura de Deus (ORTEGA: 2005).
53
145
Maria Ester Lima Oliveira
marcadamente no contexto das práticas corporais, não há esse impulso
para a mudança. Os aspectos ascéticos que encontramos ou o emprego
de certas práticas que remetem à ascese não são utilizados com intuito de
promoção de mudanças, nem em nível individual nem em nível social mais
amplo. Pelo contrário, as buscas se dão no sentido de conformação, de
enquadramento, e isto devido ao fato de que aparência corporal tornouse sinônimo do self. Encontramo-nos expostos ao olhar e julgamento do
outro, não há possibilidade de refúgio nem de se esconder já que tudo que
existe está exposto, visível, não há possibilidade de dissimulação, e essa
impossibilidade nos deixa vulneráveis ao olhar do outro.
Esse eu marcado pelo risco de ser continuamente julgado – é
importante lembrar que o olho tornou-se um elemento central dessa
sociedade, olhar que promove distanciamento, que nos possibilita
perceber o mundo sem nos contaminarmos com suas impurezas –
suscita a necessidade de erguer defesas que, nesse caso, efetivar-se-á
pela autoprodução corporal, pela adequação do corpo aos moldes do
socialmente desejável. Tal comportamento leva à compreensão da
diferença em si como ameaça passível de ser punida pelo olhar de censura
do outro. No entanto, é preciso ressaltar que essa delimitação cultural
ampla é traduzida de modo diferenciado entre os diversos segmentos da
população, ou seja, nem todo mundo, por mais que esteja exposto aos
estímulos midiáticos e da indústria da moda, vai fazer do corpo musculoso
sua ambição ou realidade, por várias razões, inclusive ideológicas54 e
econômicas. Nos espaços em que se dá a produção corporal, ela ocorre
como elemento de distinção, uma distinção que se manifesta e é sentida de
diversas formas, como pode ser percebido nas falas a seguir:
Fica bem mais bonito, mais apresentável... Diferente da pessoa com outra
forma física. É diferente de chegar na praia uma pessoa que está em
forma tudo... E outra pessoa que está... Que tem a barriga...[...] Quando
se está fora de forma fica-se mais inibido para usar sunga na praia (A. 28
anos, estudante).
Ideologia aqui enquanto conjunto de convicções filosóficas, sociais, políticas etc. de um indivíduo
ou grupo de indivíduos. Fonte: dicionário Houaiss, CD-ROM, versão 2.0/ 20001-2007. Rio de
Janeiro: Objetiva.
54
146
Ascetismo e cultura corporal
[...] o corpo bonito pode botar o que quiser em cima dele que sempre fica
bonito. Feito aquela mulher no carnaval dançando, se ela for feiosa fica
vulgar, se tiver o corpo da globeleza fica bonito. [...] Às vezes você nem está
mais forte, mas bota uma roupa fica parecendo que você está mais forte.
Tem uma camisa minha que toda vez que eu coloco dizem: está mais forte,
né ? Eu digo: estou nada [...] já foi o tempo de eu botar aquelas camisas
folgadonas... […] Tudo isso eu acho que tudo no mundo, as relações sociais
foram organizadas em torno das atrações sexuais e eu acho que isso mais
do que tudo é um reflexo da busca pelo sexo (J. 24 anos, contador).
Eu acho que esse status assim de forte, [...] assim, para os fortões é
superior a qualquer um. Que quem vai ficar fortão é superior a todo
mundo. É tipo o magro não vai encarar o fortão para brigar, tipo... É
de status, de superioridade ao outro, entendeu? O magro demais não
vai... É, tipo assim, na festa passa uma menina... pronto se eu estou com
minha namorada aí vai passa uma menina, o fortão vai e mexe com ela,
eu vou fazer o que? Eu só vou puxar ela. Vou enfrentar um cara desses?
Eu sei que vou apanhar do cara, vou brigar, vou perder, vou terminar
apanhando dele. E o magro não, se o cara for reclamar ele pode ser tipo
o cara quis ser mais grosso, mais rude com ele... O fortão eu só peço
para ele sair de perto: [...] mas o magro eu acho que dá para impor mais...
É mais a superioridade mesmo. [...] Nem sempre, só tipo assim para
festas... Aquelas coisas assim de briga que se bobear tem gente brigando
do seu lado... É mais, aquilo ali para ninguém mexer com você... [...] aí,
para não brincarem comigo assim... [...] para ninguém se meter a brincar
comigo com besteira, zonar da minha cara e tal... É mas uma questão de
superioridade é para os outros não brincarem, não chegarem perto (P. 19
anos, estudante).
É importante ressaltar que ostentar um corpo forte não possui
uma interpretação unívoca, essa aparência não é sempre e em todos
os contextos vista como algo positivo, não suscita apenas a aprovação
social sob a forma de elogios e vantagens na disputa por parceiras e/ou
parceiros. Há também o sentido pejorativo que essa aparência carrega, o
que se reflete nas falas de alguns praticantes e que pode ser percebido no
relato abaixo:
147
Maria Ester Lima Oliveira
[...] do mesmo jeito que favorece às vezes também desfavorece, depende
da cultura da pessoa, minha mãe é do interior lá não existia academia,
naquela época, [...] para ela forte é sinônimo de quem não tem o que
fazer, porque vive na academia. Ela não leva a estética [em consideração]
porque o que é forte, se não usa anabolizante, geralmente tem uma saúde
melhor, porque é considerada atleta, tem um batimento cardíaco menor,
uma freqüência menor, isso é bom para saúde...Ela não pensa nisso, ela
pensa está ali dispendendo um bocado de tempo na academia, porque não
tem o que fazer. Então junta isso, pessoa forte, com hoje em dia também
negócio de pitboy, quem é forte é pitboy. Aquele conceito que tinha, eu
vi até isso um dia desses, ‘quem é forte não tem nada na cabeça’, é difícil
você ver uma pessoa forte e tenha um conceito intelectual maior, mas eu
acho que isso hoje em dia não em nada a ver... Mas tem gente que ainda
pensa isso, por isso que eu digo às vezes favorece e às vezes desfavorece.
Porquê? Se você for parar para pensar as pessoas mais inteligentes não
são pessoas fortes, e algumas das pessoas que não tem nível de QI muito
alto são pessoas fortes, mas isso é muito pouca gente, porque hoje em dia
ninguém está vendo isso. Tem muita gente que olha para você e faz: ‘pow,
o cara é forte, passa o tempo todo na academia não estuda não faz nada!
[...]
[...] A aula de direito constitucional, aí eu... Antigamente todo mundo na
faculdade tinha o hábito de ir para aula de [camiseta] regata... Chega no 5º
período os professores começam a cobrar mais [...] Até um dia desses eu
usava corrente de prata bem grossa e [camiseta] regata e cheguei dentro
da sala. Aí o professor ‘tirou onda’ comigo, porque eu estava de regata...
Tirando essa a onda, porque eu era forte e estava de camisa regata e
corrente de prata, parecendo um pitboy na aula de direito. O pessoal vê
isso: que é uma pessoa irresponsável se vestir desse jeito, ser forte andar
de camisa regata, tiver corrente no pescoço, tiver um pit bull... [...] Eu
já fui vítima disso, está entendendo? Aí sabe essa: ‘É um pitboy!’; ‘o cara
vive para malhar!’; ‘ Ah, o cara não estuda...’ Mas não tem nada a ver. Eu
sei separar muito bem meu tempo, às vezes existe um pré-conceito em
relação por causa disso, eu acho que não é nem a questão de ser forte
ou não, tem mais a questão da vestimenta que ele reclamou [o professor]
até por isso eu não vou mais desse jeito. Mas eu sei que isso colaborou,
se fosse um magrinho de camisa regata, como já foi e não se falou nada.
148
Ascetismo e cultura corporal
Porque eu estava de boné, de camisa regata de corrente e era forte, ele
falou isso. Ele falou mais por causa da vestimenta, mas eu sei que o meu
corpo contribuiu para aquilo. Então em alguns pontos, é como eu falei
[...] justamente do que isso é característico? É característico do cara que
não quer nada com a vida, é ser forte, com camisa regata, usar boné... [...]
é acho que para direito, medicina são profissões que a gente sabe que são
mais formais... No curso é assim hoje em dia ninguém mais vai assim, no
começo todo mundo vai de camisa regata, é ruim por causa disso. É por
isso que eu estou dizendo, o fato de eu ser forte contribuiu, aumentou
o preconceito que ele [professor] tinha. Se eu fosse magrinho ele podia
falar ou não falar... [...] foi uma brincadeira, ele falou rindo, me ofendeu
porque foi na frente de todo mundo, ele falou brincando... (E. 20 anos,
escrivão da polícia civil e estudante).
Francisco Ortega (2003 e 2005), analisando as modernas formas de
subjetivação e práticas de si que a garantem, afirma que, em oposição ao
que as asceses promovem, as formas modernas de subjetivação e práticas
de si fomentam o conformismo, o totalitarismo e a universalização. A
partir disso propõe um conceito específico para compreensão das práticas
corporais contemporâneas aqui analisadas, o de bioascese, este conceito
responde à demanda de atualização do conceito de biopoder de Foucault
e diz respeito a:
Uma forma de sociabilidade apolítica constituída por grupos
de interesses privados, não mais reunidos segundo critérios de
agrupamentos tradicionais como raça, classe, estamento, orientação
política, como acontecia na biopolítica clássica, mas seguindo critérios
de saúde, performances corporais, doenças específicas, longevidade, etc.
(ORTEGA, 2005: 153-154).
A bioascese deriva das asceses clássicas55, mas, enquanto
na contemporaneidade assistiríamos a práticas de assujeitamento e
disciplinamento, as asceses da antiguidade se entendiam como práticas
De acordo com Ortega, a disciplina trabalhada por Foucault teria aproximações e semelhanças
com o ascetismo intramundano dos protestantes trabalhado por Weber, ou seja, uma dietética que
se processa mediante a vivência do mundo, mas que se apresenta através do modo como se vive.
55
149
Maria Ester Lima Oliveira
de liberdade. Em ambas encontramos as mesmas atividades, porém,
almejando objetivos opostos, o que leva à promoção de processos de
subjetivação divergentes (ORTEGA, 2005). Para Ortega, as modernas
bioasceses teriam efeito despolitizador, já que não possuem como objetivo
a transformação do status quo, nem dos arranjos estabelecidos, mas
impulsionam o narcisismo conformista e a “vontade de uniformidade, de
adaptação à norma e de constituição de modos de existência conformistas
e egoístas, visando à procura da saúde e do corpo perfeito” (SFEZ, apud
ORTEGA, 2005: 142). Mais adequadamente poderíamos opor uma ascese
cujo sentido último não consegue se descolar do niilismo cultural que se
propaga na sociedade contemporânea e outra em cujo contexto cultural a
busca por um valor fundamental ainda é concebível – e, com essa busca,
a constatação da necessidade de mudar o que está instituído. Em nossa
sociedade, a ascese perde seu caráter transgressivo, preservando, todavia,
na cultura corporal, seu elemento disciplinador, sua moral do autocontrole
e um certo prazer espiritualizado, moralizante de transcender, de ser maior
do que as urgências da carne56. Esses aspectos podem ser apreendidos a
partir do depoimento que se segue:
É porque eu sou muito... Sem falsa modéstia, determinado quando eu
decidi fazer musculação, por exemplo, quando eu comecei a malhar aos
21/22 anos que foi quando eu engordei pela primeira vez, eu perdi 8kg
em um mês e meio e agora quando eu voltei eu perdi 5kg em um mês e
depois mais 2kg, eu perdi 7kg nos últimos 3 meses, quando é para perder
peso eu fecho a boca, não falto um dia, eu só não venho dia de sexta,
de segunda a quinta eu venho todos os dias não falto um faço todos os
exercícios, enquanto eu estou malhando eu não converso [...]. Não gosto
nem de malhar com outra pessoa que conversa, eu vou com alguém que
eu sei que não conversa, [...] Tanto é que eu brinco com amigos meus que
têm personal e digo: eu não preciso, porque eu já faço tudo certinho, do
jeito que eu estou fazendo, não precisa ninguém estar me incentivando
não (S. 31 anos, engenheiro).
Para Ortega, no entanto, as bioasceses se distinguem das asceses tradicionais justamente pela
inexistência de objetivos morais, filosóficos, religiosos e espirituais, focando apenas na vontade de
uniformidade e de adaptação à norma, ou seja, práticas de assujeitamento e disciplinamento puro
e simples, visando à procura da saúde e do corpo perfeito.
56
150
Ascetismo e cultura corporal
Um exemplo do disciplinamento existente nessas práticas pode
ser apreendido a partir das fichas elaboradas para cada frequentador nas
academias. Tais fichas contêm os exercícios e número de séries que cada
indivíduo deve fazer a cada dia – como receituário ou guia de atividades.
Elas são elaboradas a partir da avaliação física e também de acordo com
desejo/objetivo de aparência física a ser atingido. Um aspecto curioso que
pode se constituir como “coincidência” é o fato de, nas academias que
digitalizaram seus dados, as fichas possuírem formato de extrato bancário
emitido em caixas eletrônicos, o que pode nos remeter a uma sensação
de relação econômica com nossos corpos. Tal procedimento pode ser
facilmente remetido ao caderno de contabilidade que alguns grupos de
puritanos elaboravam para controlar sua busca “da graça”. Parece que
temos uma dívida a pagar conosco, que a cada dia devemos saldar uma
parte, e cujo prêmio é o corpo desejado. Como forma de ilustrar e explicar
melhor a ideia lançarei mão de um fato ocorrido durante a pesquisa de
campo. Certa vez, minha própria ficha não imprimiu as atividades que
deveriam ser realizadas naquele dia, mas indicava que procurasse um
professor/instrutor, a este foi necessário informar os motivos para as
faltas (entre três opções pré-definidas) que culminou no não cumprimento
das atividades no prazo pré-definido - e isto ocorreu mesmo havendo
frequência maior do que a pré-definida –, depois de notificada a razão das
faltas, foram estabelecidos novos prazos, o que pode levar a concluir, até
com certo humor, ser necessário a realização de horas extras para satisfazer
o sistema que controla as fichas!
Conclusão
Diante de tudo que foi colocado podemos dizer, tal como Sabino
(2000: 63), que a forma física tem se constituído como item fundamental
de interação social, que se mostra mais forte em espaços de produção
dessa aparência, como é o caso das academias de musculação e ginástica,
existindo rigorosas normas estéticas nas quais os indivíduos tentam
continuamente enquadrar seus corpos. É importante percebermos que
não há um modelo fixo, assim como não há um corpo fixo que se almeja
151
Maria Ester Lima Oliveira
atingir; também é necessário destacar que essas questões não se colocam
da mesma forma para todos os indivíduos, mesmo reconhecendo que
os estímulos à estetização se dão de modo amplo na sociedade, por via,
sobretudo, dos veículos midiáticos.
Por intermédio tanto das falas coletadas como da observação
participante do campo empreendida, constatamos que a lógica sob a qual
operam os indivíduos que se propõem a realizar essa produção corporal
– os “ascetas contemporâneos ou bioascetas” – é a lógica da mudança
contínua, fortemente marcada nas falas pelo “sempre se melhorar”. Não
há um modelo fixo, assim como não há um corpo fixo que se almeja atingir,
o que pode ser ilustrado a partir do exemplo dos veteranos – indivíduos
que transitam de uma forma a outra sempre em busca de uma satisfação
que parece nunca chegar, apesar de, muitas vezes, ostentarem formatações
corporais equivalentes às suas descrições de “corpo ideal”.
É necessária uma reflexão maior no que concerne ao esvaziamento
do sentido das práticas ascéticas no tocante às motivações. Diante do que
vimos nesse sentido, torna-se indispensável considerar que no momento
contemporâneo, ou seja, no que corresponde ao que Ortega denominou
bioascese, há um esvaziamento desses outros sentidos, finalidades, que
a ascese corporal atua como um fim em si mesma, uma técnica para
produzir corpos vistos como perfeitos, e que esta produção tem objetivos
vários: aceitação social, proteger-se do julgamento do outro ou fruir
essa aprovação. Talvez seja excessivo falar em inexistência de objetivos
morais e filosóficos quando mapeamos esses objetivos; uma vez que as
falas estão fortemente marcadas pela ética do trabalho, do esforço, do
disciplinamento e da autossatisfação, não devem ser desconsideradas, e
esse apreço pelo esforço e trabalho constituem um aspecto moral bem
marcado na atividade analisada. É possível que o que ocorra no momento
contemporâneo seja uma mudança de valores morais, que sai do coletivo
para situar-se mais no âmbito do particular, do individual, das motivações,
finalidades e satisfação de cada indivíduo. E pode parecer contraditório
relacionar aprovação social e um modelo corporal definido exteriormente
a satisfação e moral individual. Entretanto, é para esse movimento que
a pesquisa de campo e entrevistas apontaram: o exterior define com
suas demandas e explicações e os indivíduos que as tomam para si o
152
Ascetismo e cultura corporal
fazem também com suas motivações e demandas, em parte relacionadas
às questões externas e, por outro lado, relacionadas às suas próprias
necessidades.
Bibliografia
COURTINE, Jean-Jacques (2005). “Os Stakhanovistas do Narciso: Bodybuilding e puritanismo ostentatório na cultura Americana do corpo”. In:
Santa’anna, Denise (Org.), Políticas do corpo. São Paulo, Estação Liberdade.
HOUAISS. Dicionário. CD-ROM, versão 2.0/ 20001-2007. Rio de Janeiro,
Objetiva.
OLIVEIRA, Maria Ester Lima (2009). A produção corporal em
academias de musculação. Dissertação de mestrado. Programa de Pós
graduação em Sociologia da UFPE.
ORTEGA, Francisco (2003). “Práticas de ascese corporal e constituição
de bioidentidades”. Cadernos Saúde Coletiva. Vol. 11 No 1: 59-77.
_______________ (2005). “Da ascese à bio-ascese ou do corpo
submetido a submissão do corpo”.In: Rago, Margareth. Orlandi Luiz B.
Lacerda. Veiga-Neto, Alfredo(Org.), Imagens de Foucault e Deleuze:
ressonâncias nietzschianas. Rio de Janeiro, DP&A Editora.
SABINO, César (2000). “Musculação, manutenção e expansão da
masculinidade”. In: Goldemberg, Mirian (Org.), Os novos desejos: das
academias de musculação às agências de encontros. Rio de Janeiro,
Record.
_______________ (2004). O peso da forma: cotidiano e uso de drogas entre
fisiculturistas. Tese de Doutoramento defendida no PPGSA/IFCS da UFRJ.
SFEZ, Lucien (1995). A Saúde Perfeita. Crítica de uma Nova Utopia. São
Paulo, Edições Loyola.
153
Maria Ester Lima Oliveira
WEBER, Max (1989). A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São
Paulo, Pioneira.
154
Corpos en Concierto: diferencias, desigualdades y disconformidades
LAS REPRESENTACIONES ACERCA DEL CUERPO
Graciela Magallanes
Introducción
El presente escrito se inscribe en el marco del informe final de
la investigación realizada en la Universidad Nacional de Villa María bajo
la dirección del Dr. Alfredo Furlán y la Co-directora Dra. Alejandra
Ciuffolini57. El aporte de la indagación, orientada a describir las
representaciones acerca del cuerpo, toma relevancia a partir de importantes
vacíos teóricos y empíricos que existen acerca del objeto de estudio.
Con lo anterior se quiere hacer referencia a la relevancia de levantar
actas acerca de los modos de manifestación como se expresan las formas
de representación del cuerpo por parte de los estudiantes universitarios.
Sobre este tema, y con significativas distancias en relación a la especificidad
de temática objeto de estudio de este trabajo; se reconoce el valioso aporte
de los estudios realizados por: David Le Breton (1990, 2002); Naddaff
Ramona y Nadia Tazi (1989); Norbert Elías (1992); Peter McLaren (1994,
1995,1998); Diana Milstein (1999); Denise Jodelet en Moscovici, Serge
(1988); Larrosa, Jorge (1995); Alfredo Furlán (1995, 1996, 2000) y Adrián
Scribano (1999, 2008a,2008b, 2009a, 2009b), entre otros no menos
importantes.
Si hubiera una línea que atraviesa el campo de la presente indagación
en relación a los autores antes mencionados, es por la necesidad de
identificar el modo como se estructura la representación social del cuerpo
por parte de los estudiantes. En esta dirección los aportes de la sociología
contemporánea ofrece algunas pistas relevantes a considerar. La referencia
Se trata de un trabajo de investigación realizado por la autora del presente escrito para el acceso
al título de Magister en Educación Superior Universitaria efectuado en la Universidad Nacional del
Comahue.
57
155
Graciela Magallanes
particularmente en el presente trabajo es a los aportes de Bourdieu (1986,
1990, 1991, 1997, 2000), Giddens (1993, 1995, 1998) y Marín (1996).
Louis Marín ofrece la posibilidad de indagar un campo enigmático
de las representaciones, atento a la irreductibilidad de las diferencias entre
la imagen visible y la lógica de producción de sentido que engendran los
discursos. Fundamentalmente, lo que está en cuestión son las posibilidades
y eficacia de la lectura de las representaciones. La posibilidad de ver y
dar a conocer el objeto ausente y al mismo tiempo la mostración de una
presencia, permite poner en tensión en el presente escrito, el tipo de
funcionamiento del dispositivo representativo.
El funcionamiento antes mencionado colabora en “leer un cuerpo
con historia”, meta que explica la necesidad de describir no sólo los modos
y modalidades de representación de los estudiantes, sino también los medios
utilizados que hacen posible dicha construcción.
En síntesis podría decirse que al analizar la representación –desde
la perspectiva de Marín- no sólo se presta atención a los signos, sino a las
características que tienen esos signos, su naturaleza (cuanto de natural o
construido tiene la representación, y allí encontraremos algunos vínculos
con lo planteado por Pierre Bourdieu) y con ello su institución.
La referencia es a la importancia de analizar en las representaciones
de los estudiantes las relaciones que los sujetos mantienen con el mundo
social; esto es la fuerza, potencia y legitimidad desde donde se justifica y
opera el dispositivo representativo.
En claves de la obra de Pierre Bourdieu interesa fundamentalmente
la producción y reproducción de las representaciones sociales, los
mecanismos de reproducción de los hábitus y su concepción acerca de lo
simbólico. Esto es la relación entre las estructuras mentales y las prácticas
sociales según posiciones y condiciones que se juegan en las interacciones.
Pensados este planteo a la luz de las representaciones acerca del
cuerpo, podríamos encontrar dos modos de existencia de lo social desde
donde comprender el objeto de investigación; esto es: las estructuras
sociales externas, lo social hecho cosas que se plasma en las condiciones
objetivas (campo de posiciones sociales históricamente constituidas) y las
estructuras sociales internalizadas, lo social hecho cuerpo, incorporado al
agente (hábitus).
156
Las representaciones acerca del cuerpo
Los intereses objetivos hacen que se liguen determinados hábitus,
a campos de posiciones sociales. Puede entonces decirse que al analizar
los modos de práctica y modos de acción del cuerpo estamos analizando
determinadas prácticas sociales. Estas se entienden como estrategias
implementadas por el sujeto en defensa de sus intereses, los que permiten
conservar o aumentar determinado capital58 que está en juego.
El campo cultural y el campo de poder le permiten a Bourdieu
comprender que, en la comunicación se juegan otro conjunto de aspectos
más allá de la comunicación misma. Las relaciones objetivas según tipo
de capital poseído expresan las relaciones de fuerza que se juegan en
los procesos de legitimación, los que distribuyen visiones y divisiones del
mundo social.
Plantear el problema de las representaciones sociales en estos
términos supone entonces desmontar un conjunto de mecanismos muchas
veces disimulados, que permitan poner en marcha la historia. En lo que
se refiere a este trabajo, la referencia es a la historia del propio cuerpo,
evitando “naturalizar-neutralizar” la representación social en lo que tiene
de arbitrario su constitución.
Es en este punto, donde podemos detectar que el planteo
de Bourdieu, como también lo es el de Giddens, encuentra puntos de
convergencia respecto a lo que es el contenido crítico de la teoría social
que se aleja de la mirada positivista de la ciencia social. Podríamos decir
que el aporte de dichos autores para esta investigación, tiene que ver
fundamentalmente, con el reconocimiento de que la representación
“está cargada teóricamente” y el lenguaje juega un papel central en la
estructuración.
Los intercambios lingüísticos en las relaciones sociales
simbólicamente estructuradas son evaluadas en el caso de Bourdieu desde
los hábitus, y en Giddens desde el conocimiento convencional que los
agentes poseen en común a fin de otorgarle sentido a lo que ellos y los
otros hacen en la vida cotidiana.
En el caso del cuerpo se trataría del conjunto de propiedades y disposiciones corporales, leídas
en términos de bienes acumulados del sujeto que se produce, se distribuyen, se consumen, se
invierten, se pierden.
58
157
Graciela Magallanes
Estos tópicos que dan cuenta de un sujeto que participa en forma
reflexiva sobre su propia acción, son los que explican la necesidad de
retornar a la teoría social para el tratamiento de la representación acerca del
cuerpo. En Bourdieu, como decíamos a partir de lo que son los hábitus, el
cuerpo, la topología de lo social, el sentido práctico y las naturalizaciones;
en Giddens en lo que respecta a la confianza básica, riesgo y seguridad
ontológica en el espacio-tiempo.
Quizás, uno de los aspectos más relevantes en el marco del
presente trabajo, es el modo como en la teoría de Giddens se encuentran
argumentos para comprender la estructuración de las representaciones
acerca de la experiencia del cuerpo. La referencia es a la importancia a
la acción humana en la estructura en la sociedad contemporánea y su
reflexividad social. Las consecuencias y los desafíos de esta sociedad, con
sus desanclajes suponen redefiniciones a partir de la transformación de la
intimidad y la trayectoria de los sujetos.
Se trata de un proceso, en donde el cuerpo ocupa un papel activo a
partir de la reflexividad del “Yo” respecto a las prácticas cotidianas desde
donde el agente le da sentido coherente y continuidad a su identidad. Esto
es así, en términos de Giddens (1997) porque el “Yo” esta corporeizado;
el cuerpo no es una entidad sino que se experimenta como un modo
práctico de solucionar las situaciones y sucesos a los fines de ser un agente
competente.
Son estos sentidos los que, en el presente escrito, colaboran en
comprender las representaciones que tienen los estudiantes acerca del
cuerpo como una zona problemática. Fundamentalmente porque esa
zona requiere estar en condiciones de ejercer un control continuo sobre el
cuerpo en las situaciones de interacción en la vida cotidiana cuando se ve
amenazada la seguridad ontológica.
Es la configuración de las representaciones y sus zonas problemáticas
las que ofrecen oportunidad de dilucidar, a lo largo del presente escrito,
las manifestaciones corporales en lo que hace a la apariencia, el porte, la
sensualidad y régimen corporal. La permanencia o modificación de los
controles y cuidados respecto a esas dimensiones nombradas, se explica
no sólo porque el cuerpo es un medio de acción localizado, sino que
también es un organismo físico que es cuidado, sexuado y fuente de placer
158
Las representaciones acerca del cuerpo
y dolor. Sin embargo es importante decir que los cuidados se constituyen
también a partir de las convenciones de la vida sociales, es decir que tienen
una organización social y cultural.
La reflexividad social acerca de la apariencia corporal, la sensualidad
del cuerpo, el porte corporal y los regímenes corporales; como zonas
donde se manifiestan las representaciones de los estudiantes, permiten
distinguir formas de actuar cuyas intereses y consecuencias muchas veces
no son intencionales y deseadas. La referencia es precisamente, a las
representaciones del cuerpo en la institución universitaria (tema que es
abordado como cierre del presente trabajo); en tanto tienen implicancias
sociales al “poner al descubierto” el conocimiento del estudiante de
sí mismo y de los mundos sociales y materiales bajo condiciones de
reproducción y producción de la vida social en la vida cotidiana en la que
se encuentran involucrados.
Las representaciones sociales y sus zonas problemáticas
En la descripción de las representaciones interesa particularmente
como es percibido el cuerpo y las formas que asumen sus prácticas en las
relaciones sociales, ya que compartimos con Marín que:
[…] las modalidades de presentación de sí mismo, es cierto, están
gobernadas por las características sociales del grupo o los recursos
propios de un poder. Peso a ello, no son una expresión inmediata,
automática, objetiva del status de uno o la potencia del otro. Su eficacia
depende de la percepción y el juicio de sus destinatarios, de la adhesión o
la distancia con respecto a los mecanismo de presentación y persuasión
puestos en acción (1994: 95).
En este sentido el trabajo de descripción de las representaciones
en esta investigación, supone un proceso de presentación de las diversas
relaciones que el cuerpo mantiene en el mundo social. Estas instancias
colaboran en identificar las percepciones que tienen los estudiantes
acerca de su cuerpo, esto es, el recorte y el criterio de clasificación de las
propiedades y disposiciones corporales.
159
Graciela Magallanes
La identificación de los modos de representación de su porte,
sensualidad, regímenes y apariencia desde donde se percibe, construye
y representa; permiten distinguir algunas cualificaciones del cuerpo en
donde se reconoce su identidad social. Dichas cualidades, tales como
pueden ser “alto, bajo, duro, blando, pesado, liviano” van a constituirse
para los alumnos en signos de mayor o menos extensión que permiten
explorar algunas modalidades de representación que – sin alterar la esencia
de sus modos – exhiben simbólicamente la condición, la potencia que
tiene/le otorga al cuerpo.
El desciframiento de las formas como describen al cuerpo
los estudiantes, y que permiten leer la representación, ha implicado –
necesariamente – aproximarse a los medios que viabilizan las representaciones.
Se trata de convenciones sociales desde donde los alumnos interpretan su
propia realidad corporal, la que de algún modo marca la coherencia de una
comunidad o la fuerza de una identidad.
La lectura de la representación se comprende, entonces, al
aproximarnos a un conjunto de soportes que – entre otros aspectostiene que ver con el proceso de constitución de sí mismo en la sociedad
contemporánea (SCRIBANO: 2008a, 2009b). Estos proceso supone un
análisis de las características transformativas de los modos de ser, de actuar,
de relacionarse que tiene el cuerpo según las situaciones y circunstancias
de interacción en la vida diaria.
La construcción de la representación, aunque arbitraria si es que
se la mira aisladamente, encuentra necesidades objetivas y subjetivas de
inserción en unas disposiciones corporales – entre otros aspectos- que
hacen a las diferencias de representación entre los estudiantes. De algún
modo, esta investigación hace permeable estos sentidos, al interesarse por
identificar las formas que asume las representaciones en los estudiantes
de distintas carreras de grado de la Universidad Nacional de Villa María.
Los lugares no neutros donde se inscriben cada una de las
representaciones que tienen del cuerpo los estudiantes se comprenden
en los mecanismos profundos que ligan las estructuras cognitivas y las
estructuras sociales. El mundo social construye la representación, la que
se comprende en este estudio al momento de prestar atención a la división
160
Las representaciones acerca del cuerpo
sexual, división social, división del trabajo – en definitiva al orden socialsegún los campos disciplinares que optaron para su formación académica.
Las causas que explican investigar esta delimitada y distintiva
inscripción, son a cuenta de encontrar algunos argumentos que permitan
describir el tipo de representación construida por los estudiantes atentos a
su tiempo de vida en donde es posible localizar espacios-tiempos y sujetos
determinados.
Cada uno de éstas inscripciones que van a otorgar identidad al
cuerpo, importan como mecanismos de anclaje o desanclaje en relación
con lo que es posibles ofrezca la universidad en sus diferencias con los
niveles precedentes. La posibilidad de que estas inscripciones penetren y
no vacíen la representación en este nivel educativo, es a cuenta de intentar
describir el dominio específico de estas circunstancias sociales y relaciones
que colaboran en forjar la representación del cuerpo.
La advertencia sobre dichos aspectos parte de la sospecha que
se tiene sobre el escaso lugar que tiene la universidad en la gama de
representaciones de los alumnos. La mirada a otros discursos y prácticas
que vierten determinación en la representación acerca del cuerpo, tiene
como misión conocer cuál es ese saber y cuáles son los lugares desde
donde se constituye.
Las respuestas a estos interrogantes pueden advertir al mundo
académico de la necesidad de pensar sobre los vacíos existentes en estos
campos, que pueden ser relevantes desde el punto de vista sociológico y a la
vez significativo desde lo educativo. Esto es, indagar sobre la especificidad
del cuerpo en el contexto de un currículum común o determinado por
áreas profesionales, en el que se tenga conciencia – entre otros aspectos
no menos importantes- de la historia del saber del cuerpo.
Desde esta mirada, las diferentes modos y modalidades que asumen
las representaciones del cuerpo tienen un carácter complementario,
constituyendo una cultura de lo corporal como resultado de una
hibridación. El acento está puesto en los contornos, lo que hace difícil
discernir donde acaba el poder familiar, de clase, de edad, de género y el
estrictamente relacionado con la formación profesional.
Esta perspectiva dará consistencia a la utilización de diferentes
medios que viabilizan la representación del cuerpo, donde diferentes saberes
161
Graciela Magallanes
corporales colaboran en el anclaje de los atributos sociales: limpio / sucio,
lindo / feo, fuerte / débil, alto / bajo, atractivo / no atractivo, grande /
pequeño, recto / curvo, sano / enfermo, grueso/ delgado, hábil / no
hábil. Estos atributos colaboran en la forma en la que el sujeto nomina al
cuerpo.
El término cuerpo es pensado aquí en términos de lo expresado
por Bourdieu:
El cuerpo, el físico de la gente, es la manifestación más estable de
la persona como ser social, menos fácilmente modificable y la que
socialmente se considera que refleja al ser profundo, la naturaleza de
cada cual. (...) El cuerpo es un lenguaje o símbolo de identificación y
confrontación social, a la vez que un producto social (en VAZQUEZ
GOMEZ, 1989: 34).
En este sentido, el reconocimiento al cuerpo como un producto
social importa en tanto la Universidad, por ejemplo, puede marcar
distancias y diferencias en las representaciones, las que pueden permitir
ver el antes y después de la configuración construida por los estudiantes y
los cambios que de allí se derivan.
El abordaje de las representaciones del cuerpo en el discurso,
implica trabajar sobre el modo en que el estudiante se forma los conceptos,
de acuerdo al momento y circunstancias en las que se encuentra. Esto es
reconocer un saber posible para el sujeto desde donde se observa, analiza
y descifra a sí mismo59.
En este sentido el interés reside en conocer las formas que
asumen los discursos de los alumnos en lo que se refiere a los modos60 de
Desde este enfoque cobra sentido prestar atención a las formas que asumen los distintos
dispositivos. Dice Larrosa (1995: 292): “En primer lugar una dimensión óptica, aquella según la
cual se determina y se constituye lo que es visible del sujeto para sí mismo. A continuación, una
dimensión discursiva en la que se establece y se constituye qué es lo que el sujeto puede y debe
decir acerca de sí mismo. En tercer lugar, una dimensión jurídica, básicamente moral, en la que
se dan las formas en que el sujeto debe juzgarse a sí mismo según una rejilla de normas y valores.
Cuarto, (...) mostraré cómo la modalidad discursiva esencial para la construcción temporal de la
experiencia de sí y, por tanto, de la autoidentidad, es la narrativa. (...) Por último, una dimensión
práctica que establece lo que el sujeto puede y debe hacer consigo mismo”.
60
Los modos de ser, de actuar y de relacionarse son como una manera de ir; nunca son terminales
59
162
Las representaciones acerca del cuerpo
representación del cuerpo. Uno de los puntos de partida para el análisis
del carácter que asumen estas marcas, es las formas de relación del sujeto
consigo mismo, con los demás y con el mundo material y el conjunto de
rasgos que las explican. Los modos de representación se expresan en las
categorías de percepción de su cuerpo y en los criterios de clasificación,
como productos de distintos tipos de discursos y prácticas que tienen un
sentido y valor en tanto reenvían a las condiciones de un grupo social
determinado.
La identidad social de las representaciones del cuerpo muchas
veces se naturalizan-neutralizan en los discursos religiosos y laborales,
las prácticas médicas, de higiene, de alimentación, de indumentaria, de
ejercitación corporal, entre otros no menos importantes. Cada uno de estos
discursos y prácticas definen determinadas formas de aprehensión de la
realidad, determinados bienes que se consumen y agentes especializados
que surgen de acuerdo a los campos desde donde se generan. Lo interesante
de estas construcciones es que colaboran en el proceso de definición del
cuerpo y de sus prácticas regulando sus modos de atención, de manifestarse,
de ser, de enfrentarse, de actuar (SCRIBANO: 2008b, 2009a).
La multiplicidad de modos de representación y los márgenes poco
claros, hacen pensar en la presencia de modalidades de representación del
cuerpo que se ligan a distintos estados estatutarios de poder -entre otros
aspectos-. Estos márgenes que no alteran la esencia del modo establecen
la posición del sujeto (MARÍN, 1994). Las modalidades de representación
son desciframientos impuestos por la forma que dan a leer los modos y
que hacen reconocer una identidad social, una manera propia de ser en
el mundo y que significan simbólicamente una condición, un rango, una
potencia.
De algún modo, podría decirse que la mirada a los márgenes permite
configurar representaciones diferenciadas. La atención a la descripción de
las formas en que se configura estas representaciones, pone en evidencia
las múltiples operaciones de control que se ejercen.
cambian según los intereses; son estilos de vida que se van configurando según los territorios y
las disposiciones del cuerpo que se producen. Estos modos hacen a la naturaleza de la acción del
cuerpo y de los intercambios sociales con el mundo social y material.
163
Graciela Magallanes
La necesidad de atender a la forma como se expresan esas
operaciones es relevante ya que, al desmontar los medios que se utilizan
en la representación, se encuentran argumentos respecto a la utilización.
Al desmontar los medios que se utiliza en la representación se pueden
recuperar configuraciones históricas que constituyen al sujeto.
Así pensados los medios son formas institucionalizadas utilizadas
por el hablante; “formas por las cuales representantes (individuos singulares
o instancias colectivas) encarnan de manera visible, “presentifica” la
coherencia de una comunidad, la fuerza de una identidad o la permanencia
de un poder (MARÍN, 1994: 84).
Lo importante que tienen los medios que viabilizan la representación
es que permiten comprender las operaciones de recorte y clasificación
mediante las cuales se percibe, construye y representa el cuerpo.
La cognoscibilidad61 de este saber de la vida cotidiana, se vincula
a la noción de reflexividad, en cuanto atributo constitutivo de la acción
que permite comprender la relación que el sujeto tiene con su cuerpo. En
este sentido, la propia identidad de la relación del sujeto con su cuerpo se
juega en el proceso reflexivo del sí mismo62, en sentido de lo idéntico o lo
semejante en la propia designación.
Un tema que ocupa un lugar central en la constitución de la
representación es la trayectoria internamente referencial para el sujeto, y
el conjunto de cambios que comprometen su historia de vida. Ello hace
distintiva, delimitada y muchas veces problemática la representación que
el alumno tiene de su cuerpo63. La diferenciación entraña la conciencia
de determinadas garantías que no son homogéneas para distintos sujetos
respecto a distintos ámbitos según la condición social.
Este proceso parte del registro reflexivo, lo que implica un proceso de racionalización más que
un estado, y que forma parte de las competencias en la utilización de reglas y recursos portados en
el cuerpo como huellas mnémicas de cada agente en el espacio-tiempo constitutivo de su historia
(GIDDENS, 1995).
62
“Proyecto del cual el individuo se hace responsable reflexivamente. Proyecto reflexivo que
pone en juego las características transformativas del agente y de su capacidad de dar identidad a la
conexión entre pasado y futuro (SCRIBANO, 1997: 15).
63
Así la construcción de la identidad de la representación se constituye con el dominio de
relaciones y circunstancias que recombina el sujeto en forma indefinida pero que intervienen y son
coherentes para la propia utilización del sujeto -lo que implica renuncias al deseo por la conciencia
moral de los ordenamientos que son referenciales para sí-.
61
164
Las representaciones acerca del cuerpo
La experiencia inscripta y significativa para el sujeto es producto
de un ordenamiento propio, que delimita la experiencia de los “otros”. La
referencia para sí de otras experiencias tiene que ver con las posibilidades
de percatarse de las expectativas y evaluaciones de los “otros” que son
significativas para el estudiante, respecto a su actuación en la vida privada
y pública. Estas apreciaciones pueden coincidir o entrar en contradicción
en su conjunto favoreciendo la presencia de zonas problemáticas de la
representación.
Las consecuencias de esas referencias contradictorias, muchas
veces, implican crisis/conflicto de identidad para superar las transiciones.
La posibilidad de crisis/conflicto se genera con identidades que se cruzan
y se superponen. Se destaca fundamentalmente el sentido de las relaciones
y sobredeterminaciones que se producen, por ejemplo, en las identidades
de género64.
En este sentido es posible pensar que la forma como el alumno/a
construye su representación acerca del cuerpo, en tanto espacio
probablemente inestable, conflictivo y en proceso de transformación,
es producto de contradicciones y resistencias. Son las concepciones
tradicionales que entran en contradicción cuando se está en la búsqueda
de nuevas posibilidades para construir la identidad de ser mujer u hombre.
La identidad de la representación del cuerpo se crea y mantiene
como producto de la actividad reflexiva del sujeto respecto a sus actividades
y en función de su propia trayectoria de vida, implicando un proceso de
identificación, entre otros aspectos, en lo que hace a la selección de distintos
atributos sociales. Estos atributos (grande/pequeño, alto/bajo, etcétera)
con los que se identifica el sujeto no tienen propiedades ni estructura
propia, se definen en la interacción. Cada sujeto es portador de atributos
específicos y dependen de la situación social, entre otros aspectos.
Para tener un conocimiento profundo de los atributos sociales en la
institución del cuerpo del sujeto, es necesario adentrarse en la exploración
“Cuando hablamos entonces de identidades genéricas, masculinas o femeninas, no nos
referimos a una definición esencial y fija de los conceptos de mujer y varón, sino a un conjunto
de operaciones discursivas, variables y móviles, que distribuyen jerárquicamente prácticas, valores
y atributos, estableciendo exclusiones y configurando una situación estratégica de distribución de
poder entre grupos genéricamente definidos, en interacción con otras determinaciones” (UZÍN,
1999: 34).
64
165
Graciela Magallanes
reflexiva de la intimidad – próxima y lejana en el espacio-tiemp –, donde
fundamentalmente se hace expresa la adhesión a determinados atributos
en función, por ejemplo, de aspectos sexuales, donde las relaciones con el
género65 son constitutivas para el sujeto.
Los atributos sociales tienen profundas raíces solidificadas
históricamente en determinados saberes: médicos, educativos, religiosos,
estéticos, publicitarios, éticos, etcétera. Ellos han ido muchas veces en
contra de una auténtica relación del sujeto consigo mismo y con los demás,
debido a una serie de poderes que generan prohibiciones y censuras en los
discursos acerca del cuerpo. Es preciso ahondar sobre estos saberes en
la representación, conocer qué se dice, quiénes lo dicen, detectar desde
dónde se constituyen esos puntos de vista que el sujeto referencia en su
estrategia discursiva y que, de algún modo, filtra y controla el deber decir,
hacer, saber, juzgar del sujeto.
La definición entre elecciones puras de estos atributos sociales
(fuerte/débil, recto/curvo liviano/ pesado, etcétera) tiene una importancia
central para las relaciones puras66 que mantienen los sujeto con su cuerpo.
La presencia o ausencia de relaciones puras con determinados atributos
del cuerpo, es una construcción puramente social que el sujeto tiene de sí
y colabora en la representación subjetiva.
Desde estos lugares se comprende que la constitución de la
representación, en lo que hace a las propiedades y modos de acción del
cuerpo, exige evitar la neutralización de los atributos sociales a los
fines de construir un operador que evite todo tipo de equivalencias en
las diferentes divisiones (de edad, de sexo, de profesión, etcétera) en el
mundo social. El reconocimiento de sentidos diferenciados en sujetos
Según Langlan y Gove: “El género es un hecho social por entero que adquiere su significación
y funcionamiento a partir del sistema cultural más amplio del que forma parte. El significado del
término «género», según lo entiendo, no es diferente del significado que tiene para la gramática:
designa un conjunto de categorías a las cuales se le puede asignar la misma función en todas las
lenguas o en todas las culturas, ya que tienen relación con las diferencias sexuales. No obstante estas
categorías son convencionales o arbitrarias en tanto no sean reductibles a/o directamente derivadas
de realidades biológicas o naturales; varían de una lengua a otra, de una cultura a otra, en la manera
de organizar la acción y la experiencia” (1986: 147).
66
Entorno fundamental para la construcción del proyecto reflejo del yo, pues permite y, al mismo
tiempo, exige la comprensión organizada continua de uno mismo, como medio para asegurar un
nexo duradero con el otro (GIDDENS, 1997: 237).
65
166
Las representaciones acerca del cuerpo
que ocupan posiciones no equivalentes de acuerdo a su situación social67,
hace suponer que las determinaciones sociales adscriptas a dicha situación
tienden a formar la relación con el propio cuerpo, a lograr disposiciones
constitutivas de la representación en lo que hace a la apariencia corporal,
el porte, regímenes y sensualidad.
El abordaje de las representaciones acerca del cuerpo
Tal como se ha planteado en el apartado anterior, lo que interese
en las representaciones acerca del cuerpo es su vinculación al conjunto
de prácticas más o menos integrado que un sujeto adopta para dar forma
a su crónica. La referencia es a la posibilidad de pensar en estilos de
representación del cuerpo, es requisito central para comprender el conjunto
de prácticas en las que se encuentra implicado el cuerpo en sus rutinas.
Se trata, de elecciones que importan en tanto ofrecen la oportunidad de
indagar los criterios que influyen decisiones que se orientan no sólo a
cómo actuar con el cuerpo sino también a quién ser.
Las rutinas presentes en los modos de ser, de actuar, de atención y
de relacionarse, suponen un control continuo del cuerpo. Son hábitos y
orientaciones que se conectan con determinados aspectos del cuerpo y
que, a los fines de analizar la representación del cuerpo se hace necesario
identificar la forma que asumen. Entre ellos se encuentran:
• Los regímenes corporales: entendidos como los modos de comportamientos
regularizados pertinentes para la continuidad y el cultivo de características
corporales. Estos regímenes corporales, que afectan los modos de
sensualidad, son medios fundamentales por los que la reflexividad
institucional de la vida moderna se centra en el cultivo -casi podría
decirse en la creación- del cuerpo.
• La sensualidad del cuerpo: se refiere a la manipulación dispositiva del placer
y el dolor.
La situación social, en términos de Bourdieu, referencia a la condición de clase -condiciones
materiales de existencia y de práctica profesional- y la posición de clase -lugar ocupado en la
estructura de las clases en relación con las demás clases-. El campo de las posiciones es inseparable
del campo de las tomas de posición, entendido como el sistema estructurado de las prácticas y
expresiones de los agentes (BOURDIEU, 1995).
67
167
Graciela Magallanes
• La apariencia corporal: concierne a todas aquellas características del
cuerpo, incluidas las formas de vestirse, arreglarse, que son visibles a la
propia persona y a otros agentes y sirven habitualmente para interpretar
acciones.
• El porte corporal: determina cómo utilizan su apariencia los individuos
en ámbitos comunes de sus actividades diarias; se trata de la manera de
actuar con el cuerpo en relación con las convenciones constitutivas de
la vida diaria.
Cada uno de estos aspectos que hacen al cuerpo (GIDDENS,
1997) se configuran a partir de la elección por parte de los sujetos de un
cierto tipo de rutinas que definen determinados modos de ser, de atención,
de actuar, de relacionarse del cuerpo consigo mismo, con los demás y el
mundo material. Son características transformativas de los sujetos que dan
cuenta de la identidad construida en la trayectoria de vida del sujeto.
La presencia de diferencias y semejanzas en los modos que se hace
mención y, con ello, la posibilidad de que se hagan presentes modalidades de
representación del cuerpo como parte de la elección del plan de vida del
sujeto es internamente referencial en función de unas posiciones sociales
dadas, y varía según las restricciones de cada lugar. Esto significa que la
identidad del cuerpo es un proceso que se reconstituye a partir de la acción
intersubjetiva; es decir, “otros” que pueden hacer posible o no la presencia
o ausencia de relaciones puras con el cuerpo.
Las relaciones puras interesan frente a la oportunidad de desarrollar
la confianza, la que se basa en un compromiso voluntario y una intimidad
intensificada. Sin embargo, es preciso decir que la identidad del cuerpo
al crearse y reordenarse más o menos de continuo sobre el trasfondo
de las experiencias cambiantes de la vida cotidiana y la tendencia a su
fragmentación, contribuyen a que las relaciones puras se tornen ideales
(ante la imposibilidad de mantener estable la crónica por parte del sujeto)
lo que afecta directamente la representación que se tiene del cuerpo.
La estabilidad, inestabilidad y cambios en la crónica desde la que
es posible identificar las rutinas vinculadas al cuerpo, interesan en tanto
la idea de que la identidad de la representación del cuerpo supone una
crónica que intenta otorgar coherencia a los modos de ser, de actuar, de
168
Las representaciones acerca del cuerpo
atención y de relación. Cada uno de estos comportamientos contenidos en
los límites y recluidos en la imagen representada respecto al escenario de
su actividad, no se encuentra totalmente integrados en la modernidad, ya
que es imposible situar en un lugar la identidad del cuerpo. Es, más bien,
en el tránsito de un conjunto de modos de acción y atención en contextos
situados de interacción donde se ancla la espacialidad del cuerpo y se va a
definir la orientación hacia otros y hacia el propio ser.
Lo aquí expresado impide reducir la representación a uno de
estos lugares, en tanto ella se constituye a partir del flujo ininterrumpido
en distintas regiones de la vida cotidiana en la interacción social. En
estos procesos se producen re-localizaciones y re-territorializaciones
continuas del cuerpo que se expresan en forma continua/discontinua en
la representación de los regímenes corporales, la sensualidad, el porte y la
apariencia corporal.
Estos desplazamientos dislocan los vínculos que el sujeto tiene
con su cuerpo y fijan modos y modalidades de representación del cuerpo en
relaciones híbridas y quizá no afines pero que, como dice Giddens (1997),
tienen que integrarse en la crónica personal para ser capaz de guardar
una apariencia normal como para sentirse convencido de la continuidad
personal en el tiempo y el espacio.
Un buen número de las formas de relación con el cuerpo produce
tensiones, las que se hacen expresas en las representaciones del cuerpo.
Son “afirmaciones” y/o “negaciones” del pasado y/o del presente, que
se manifiestan en los discursos y tienen que ver con las expectativas de
colonizar el futuro. Puede verse lo aquí expresado, por ejemplo, en la
importancia del vestido en la apariencia corporal:
El vestido, en suma es un ejemplo del interfaz animado/inanimado
o humano/inhumano, de la precipitación en lo otro, el pasaje de ese
`otro querer ser´ del cuerpo humano por el cual a su vez pasa la radical
aparición del otro tan necesaria a la constitución de subjetividades...
(DUCHESNE, 1994: 31).
Lo señalado permite pensar que las estrategias utilizadas ponen al
descubierto un cuerpo que desafía al sujeto, y lo remite a sus posiciones
en los contextos de interacción. Dichas estrategias se expresan en rutinas
169
Graciela Magallanes
de la vida cotidiana por las que el cuerpo pasa y que el estudiante produce
y reproduce muchas veces a partir de una conciencia práctica68.
En este sentido, las características propias de la profesión o la condición
de estudiante, son algunas de las ocasiones sociales donde el sujeto pauta
el porte, la apariencia corporal, los regímenes y la sensualidad del cuerpo.
Se trata de modos de ser y de actuar, entre otros, que se reconocen como
los más apropiados para una determinada extensión de tiempo-espacio
de la vida diaria69. Los escenarios de interacción otorgan sentidos y
cuidados al cuerpo, configurando una forma de atención constante que
constituye la base de los cuidados corporales a los fines de beneficiarse
(manteniendo, mejorando o transformando la apariencia, la sensualidad
y el porte corporal).
Es interesante señalar que, las restricciones que se imponen al sujeto
son campos que habilitan determinados modos de acción y de ser del
cuerpo que operan como principios de diferenciación susceptibles de ser
modificados, entre otros, por las condiciones materiales y culturales de
existencia. Bourdieu afirma que estas prácticas:
[…] arraigan una manera de mantener y llevar el cuerpo (una hexis),
una manera de ser duradera del cuerpo duraderamente modificado que
se engendra y se perpetua, sin dejar de transformarse, continuamente
(dentro de ciertos límites), en una relación doble, estructurada y
estructuradora, con el entorno (1999: 190).
Estas razones permiten comprender las rutinas en las que se
encuentra implicado el cuerpo, y estructuran sus conductas en el espaciotiempo70. La imposibilidad de mantener en la extensión del espacio-tiempo
las garantías hacen que las relaciones puras se encuentren acotadas a partir
de toma de posiciones, tanto en la vida personal como en la vida laboral.
Lo que no impide la posibilidad de determinada conciencia discursiva, respecto a las condiciones
sociales y las condiciones de su propia acción.
69
La referencia es a los rasgos que hacen a la identidad del cuerpo que asume formas diferenciadas
en el ciclo vital del sujeto a partir de su propia biografía y la relación con la pluralidad de entornos
en donde interactúa con otros.
70
Sin embargo, como decíamos el sujeto no tiene una entrega plena en cada uno de esos contextos
de co-presencia en función de la multiplicidad de compromisos que los sujetos mantienen.
68
170
Las representaciones acerca del cuerpo
Los procesos de decisión involucran siempre la manipulación del placer y
el dolor corporal frente a la falta de soportes para mantener la confianza.
La confianza, como entrega plena en la relación pura que el cuerpo
mantiene en contextos de co-presencia, está íntimamente ligada a la
intimidad71 en la que el sujeto se fía y le da la posibilidad de realización
frente a los otros.
La fiabilidad no siempre es fácil de mantener en relaciones sociales
más amplias: las diferencias en las relaciones con el mundo social implican
formas distintivas de vinculación con el propio cuerpo en el espacio
social. Estas relaciones son muchas veces poco tolerantes respecto a las
diferencias identitarias del cuerpo.
Las fuertes amenazas que imponen las nuevas definiciones del
cuerpo y de sus usos, suponen el deterioro de los procesos de identificación
y reconocimiento del propio cuerpo. Lo relevante de estos procesos es
que se encuentran construidos a partir de determinadas categorías sociales
de percepción y de valoración de la identidad del cuerpo – las que se
reconocen como legítimas y distintivas de un grupo en el que el sujeto
es portador-. Los sentimientos de seguridad que otorgan estos aspectos
se ligan a una conciencia fundamentalmente práctica, como uno de los
elementos constitutivos de la identidad del cuerpo y que siempre encubren
situaciones de distribución desigual de oportunidades entre los sujetos.
La preocupación por las fisuras en la seguridad del propio cuerpo
(en lo que hace a las posibilidades de exclusión) afianza la adhesión a
determinadas características y propiedades del cuerpo. Se trata de la
evaluación de las oportunidades de ajuste ante el “otro” -sea uno u el
otro el “extranjero”-. Estas construcciones llevan a interrogarse sobre
si es posible la adscripción a lo extranjero sin perder la identidad del
propio cuerpo. Las relaciones, muchas veces conflictivas, son posibles de
integrar en la representación cuando se hacen expresas las sensaciones
de comodidad que referencia a la propia biografía para la realización del
sujeto en un proceso de conquista del espacio-tiempo en situaciones de
co-presencia.
“La intimidad implica una absoluta democratización del dominio interpersonal, en una forma
homologable con la democracia en la esfera pública (GIDDENS, 1998: 13).
71
171
Graciela Magallanes
En síntesis, abogar por el sentido de la identidad de las
representaciones del cuerpo ante procesos de auto y heterorreconocimiento
interesa como acción reflexiva por parte del sujeto, en tanto permite ver
cómo el sujeto construye su cuerpo.
Las representaciones del cuerpo
en la institución universitaria
Finalmente, y como corolario de los apartados anteriores, interesa
hacer referencia a los modos de representación del cuerpo en su relación
con la institución universitaria: la construcción y/o reconstrucción de
la representación que la Casa de Altos Estudios promueve por medio
de diversas maneras, lo que atraviesa las formas como configuran los
estudiantes su apariencia corporal, sensualidad corporal, porte corporal y
regímenes corporales.
La identidad de estas representaciones puede o no ser parte de
las formas de control de la institución, y tiene resultados probablemente
impredecibles. La posibilidad de que la apariencia corporal, el porte, la
sensualidad y el régimen corporal puedan configurar lugares de restricciones
o posibilidades para los estudiantes, admiten pensar que las mediaciones
de las instituciones educativas también colaboran en la constitución del
sujeto. Fundamentalmente la referencia es a la condición de estudiante
universitario en general y, en particular, en lo que respecta a lo identitario
de la formación específica según la carrera de grado optada.
Las formas por las que los estudiantes se realizan desde estos
lugares pueden ser de algún modo una respuesta que, fomentada por la
institución, tienda a significar una retirada hacia razones propias del
“campo académico”. Reestructuraciones en los modos de ser, de atención,
de actuar, de relacionarse con el cuerpo producto de la constitución de
circunstancias y mediaciones en la universidad. Es decir que, el cultivo del
cuerpo y de las rutinas se constituye a partir de cualidades distintivas de los
estilos de vida propios del nivel de educación superior por el que transitan.
Los argumentos aquí planteados, permiten reflexionar cuáles son
esos rasgos y hasta dónde puede pensarse en la posibilidad de constituir
172
Las representaciones acerca del cuerpo
modos y modalidades específicas de representación del cuerpo. La línea de
pensamiento, que en parte se sostiene en lo desarrollo en los apartados
anteriores, permite pensar que las formas de relacionarse del cuerpo
consigo mismo, con los demás y con el mundo material en la institución
universitaria, no se constituirían en un lugar de aceptación que referencia
sólo a lo que ha sido la trayectoria anterior vivida por el estudiante.
La representación que se tiene aquí del cuerpo, remite a un lugar que
es una parte fundamental del proceso por el que la identidad se constituye
por medio del ordenamiento reflejo de la crónica del estudiante. Esto hace
que la planificación de su cuerpo es en parte la construcción que se ha
elaborado también en este entorno. Los compromisos que los ligan van a
expresarse en la racionalización de la acción respecto a estos dominios, los
riesgos y consecuencias.
Lo aquí planteado importa particularmente cuando se piensa
en la configuración de la representación al interior de un campo de
conocimientos y de prácticas específicas vinculadas a la titulación
académica. El proceso supone un recorrido que transita tanto por la
historia específica de constitución de ese campo – la forma que asume la
carrera en la institución – como así también la propia biografía del sujeto.
Esto se comprende por la fuerte relación que une las prácticas
culturales heredadas de la familia y el capital escolar, conjuntamente con
el origen social del sujeto. A medida que aumenta su formación, se delinea
la tendencia de la representación que se tiene del cuerpo, en un proceso
de legitimación que se inscribe en la pertenencia a un campo que genera
derechos y deberes. Esto es la razón por la que se hace necesario fijar la
atención en el efecto -quizás encubierto- de la institución educativa, de
las composiciones de las titulaciones y de la asignación de determinadas
valoraciones respecto al cuerpo.
Los procesos son ejercidos a lo largo de la formación profesional,
mediante la manipulación de la imagen de sí mismo que opera en la
institución al orientar a los alumnos hacia definiciones que prestigian o
devalúan su propio cuerpo. La asignación a un campo disciplinar, en un
determinado tipo de institución, se ejerce prioritariamente por la mediación
de la imagen social de la posición considerada respecto al cuerpo, que se
encuentra para el sujeto objetivamente inscripta.
173
Graciela Magallanes
De este modo, la institución contribuye en el efecto de asignación
de determinado lugar otorgado al cuerpo, imponiendo unos modos de
hacer, ver, juzgar y de decir, que ella no inculca y que ni siquiera exige
expresamente, pero que forman parte de los atributos estatutariamente
ligados a las posiciones que asigna, a las titulaciones que otorga y a las
posiciones sociales a que estas titulaciones dan acceso. Como mejor lo dice
Bourdieu (1988: 26):
Mediante la titulación académica lo que se designa son ciertas condiciones
de existencia, aquellas que constituyen la condición de la adquisición
del título y también de la disposición estética, siendo el título el más
rigurosamente exigido de entre todos los derechos de entrada que
impone, siempre de manera tácita, el universo de la cultura legítima...
En este sentido problematizar el entendimiento sobre estos saberes,
a los fines de identificar la representación del cuerpo que instituyen, implica
poner en tensión el tipo de continuidad o discontinuidad con el pasado y
con ello el horizonte de lo que son nuevas opciones. Esto abre un conjunto
de interrogantes: ¿el nuevo saber se diferencia en sí mismo?, ¿pierde
referencia con los niveles educativos anteriores?, ¿se diferencia del pasado?,
¿cuáles son las marcas identitarias que impiden homologar estos saberes en
campos académicos que difieren en su naturaleza?, ¿cuál es la lógica que los
constituye?, ¿qué alcances y restricciones tienen sus dominios?.
Interesa lo antes expuesto en tanto la posibilidad de nuevos
dominios y expansión del saber tiene que ver con la asignación de nuevas
posiciones que se derivan de las nuevas situaciones, lo cual es probable
redefina el saber acerca del cuerpo en la institución universitaria. Formas
institucionales que hacen posible preguntarse si ¿altera radicalmente el
tipo de apropiación / dominio de un saber?, ¿alteran las dimensiones
más íntimas de la experiencia corporal del estudiante?. La extensión e
intencionalidad que define el dominio preocupan, cuando de lo que se trata
es de identificar los aportes de la educación universitaria en la reflexividad
sobre sí mismo.
Los procesos de reapropiación del cuerpo se encuentran
influenciados por cuestiones institucionales que se desarrollan conforme
174
Las representaciones acerca del cuerpo
a la referencia interna y los sistemas abstractos. Indagar la reflexividad
que guía esa construcción, exige analizar el saber que se tiene acerca
del desarrollo corporal y los estilos de vida. Esto se manifiesta en el
surgimiento de regímenes y apariencia corporal, formas de porte corporal
y sensualidad del cuerpo; en tanto son marcos de posibilidades y opciones
que delinean la representación del cuerpo, en que la universidad puede
jugar un papel central en la constitución de la experiencia de vida.
En esta dirección, si hubiera un lugar incisivo para las
representaciones del cuerpo en la institución universitaria es porque los
lugares, las condiciones y consecuencias de los modos, modalidades y
medios como es posible que se manifiesten esas formas se relacionan con
el tipo de posición que ocupa el conocimiento acerca del cuerpo en la
escolarización universitaria; esto es, un capital que obtura la posibilidad de
cualquier tipo de homologación.
La naturaleza de ese saber, las condiciones y consecuencias es
posible que exprese una multiplicidad de extrañamientos respecto a
la reflexividad en el contexto universitario y el constreñimiento de las
apropiaciones por parte de los estudiantes.
Bibliografía
BOURDIEU, Pierre (1986). “Notas provisionales sobre la percepción
social del cuerpo”. En Mills W. y et. al., Materiales de sociología crítica. Genealogía
del Poder No 13. Madrid, La Piqueta.
--------------- (1988). La distinción. Criterios y bases sociales del gusto. Madrid,
Taurus Ediciones.
--------------- (1999). Sociología y cultura. México, Grijalbo.
--------------- (1991). El sentido práctico. Madrid, Taurus Ediciones.
--------------- (1997). Razones prácticas. Sobre la teoría de la acción. Barcelona,
Anagrama.
175
Graciela Magallanes
--------------- (1999). Meditaciones Pascalianas. Barcelona, Anagrama.
--------------- (2000). La dominación masculina. Barcelona, Anagrama.
DUCHESNE, Juan (1994). “Para un cuerpo inhumano”. Revista Posdata.
Humanismo Cultura. Nº 9: 25-33.
ELÍAS, Norbert y DUNNING, Eric (1992). Deporte y ocio en el proceso de
la civilización. Madrid, Fondo de la Cultura Económica.
FEHER, Michel, NADDAFF, Ramona y TAZI, Nadia (1989). Fragmentos
para una historia de cuerpo humano. Parte I, II, III. Madrid, Taurus Editores.
FURLÁN, Alfredo (1995). “¿Un cuerpo políglota?”. Conferencia.
Congreso Argentino de Educación Física y ciencias. Mimeo. La Plata
--------------- (1996). “El lugar del cuerpo en una educación de calidad”.
Conferencia del III Congreso Nacional de Instituciones de Formación en
Educación Física. Mimeo. Córdoba.
--------------- (2000). “La cuestión de la disciplina. Los recovecos de la
experiencia escolar”. En: Gvirtz, Silvina (Comp.), Textos para pensar el día
a día escolar. Sobre cuerpos, vestuarios, espacios, lenguajes, ritos y modos de convivencia
en nuestra escuela. Buenos Aires, Santillana.
GIDDENS, Anthony (1993). La consecuencia de la modernidad. Madrid,
Alianza.
--------------- (1995). La constitución de la sociedad. Bases para la teoría de la
estructuración. Buenos Aires, Amorrortu.
--------------- (1997). Modernidad e identidad del yo. El yo y la sociedad en la
época contemporánea. Barcelona, Península.
--------------- (1998). La transformación de la identidad. Sexualidad, amor, erotismo
en las sociedades modernas. Colección Teorema, Serie Mayor. Madrid, Segunda
Edición.
176
Las representaciones acerca del cuerpo
JODELET, Dennise. (1988). “La representación social: fenómeno,
concepto y teoría”. En: Moscovici, Serge, Psicología social II. Pensamiento y
vida social. Psicología social y problemas sociales. Buenos Aires, Paidós.
LARROSA, Jorge (1995). “Tecnología del yo y educación. Notas sobre
la construcción y la mediación pedagógica de la experiencia de sí”. En:
Larrosa, J. (Comp.) Escuela, poder y subjetivación. Madrid, La Piqueta.
Le BRETON, David (1990). Antropología del cuerpo y modernidad. Buenos
Aires, Nueva Visión.
--------------- (2002). La sociología del cuerpo. Buenos Aires, Ediciones Nueva
Visión.
MARÍN, Louis (1996). “Poderes y límites de la representación. Marín, el
discurso y la imagen”. En: Escribir las prácticas Foucault , de Certeau, Marín.
Roger Chartier. Buenos Aires, Manantial.
MCLAREN, Peter (1994). Pedagogía crítica, resistencia cultural y, la producción
del deseo. Buenos Aires, Aique.
--------------- (1998). Pedagogía, Identidad y Poder. Los educadores frente al
multiculturalismo. Rosario, Homo Sapiens.
--------------- (1995). La escuela como un performance ritual. Hacia una economía
política de los símbolos y gestos educativos. México, Siglo XXI.
MILSTEIN, Diana y MENDES, Hector (1999). La escuela en el cuerpo.
Estudios sobre el orden escolar y la construcción social de los alumnos en
escuelas primarias. Madrid, Miñó y Dávila Editores.
MOSCOVICI, Serge (1988). Psicología social II. Pensamiento y vida social.
Psicología social y problemas sociales. Buenos Aires, Ediciones Paidós.
SCRIBANO, Adrián (1997). “Sociedades complejas y teoría social”.
Mimeo. Córdoba.
--------------- (1999a). “La diferencia: su importancia en los procesos de
construcción de la Identidad personal”. Ponencia presentada en el Quinto
177
Graciela Magallanes
Encuentro de la Red de Filosofía y Teoría Social. Universidad Nacional de
Catamarca. Mimeo.
--------------- (1999b). Epistemología y Teoría: Un estudio sobre Bourdieu,
Giddens y Habermas. Dirección General del Centro Editor. Catamarca,
Secretaría de Ciencia y Tecnología. Universidad Nacional de Catamarca.
-------------------- (2000). Introducción al proceso de investigación en ciencias sociales.
Córdoba, Editorial Copiar.
--------------- (2008a). “Re-tomando las sensaciones: Algunas notas sobre
los caminos expresivos como estrategia para la investigación cualitativa”.
En: Ayala Rubio Silvia (Coord.), Experiencias y reflexiones desde la investigación
social. México, CUCEA Universidad de Guadalajara.
--------------- (2008b). “Cuerpo, conflicto y emociones: en Argentina
después del 2001”. En Revista Espacio Abierto. Dossier Cuerpo y Emociones
en América Latina. No17: 205-230.
--------------- (2009a). “Reciprocidad, Emociones y Prácticas Intersticiales”.
En: Paulo Herique Martins y Rógerio de Souza Medeiros (Comp.), América
Latina e Brasil em Perspectiva. Recife, Editora Universitária da UFPE.
--------------- (2009b). “¿Por qué una mirada sociológica de los cuerpos y las
emociones?” A Modo de Epílogo. En: Scribano, A, y Figari, C. (Comp.),
Cuerpo(s), Subjetividad(es) y Conflicto(s) Hacia una sociología de los cuerpos y las
emociones desde Latinoamérica. CLACSO-CICCUS.
UZÍN, María Magdalena. (1999). “La construcción del género en las
revistas femeninas”. En: Dalmasso, M. T. y Boria, A, (Comp.), El discurso
social argentino. Colección el Hilo del Discurso. Córdoba, Topografía
Proyecto Editorial.
178
Corpos em Concerto: diferenças, desigualdades e desconformidades
O SECOND LIFE E A VIVÊNCIA
DO “SEGUNDO CORPO”
Micheline Dayse Gomes Batista
O corpo é uma construção social, cultural e histórica. Como algo
que não se encerra em seu invólucro, ele aceita extensões que afetam a
performance física e mental do ser humano. Desde sempre, diversos tipos
de próteses (óculos, bengala, marca-passos etc.) vêm sendo usados para
melhorar ou ampliar funções orgânicas. Os meios de comunicação
(telégrafo, imprensa, rádio, TV, cinema) também são considerados
extensões que projetam nossa consciência e nossos sentidos, conforme
definiu Marshall McLuhan (1990) nos anos 1960. Com a evolução desses
meios, o computador conectado à internet radicaliza o conceito de aldeia
global de McLuhan ao aproximar e interligar pessoas, empresas e países
em tempo real, especialmente a partir da última década do século XX.
Teclado, mouse e monitor são, portanto, as próteses dos sujeitos que hoje
vivem plugados nas redes eletrônicas. Quando falamos especificamente
dos mundos virtuais, que são as simulações de diversos aspectos da vida
em 3D, essas próteses ganham uma nova função: conectar o internauta ao
seu duplo – o seu avatar72. Nesse “segundo corpo”, bytes e pixels substituem
a configuração tradicional de carne e osso.
A virtualização do corpo talvez seja a face mais evidente da
imbricação do humano com a tecnologia. Nosso objetivo aqui é provocar
uma reflexão acerca da experiência de criar e editar um avatar e de poder viver
através dele, tendo o jogo Second Life (SL)73 como objeto empírico. Assim
A palavra avatar tem origem hindu (sânscrito) e significa a “encarnação de uma divindade sob a
forma de um homem ou de um animal”. O dicionário também define avatar como “transformação,
metamorfose” Ver Dicionário Michaelis. Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/moderno/
portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=avatar>. Acesso em: 05 fev. 2010.
73
Jogo criado em 1999 por Philip Rosedale, fundador da empresa de tecnologia Linden Lab, baseada
na Califórnia, Estados Unidos. O sistema, contudo, só foi desenvolvido e lançado em seu formato
comercial em 2003. Desde então, o número de residentes, como são chamados os usuários desse
72
179
Micheline Dayse Gomes Batista
como o corpo analógico, digamos assim, o corpo digital também precisa ser
esculpido e vestido. Em ambos os espaços, observamos o impulso cultural
de tornar o corpo um objeto de consumo, trabalhá-lo de modo a atingir
uma forma perfeita, ideal. Entretanto, a atividade lúdica proporcionada
pelo Second Life vai além da mera reprodução de padrões dominantes no
mundo off-line, ao estimular a imaginação e a liberdade criativa. A vivência
do “segundo corpo” nos revela que tipos de representações imagéticas os
internautas estão criando para si no ciberespaço.
Antes de tudo, vamos falar um pouco sobre o que são os mundos
virtuais e quais as particularidades do SL. De acordo com Castronova
(2001), a expressão “mundo virtual” foi usada pioneiramente pelos
criadores do jogo Ultima Online74; esse jogo reproduz um universo com
narrativa medieval onde o jogador pode vivenciar aventuras, colecionar
objetos, comprar casas etc., além de se relacionar com outros jogadores
ali também conectados. Anos depois, a expressão se tornaria universal
para designar tanto os jogos de RPG on-line75 (Ragnarök, Everquest, World
of Warcraft – WoW) quanto os simuladores (Habbo Hotel, The Sims, SimCity,
IMVU, Active Worlds, Moove Online, Second Life). Como jogos eletrônicos,
eles fazem parte de uma indústria bilionária que faturou US$ 22 bilhões em
200876, sendo R$ 87,5 milhões no Brasil77. Em comum, há a possibilidade
de o jogador escolher um papel para representar em um dado universo e
interagir com outros usuários por meio de mensagens de texto, voz e/ou
linguagem corporal. O veículo dessa interação é justamente o avatar.
mundo virtual, tem crescido de forma exponencial, chegando a 13,8 milhões em maio de 2008.
74
Jogo lançado em 1997 pela Origin Systems.
75
RPG é a sigla para Role Playing Game, jogo de representação de papéis, geralmente com
narrativa mitológica. Antes jogados apenas em tabuleiros, ganharam interface gráfica e passaram a
ser jogados também em consoles e no PC. Com o advento da internet, na década de 1990, surgiu a
versão on-line desses jogos, possibilitando a interação em tempo real entre os jogadores.
76
Ver ENTERTAINMENT SOFTWARE ASSOCIATION. “Computer and video game industry
tops $22 billion in 2008”. Disponível em: <http://www.theesa.com/newsroom/release_detail.
asp?releaseID=44>. Acesso em: 18 abr. 2009.
77
Ver ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS DESENVOLVEDORAS DE JOGOS
ELETRÔNICOS. “A indústria brasileira de jogos eletrônicos – Um mapeamento do crescimento do setor nos
últimos 4 anos”. Disponível em: <http://www.abragames.org/docs/Abragames-Pesquisa2008.
pdf>. Acesso em: 18 mai. 2009.
180
O Second Life e a vivência do “segundo corpo”
A partir de sua experiência com o Norrath, a terra imaginária do
jogo Everquest, Castronova (2001) classifica um mundo virtual como um
programa de computador com três características definitivas. Em primeiro lugar,
interatividade – existe em um computador, mas pode ser acessado remota
e simultaneamente por um grande número de usuários, com comandos
em primeira pessoa que afetam o desempenho de outros jogadores. Em
segundo lugar, o autor diz que todo mundo virtual é físico – os jogadores
acessam o programa através de uma interface que simula um ambiente
físico em primeira pessoa na tela do computador, ambiente este governado
por leis naturais da Terra. Ou seja, existe alguma materialidade neste
processo. A terceira e última característica, e bastante importante, é a
persistência – o programa continua rodando mesmo quando ninguém está
usando e consegue lembrar a localização de pessoas e coisas, bem como
a posse de objetos, quando os jogadores voltam a se conectar. Significa
dizer que o programa tem uma memória que permite ao usuário continuar
a jogar exatamente do mesmo ponto em que parou.
Como mundo virtual, o SL abriga uma particularidade: trata-se de
um jogo diferente, sem objetivos pré-definidos nem missões, o que não é
comum na maioria dos jogos eletrônicos, em que o jogador precisa matar
inimigos ou conquistar territórios para “subir de nível”. Seu “desafio”
consiste em criar uma “segunda vida” e vivê-la na internet, brincando de
ser outra pessoa, ter outro corpo, outra identidade. Isso tem levado alguns
autores, como Pimenta e Varges (2007), a não considerá-lo um jogo, e sim
uma rede social. Normalmente, tanto os RPGs quanto os simuladores
envolvem o cumprimento de determinados desafios, seja derrotar inimigos,
conquistar territórios ou mesmo cuidar para que o personagem seja bem
sucedido (alimentá-lo, colocá-lo para trabalhar, constituir família etc.). No
SL, como em outros mundos virtuais, interagimos com outros jogadores,
mas também podemos trabalhar, estudar, fazer compras, namorar, fazer
sexo virtual, criar e vender produtos. Seria, então, um jogo com uma rede
social dentro, principalmente se entendemos jogo em seu sentido mais
amplo – aquele que remete à expressão ludus (do latim), utilizada para
designar tanto os jogos infantis quanto a recreação, as competições, as
representações litúrgicas e teatrais e os jogos de azar (Cf. HUIZINGA,
2007: 41). Quando brincamos de Playmobil ou de boneca, por exemplo,
181
Micheline Dayse Gomes Batista
também estamos jogando. Mas nesses casos não há objetivos pré-definidos
ou metas a alcançar. Não há competição ou disputa, entretanto, podemos
dizer que há muita coisa em jogo. É esse conceito mais amplo de jogo que
adotamos aqui.
Outro diferencial do SL é a possibilidade de customização infinita
dos avatares. “Customização infinita” não é apenas força de expressão,
uma vez que os controles de edição são deslizantes, permitindo inúmeras
combinações na aparência (modelagem, tons de pele), roupas, acessórios,
gestos corporais (modo de andar, dançar etc.). Em jogos similares (e
mesmo em outros mundos virtuais) é permitido apenas mudar o vestuário
e a cor do cabelo, mas não editar. Inicialmente, podemos escolher entre seis
avatares masculinos e seis femininos, que depois podem ser customizados
de acordo com o papel que desejamos representar no mundo virtual.
Também é bastante interessante o uso de técnicas reais de transformação
corporal, como próteses, piercings e tatuagens. Diferentemente do corpo
“real”, feito de carne, as intervenções estéticas no corpo “virtual” são
absolutamente indolores e, o mais importante, absolutamente reversíveis.
No espaço lúdico do jogo, o usuário do SL pode fazer sucessivos
upgrades e ter uma aparência diferente a cada dia, ou a cada minuto,
incorporando diferentes “máscaras”. “Quando o internauta incorpora um
avatar, produz-se uma duplicação na sua identidade, uma hesitação entre
presença e ausência, estar e não estar, ser e não ser, certeza e fingimento,
aqui e lá”, diz Santaella (2003: 203). As imagens gráficas cada vez mais
reais e a sonoplastia ajudam o jogador a imergir no personagem, como
observam Ferreira et al. (2009): “As imagens gráficas muito bem detalhadas,
sons potentes, cenários e personagens cada vez mais críveis ajudam a
manter o clima de envolvimento”.
O tema ganha importância na medida em que a internet está cada
vez mais presente na vida das pessoas. Já é 1,73 bilhão de internautas no
mundo, um quarto da população mundial – 67,5 milhões no Brasil78. E esse
uso só tende a crescer, especialmente com a disseminação da tecnologia
de banda larga, que permite o acesso à rede mundial de computadores em
alta velocidade, inclusive pelo celular, estimulando a hiperconectividade.
Ver INTERNET WORLD STATS. Disponível em: http://www.internetworldstats.com/stats15.
htm. Acesso em: 30 jan. 2010.
78
182
O Second Life e a vivência do “segundo corpo”
Projeções indicam que, em 2016, pelo menos 50% dos internautas na
faixa dos 13 aos 30 anos vão usar um avatar 3D interativo, seja para
entretenimento, socialização, comunicação, criatividade, educação,
comércio etc.79 Estamos, portanto, antecipando algumas questões que
devem ganhar maior vulto mais à frente. Vamos, então, procurar entender
qual a importância do corpo na atualidade, que configurações ele pode
assumir no mundo virtual e como sua vivência nesse ambiente já se
constitui um aspecto cultural importante para a sociedade contemporânea.
A onipresença do corpo
Baudrillard afirma que, enquanto ao longo dos séculos o homem
possuía um corpo que precisava ser salvo (ou seja, queriam nos convencer
de que não tínhamos corpo, apenas alma), hoje temos “muitos corpos”.
O corpo é um fato cultural e a forma com que nos relacionamos com
ele reflete os múltiplos papéis sociais que desempenhamos. Em nossos
envolvimentos tecnológicos virtuais, o corpo deixa de ser simplesmente
a carne degradada da concepção religiosa, ou a força de trabalho a ser
racionalmente empregada, para se tornar objeto de culto narcisista. “As
estruturas atuais de produção/consumo induzem o sujeito a uma dupla
prática, ligada a uma representação de seu próprio corpo: a representação
do corpo como capital e como fetiche (ou objeto de consumo)”
(BAUDRILLARD, 2005: 277). Para Baudrillard, a “onipresença” do
corpo teria sido evidenciada com a evolução dos meios de comunicação
de massa, sobretudo a partir dos anos 1960, através da propaganda e da
moda – os modelos sempre são jovens, elegantes e perfeitos. “A obsessão
pela juventude, elegância, virilidade/feminilidade, tratamentos e regimes, e
as práticas sacrificantes, revelam que o corpo virou um objeto de salvação”
(BAUDRILLARD, 2005: 277). É o corpo como “o mais fino objeto de
consumo”, ícone de uma nova ética que valoriza cada vez mais o tempo
presente, com um olho no futuro.
Ver SMART, J. M; CASCIO, J.; PAFFENDORF, J. (2007). Metaverse Roadmap Overview. Pathways to
the 3D Web. Disponível em: <http://www.metaverseroadmap.org/MetaverseRoadmapOverview.
pdf>. Acesso em: 16 set. 2008.
79
183
Micheline Dayse Gomes Batista
No final dos anos 1980 e início dos anos 90, o culto ao corpo
fica ainda mais evidente, chegando ao século XXI como “uma verdadeira
obsessão, transformando-se em um estilo de vida” (GOLDENBERG,
2007: 12). A TV e o cinema escancaram que padrão corporal deve ser
seguido não apenas por mulheres, como destaca Goldenberg, mas
também pelos homens – esse padrão seria inspirado em atores, cantores e
apresentadores de TV bem sucedidos, “cujo principal capital é o próprio
corpo” – magro, sarado, esculpido em academias e por cirurgias estéticas.
Foi a mídia que primeiro nos trouxe essa ideia de um corpo idealizado.
De algum modo, é esse modelo corporal exitoso que vemos
refletido no SL e é nesse sentido que podemos dizer que o corpo virtual é
extremamente analógico. No jogo também existe uma moda, e um corpo
que “entra” ou “sai” de moda, mas que permanece sempre perfeito, sem
rugas, estrias, gordura ou flacidez. A descartabilidade característica das
sociedades contemporâneas torna-se ainda mais evidente no contexto
cibernético. É possível, por exemplo, “trocar” de corpo, bastando para isso
comprar um shape novo – e lá existem muitas marcas famosas de shapes,
como Moon, Redgrave, Lombra e Angel’s à disposição de internautas
dispostos a pagar por elas.
A imagem do avatar nunca fica pronta, acabada. É sempre construída
e reconstruída, cotidianamente editada como se o ser humano vivesse em
constante atualização – seja em prol da saúde, da juventude, da beleza ou do
sexo. Pode-se dizer que o corpo virtual não apenas representa – ele espelha
o culto narcisista em um ambiente tridimensional. Esse “segundo corpo”
é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto. E carrega consigo a noção própria da
sociedade de hiperconsumo de que tudo é descartável, de que tudo pode ser
integrado e desintegrado80. Ele é virtual, mas nos remete a um tipo de vivência
que é, em si mesma, análoga àquela que temos no nosso dia-a-dia; mais
ainda quando lembramos que a técnica faz parte da história da humanidade
desde os primórdios, através do fogo, de armas e instrumentos de pedra.
80
Sobre sociedade de hiperconsumo ver LIPOVETSKY, 2007.
184
O Second Life e a vivência do “segundo corpo”
Corpo virtual, vivência analógica
Revisitando Hermínio Martins, Paula Sibilia (2002) resgata dois
personagens mitológicos – Prometeu e Fausto – para definir a relação do
homem com a tecnologia ao longo dos séculos. O prometeísmo haveria
guiado a criação de ferramentas, da máquina a vapor, da eletricidade e dos
motores movidos a combustíveis fósseis, a partir do século XVII, abrindo
as vias para a industrialização e a modernização global do Ocidente.
Enquanto os prometeístas enfatizariam a ciência como “conhecimento
puro”, carregando uma visão meramente instrumental – e limitada – da
técnica, na perspectiva fáustica o conhecimento científico é essencialmente
tecnológico. Ou seja, existiria uma relação de dependência conceitual e
ontológica entre ciência e técnica.
Segundo Sibilia, o prometeísmo é uma linha em decadência; e essa
perspectiva fáustica, associada à tecnociência contemporânea, está em
ascensão. A sociedade industrial (modernidade) vem sendo substituída
pela sociedade pós-industrial ou era da informação (pós-modernidade),
focada nas fontes eletrônica e digital. O momento atual, para essa autora,
evidenciaria a obsolescência do corpo humano e justificaria a hibridização
do humano com a máquina, dando origem ao ser pós-orgânico. Esse
corpo novo seria o protagonista das trocas comunicacionais, “capaz de
extrapolar seus antigos confinamentos espaciais”.
É nesse contexto que surge uma possibilidade inusitada: o corpo humano,
em sua antiga configuração biológica, estaria se tornando ‘obsoleto’.
Intimidados pelas pressões de um meio ambiente amalgamado com o
artifício, os corpos contemporâneos não conseguem fugir das tiranias (e
das delícias) do upgrade. Um novo imperativo é internalizado, num jogo
espiralado que mistura prazeres, saberes e poderes: o desejo de atingir a
compatibilidade total com o tecnocosmos digitalizado (SIBILIA, 2002:
13).
Já Lucia Santaella (2003) põe em discussão sete tipos de corpos
biocibernéticos e suas subdivisões, chegando a um total de 12 formas de
hibridização do ser humano com as máquinas: desde “o corpo remodelado”
pelas manipulações estéticas em sua superfície (o corpo como mercadoria
185
Micheline Dayse Gomes Batista
consumindo mercadorias), passando pelo “corpo protético” (o ciborgue
com suas construções artificiais substituindo ou amplificando funções
orgânicas) e chegando ao que a autora chama de “corpo plugado”, entre
outros. Esse último tipo é o que mais nos interessa por se aproximar da
experiência de corporificação que o SL propicia.
O “corpo plugado” seria o corpo dos usuários que se movem
no ciberespaço enquanto seus corpos ficam conectados ao computador,
permitindo a entrada e a saída de fluxos de informação. Segundo Santaella,
o grau de imersão vai depender da capacidade do sistema técnico de
cativar os sentidos do usuário e bloquear os estímulos externos. Vai desde
um nível mais superficial, como a experiência de escrever um texto na tela
do computador, à realidade virtual (RV). “A mais esplêndida metáfora do
corpo imersivo pode ser encontrada em Matrix, o filme”, situa a autora
(2003: 202)81. Uma das subdivisões desse tipo de “corpo plugado” é a
imersão mediante avatares, descritos por Santaella como “figuras gráficas,
habitantes dos mundos virtuais” como o SL. “Neste nível, a imersão avança
um passo, pois, quando o internauta incorpora um avatar, produz-se uma
duplicação na sua identidade, uma hesitação entre presença e ausência,
estar e não estar, ser e não ser, certeza e fingimento, aqui e lá” (2003: 203).
A experiência de possuir um corpo virtual e com ele poder se
expressar em um jogo eletrônico on-line é descrita das mais diferentes formas
pelos jogadores. Alguns falam dessa experiência como uma “reencarnação”,
outros, como um “sonho” ou um “encantamento”. É como se fosse uma
oportunidade de ser outra pessoa e de viver novas experiências, sem que a
bagagem do jogador seja necessariamente deixada para trás. É como se eles
abrissem em suas vidas uma nova janela de espaço e de tempo, e ali pudessem
viver de maneira hiper-real, misturando realidade e fantasia. O sentimento
de corporeidade, ou seja, a simulação do corpo desejado, é a realização do
próprio jogo, é o que transforma o jogo em realidade para essas pessoas.
Alguns jogadores não encaram objetivamente o corpo virtual como
sendo um segundo corpo, e sim uma parte de si mesmos, como se fosse um
Na trilogia cinematográfica Matrix (EUA, 1999 e 2003), dirigida pelos irmãos Andy e Larry Wachowski,
o protagonista Neo vive imerso num programa de realidade virtual (a Matrix, metáfora para o ciberespaço)
criado pelas máquinas que controlam o mundo por volta do ano de 2200. Ele é resgatado dessa “ilusão”
por habitantes da última cidade de seres humanos livres que lutam para derrotar as máquinas.
81
186
O Second Life e a vivência do “segundo corpo”
prolongamento de suas existências. Mesmo que esse corpo seja diferente
dos seus corpos físicos, existe algo que é projetado simbolicamente, e esse
algo faz com que as pessoas se identifiquem de alguma maneira com as
representações que criaram e digam coisas surpreendentes, do tipo “sou eu
através desse avatar”. Outros relatos revelam um desejo de “entrar dentro
do avatar” para poder usufruir das mesmas sensações. Não somente poder
ver através do boneco na tela, mas poder “tocar”, experienciar algo tátil,
mais palpável, o que obviamente (ainda) não é possível.
Os jogadores do SL estão conscientes de que vivem em uma
realidade paralela, imaterial. Em momento algum perdem a noção do que
é “real” e do que é “virtual”. Mas a simulação é tão real que é como se o
avatar ganhasse vida própria. Uma autonomia que permite que ele “sinta”
coisas, a liberdade de ser um pássaro ou uma borboleta, por exemplo – vai
depender, apenas, da abertura e do grau de imersão no personagem. A
grande questão é saber como utilizar essas experiências na prática, como
um espelho para a vida “real”. Como ter um avatar magro e se inspirar
nele para emagrecer.
A imersão através de avatares nos propõe um olhar transcendente
sobre nós mesmos, sob o escudo mágico da fantasia. Alguns autores,
começando talvez por Le Breton (2003: 150), têm teorizado acerca
da dissolução do corpo na internet – “o corpo da realidade virtual
é incorpóreo”. Featherstone e Burrows (1991: 11-12), por sua vez,
argumentam que a tecnologia propiciou a existência de “subjetividades
descorporificadas”. Partindo de uma constatação simples, fazemos uma
releitura dessa tese: por trás de toda tela de computador existe uma pessoa
real, de carne e osso, disposta a estabelecer uma “presença virtual”. E esse
corpo – o avatar – também é real e gera sensações físicas, análogas às que
sentimos quando atuamos no mundo material. O próprio Le Breton (2003:
150) reconhece que, “ainda que seja uma simulação do mundo, o espaço
cibernético não proporciona menos o sentimento da realidade física de
seu universo. As percepções são realmente sentidas, mas se baseiam em
uma simulação”.
Visto dessa forma, o corpo real nos propicia uma vivência
essencialmente analógica. No caso do SL, os avatares podem dançar,
abraçar, beijar, fazer sexo. Como performance, carregam toda uma
187
Micheline Dayse Gomes Batista
materialidade simbólica que retorna para os jogadores na forma de
sensações, experiências. A imersão é induzida pelos sentidos da visão e da
audição. São os cenários e as trilhas sonoras que nos envolvem e cativam.
E há ainda o movimento dos “bonecos” em cena. O sexo feito na tela do
computador, por dois “bonequinhos” simulando beijos, abraços e diversas
poses, não tem outro objetivo que não o prazer do corpo real. Nas festas
e boates do SL, pessoas passam noites inteiras dançando, bebendo e
fumando – inclusive pessoas que não utilizam álcool nem tabaco em suas
vidas reais.
Que tipo de satisfação essa prática pode trazer? Que sentido os
usuários do mundo virtual atribuem a esse tipo de vivência? Podemos
seguir algumas pistas. Para dançar no SL, não é necessário gastar dinheiro
em boates “de verdade”. O ato de fumar não implica em riscos “reais”
como o câncer de pulmão – “fumei, mas não traguei”. Ingerir bebida
alcoólica no mundo virtual não dá ressaca. A simulação, portanto, justificase por ela mesma e pela janela de oportunidade que abre para a realização
de coisas que, de outro modo, não seriam possíveis. Como nadar sem se
molhar, fumar sem tragar, voar ou se teletransportar do Brasil ao Japão
em questão de segundos, a um clique do mouse. Ou para a realização de
fantasias que na realidade os jogadores não se permitem por uma questão
cultural. Se aqui eu não quero encher o corpo de tatuagens ou usar piercings,
lá eu posso fazê-lo sem precisar marcar meu corpo de forma definitiva.
Posso usar um cabelo azul, roupas curtas e decotadas sem precisar “dar
satisfações” a outros sobre minha conduta.
Reprodução de modelos
No caso do SL, o ciberespaço simula um ambiente urbano,
conectado à realidade das ruas, de forma que o cibercorpo reproduz
as formas corporais e a moda que vemos nas cidades. Se a moda é ser
“bombado”, isto é, musculoso, os avatares masculinos serão “bombados”.
Se na vida real o que impera é a imagem do corpo feminino como capital –
ou seja, mulheres magras, esculpidas em academias e por cirurgias plásticas
–, então tudo isso estará espelhado no mundo virtual. Em geral, podemos
188
O Second Life e a vivência do “segundo corpo”
dizer que avatares feios, gordos ou velhos praticamente não existem no SL.
Para se ter uma ideia, a idade que geralmente é declarada pelos residentes é
de 28 anos, embora o jogador tenha 30, 40 ou 50 anos.
A “moda” de buscar a forma perfeita, ideal, que acaba deixando as
pessoas iguais, quando de algum modo tentam se diferenciar, vem sendo
transposta para o mundo do SL. O investimento real também ocorre
no ambiente hiper-real do jogo, embora a precariedade opere nos dois
lados. O corpo do avatar é perfeitamente flexível, customizável, mas lá
também há limites, aqueles estabelecidos pela interface técnica e pelos
constrangimentos do mundo real. O ambiente é lúdico e potencialmente
democrático, porém os modelos tendem a se aglutinar em torno de
determinados ideais de beleza.
A necessidade de pertencimento que leva os jogadores do SL a
reproduzir no mundo virtual padrões estéticos da vida real ocorre porque
o avatar é também uma construção social, no sentido empregado por
Balsamo (1995: 217-218). Para essa autora, assim como o corpo natural,
o corpo cibernético “é uma produção social, cultural e histórica”. “Como
um produto é a corporificação material de identidades étnicas, raciais e de
gênero, assim como uma performance encenada de identidade pessoal, de
beleza, de saúde”. Balsamo procura imaginar que formas de corporeidade
as pessoas iriam escolher se pudessem remodelar seus corpos sem dor e
sem os custos da reestruturação física, seja através de cirurgias cosméticas
ou body building.
Os corpos do SL carregam também uma proveniência, que vem
da história e experiência de vida dos jogadores, inclusive da experiência
possibilitada pelo uso da técnica. Marcas que acabam aparecendo explícita
ou implicitamente não apenas na imagem, mas também na conduta dos
avatares. De acordo com Foucault (1979: 20), o corpo está relacionado
à proveniência – o pertencimento a um grupo, raça ou tipo social. É o
que faz, por exemplo, um jogador de origem judaica ser judeu também
no SL e ser reconhecido como tal pelo uso do traidicional kipa no alto
da cabeça. É o corpo marcado com a história de seus ancestrais, herança
que se inscreve, por exemplo, no sistema nervoso, no aparelho digestivo,
no humor – bagagem que acaba sendo levada para o corpo virtual. Mas
o corpo é também lugar de adestramento e regulação: “a ginástica, os
189
Micheline Dayse Gomes Batista
exercícios, o desenvolvimento muscular, a nudez, a exaltação do belo
corpo... tudo isto conduz ao desejo de seu próprio corpo através de um
trabalho insistente, obstinado, meticuloso” (1979: 146).
O processo de edição e customização do avatar são atividades que
demandam bastante tempo e dedicação do jogador. Para a maioria dos
jogadores, essa é a melhor parte da “brincadeira” – a liberdade de poder
mudar a forma do corpo, as características da pele, trocar de roupa, pôr e
tirar acessórios, seja para ir a algum “evento” inworld ou simplesmente para
acompanhar seu estado de espírito. Os itens mais modificados são roupas,
acessórios e cabelos, e sempre há uma interconexão entre eles – no jogo e
entre o jogo e as aspirações dos usuários em relação à sua real aparência.
Como simulacros, os corpos do SL são mais perfeitos e mais
controláveis que o corpo real, como afirma Baudrillard (2007). Ou mais
perfeitos porque mais controláveis. De alguma maneira, o prazer do jogo
é o controle. Apenas no game podemos ter uma visão de 360 graus sobre
nós mesmos, enxergar detalhes e ângulos inéditos que só outras pessoas
conseguem enxergar no mundo off-line. O círculo se fecha na medida em
que controlamos 100% do corpo e da conduta do avatar. Decidimos ter
esse ou aquele corpo, escolhemos nossos próprios caminhos.
Neste sentido, o virtual coincide com a noção de hiper-realidade. A
realidade virtual, a que seria perfeitamente homogeneizada, colocada
em números, ‘operacionalizada’, substitui a outra porque ela é perfeita,
controlável e não-contraditória. Por conseguinte, como ela é mais
‘acabada’, ela é mais real do que o que construímos como simulacro
(BAUDRILLARD, 2007: 41-42).
Segundo Baudrillard, a hiper-realidade, intimamente relacionada
à “realidade eletrônica”, não só dissolve a realidade objetiva como
também o sujeito individual e autônomo. Há uma perda de referências.
Os referenciais se perderam porque a simulação transformou o simulacro
em realidade. Os simulacros são mais perfeitos, acabados, controláveis. O
referente – neste caso, o corpo “real” – não é mais necessário para efeito
de verdade. “A simulação já não é a simulação de um território, de um
ser referencial, de uma substância. É a geração pelos modelos de um real
190
O Second Life e a vivência do “segundo corpo”
sem origem nem realidade: hiper-real” (BAUDRILLARD, 1991: 8). É tão
hiper-real que o próprio referencial de beleza deixa de ser uma condição
para estar ali. A criatividade dos jogadores mostra que o jogo também abre
espaço para formas inusitadas, como veremos a seguir.
Dando asas à imaginação
Apesar de valorizar ideais como juventude e beleza, o SL
também admite o tom de brincadeira e/ou fantasia, que transgride(m)
ou questiona(m) esses ideais. Exemplo disso são as jogadoras que usam
cabelos crespos ou desalinhados, em contraposição às famosas chapinhas
(pranchas alisadoras de cabelo) que se tornaram “febre” entre as mulheres
brasileiras na primeira década deste século. Encontramos, ainda, casos de
jogadoras que exageram na colocação de próteses, resultando em seios
e/ou nádegas superdimensionadas; ou barriga salientes, já que no jogo
é possível simular uma gravidez que dure cerca de um mês ou o tempo
que a “gestante” desejar – e há quem enxergue no corpo grávido alguma
sensualidade. No caso dos homens, alguns poucos exibem um corpo
magro, sem tantos músculos, ou um visual mais andrógino. Também é
possível fugir do convencional criando um avatar de criança82 ou mudando
de sexo – mulheres podem aparecer com um avatar masculino e vice-versa.
No campo da fantasia, registramos no SL a existência de algumas
“tribos” em ascensão com características físicas bem particulares e
inusitadas, entre elas os nekos e os anjos. O visual dos nekos, baseado nos
animes (desenhos animados) japoneses, é composto por orelhas, rabo e
patas de gato. Eles também usam animações que simulam miados e o andar
em quatro patas. Traçando um paralelo com o mundo “real”, observa-se
que alguns nekos circulam em “bandos”, assim como adolescentes andam
em grupos por se identificar ideológica e visualmente com os demais
membros de seus grupos. Já os anjos usam asas brancas ou pretas como
adereço corporal.
No SL não é permitida a participação de menores de 18 anos. A verificação de idade faz parte
dos termos de prestação do serviço divulgados na página oficial do jogo (www.secondlife.com). O
uso de avatares-crianças indica, portanto, a realização de algum tipo de fantasia, possivelmente uma
forma de reviver a infância.
82
191
Micheline Dayse Gomes Batista
Alguns avatares que encontramos vestidos de neko ou de anjo
pertencem a jogadores de RPGs que rodam dentro do próprio SL. Nesse
caso, o processo de criação e edição do corpo virtual passa a ser orientado
mais pela funcionalidade do que pela beleza, de acordo com o perfil
do personagem e dos desafios que encontrará pela frente. A escolha da
vestimenta e dos acessórios (armas, poções mágicas) também obedece a
esses critérios.
Numa busca por lugares realizada em dezembro de 2009 foram
listados cerca de 100 lands com o tema RPG. A ambientação e as narrativas
são importadas dos jogos de RPG desenvolvidos para consoles e PCs.
Também aqui, os jogadores encarnam um personagem e passam a vivenciálo, pensando e agindo como se fosse ele. São nekos, anjos, vampiros,
lobisomens, caçadores, dragões, magos. Como nos RPGs tradicionais, os
jogadores seguem uma narrativa, cumprem tarefas, participam de lutas,
acumulam pontos de experiência e vão subindo de nível. A maioria das
batalhas ocorre de acordo com crônicas que criam a ação, garantindo a
continuidade do RPG – disputa de território, invasão de QG, roubo e/ou
recuperação de algum artefato ou até mesmo uma guerra.
No Brasil, o sistema mais antigo de RPG dentro do SL – e
certamente o maior – é o Lendas Urbanas (LU), “uma cidade escondida
do mundo por forças misteriosas divididas em facções”, conforme indica
um notecard distribuído na entrada. Os grupos são Dragões, Elfos, Anjos,
Garou, Nekos, Infernais, Samurais, Humanos, Vampiros, Caçadores e
Magos. A segunda maior ilha brasileira de RPG no SL é a Cidade do Medo.
Esta, criada em meados de 2008, movimenta mais de mil visitantes diários.
Os jogadores vivem em uma realidade baseada em contos, que simulam a
vida destruída pelo caos. De acordo com a narrativa desse jogo, o rei foi
deposto e as raças iniciaram uma guerra para conquistar a cidade de Casa
Nova, também chamada de Cidade do Medo. As raças são os Celestiais
(Anjos), Infernais (Demônios), Hunters (Caçadores Humanos), Mutantes,
Dragões, Filhos de Bastet, Predadores, Garous (Lobisomens), Vampiros,
Elfos Negros e Magos.
No mundo, um dos sistemas de RPG mais populares que rodam
dentro do SL é o Bloodlines (www.slbloodlines.com), dedicado a vampiros
e lobisomens. Foi lançado em maio de 2008 pela Liquid Designs. Para
192
O Second Life e a vivência do “segundo corpo”
jogar, o usuário precisa adquirir o The Thirst (vampiros) ou o The Rage
(lycans), pacotes que vêm com uma HUD83 que nada mais é que um painel
de controle ativado na tela com botões para acionar diversos recursos no
jogo – dentes, no caso dos vampiros; garras, no caso dos lobisomens,
entre outros. Para morder alguém, por exemplo, é preciso antes “vestir” os
dentes e depois clicar na figura correspondente no painel para acioná-los.
Os personagens de RPG são incorporados por muitos usuários do
SL como uma outra “identidade”, utilizando suas vestimentas e agindo
como tal durante todo o tempo em que estão conectados. Outros mantêm
sua aparência “humana” e se “transformam” – ou seja, vestem a fantasia
– apenas na hora em que vão jogar RPG. A multiplicação de raças e de
sistemas que rodam dentro da plataforma sugere que algumas pessoas
estão cada vez mais dispostas a experimentar ser alguém diferente, a jogar
com novas sensações dentro de uma pluralidade que, no fundo, fervilha
em suas internalidades físicas. Os jogadores têm ali uma oportunidade de
experimentar novas configurações corporais – como seria se eu tivesse
um rabo de gato ou asas de anjo ou demônio? Ou: como eu iria me
comportar sendo um vampiro, podendo seduzir e morder pessoas? É o
tipo de experiência que retorna para o jogador na forma de aprendizado e
autoconhecimento.
Experimentações identitárias
Assim como acontece na vida real, o corpo virtual é parte da
afirmação identitária dos indivíduos. Uma identidade que é construída
a partir de elementos fornecidos pela história, geografia, biologia, pela
memória coletiva e por fantasias pessoais. Como bem assinalou Castells,
muitos estudos têm distorcido a imagem que se tem da prática social da
internet. Para este autor, a sociabilidade on-line é uma extensão da vida real,
mesmo que envolva a representação de papéis, embora não se saiba ainda quais as
consequências culturais dessa nova forma de sociabilidade. Vejamos:
HUD é a sigla para Heads-Up Display. São ferramentas que dão acesso a determinados recursos.
Uma HUD de neko, por exemplo, permite que o usuário emita miados, ande em quatro patas etc.
Uma HUD de vampiro permite que o usuário ofereça a mordida e assim por diante. As HUDs são
anexadas ao avatar e ficam visíveis na tela do jogador.
83
193
Micheline Dayse Gomes Batista
[...] a proliferação de estudos sobre esse assunto distorceu a percepção
pública da prática social da Internet, mostrando-a como terreno
privilegiado para as fantasias pessoais. O mais das vezes, ela não é isso.
É uma extensão da vida como ela é, em todas as suas dimensões e sob
todas as suas modalidades. Ademais, mesmo na representação de papéis
e nas salas informais de chat, vidas reais (inclusive vidas reais on-line)
parecem moldar a interação on-line (CASTELLS, 2003: 99-100).
Jonatas Dornelles comunga da mesma opinião de Castells.
“A vida no mundo virtual é uma seqüência da vida real cotidiana. Nas
minhas pesquisas sempre ficou clara uma tendência de estreitamento
das dimensões on e off-line, ou melhor, do virtual com o real”84. Existiria,
portanto, uma conjugação entre os dois mundos. E o tal “jogo de escondeesconde”, longe de ser um aspecto negativo da sociabilidade on-line, é um
dos caminhos para compreendermos que a identidade pós-moderna,
assim como o corpo, é performativamente construída.
Vivenciar um “segundo corpo” na internet, na maioria dos
casos, significa fazer experimentações, “jogar” com as fantasias pessoais.
Equivocadamente, a rede mundial de computadores vem sendo considerada
um terreno fértil para o jogo de identidades e para a disseminação de perfis
falsos. Se o sujeito pós-moderno foi descentrado, assumindo um caráter
instável e plural, a internet – com suas redes sociais, salas de bate-papo e
jogos eletrônicos – certamente é um dos lugares onde esse descentramento
se realiza. Lemos (2004) afirma que o “anonimato” protege o usuário
e estimula o uso de “máscaras”. “A sociabilidade on-line caracteriza-se
como uma espécie de ‘esconde-esconde’, onde o usuário pode assumir e
experimentar identificações sucessivas às diversas comunidades virtuais”
(2004: 175).
Lemos diz que não existem certezas no ciberespaço, seja de sexo,
classe ou raça – a identidade é ambígua. Tudo pode não passar de simples
simulação e isso muitas vezes é encarado de forma negativa. Entretanto,
para autores como Sherry Turkle, a distinção que hoje é feita entre a vida
real e a vida virtual estaria mais na cabeça dos especialistas do que dos
Entrevista concedida à revista Sociologia Ciência & Vida. Ver FIGUEIRA, Mara (2007). Second Life:
febre na rede. Sociologia Ciência & Vida. São Paulo: Editora Escala, Ano I Nº 9, pp. 16-25.
84
194
O Second Life e a vivência do “segundo corpo”
usuários, que desejam ter acesso e viver os dois aspectos simultaneamente.
Essas fronteiras são permeáveis. Falar em vida real e em vida virtual como
se uma fosse real e a outra meramente fantasiosa seria um erro grave.
Na medida em que as pessoas passam tempo em lugares virtuais, acontece
uma pressão, uma espécie de expressão do desejo humano de tornar
mais permeável as fronteiras do real e do virtual. Em outros termos,
creio que enquanto os especialistas continuam a falar do real e do virtual,
as pessoas constroem uma vida na qual as fronteiras são cada vez mais
permeáveis (TURKLE, 1999: 118).
Hall (2006), ao discorrer sobre o sujeito pós-moderno, diz que
“a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente, é uma
fantasia”, porque:
O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos,
identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. Dentro
de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções,
de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente
deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o
nascimento até a morte é porque construímos uma cômoda estória sobre
nós mesmos ou uma confortadora ‘narrativa do eu’ (HALL, 2006: 13).
Ao compreendermos que o indivíduo passa a assumir diferentes
posições de sujeito, podemos inferir que a identidade é um processo em
andamento, um devir; e que se desenvolve a partir do olhar do Outro.
A compreensão desse processo nos ajuda a pensar, por exemplo, sobre
a necessidade que os jogadores do SL têm de encarnar diferentes
personagens, de modificar seus avatares continuamente – desde alterações
radicais, como a adoção de novos shapes e skins, até a simples e cotidiana
troca de roupas e acessórios. Eles se “editam” virtualmente buscando uma
identificação com o personagem sem ter de encarar um bisturi, ou seja,
sem ter de passar por técnicas reais de transformação corporal.
Maffesoli (1996: 18), assim como Hall, propõe uma “lógica da
identificação” em substituição à lógica da identidade que teria prevalecido
durante toda a modernidade. “Enquanto esta última repousava sobre a
195
Micheline Dayse Gomes Batista
existência de indivíduos autônomos e senhores de suas ações, a lógica da
identificação põe em cena ‘pessoas’ de máscaras variáveis”, máscaras essas
que prestam tributo ao(s) sistema(s) emblemático(s) com que as pessoas
se identificam. E os jogos, diz Maffesoli (1996: 125), são coestruturais
nesse processo – jogos de simulação, eletrônicos, jogos de bolsas, jogos
políticos, jogos da moda, jogos de aparências.
Considerações finais
O corpo virtual, assim como o analógico, é performatizado,
construído simbolicamente – e dizemos “corpo” referindo-nos à superfície
de inscrição de desejos numa sociedade que valoriza a busca pelo prazer
através do consumo. No SL, é possível ter um corpo magro sem que
seja necessário fazer sacrifícios ou dietas, eliminar as espinhas típicas da
adolescência e ao mesmo tempo “turbinar” um pouco mais os seios, numa
exacerbação das dietas milagrosas que prometem emagrecer sem esforço,
aumentar o peitoral etc.
A maioria decide fazer um avatar “diferente”, alguns tentam
aproximar, outros criam formas inusitadas, distantes da concepção que
temos de corpo humano. São todas representações imagéticas válidas,
criadas para representar o jogador no mundo virtual. Não podemos
esquecer que o SL é um mundo de possibilidades. Na segunda vida, “és o
que queres ser”. Os jogadores sabem que o SL é um jogo e por isso podem
ter avatares perfeitos lá, mas que isso é algo distante de suas realidades –
“não sou perfeita, sou humana”, afirma uma jogadora. Mas, o que ocorre
quando o PC é desligado? O sentimento de frustração parece inevitável.
Quando “cai a ficha” e o sujeito se olha no espelho, percebe então que
para haver uma mudança de fato é necessário ir muito além de um simples
clique no mouse.
O avatar é um veículo fundamental para a realização desse desejo
de mudança corporal tão inerente à sociedade contemporânea, sem que
as pessoas precisem passar pelos conhecidos ônus reais do upgrade (dor,
possíveis deformações, irreversibilidade em alguns casos, investimento
financeiro alto). Mas, ainda podemos nos perguntar: qual o sentido disso
tudo? Adultos brincando de boneca? O que torna essa prática tão relevante
196
O Second Life e a vivência do “segundo corpo”
para essas pessoas? Seria o divertimento puro e simples, a realização de
fantasias? Ou é relevante porque mobiliza a imaginação e ao mesmo tempo
dá a chance de nos enxergarmos através de um grande espelho retrovisor
em 360 graus? Sem dúvida, o SL propicia todas essas experiências. A
imaginação e o espelho parecem ser a tônica desse jogo que se propõe
criar uma segunda vida, uma nova experiência de estar no mundo.
O virtual abre espaço para o jogo de identidades, o uso de máscaras,
o oculta/revela. Mas também escancara desejos, mostra o que é possível
fazer num mundo de potência e fantasia. O avatar é construído sob o
olhar do outro e dos próprios jogadores, que ali podem se enxergar num
ângulo de 360 graus. E é daí que surge o constrangimento que faz todos
parecerem iguais – magreza para as mulheres, músculos para os homens.
Os corpos que encontramos no SL são mais do que reais, são hiper-reais,
uma vez que mais perfeitos, acabados, supostamente mais controláveis. O
controle não é pleno – é o controle possível num ambiente mediado pela
tecnologia. Se algo der errado, faço de contas que não é mesmo comigo –
o problema é do avatar. Afinal, é apenas um jogo.
A própria dinâmica da internet e dos jogos eletrônicos on-line não
nos permitem muitas certezas ou “conclusões”. Há muitas suspeitas e
desconfianças. Entretanto, pode-se dizer que as experiências que o SL
propicia são relevantes para o cotidiano dos jogadores, que investem cada
vez mais tempo e dinheiro nessa atividade. Há sempre aquela possibilidade
de poder “se inspirar” no avatar, seu duplo no jogo, para emagrecer, por
exemplo. Vivemos entre a realidade e a ficção, transitando entre os dois
mundos. Vivemos entre a transparência e a opacidade, entre a fluidez
e a rigidez. Nessa brincadeira, produzimos significados sem que seja
necessário distinguir uma dimensão da outra.
197
Micheline Dayse Gomes Batista
REFERÊNCIAS
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS DESENVOLVEDORAS DE
JOGOS ELETRÔNICOS. “A indústria brasileira de jogos eletrônicos – Um
mapeamento do crescimento do setor nos últimos 4 anos”. Disponível em: <http://
www.abragames.org/docs/Abragames-Pesquisa2008.pdf>. Acesso em: 18 mai.
2009.
BALSAMO, Anne (1995). “Forms of technological embodiment: reading
the body in contemporary culture”. In: Featherstone, Mike; Burrows, Roger
(Orgs), Cyberspace/cyberbodies/cyberpunk: cultures of technological embodiment.
London and Thousand Oaks, Sage Publications.
BAUDRILLARD, Jean (1991). Simulacros e simulação. Lisboa, Relógio
D’Água.
_______________ (2001). A ilusão vital. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira.
_______________ (2005). “The finest consumer object: the body”. In:
Fraser, Mariam; Greco, Monica (Orgs.), The body: a reader. Londres e Nova
York, Routledge.
_______________ (2007). Senhas. Rio de Janeiro, DIFEL.
CASTELLS, Manuel (2003). A galáxia da internet: reflexões sobre a Internet, os
negócios e a sociedade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
CASTRONOVA, Edward (2001). Virtual Worlds: a first hand account of
market and society on the cyberian frontier. CESifo Working Paper Series Nº
618. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=294828>. Acesso em 20 jan.
2010.
ENTERTAINMENT SOFTWARE ASSOCIATION. “Computer and
video game industry tops $22 billion in 2008”. Disponível em: <http://
www.theesa.com/newsroom/release_detail.asp?releaseID=44>. Acesso
em 18 abr. 2009.
198
O Second Life e a vivência do “segundo corpo”
FEATHERSTONE, Mike; BURROWS, Roger (1995). “Cultures of
technological embodiment: an introduction”. In: Cyberspace/cyberbodies/
cyberpunk: cultures of technological embodiment. London and Thousand Oaks,
Sage Publications.
FERREIRA, Jonatas; MICHELINE D. G. Batista; DE MORAIS, Jorge
Ventura; DA SILVA, Adriana Tenório (2009). “Jogos eletrônicos (JEs) online: por uma hermenêutica da vivência de criatividade no ciberespaço”.
Trabalho apresentado no XIV Congresso Brasileiro de Sociologia, Rio de
Janeiro.
FOUCAULT, Michel (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Edições
Graal.
GOLDENBERG, Mirian (Org.) (2007). O corpo como capital: Estudos sobre
gênero, sexualidade e moda na cultura brasileira. Barueri, Estação das Letras e
Cores.
HALL, Stuart (2006). A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de
Janeiro, DP&A.
HUIZINGA, Johan (2007). Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São
Paulo, Perspectiva.
LE BRETON, David (2003). Adeus ao corpo: Antropologia e sociedade.
Campinas, Papirus.
LEMOS, André (2004). Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura
contemporânea. Porto Alegre, Sulina.
LINDEN LAB. Second Life Virtual Economy – Key Metrics Through
November 2008. Disponível em: <http://s3.amazonaws.com/static-secondlifecom/economy/stats_200811.xls>. Acesso em 15 jan. 2009.
LIPOVETSKY, Gilles (2007). A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de
hiperconsumo. São Paulo, Companhia das Letras.
MAFFESOLI, Michel (1996). No fundo das aparências. Petrópolis, Vozes.
199
Micheline Dayse Gomes Batista
MCLUHAN, Marshall (1990). Os meios de comunicação como extensões do homem
(understanding media). São Paulo, Cultrix.
MICHAELIS. Dicionário on-line. Editora Melhoramentos. Disponível
em: <http://michaelis.uol.com.br/>. Último acesso em 05 fev. 2010.
PIMENTA, Francisco José Paoliello; VARGES, Júlia Pessoa (2007).
“Second Life: vida e cidadania além da realidade virtual?” Comunicação &
Sociedade. Vol. 47, Nº 1: 13-27.
SANTAELLA, Lucia (2003). Culturas e artes do pós-humano: Da cultura das
mídias à cibercultura. São Paulo, Paulus.
SIBILIA, Paula (2002). O homem pós-orgânico: Corpo, subjetividade e tecnologias
digitais. Rio de Janeiro,: Relume-Dumará.
SMART, J. M; CASCIO, J.; PAFFENDORF, J. (2007). Metaverse Roadmap
Overview. Pathways to the 3D Web. Disponível em: <http://www.
metaverseroadmap.org/MetaverseRoadmapOverview.pdf>. Acesso em
16 set. 2008.
TURKLE, Sherry (1999). “Sherry Turkle: fronteiras do real e do virtual”,
entrevista concedida a Federico Casalegno. Revista Famecos. Nº 11: 117-123.
200
Corpos em Concerto: diferenças, desigualdades e desconformidades
TREINAMENTO DE TÁTICAS COLETIVAS E
DISCIPLINAMENTO DOS CORPOS NAS CATEGORIAS
DE BASE DO FUTEBOL: uma Análise das Práticas Sociais
de Aquisição de Técnicas Futebolísticas85
Jorge Ventura de Morais
Túlio Velho Barreto
Glauber Lemos
1. Introdução
Há uma crença popular bastante comum acerca do jogador de
futebol: tem-se ou não se tem o dom para jogar bola. Os grandes craques
deste esporte são saudados como deuses que receberam um dom divino
(Cf. DAMO, 2008). Neste sentido, a capacidade de controlar a bola, dar
um passe, cabecear, posicionar-se em campo, é vista de forma naturalizada,
como um conjunto de disposições herdadas de algo sobrenatural, ou que
“já se nasce com elas”,86 e, portanto, não passíveis da análise sociológica.
Neste artigo, pretendemos desafiar tal crença. É nosso objetivo
defender o seguinte argumento: o conjunto de capacidades elencadas
acima é resultado de práticas sociais que visam ao disciplinamento e à
disposição dos corpos dos jovens atletas, aspirantes a jogadores de futebol.
Para tanto, iremos descrever, ilustrar e analisar um repertório de técnicas
e táticas utilizadas por treinadores de futebol para conformar os corpos
dos atletas aos ditames do jogo coletivo. Na base do “jogo bonito”, como
o definiu Pelé, isto é, do artístico, do dom concedido por Deus, estão
o treinamento e disciplinamento de corpos através de práticas sociais
coletivas amplamente conhecidas e utilizadas por profissionais deste
esporte.
85
86
Este artigo é baseado em pesquisa financiada pelo CNPq (Processo No. 400132/2008-7).
Wacquant (1995: 509) alude à mesma crença entre os boxeadores.
201
Jorge Ventura de Morais, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos
Ao contrário da literatura sociológica sobre esportistas – mas,
sobretudo, aquela produzida pelos pesquisadores da área da Educação
Física, que tende a enfatizar o disciplinamento dos corpos por meio de
exercícios físicos voltados para o desenvolvimento atlético, com vistas ao
enfrentamento dos requerimentos de força pelos esportes –, analisamos,
aqui, o processo de disciplinamento corporal através de táticas coletivas
para a aquisição de fundamentos técnicos e noções de posicionamento
espacial essenciais à prática do futebol profissional. E, de forma
complementar, analisamos como os garotos ou “aprendizes” de futebol,
possuidores de determinado estoque de conhecimentos, adquiridos
em práticas futebolísticas de bricolagem, reagem ou lidam perante as
contingências a que são submetidos quando se deparam com situações até
então desconhecidas, ou pouco conhecidas, em que são obrigados a gerir
situações de incongruência (Cf. GARFINKEL, 1963; KEW, 1986 e 1987).
2. Mapa Teórico
As práticas sociais sempre estiveram presentes na análise
sociológica, mas subsumidas sob uma abordagem que privilegia a razão
e a cognição dos atores sociais, nas correntes acionalistas; ou subsumidas
sob as estruturas sociais, em abordagens que privilegiam o papel das
estruturas sociais, como o estruturalismo e o pós-estruturalismo. Porém,
mais recentemente, tem havido uma mudança no sentido de privilegiar
as práticas sociais como o locus de análise sociológica. Embora haja muita
discordância acerca de o que realmente focalizar na análise das práticas
sociais, em geral, entende-se que elas são conjuntos de atividades humanas
(Cf. SCHATZKI, 2001a: 2; 2001b: 48). Como afirma este autor:
As abordagens das práticas (sociais) estão unidas pela crença de que
fenômenos como conhecimento, significados, atividade humana, ciência,
poder, língua, instituições sociais e transformações históricas ocorrem
dentro e são aspectos ou componentes do campo de práticas. O campo de
práticas é o nexo total das práticas humanas interligadas (SCHATZKI,
2001, p. 2. [Traduzimos. Itálico no original]).
202
Treinamento de táticas coletivas e disciplinamento dos corpos [...] de Técnicas Futebolística
Neste sentido, um ponto central das diversas abordagens é que
as “práticas sociais são concebidas como incorporadas (embodied), como
conjuntos materialmente mediados e centralmente organizados em torno
de entendimentos práticos comungados” (SCHATZKI, 2001: 2), e é dentro
das quais que são formadas as propriedades corporais fundamentais para
a vida social: não somente técnicas e atividades, mas também experiências
em geral (Cf. SCHATZKI, 2001: 2).
Assim sendo, afastamo-nos das correntes da teoria social que
privilegiam crenças, desejos e emoções. Ao contrário, iremos privilegiar
o know-how, as técnicas, o entendimento tácito e as disposições (Cf.
SCHATZKI, 2001: 7) para entendermos o disciplinamento tático dos
corpos dos jovens jogadores. No entanto, ao contrário de Bourdieu (2009a
e 2009b), que expressamente se recusava a levar em conta as razões dos
atores como meros epifenômenos,87 seguiremos a pista de Barnes (2001)
de que, ao lado das técnicas, é preciso considerar as razões e metas dos
atores sociais.
Com isto, concordamos que:
Desde que a proeminência do entendimento prático está ligada às
posições mediadoras do corpo entre a mente e a atividade e entre a
atividade individual e a diversidade social, o entendimento acontece
entre dois polos: o corpo, de um lado, e o mundo social, de outro... O
entendimento prático é, assim, uma bateria de habilidades corporais
que resulta de, e também torna possível, a participação nas práticas
(SCHATZKI, 2001: 9).
3. O contexto inicial da pesquisa e o “peneirão”
do Clube Náutico Capibaribe
Após diversos contatos com atuais e ex-dirigentes das categorias de
base do Clube Náutico Capibaribe, realizados em sua sede social, localizada
no Recife, iniciamos nossas observações de campo em setembro de 2008,
Porém, há de se notar que Wacquant (1995), escrevendo dentro dos parâmetros de uma sociologia
baseada na obra de Bourdieu, apresenta argumentos muito próximos da abordagem que se defende
neste trabalho.
87
203
Jorge Ventura de Morais, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos
no município de Camaragibe, na Região Metropolitana do Recife (RMR),
no pequeno e modesto Estádio Vera Cruz, com piso bastante precário, de
barro e com pouca grama. Na ocasião, numa manhã de sábado de muito sol
e calor, acompanhamos e registramos em vídeo as partidas entre Náutico e
Colégio Anglo-Líder daquele município, pelo Campeonato Aberto Infantil
e Juvenil, organizado pela Federação Pernambucana de Futebol (FPF). Na
partida preliminar, que começou às 8h30, houve empate entre os times
infantis; a principal, iniciada às 10h30, terminou com a vitória do Náutico.
Tais resultados levaram o Náutico à terceira fase de ambas as competições.
Durante as partidas, fizemos contato pessoal e bastante profícuo com o
supervisor das categorias de base do Náutico, José Roberto Neves, e o
treinador do Infantil, Alderico Rigaud Neto.
As partidas observadas e registradas em seguida foram contra
o Internacional, da localidade de Campina do Barreto, e ocorreram no
final de outubro, também em uma manhã de sábado, mas, desta vez no
campo principal de treinamento do Centro de Treinamento da Guabiraba.
Diferentemente do Estádio Vera Cruz, este apresenta muito boas
condições de uso, sendo, inclusive, todo gramado. E, por mais paradoxal
que possa parecer, segundo Alderico Neto, os garotos do Náutico sentiriam
alguma dificuldade de adaptação às condições do gramado, já que estão
mais acostumados a treinar e jogar em campos de barro, sempre duros.
Realizados um mês depois das partidas observadas anteriormente, os jogos
entre Náutico e Internacional fizeram parte da terceira e última rodada da
terceira fase do Campeonato Aberto Infantil e Juvenil. O Náutico venceu as
duas partidas e, assim, passou para a quarta fase das referidas competições.
Fomos, então, informados pelo supervisor José Roberto da realização de
um “peneirão”88 por parte do Náutico para selecionar garotos para suas
categorias de base. O processo seria ali mesmo, no CT da Guabiraba,
nos dias, 5, 6 e 7 de novembro. É este processo, que, como se verá, teve
desdobramentos até o início de dezembro, que vai ser relatado e analisado
em seguida.
“Peneira” ou “peneirão” são expressões bastante usadas no Brasil para designar um processo de
seleção de aspirantes a jogador de futebol, realizado pelos clubes, geralmente envolvendo grande
quantidade de garotos com idade inferior a 17 anos.
88
204
Treinamento de táticas coletivas e disciplinamento dos corpos [...] de Técnicas Futebolística
4. O “peneirão”
No dia 5, chegamos ao CT da Guabiraba em torno das 8h. Logo
fomos informados que o “vestibular” para os garotos que pretendem
seguir a carreira de jogador de futebol ocorreria no campo de terra batida,
sem grama, cercado por morros e localizado nos fundos do CT, bastante
distante de sua entrada. Para que se tenha uma ideia do local, um exjogador do Náutico, formado em sua divisão de base, onde jogou desde
o infantil até o profissional, informou-nos, em conversa informal, que o
campo era conhecido como “Afeganistão”.
Então, aos poucos, os aspirantes a craques vão chegando. Alguns
garotos vêm acompanhados de parentes ou mesmo de amigos; outros estão
ali sozinhos. Cada um pagou R$ 10,00 pela oportunidade de mostrar seu
talento para os selecionadores. Como indica Levi Gomes, então treinador
dos juniores do Náutico e um dos selecionadores, “muitos desses garotos
chegam a faltar às aulas para poder estar aqui”. Alguns vêm de outros
municípios da RMR, como um garoto vindo de Escada, cidade distante
cerca de 51 quilômetros do Recife, fato que rendeu a este garoto apelido
homônimo a sua cidade. Pelas informações que obtivemos, inscreveramse no “peneirão” garotos nascidos entre 1991 e 1993. E a maioria deles
declarou que prefere atuar como meia ou atacante, embora lhes seja
passada a informação de que as posições em que jogarão naqueles três
dias de seleção não serão decisivas na observação feita pelos “professores”
- que, como no jargão futebolísitico, mas, sobretudo, entre os garotos das
divisões de base - são chamados de “treinadores”.
A equipe de selecionadores é formada por Levi, Gena89, José
Roberto e Márcio Gallupo, assistente de Levi nos Juniores. Inicialmente,
José Roberto cuida do cadastro dos garotos, verificando o pagamento da
taxa de inscrição e colocando-os em uma tabela organizada por posição
em que deseja jogar, nome e idade. Em seguida, os aspirantes são levados
para uma conversa com Levi e Gena, ali mesmo no campo, quando estes
procuram deixar claro que os pontos observados durante o “peneirão” não
Gena é o apelido com o qual ficou consagrado o jogador Genival de Barros Lima, ex-lateral
direito do Náutico, revelado em sua divisão de base, e do Santa Cruz nos anos de 1960 e 1970.
Atualmente, Gena é treinador da escolinha do Náutico, que funciona no CT da Guabiraba.
89
205
Jorge Ventura de Morais, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos
estão relacionados com a posição em que o atleta joga, mas, sim, com seu
desempenho técnico, sua capacidade de mostrar qualidades individuais,
como o domínio e o passe de bola, chute, cabeceio, velocidade e habilidade
no drible, entre outros aspectos, isto é, técnicas coletivas existentes na rede
social em que se insere o futebol. São feitas, também, muitas observações
sobre a conduta de jogo dos garotos, alertando para a necessidade de um
jogo limpo, sem faltas graves. O sentimento de amizade e de coletividade
entre os jovens é incentivado antes das atividades de campo e durante seu
transcorrer, como apontaremos mais adiante; em momentos de jogadas e/
ou faltas mais graves, os garotos são insistentemente orientados por José
Roberto para jogar “na bola”, tendo em vista a observância e o exercício
do fair-play.
Logo são distribuídos coletes vermelhos e azuis entre os jogadores
que formam os dois times iniciais. Nas duas primeiras partidas, todos são
colocados em suas posições de preferência, o que não ocorrerá, no entanto,
nas últimas partidas da manhã. Por iniciativa própria, os garotos iniciam
um aquecimento individual, com alguns alongamentos. Assim como nos
jogos observados anteriormente, é visível a preocupação de alguns em atuar
de acordo com os padrões adotados no futebol profissional, procurando
demonstrar uma postura de atleta antes mesmo de a bola rolar.
Quando a partida começa, os garotos tentam entre si uma
organização tática em campo. A falta de entrosamento parece dificultar
até mesmo a comunicação entre eles. “’Bora, zagueiro!”, “Lateral, inverte,
inverte!”, “Boa, goleiro!”, por exemplo, são expressões comuns entre eles
durante o jogo. Como poucos ali se conhecem, comumente as posições
são utilizadas na tentativa de uma comunicação que, em alguns momentos,
também tem por objetivo ajustar taticamente os times ao explicitar onde
cada um deve atuar em campo. A ausência de árbitros assistentes – mais
conhecidos como “bandeirinhas” – provoca dúvida entre alguns garotos
que, em dado momento da primeira partida, passam a se perguntar se a
regra do impedimento está valendo ou não. Logo fica evidente que não
há preocupação com o impedimento. Alguns lançamentos são feitos para
jogadores em clara situação de impedimento, mas nada é apontado. A
despreocupação com a aplicação da regra do impedimento demonstra,
na prática, que, no processo de seleção, a conduta do jogador em campo
206
Treinamento de táticas coletivas e disciplinamento dos corpos [...] de Técnicas Futebolística
realmente é mais considerada do que a sua disciplina tática e a observância
de todas as 17 regras oficiais do futebol.
“Devagar, garoto!”, José Roberto reclama mais de uma vez. Levi
também pede mais disciplina aos garotos. “Eles tentam o melhor possível,
mas a gente não deixa que eles usem a violência pra intimidar”, nos diz
este último selecionador. Em duas situações também são notadas algumas
críticas com relação à cobrança de lateral de alguns jogadores. Primeiro,
Gena observa um garoto que bate um lateral ao lado dele retirando um
dos pés do chão ao lançar a bola, e reclama: “Eita! Que lateral é esse?!”.
Pouco depois, Márcio, que está dentro de campo atuando como árbitro,
marca uma reversão de um jogador que cobra um lateral sem que a bola
esteja acima da cabeça, realizando um movimento bizarro mais parecido
com um levantamento de vôlei. Momentos depois, Levi comenta, talvez
com certa ironia, que “todos são craques quando chegam aqui”.
Como pudemos observar, os garotos submetidos a este processo
seletivo trazem no elenco de suas práticas corporais as características e
disposições corporais originadas e desenvolvidas no futebol de bricolagem,
nas brincadeiras das ruas. E, provavelmente, as mantém, mesmo durante
o “peneirão”, em função do entendimento de que ali serão avaliados como explicitam os selecionadores - por critérios relacionados a técnicas
corporais de controle e distribuição da bola, entre outras, atributos que
fazem parte das práticas incorporadas nas brincadeiras de rua. Já o mesmo
não se pode afirmar quanto à correta cobrança de um lateral, por exemplo.
A primeira partida da manhã termina sem gols. Os jogadores são
reunidos à beira do campo por José Roberto e lhes é recomendado que
cheguem mais cedo no próximo dia. Gena e Levi, que permaneceram por
toda a atividade sentados à beira do campo, fazem poucas observações
sobre o desempenho dos atletas. Quando interpelados a respeito da
possibilidade de se notar um talento desde o primeiro dia, eles alertam que
o primeiro dia é de muito nervosismo para os garotos, e por isso é difícil
observarem-se talentos já no primeiro dia, embora não seja impossível. É
um resignado Levi que afirma: “Até agora, nada”.
Levi e Gena constatam a dificuldade de selecionarem-se garotos
que atuem como volantes, zagueiros, laterais e goleiros. Para Gena, por
exemplo, “Meia e atacante tem demais!”. Já Levi comenta com José
207
Jorge Ventura de Morais, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos
Roberto: “Vem com duzentos atacantes, vai jogar como? Como é que um
time só pode ter atacante e meia?”. As reclamações sobre o excesso de
jogadores para certas posições - notadamente as de ataque - e a falta deles
para as de defesa vão além da dificuldade de organizar um time para fazer
a “peneira”. E, neste caso, é interessante destacar que, como dissemos,
enquanto a maioria dos garotos prefere ser meia-armador ou atacante,
dois dos selecionadores foram bem sucedidos defensores em Pernambuco,
mais precisamente, laterais direitos: o eficiente Levi foi bicampeão pelo
Náutico nos anos 1980, enquanto o habilidoso Gena foi pentacampeão
pelo Náutico e Santa Cruz nos anos 1960 e 1970, perfazendo a incrível
marca de dez títulos seguidos.
Nos dias seguintes do “peneirão” e de observações de campo,
buscamos interagir com alguns dos garotos. Embora inicialmente reticentes
e desconfiados, alguns concordaram em conversar e responder a algumas
perguntas. As respostas, no entanto, foram quase sempre evasivas.
Para além das dificuldades de aproximação, foram importantes os
relatos de um grupo que já treinava na escolinha do Náutico e participava
pela primeira vez de um “peneirão”. Por seus relatos descobrimos que
muitos dos garotos que estavam ali já treinavam, ou haviam treinado, na
escolinha do Náutico; e que lá recebiam lições práticas sobre regras do
futebol, conhecendo as limitações que em especial algumas regras, como
as referentes a faltas e a impedimentos, impunham à forma de jogar. Nesse
grupo de garotos estavam três atacantes e um volante, e nenhum deles
havia sido, até aquele momento, obrigado a jogar em posição diferente;
quando lhes perguntamos se isso seria um problema para eles, caso viesse
a ocorrer, a resposta foi que “não”, pois estavam ali para fazer o melhor e
jogariam em qualquer posição. No entanto, quando José Roberto solicita
a dois dos atacantes que escolham posições diferentes, eles mostramse relutantes, trocam olhares e demoram a aceitar a possibilidade de
jogar como volantes ou laterais, por exemplo. Mais uma vez fica claro
que as experiências corporais que eles carregam – e que lhes permitem
movimentos fluidos em campo – parecem entrar em choque com as
novas exigências de prática corporal em que se exige certa polivalência na
disposição espacial no campo de jogo. E o mesmo podemos dizer a partir
das observações que se seguem.
208
Treinamento de táticas coletivas e disciplinamento dos corpos [...] de Técnicas Futebolística
Ao longo de nosso trabalho de campo descobrimos também que,
para estes garotos, nascidos entre 1991 e 1993, a dificuldade está no aspecto
coletivo. Isto é, segundo eles, é difícil jogar com desconhecidos, pois isso
atrapalha o elemento coletivo (Cf. GIGLIO et al., 2008: 76). Quando
indagados sobre o que vão tentar fazer para impressionar o “professor”,
a resposta de todos é categórica: “o melhor”. Resposta padrão entre os
aspirantes, o “melhor” pode estar associado a demonstrações de técnica
individual, disciplina tática no tocante ao posicionamento em campo,
ou mesmo esforço físico, não existindo, portanto, uma caracterização
precisa do que os jogadores pensam ser importante para a aprovação deles
por parte dos selecionadores. Ainda perguntamos aos atacantes sobre a
possibilidade de eles se posicionarem “na banheira”, ou seja, em posição
de impedimento, uma vez não haver ali árbitros assistentes que apontassem
posições irregulares durante o “peneirão”, ao que responderam parecendo
não se preocupar muito com tal possibilidade, ou mesmo parecendo
ignorar a pergunta: responderam apenas que tentam escapar da linha de
impedimento. O mais atento de nossos informantes respondeu: “Eu tento
ficar entre os zagueiros”.
Certo garoto, originalmente volante do Flamengo de São José
do Belmonte, cidade localizada no Sertão pernambucano, distante 479
km do Recife, que havia se destacado no dia anterior pela qualidade do
passe, participava pela primeira vez de um “peneirão”. Um de seus irmãos
já jogara nas divisões de base do Santa Cruz e reside agora no Recife.
Morando na casa do irmão, ele pretendia participar de outros “peneirões”
até o início do ano de 2009. Seu time de São José do Belmonte já havia sido
desclassificado do Campeonato Pernambucano e ele pretendia destacar-se
em um clube que pudesse lançá-lo como jogador profissional. O garoto
mostrou-se solícito e estabeleceu bom diálogo até o momento em que
entrou em campo. Muito concentrado, aparentava boa formação, falava
bem e demonstrava-se bastante consciente da dificuldade que enfrentaria
para passar pela “peneira”. Também indagado sobre o que pretendia
fazer para agradar aos selecionadores do Náutico, ele respondeu: “tomar
cuidado pra não errar na frente do ‘professor’”. Procurando fazer com
que aprofundasse sua explicação, perguntamos-lhe sobre que tipo de
erro deveria ser evitado, ao que ele respondeu que era “preciso acertar
209
Jorge Ventura de Morais, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos
o passe e desarmar bem”. Sobre jogar com desconhecidos e, por vezes,
em outra posição, afirmou ser complicado, mas que tentava ajustar-se
aos parceiros dentro de campo; segundo suas próprias palavras: “Ontem
mesmo, joguei como volante e combinei em campo com outro ‘cara’ quem
é que sobe e quem fica, essas coisas”. Percebe-se, aqui, a preocupação do
garoto também com o posicionamento tático em campo. Embora haja
se destacado diante dos selecionadores no primeiro dia e demonstrado,
durante nossas conversas, bom conhecimento das regras e disposições
táticas do futebol, contudo, nosso informante e aspirante a jogador de
futebol não conseguiu a vaga que almejava.
Outro garoto, este um meia-armador, mostrava-se ansioso pelo
último dia e pela oportunidade de jogar em um grande time. Ele nos falou
sobre as facilidades encontradas em campo em função da arbitragem
parcial: “Não tem ‘bandeirinha’, o juiz fica lá no centro, longe de tudo, às
vezes não vê uma falta, um escanteio. Fica mais fácil, ‘né’, ele não vê tudo
de lá”. Quando perguntado sobre o que pensa que os “professores” vão
observar a seu respeito, diz igualmente que vai fazer “o melhor”, deixando
a entender que nós, pesquisadores do futebol, devemos entender o que
“melhor” significa. Mesmo assim, procura explicitar o sentido do termo
ao dizer apenas que vai correr muito, mostrar o melhor possível, enfim,
“fazer o que tem pra fazer”. Ele comenta, ainda, a dificuldade de jogar em
um campo com piso ruim, de barro duro como aquele, principalmente
quando é usada uma chuteira de cravos altos, como a sua. Para nosso
informante, este seria, também, um aspecto que poderia prejudicar sua
atuação, além do desentrosamento e do calor no campo. Seja lá o que quis
dizer com “o melhor”, o fato é que ele se destacou, chamando a atenção
de Levi e Gena: foi selecionado entre os atletas que logo iniciariam um
treinamento posterior com José Roberto. Depois da seleção, perguntamoslhe novamente sobre o que houvera feito para obter aquele resultado
positivo, ao que respondeu: “Fiz aquilo que te disse, dei o melhor possível,
corri muito, toquei bola, joguei”, especificou o garoto.
Nosso próximo informante tem 16 anos. Atuante também como
meia-armador, ele destacou-se e foi selecionado no primeiro grupo de
garotos participantes do “peneirão”. No primeiro dia, jogou como zagueiro;
segundo ele: “Não foi difícil, não sei marcar, mas foi tranqüilo”, relatou210
Treinamento de táticas coletivas e disciplinamento dos corpos [...] de Técnicas Futebolística
nos sobre as dificuldades de jogar em outra posição. Questionado quanto
à possibilidade de isto haver influenciado a decisão dos selecionadores,
responde simplesmente que não sabe, mas que acha que sim; e não explicita
motivos. Sobre o jogo sem árbitro e assistente, ele diz que isso pode ajudar
ou facilitar: “Até o ‘bandeira’ erra, a gente vê isso direto nos jogos”, diz ele.
Finalmente, ressaltou as dificuldades do campo, o chão de terra batida em
que pouco se pode fazer a bola rolar, correr.
Nestas três falas é possível apreendermos situações relatadas
pelos atores sociais, no caso, aspirantes a jogadores de futebol, acerca de
processos de adaptação a situações de incongruência em que se tem de
enfrentar momentos de contingência (GARFINKEL, 1963; KEW, 1986
e 1987). Como já apontado, a maioria dos garotos apresenta-se como
jogadores em posições de atacante, meia-atacante e volante; poucos são
os que demonstram preferência pelas posições de zagueiro, lateral ou ala.
Parecem preferir posições que aos seus olhos granjeiem mais prestígio (e
talvez mais sucesso financeiro) no mundo futebolístico; ou posições nas
quais estejam mais habituados a jogar.
Pois bem: com a grande quantidade de candidatos desejando jogar
nas posições de atacante, meia-atacante e volante, muitos deles tiveram de
apresentar seus dotes futebolísticos atuando de forma improvisada, ou seja,
em outras posições diferentes e com novos e desconhecidos concorrentes.
Como, então, gerir tal incongruência, na medida em que enfrentar tais
situações significa posicionar-se, postar-se, inclusive fisicamente, de forma
a que não se está condicionado, ou mesmo acostumado, a fazê-lo?
Como os relatos revelam, a solução encontrada pelos garotos é a
de combinar na hora, no “calor da partida”, na prática, com os demais,
estratégias do tipo “quando um subir, o outro fica”, e vice-versa; ou,
aquilo que parece estar mesmo embutido na resposta sintética de “fazer
o melhor”, que parece significar, qualquer que seja a posição, original ou
adaptada, correr, dominar a bola, desarmar o adversário, dar toques e bons
passes, enfim, postar-se de acordo com o lugar a ser ocupado em campo.
Observamos também que, durante esta primeira etapa de seleção,
o conhecimento das regras do futebol pelos jovens aspirantes é critério
de menor peso nas escolhas efetuadas pelos treinadores-selecionadores.
Tal fato pode dá margem à interpretação de que, na avaliação dos garotos,
211
Jorge Ventura de Morais, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos
sejam levados em consideração aspectos mais ligados à técnica individual
e à disposição física em detrimento a aspectos táticos - como, aliás,
tanto insistiram, inicialmente, José Roberto, Levi e Gena. Porém, como
ressaltaremos a seguir, as ditas técnicas individuais logo serão submergidas
no processo coletivo de disposições corporais que ancoram o futebol
moderno (Cf. SWINDLER, 2001).
Por fim, registramos a recorrente e manifesta preocupação dos
“professores” com o uso excessivo da força física. Em outras palavras,
com o controle e a disciplina dos corpos como fator importante para a
prática do esporte. Daí a necessidade das correções impostas aos atos mais
violentos em campo durante todo processo de seleção dos aspirantes a
jogadores de futebol.
Antes de passarmos à próxima seção, é importante sintetizar o que
procuramos mostrar até agora, a saber: submetidos a processos seletivos
para as categorias de base de times profissionais, os “aprendizes” de futebol
trazem, incorporadas, práticas de bricolagem dos jogos disputados nas
ruas ou em espaços informais. Tais práticas parecem ter de ser moldadas
de forma a permitir que as práticas corporais e os disciplinamentos táticos
e espaciais requeridos pelo futebol profissional apareçam. É disso que
trataremos a seguir.
5. Disciplinamento de Corpos e Aquisição de Técnicas
a Partir de “Novas” Práticas Futebolísticas
A imagem mais comum que encontramos sobre o futebol
brasileiro é a de um esporte em que o sucesso mundial alcançado se deve à
qualidade dos nossos craques, isto é, os ágeis dribladores que possuem um
dom natural, quase uma graça divina, algo recebido de Deus ou entidade
superior. No entanto, como mostramos na seção anterior e procuraremos
aprofundar nesta seção, tal imagem é estranha aos processos coletivos
de imposição de disciplinamento tático, espacial e corporal, através de
práticas comungadas pelos atores, que são parte da rede social em que
o futebol está enredado, mesmo em uma fase inicial de suas pretendidas
carreiras profissionais.
212
Treinamento de táticas coletivas e disciplinamento dos corpos [...] de Técnicas Futebolística
De fato, como será possível notar nos processos descritos e
analisados nesta seção, alguns fundamentos, aspectos técnicos e táticos
do futebol, passaram a ser treinados e corrigidos por José Roberto. Tais
processos correspondem exatamente à segunda fase da seleção promovida
pelo Náutico - por nós acompanhada e observada in loco - e contou com
os garotos pré-selecionados nos três dias iniciais do “peneirão”. Todos
os selecionados passaram, a seguir, a integrar um grupo que ficou sob a
orientação de José Roberto, responsável por integrá-los em definitivo às
categorias de base do Náutico. Assim, o “peneirão” de três dias ganhou
contornos de treinamentos sistemáticos e se estendeu até o início de
dezembro.
Logo no primeiro dia, em 14 de novembro, após breves partidas
entre os garotos pré-selecionados, José Roberto escolheu alguns que,
segundo ele, “são especiais”. Então, passou a treinar com eles aspectos
técnicos e táticos e a prepará-los para o que virá mais adiante: a seleção
definitiva por parte dos técnicos das equipes infantil, juvenil e júnior do
Náutico.
Para compreender o sentido do conjunto de exercícios descritos
a seguir, tomados pelos próprios atores sociais como fundamentos
necessários ao jogador profissional de futebol, podemos nos apoiar em
Ann Swindler (2001), em especial quando ela argumenta que nem todas
as práticas têm o mesmo valor: ou seja, em fenômenos sociais concretos
há certas práticas sociais que ancoram outras práticas sociais. Swindler
chama tais práticas de âncoras, aquelas que servem de fundação para que
outras possam se desenvolver. Observemos a sequencia de treinamentos
ministrados por José Roberto.
O treinamento tem início com José Roberto explicitando para
atentos e ansiosos garotos o que eles farão: “A gente precisa treinar
posicionamento, cabeceio, chute”. Logo fica evidente que serão treinos
mais incisivos, que simulem situações de jogo e permitam aos garotos
conhecer e enfrentar situações semelhantes às que ocorrem durante uma
partida de futebol. O primeiro exercício, demonstrado na Figura 1, simula
uma situação de ataque contra defesa, em que há dois defensores contra
três atacantes. José Roberto traça os objetivos: para os zagueiros (A e B),
roubar a bola e impedir o gol; para os atacantes (1, 2 e 3), fazer o gol. “É
213
Jorge Ventura de Morais, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos
pra fazer o gol, mas é na bola, viu?!”, destaca, ressaltando mais uma vez
aos atletas que não façam faltas.
Figura 1
Figura 2
Há ainda um segundo movimento executado pelos atletas,
semelhante ao primeiro, mas com trocas de posições entre os atacantes, de
forma a confundir os jogadores de defesa, como se vê nas setas indicadas
na Figura 2.
Figura 3
Figura 4
Envolvendo mais garotos, o exercício seguinte é de suma
importância para familiarizar os “aprendizes” com uma tática empregada
pelos times de futebol. José Roberto demonstra, então, como se posta um
time na clássica formação 4-4-2 (Figura 3).
Em seguida, com a mesma formação, os atletas realizam um
exercício em que, após cobrança de um tiro de meta pelo goleiro, os
jogadores de meio de campo disputam, entre defesa e ataque, a bola
214
Treinamento de táticas coletivas e disciplinamento dos corpos [...] de Técnicas Futebolística
ainda no ar. O treino, além de aperfeiçoar o cabeceio, permite aos garotos
praticar o posicionamento tático proposto e uma forma de disputa de bola
aérea já bastante comum entre os jogadores profissionais (Figura 4).
Exercícios de chutes ao gol, tanto com bola em movimento (Figura
5) como com a bola parada (Figura 6) também são realizados. Quanto aos
chutes de bola parada, José Roberto pede aos jogadores que os façam
com ambos os pés; para tal, inverte os lados da cobrança de falta, assim
facilitando o uso dos dois pés.
Figura 5
Figura 6
Já a Figura 7 demonstra
um exercício de cobrança de falta
com barreira. Trata-se de exercício
para desenvolvimento de uma
habilidade bastante presente em
situações reais de jogo. Como
desafio e incentivo, José Roberto
propõe aos “aprendizes” que
se esforcem para acertar o gol.
Aqueles que acertam a barreira ou
Figura 7
chutam para fora perdem o direito
de bater a falta e vão para a barreira, cumprindo uma espécie de punição
pelo erro cometido. A barreira é composta sempre de quatro jogadores
que ganham, progressivamente, o espaço dos atletas que erram a cobrança.
215
Jorge Ventura de Morais, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos
Por fim, são realizados exercícios de cruzamento de bola sobre
a área. Mais complexos, estes exercícios (Figuras 8 e 9) são dotados de
dois movimentos. Ao mesmo tempo em que há um exercício de toque de
bola nas laterais – o chamado 1-2, em que dois ou mais jogadores trocam
passes curtos e rápidos – os garotos se dirigem ao ataque para o cabeceio
após o cruzamento. Os exercícios são realizados tanto do lado esquerdo
quanto do direito do campo.
Figura 8
Figura 9
Apesar de os movimentos acima descritos serem aparentemente
simples, para a maioria desses garotos é a primeira vez que eles precisam
lidar com esquemas táticos de jogo. O treinamento, isto é, a prática social,
além de ensinar jogadas, fornece aos aspirantes a jogador de futebol,
sobretudo, o conhecimento e as experiências futebolísticas mais próximas
do profissionalismo, permitindo o disciplinamento dos corpos ao fazer
coletivo do futebol.
Barnes (2001: 19), por exemplo, afirma que é necessário “notar que
dominar a prática de combate montado em uma companhia de cavalaria
é participar de algo feito por um grupo”. Neste sentido, se trocarmos a
expressão “combate montado” por “futebol” – ou qualquer outra prática
corporal esportiva – a frase de Barnes continua a fazer sentido.
A partir da disposição corporal adquirida, os garotos podem, agora,
orientar seu raciocínio prático em situações reais de jogo. Como dito na
introdução a este trabalho, considerando o alto grau de contingências
a que estão expostos os jogadores de futebol, as situações múltiplas de
216
Treinamento de táticas coletivas e disciplinamento dos corpos [...] de Técnicas Futebolística
incongruência e o exercício de certos fundamentos do futebol neste
estágio inicial se amalgamam em um conjunto de conhecimentos práticos e
disposições corporais que permitem aos “aprendizes” de futebol enfrentar
as quase sempre novas situações práticas na hora mesma de uma partida
(Cf. GARFINKEL, 1963; e Kew, 1986 e 1987).
Com relação às regras formais do futebol, o treino ocorrido no dia
28 de novembro, por exemplo, nos revela alguns aspectos interessantes. As
disputas de bola nesse treino são mais acirradas. Nota-se certa deficiência na
anotação de laterais, escanteios e falta, o que leva os garotos a negociarem
a posse da bola literalmente na base do grito, isto é, recorrendo à prática
discursiva a que alude Schatzki (2001a: 3).
A situação, às vezes, é tão caótica que chega a confundir José
Roberto. O número de faltas é grande e, em um lance, um dos atacantes
do time sem camisas se machuca. Pela primeira vez, não há nenhum
atacante para substituí-lo. Após várias chamadas de José Roberto, ninguém
responde e ele decide improvisar um jogador no ataque.
Em um dos lances de falta é marcado o tiro livre direto. A falta
é próxima da área e o goleiro grita: “Eu quero quatro, quero quatro!”,
pedindo que quatro jogadores formem a barreira. A confusão é tão grande
que os garotos não sabem nem o local da falta nem a que distância a
barreira deve se posicionar. Quando pedem ajuda de José Roberto, ele não
demonstra dar muita importância ao fato. Os jogadores, então, cobram a
falta de qualquer maneira; e o lance, que poderia levar perigo ao time sem
camisas, termina sem grandes consequências. Devido à forma acirrada
como a partida é disputada, José Roberto é solicitado diversas vezes para
arbitrar sobre cobranças de faltas, laterais e escanteios. Como os jogadores
estão a meio termo entre o futebol profissional e as formas “bricoladas”
de futebol, existe uma evidente necessidade de controle das situações de
ruptura por meio da gestão da incongruência. Esse papel cabe, quase que
invariavelmente, a José Roberto. No entanto, quando ele não corresponde
ao que lhe é solicitado, os garotos procuram formas de resolver os impasses.
Quase sempre essas formas são dadas por quem grita mais e mais alto.
A partida desenvolve-se com pouca qualidade. Além do grande
número de faltas, boa parte dos garotos, no afã de demonstrar suas
habilidades, insiste em correr com a bola, prendendo o jogo no meio
217
Jorge Ventura de Morais, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos
de campo e criando poucas oportunidades de gol. Em outras ocasiões,
dinâmica semelhante foi observada, mas, neste dia, especificamente, a
dificuldade parece haver sido mais acentuada, o que levou José Roberto a
adotar atitude mais dura. Com efeito, ele introduz uma espécie de “nova
regra” em que os garotos são obrigados a dar apenas dois toques na bola:
um para o domínio, outro para o passe. O não cumprimento da “nova
regra” resulta na perda da posse da bola e na marcação de tiro livre indireto
para o time adversário.
Inicialmente, grande parte dos garotos demonstra surpresa com
a introdução da “nova regra”, mas, na medida do possível, eles tentam
cumpri-la. Alguns, com mais dificuldades, irritam-se com sua aplicação.
“‘Professor’, não foram três, foram dois, foram dois [toques]!”, tenta
negociar um dos jogadores que fora penalizado. Outro, que estava de fora
da partida, “ensina” que, com a nova regra, os jogadores têm de “dominar
e meter um bicudo pra frente”. Após realizar várias substituições para
dar oportunidade a garotos que ainda não haviam jogado, José Roberto,
mediante pedido dos garotos, decide abolir a “regra” dos dois toques,
ressaltando, no entanto, que “é livre agora, mas se prender muito a bola,
eu boto os dois toques de novo rapidinho”. Os garotos parecem haver
aprendido a lição dos dois toques. O jogo passa a correr mais facilmente
e com mais objetividade. Mais uma vez fica claro o ponto a que já
fizemos alusão acima, quer dizer, o choque entre as práticas do futebol
de bricolagem e a prática coletiva e mais organizada imposta pelo futebol
profissional; isto é o mesmo que dizer: um choque entre as disposições
corporais trazidas do futebol mais flexível ou informal das peladas e
as novas disposições corporais exigidas pela até então desconhecida
coletividade em que procuram se inserir.
Ainda são necessárias algumas observações acerca das condições
em que as partidas são realizadas, da negociação e da aplicação das regras.
Para tanto, lembramos a seguinte afirmação de Schatzki (1996: 60-61):
Como qualquer leitor de Wittgenstein sabe, este processo [de
desenvolvimento de uma criança] envolve a afirmação extensa, correção,
definição ostensiva, a referência aos paradigmas, as tentativas de sinais
de desaprovação, a citação de regras, observação, participação, e assim
por diante.
218
Treinamento de táticas coletivas e disciplinamento dos corpos [...] de Técnicas Futebolística
De fato, a informalidade do campo e da arbitragem, em
treinamentos como os descritos acima, parece confundir os atletas quanto
à necessidade de cumprir algumas delas; e, em pelo menos mais três lances
observados, isso ficou evidente. Inicialmente, ao ver o centro ser batido
para trás, contrariando o que determina a regra, José Roberto reclama com
os jogadores e determina que a jogada seja refeita corretamente. Em um
segundo momento, uma bola é recuada para o goleiro, que a segura com
as mãos, o que também contraria uma regra do futebol, assim procede o
garoto talvez imaginando que tal regra não seria ali aplicada. José Roberto,
então, paralisa o jogo e repara a ruptura da regra, o que gera reclamações
dos garotos que tentam manter a decisão do goleiro e contrariar a regra.
Por fim, em um terceiro momento, um dos garotos do time com camisas
mete a mão na bola e se desespera com a marcação de José Roberto:
“Eeeei, ‘professor’! Foi bola na mão, ‘professor’!”. José Roberto ignora a
reclamação e mantém a decisão da falta. Enquanto isso, um dos goleiros
que está à beira do gramado comenta às gargalhadas: “Bola na mão com
o braço levantado, é?!”.
Neste momento, em particular, várias interrupções são feitas por
José Roberto. Atuando como treinador e intervindo na partida de forma
mais próxima à arbitragem oficial, ele passa a organizar as barreiras e
interrompe várias jogadas para corrigir o posicionamento dos jogadores.
Em uma cobrança de escanteio para o time com camisas, por exemplo,
José Roberto distribui o ataque do time sem camisas colocando os
jogadores livres “na sobra” em que se recebe a bola para puxar um rápido
contra-ataque. Depois mostra como a defesa do time com camisas está
mal posicionada, uma vez que não há ninguém marcando os atacantes do
outro time nem ninguém colocado para ficar “na sobra”. José Roberto,
então, orienta o posicionamento dos zagueiros e manda o lance seguir.
Trata-se, como dissemos no início, do treinamento dos corpos para o
desenvolvimento de noções práticas de espaço (Cf. SCHATZKI, 2007,
capítulo 4).
Em síntese, pelo que observamos no conjunto de treinamentos
descritos, os garotos foram obrigados a lidar, em boa parte do tempo,
com situações de choque entre suas disposições corporais trazidas do
futebol das ruas e as novas disposições corporais e disciplinamento tático
219
Jorge Ventura de Morais, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos
impostos pelo fazer coletivo do futebol profissional. Da organização
da barreira à “nova regra” dos dois toques, passando pela marcação de
laterais e faltas, muitos elementos pareciam fora de ordem. Dessa maneira,
a resolução prática da incongruência tornou-se constante entre os atletas.
Quando estes não foram capazes de restaurar a ordem e recomeçar o jogo,
as intervenções de José Roberto fizeram este papel. Isso não significa,
no entanto, que ele detivesse todas as qualidades ou exercesse todos os
atributos de um árbitro de futebol que o credenciariam a arbitrar a partida.
Pelo contrário, em diversos momentos estava evidente que a preocupação
maior de José Roberto não era a restauração da ordem por meio das regras,
mas a implementação e o ensino das regras e o disciplinamento tático e
corporal aos jovens “aprendizes”. O uso da autoridade ali exercido não
correspondia necessariamente ao de um árbitro de futebol. José Roberto
cumpria sobretudo a função de professor mesmo, de um treinador
preocupado com a cobrança de centro irregular, com a organização do
ataque e da defesa dos times em situações reais de jogo.
Como Barnes (2001: 19-20) procurou explicitar, uma teoria das
práticas sociais não pode prescindir do pensamento e do estabelecimento
de metas por parte dos atores sociais: “A prática deve ser tratada como
envolvendo o pensamento e a ação em conjunto, e na medida em que este
for o caso, uma teoria encarnada (embodied), por assim dizer, é uma parte
da própria prática”.
Ou como afirma Loïc Wacquant, escrevendo sobre a aprendizagem
e prática dos boxeadores:
Através da repetição interminável dos mesmos exercícios (simulação,
socar uma variedade de sacos, saltar corda, sparring e ginástica), ele aprende
a dialogar com, e a monitorar, diferentes partes do corpo, esforçando-se
para expandir seus poderes sensoriais e motores, a estender sua tolerância
à tensão e à dor, e a coordená-las cada vez mais de perto à medida em que
o seu organismo absorve lentamente os esquemas acionais e perceptivos
constitutivos do ofício do pugilista (1995: 511 [Traduzimos]).
De fato, no processo descrito, os garotos também gozavam de
certa liberdade, demonstrada nas diversas negociações entre estes e o
“professor”. Nota-se, portanto, a existência de um processo de aprendizado
220
Treinamento de táticas coletivas e disciplinamento dos corpos [...] de Técnicas Futebolística
de mão dupla. A experiência de futebol de José Roberto, como técnico, ou
“professor”, é mesclada às experiências práticas de jovens “aprendizes” de
jogador, sejam estas apreendidas nas escolinhas, nas peladas, no futebol de
várzea ou nas observações de partidas acompanhadas através da televisão.
As trocas de experiências ocorridas durante o “peneirão” e as “novas”
práticas introduzidas logo nos primeiros treinamentos contribuem para a
formação do conhecimento prático futebolístico dos jovens atletas nelas
envolvidos. Conhecimento este que os capacitará para possíveis e reais
situações de jogo no futuro, seja em relação aos fundamentos e às táticas
empregadas no futebol moderno, seja em relação às regras do jogo.
6. Considerações Finais
Neste artigo procuramos analisar as experiências de um grupo
de garotos que se submeteu ao “vestibular” para as categorias de base
de um time de futebol profissional. Procuramos mostrar, com base em
uma sociologia das práticas sociais, como é possível entender o processo
de formação de um jogador de futebol através do disciplinamento dos
corpos pelo uso de técnicas coletivas de disposições táticas.
A nossa análise revela que a série de exercícios de disciplinamento
tático e corporal a que são submetidos os “aprendizes” de futebol nas
categorias de base de um clube de futebol profissional permite-lhes gerir
as incongruências, isto é, enfrentar as situações de imprevisibilidade
inerentes ao futebol. As práticas sociais coletivas a que são submetidos os
garotos nas categorias de base lhes fornecem a base a partir da qual podem
lidar com o alto grau de contingência existente mesmo em um esporte tão
popular e praticado como o futebol, e mesmo desde os primeiros anos de
uma criança.
Mostramos também que há um choque entre práticas incorporadas
no futebol mais flexível ou informal, das ruas, e as práticas coletivas
impostas na organização do futebol moderno profissional. Porém, longe
de ser resolvido de antemão por meio de regras abstratas, este choque é
solucionado na prática coletiva dos atores enredados na rede social do
futebol. E são estas práticas comungadas pelo grupo que permitirão aos
221
Jorge Ventura de Morais, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos
“aprendizes” de futebol aquilo que Bourdieu (2009a e 2009b) chamou de
“senso prático do jogo”.
Bibliografia
BARNES, Barry (2001). “Practice as collective action”. In: T. Schatzki,
K. Knorr Cetina e E. von Savigny (Orgs.), The practice turn in contemporary
theory. Londres e Nova York, Routledge.
BOHMAN, James (1999). “Practical reason and cultural constraint: agency
in Bourdieu’s theory of practice”. In: R. Shusterman (Org.), Bourdieu: a
critical reader. Oxford, Blackwell.
BOURDIEU, Pierre (2009a). Outline of a theory of practice, 24a impressão.
Cambridge. Cambridge University Press.
__________ (2009b). The logic of practice. Cambridge, Polity Press.
__________ Bouveresse, Jacques (1999). “Rules, dispositions, and the
habitus”. In: R. Shusterman (org.), Bourdieu: a critical reader. Oxford,
Blackwell.
BLOOR, David (1983). Wittgenstein: a social theory of knowledge. Nova York,
Columbia University Press.
_________ (2001). “Wittgenstein and the priority of practice”. In: T.
Schatzki, K. Knorr Cetina e E. von Savigny (Orgs.), The practice turn in
contemporary theory. Londres e Nova York, Routledge.
_________ (2002). Wittgenstein, rules and institutions. Londres e Nova York,
Routledge.
BROMBERGER, Christian (2008). “As práticas e os espetáculos esportivos
na perspectiva da etnologia”. Horizontes Antropológicos. No 30: 237-253.
222
Treinamento de táticas coletivas e disciplinamento dos corpos [...] de Técnicas Futebolística
COULTER, Jeff (2001). “Human practices and the observability of the
‘macro-social’”. In: T. Schatzki, K. Knorr Cetina e E. von Savigny (orgs.),
The practice turn in contemporary theory, Londres e Nova York, Routledge.
CUNHA, Sergio A., BINOTTO, Mônica R. & BARROS, Ricardo M. L.
de (2001). “Análise da variabilidade na medição de posicionamento tático
no futebol”. Revista Paulista de Educação Física. Vol. 15, No 2: 111-116.
DAMO, Arlei Sander (2008). “Dom, amor e dinheiro no futebol de
espetáculo”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. No 66: 139-150.
DREYFUS, Hubert & Paul Rabinow (1999). “Can there be a science
of existential structure and social meaning?”. In: R. Shusterman (Org.),
Bourdieu: a critical reader. Oxford, Blackwell.
DUNNING, Eric & Graham Curry (2006). “Public school, status rivalry
and the development of football”. In: E. Dunning, D. Malcolm and I.
Waddington (Orgs.), Sport histories: figurational studies of the development of
modern sports. Londres, Routledge.
ELIAS, Norbert & DUNNING, Eric (1966). “Dynamics of group sports
with special reference to football”. British Journal of Sociology. vol. 17, No 4:
388-402.
FERRAZ, Osvaldo L. (1997). “O desenvolvimento da noção de regras
do jogo de futebol”. Revista Paulista de Educação Física. Vol. 11, No 1: 27-39.
GARFINKEL, Harold (1963). “A conception of, and experiments with,
“trust” as a condition of stable concerted events”. In: O. J. Harvey (Org.),
Motivation and social interaction: cognitive determinants. New York, The Ronald Press
Company.
__________ (1984). Studies in ethnomethodology. Cambridge, Polity.
GIGLIO, Sérgio S. et al. (2008). “O dom de jogar bola”. Horizontes
Antropológicos. No 30: 67-84.
HALL, Harrison (1993). “Intentionality and world: division I of Being
and Time”. In: C. Guignon (Org.), The Cambridge companion to Heidegger.
Cambridge, Cambridge University Press.
223
Jorge Ventura de Morais, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos
HOY, David C. (1993). “Heidegger and the hermeneutic turn”. In:
C. Guignon (Org.), The Cambridge companion to Heidegger. Cambridge,
Cambridge University Press.
KENNY, Anthony (1975). Wittgenstein. Harmondsworth, Pelican.
KEW, Francis (1986). “Playing the game: an ethnomethodological
perspective”. International Review for the Sociology of Sport. Vol. 21, No 4: 305322.
__________ (1987). “Contested rules: an explanation of how games
change”. International Review for the Sociology of Sport. Vol. 22, No 2: 125-135.
__________ (1990). “The development of games: an endogenous
explanation”. International Review for the Sociology of Sport. Vol. 25, No 2: 251267.
__________ (1992). “Game-rules and social theory”. International Review
for the Sociology of Sport. Vol. 27, No 4: 293-307.
KING, Anthony (2004). The structure of social theory. Londres e Nova York,
Routledge.
LAMAS, Leonardo & SEABRA, Fernando (2006). “Estratégia, tática e
técnica nas modalidades esportivas coletivas: conceitos e aplicações”.
In: D. de Rose Jr. (Org.), Modalidades esportivas coletivas. Rio de Janeiro,
Guanabara Koogan.
LYNCH, Michael (2001). “Ethnomethodology and the logic of practice”.
In: T. Schatzki, K. Knorr Cetina e E. von Savigny (Orgs.), The practice turn
in contemporary theory. Londres e Nova York, Routledge.
MARGOLIS, Joseph (1999). “Pierre Bourdieu: habitus and the logic
of practice”. In: R. Shusterman (org.), Bourdieu: a critical reader. Oxford,
Blackwell.
MORAIS, Jorge Ventura de & BARRETO, Túlio Velho (2009). “La
regla del fuera de juego y la dinámica del fútbol: un análisis a partir de la
sociología figuracional”. In: C.V. Kaplan & V. Orce. (Orgs.), Poder, prácticas
224
Treinamento de táticas coletivas e disciplinamento dos corpos [...] de Técnicas Futebolística
sociales y proceso civilizador: los usos de Norbert Elias. Buenos Aires e México
(DF), Editora Noveduc.
__________ (2011). “The flexibility of football rules and the dynamics of
the game: a figurational analysis of the offside law”. Soccer and Society. Vol.
12, No 2: 212-217.
RODRIGUES, Francisco Xavier Freire (2003). A formação do jogador de
futebol no Sport Club Internacional. Dissertação de Mestrado, Programa de
Pós-Graduação em Sociologia/IFCH/UFRS.
RORTY, Richard (1993). “Wittgenstein, Heidegger, and the reification
of language”. In: C. Guignon (Org.), The Cambridge companion to Heidegger.
Cambridge, Cambridge University Press.
SCHATZKI, Theodore R. (2001a). “Introduction: practice theory”. In:
T. Schatzki, K. Knorr Cetina e E. von Savigny (Orgs.), The practice turn in
contemporary theory. Londres e Nova York, Routledge.
_________ (2001b). “Practice mind-ed orders”. In: T. Schatzki, K. Knorr
Cetina e E. von Savigny (Orgs.), The practice turn in contemporary theory.
Londres e Nova York, Routledge.
_________ (2002). The site of the social: a philosophical account of the constitution
of social life and change. Pensilvânia, Pennsylvania State University Press.
_________ (2007). Martin Heidegger: theorist of space. Stuttgart, Franz
Steiner Verlag.
_________ (2008). Social practices: a Wittgensteinian approach to human activity
and the social. Cambridge, Cambridge University Press.
SILVA, Carlos A. F. da (1998). “As regras do jogo e o jogo das regras”.
In: S. J. Votre (Org.), Representação social do esporte e da atividade física: ensaios
introdutórios. Brasília, Ministério da Educação e do Desporto/INDESP.
SWIDLER, Ann (2001). “What anchors cultural practices”. In: T. Schatzki,
K. Knorr Cetina e E. von Savigny (orgs.), The practice turn in contemporary
theory. Londres e Nova York, Routledge.
225
Jorge Ventura de Morais, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos
TAYLOR, Charles (1993). “Engaged agency and background in
Heidegger”. In: C. Guignon (org.), The Cambridge companion to Heidegger.
Cambridge, Cambridge University Press.
__________ (1999). “To follow a rule…”. In: R. Shusterman (org.),
Bourdieu: a critical reader. Oxford, Blackwell.
THÉVENOT, Laurent (2001). “Pragmatic regimes governing the
engagement with the world”. In: T. Schatzki, K. Knorr Cetina e E. von
Savigny (Orgs.), The practice turn in contemporary theory. Londres e Nova York,
Routledge.
TOLEDO, Luiz Henrique de (2002). Lógicas do futebol. São Paulo, Hucitec.
TURNER, Stephen (2001). “Throwing out the tacit rule book: learning
and practices”. In: T. Schatzki, K. Knorr Cetina e E. von Savigny (orgs.),
The practice turn in contemporary theory. Londres e Nova York, Routledge.
VENDITE, Caroline C. & DE MORAES, Antonio Carlos (s/d), Sistema,
estratégia e tática de jogo no futebol: análise do conhecimento dos profissionais que
atuam no futebol. Trabalho apresentado ao NP 18 – Comunicação e Esporte,
do IV Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom.
WACQUANT, Loïc (1995). “The pugilistic point of view: how boxers
think and feel about their trade”. Theory and Society. Vol. 24, No 4: 489-535.
WILSON, Jonathan (2009). Inverting the pyramid: the history of football tactics.
Londres, Orion.
WINCH, Peter (2008). The idea of a social science and its relation to philosophy.
Londres e Nova York, Routledge.
WRIGHT MILLS, C. (1940). “Situated actions and vocabularies of
motives”. American Sociological Review. Vol. 5, No 6: 904-913.
226
Corpos em Concerto: diferenças, desigualdades e desconformidades
CONSUMO DE PSICOFÁRMACOS:
entre o cuidado consigo e a sintetização da catarse
Jonatas Ferreira
Erliane Miranda
Introdução
Em um sentido amplo, a psicofarmacologia é quase tão antiga
quanto a humanidade. Três mil anos antes de Cristo, os sumérios já
plantavam papoulas das quais extraiam um suco apropriadamente chamado
de “sortudo” ou “feliz”, “uma indicação de que eles conheciam bem a
ação do ópio, sua capacidade de despertar um humor luminoso, eufórico”
(SPIEGEL, 2003, p. 28). dois mil anos antes de Cristo, os chineses
usavam o ópio como sedativo, a mandrágora como afrodisíaco e o haxixe
como anestésico90. No primeiro século da era cristã, Galeno analisou,
em seu Corpus Hippocraticum, as propriedades analgésicas e soporíferas
do ópio, recomendando moderação no seu uso. Todos já lemos acerca
das experiências psíquicas que no século XIX artistas como Baudelaire,
Nerval, Thomas de Quincey, entre tantos outros, tiveram com essa mesma
substância, ou com sua versão atenuada, isto é, com o láudano. Do mesmo
modo, o consumo do haxixe, ayahuasca e outras substâncias psicoativas
pode ser identificado em várias culturas e períodos históricos. A associação
entre farmacologia e psiquiatria, no entanto, é algo bem mais recente, o
que parece óbvio, posto que a moderna psiquiatria não chega a ter dois
séculos de existência.
Ainda em seus primórdios, a psiquiatria dispunha de sua lista de
medicamentos a serem administrados em pacientes mentais: ópio, beladona
e mandrágora eram as principais drogas administradas (SPIEGEL, 2003).
O desenvolvimento de uma farmacologia – ou seja, do estudo químico90
Fonte: <http://www.psicmed.com.br/psicofarmacos_26.html>; acesso: 10 jun de 2010.
227
Jonatas Ferreira e Erliane Miranda
farmacêutico sistemático – preocupada em vincular o uso do medicamento
às grandes transformações da medicina do século XIX ocorreu com a
instituição de práticas médicas que corresponderam ao surgimento de
uma medicina hospitalar e ao desenvolvimento da anatomoclínica. Este
desenvolvimento foi seguido pelo estabelecimento da medicina laboratorial
através do “desenvolvimento dos programas ligados à patologia celular,
fisiopatologia e etiologia, que procuravam apoiar a medicina nas ciências
físico-químicas e biológicas modernas” (DIAS, 2003, pp. 41-46). Em
grande medida, a farmacologia que acompanhou o desenvolvimento da
psiquiatria no século XIX e boa parte do século XX mantinha como foco
a sedação dos pacientes, a redução de sua ansiedade, e era completamente
compatível com as preocupações biopolíticas do século XX: adestrar,
disciplinar, regular, promover a docilidade dos corpos. Outro impulso biopolítico
é de se esperar num capitalismo cujo centro dinâmico passa da produção
para o consumo, do controle do desejo para a sua mobilização incessante.
Quanto à psicofarmacologia contemporânea, que se fundamenta
na “história da neurotransmissão química” (STAHL, 2000, p. 1) e se destina
ao conhecimento das reações farmacológicas, bioquímicas e moleculares
de drogas que têm a capacidade de agir sobre processos cerebrais, ela
tem pouco mais de meio século (GUIMARÃES apud GUIMARÃES;
GRAEFF, 1999) e mantém forte diálogo com a psiquiatria e tudo que
ela significou nas últimas décadas. De forma mais ou menos encadeada,
é possível pontilhar esta ligação mediante a constatação do que se
convencionou classificar como patologia mental, ou seja, aquilo que se
elege como patológico, como alvo de normalização. Considerando isto,
permitam-nos uma breve periodização do modo como a psiquiatria vem
reconhecendo, ao longo dos anos, seu objeto de atuação.
• Em 1785 foi publicado o primeiro ensaio para uma classificação
sistemática das doenças, o Synopsis nosologiae methodicae (Sinopse de métodos
nosológicos), que constituiu um auxílio para os estudos estatísticos de
morbidade que se realizavam no século XVIII. A Sinopse de Métodos
Nosológicos serviu de base para a composição da International Classification
of Disease (Classificação Internacional de Doenças), que foi publicada
em 1898 para servir de parâmetro internacional com fins de gestão, uso
228
Consumo de psicofármacos: entre o cuidado consigo e a sintetização da catarse
clínico e controle epidemiológico, com apoio da OMS (SILVA; LEITE,
2010);
• Em 1918 foi publicado o primeiro manual exclusivo para classificação de
doenças mentais nos Estados Unidos – o Statistical Manual for the Use of
Hospitals for Menthal Diseases (Manual de Estatística para a utilização dos
Hospitais de Doenças Mentais). De acordo com Horwitz e Wakefield
(2010), este manual “dividia os transtornos mentais em 22 grupos
principais” (2010, p. 102) e, embora ainda carregasse influência da
perspectiva kraepeliniana – que considerava “causas físicas latentes”
(2010, pp. 104-108) em sua abordagem – já contemplava a perspectiva
da psiquiatria biopsicossocial mayeriana – do transtorno psiquiátrico
como uma “disfunção” da capacidade humana de reagir a “problemas
cotidianos” (2010, p. 102). À época, ainda era comum que clínicos
gerais, padres, familiares e amigos auxiliassem sujeitos acometidos por
problemas de ordem psíquica considerados menores, ou seja, que não
implicassem em nenhum tipo de desarranjo maior ao próprio sujeito em
questão nem ao seu meio, e, por isso, o uso deste manual era restrito aos
limites hospitalares (HORWITZ; WAKEFIELD, 2010);
• Em 1940, sob a alegação de que a Classificação Internacional de Doenças
(CID) não atendia às expectativas de problemas mentais emergentes
dos combatentes de guerra dos Estados Unidos, a Administração de
Veteranos e a Marinha dos EUA desenvolveram seus próprios sistemas
classificatórios de doenças a fim de contemplar “os distúrbios agudos,
psicossomáticos e transtornos de personalidade” (AGUIAR, 2004, p. 27)
que afligiam estes sujeitos;
• Em 1948, já em sua sexta edição, a CID incluiu uma seção para os
transtornos mentais, mas ainda desconsiderava “síndromes cerebrais
crônicas, bem como vários transtornos mentais e situações reativas de
interesse dos clínicos americanos” (AGUIAR, 2004, p. 27) – deixando de
responder às necessidades colocadas, por exemplo, pela Administração
de Veteranos e a Marinha dos EUA, no início desta mesma década;
• Na década de 1950 descobriu-se que o Ácido Lisérgico (LSD) associado
à mescalina auxiliava na prática da oniro-análise (PSICMED)91 e que
91
Fonte: <http://www.psicmed.com.br/psicofarmacos_26.html>; acesso: 24 mar de 2007.
229
Jonatas Ferreira e Erliane Miranda
a clorpromazina atuava na melhora de “pacientes esquizofrênicos”
(GRAEFF; GUIMARÃES, 1999 [Prefácio]);
• Em 1952 a Associação Médico-Psicológica Americana (posteriormente
reconhecida como Associação Psiquiátrica Americana) publicou outra
classificação de doenças – para uso dos EUA – que considerava as “situações
reativas”. Tratava-se da primeira versão do Diagnostic and Statistical Manual of
Mental Disorders (DSM) – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais. O DSM legitimou a “doença mental como uma reação a problemas
da vida e situações difíceis encontradas pelos indivíduos”. Essa definição passou
a cobrir um espectro amplo de sofrimentos mentais e foi um passo decisivo na patologização
desse sofrimento (AGUIAR, 2004, p. 27);
• Em 1968 foi lançado o DSM-II. Esta segunda versão do DSM
representou uma tentativa de compatibilizar o discurso psicanalítico e
psiquiátrico: abandonou a perspectiva da biopsicossociabilidade e acatou
uma influência ainda maior da psicanálise. O DSM-II considerava que “as
diferentes formas de perturbações mentais” correspondiam “a diferentes
níveis de desorganização psicológica do indivíduo” (AGUIAR, 2004, pp.
27-28);
• Na década de 1970, o programa norte-americano federal que reembolsava
integralmente as seguradoras filiadas responsáveis pelos tratamentos
psiquiátricos alegou que não havia clareza suficiente nas “terminologias”
psicanalíticas que justificavam orientação, diagnóstico, cuidado e pesquisa
dispensados às doenças mentais e considerou os investimentos neste
segmento da saúde um “poço sem fundo” (AGUIAR, 2004, pp. 40-41);
• Em 1987 foi lançado o Prozac®, primeira droga a base de Fluoxetina
lançada nos Estados Unidos capaz de interceder na produção de
serotonina do cérebro e, portanto, auxiliar no tratamento de sintomas
depressivos. Promovido em escala mundial, simultaneamente, entre
a comunidade médica e os pacientes diagnosticados com sintomas
depressivos, o Prozac® tornou-se a fonte de mais de 30% do faturamento92
do laboratório Eli Lilly e inaugurou a era da “psicofarmacologia cosmética”
(AGUIAR, 2004, p. 108);
Fonte:<http://obid.senad.gov.br/portais/OBID/conteudo/web/noticia/ler_noticia.php?id_noticia
=101133>; acesso: 12 dez de 2008.
92
230
Consumo de psicofármacos: entre o cuidado consigo e a sintetização da catarse
• Em 1980 foi a vez do DSM-III. A terceira versão do Manual Diagnóstico
e Estatístico de Transtornos Mentais afastou-se da perspectiva
psicanalítica de condicionar o diagnóstico à biografia do sujeito doente
e passou a priorizar a identificação de “critérios diagnósticos explícitos e
objetivos para cada categoria” de transtorno mental através da depuração
de “eixos” que abrangiam desde a classificação patológica da própria
personalidade até “escalas de avaliação para a gravidade dos estressores
sociais e avaliação global do funcionamento” (AGUIAR, 2004, p. 31).
O DSM-III promoveu a possibilidade da “criação de questionários
diagnósticos estruturados para a aplicação de estudos epidemiológicos”,
e com isso, também a possibilidade da aplicação destes questionários por
“leigos” (AGUIAR, 2004, p. 89). E esse é um segundo e importante momento de
patologização do sofrimento;
• Em 1994 foi lançado o DSM-IV. Esta quarta versão do DSM rompeu
definitivamente com as descrições psicanalíticas e se configurou numa
“classificação dos transtornos mentais desenvolvida para uso em
contextos clínicos, educacionais e de pesquisa” (AGUIAR, 2004, p. 83).
A relevância de tais mudanças para a comunidade médico-científica
pode ser ilustrada pelo resgate dos investimentos no segmento da saúde
mental: no mesmo ano da publicação do DSM-IV, o National Institute of
Menthal Health (NIMH) dispensou US$ 600 milhões para pesquisas neste
segmento (AGUIAR, 2004).
A relação da legitimação do objeto da psiquiatria com questões
eminentemente políticas é inegável e tem efeitos diversos. Pesquisadores
que militam em favor do uso racional de todo e qualquer medicamento
alopático, incluindo os psicofarmacológicos, reconhecem que o processo
da adequação da psiquiatria às metodologias médica e científica concorreu
para a implantação do controle tanto da qualidade como da segurança do
uso terapêutico de medicamentos em todo o mundo (BARROS, 2008;
AGUIAR, 2004). Neste sentido, o Estado passou a cuidar da legalização
de órgãos competentes para acompanhar o processo de disponibilização
deste tipo de medicamento, da sintetização à venda, passando pela
propaganda. No Brasil, este papel é desempenhado pela Agência Nacional
de Vigilância Sanitária (ANVISA) desde 1999. Um efeito emergente deste
mesmo processo, entretanto, é a partilha do “quinhão” do objeto da
231
Jonatas Ferreira e Erliane Miranda
psiquiatria com outras especialidades médicas, que se deu na medida em
que esta especialidade recalibrou o foco de suas preocupações para algo
menos específico que a doença mental, ou seja, para o sofrimento. Se, por
um lado, a psiquiatria passou a ter um espectro de atuação mais amplo,
por outro, ela abriu o monopólio da prescrição de alguns psicofármacos
para outras especialidades médicas que lidam de alguma forma com o
sofrimento psíquico. Do ponto de vista do diagnóstico, a reificação do
sofrimento significa que qualquer especialista médico - cardiologista,
ginecologista, clínico geral etc. - pode lançar mão de um manual vigente
e orientar-se sobre uma série de sintomas que só era “autenticada” pelo
especialista psiquiatra. Do ponto de vista dos interesses da indústria de
psicofármacos, essa tendência é indubitavelmente bem-vinda. É isto que
está implícito, por exemplo, na análise que Horwitz e Wakefield (2010, pp.
18-19) fazem da explosão da depressão nos EUA.
Argumentamos que, na verdade, a suposta explosão recente de casos de
transtorno depressivo não deriva primordialmente de um aumento real
no número de pessoas com doença. Ao contrário, é, em grande medida,
consequência da confusão entre essas duas categorias conceitualmente
distintas – tristeza normal e transtorno depressivo – e, portanto, da
classificação de muitos casos de tristeza normal como transtornos
mentais. A atual “epidemia”, embora seja resultado de muitos fatores
sociais, tornou-se possível por uma modificação na definição psiquiátrica
de transtorno depressivo, a qual frequentemente permite a classificação
de tristeza como doença, mesmo quando não é.
É possível afirmar que os psicofármacos passaram a ser
compreendidos como medicamentos capazes de atuar diretamente sobre a
estrutura biológica do sofrimento humano e que esta perspectiva inaugurou uma
forma de produção “técnica” da subjetividade que corresponde, em certa
medida, àquilo que tem se chamado “biossociabilidade” (RABINOW apud
MARTINS, A.L.B., 2005). Estamos diante de uma terapêutica que é, em
grande medida, pensada à revelia dos processos de tratamento simbólicos,
como a psicanálise. Enquanto, para alguns pensadores, uma das maiores
preocupações com a adoção da terapêutica psicofarmacológica é o uso
irracional destes medicamentos (BARROS, 2008), na medida em que
232
Consumo de psicofármacos: entre o cuidado consigo e a sintetização da catarse
esse uso negligencia “uma ecologia do corpo, que merece ser preservada
e poupada da poluição e intervenções farmacológicas desnecessárias”
(AQUINO, 2008), para outros, como Fukuyama (2003) e Habermas
(2000), a descoberta de medicamentos que permitiriam “aliviar o
sofrimento humano” podem culminar na busca pela solução química de
problemas existenciais, no ato de delegar a uma droga de última geração a
responsabilidade de lidar com frustrações intransferíveis e dores cotidianas
(EHRENBERG, 1995, pp. 125-127). Um maior poder da indústria
farmacêutica frente aos médicos e instituições de regulação e controle
sobre a circulação de medicamentos, sua própria capacidade de definir o
que é objeto de intervenção medicamentosa em função daquilo que pode
ofertar, a transformação do paciente psiquiátrico em um consumidor, dá
força às preocupações de Ehrenberg, Barros e Aquino. Esta mudança,
em uma medida significativa, estava implícita no momento em que
o psicofármaco passou a constituir parte da terapêutica de pacientes
tradicionalmente tratados por meio da psicanálise, ou seja, pacientes em
estado de sofrimento psíquico, mas em quem não se podia identificar
uma patologia psiquiátrica. Contudo, ainda que alguns entendam que
uma maior autonomia dos pacientes não signifique necessariamente um
mal (NIKOLAS ROSE, 2006) e até possa indicar ampliação dos espaços
de cidadania, é patente o lugar da constatação de que uma modificação
radical está ocorrendo no que diz respeito ao que se convencionou pensar
como terapêutica psicológica.
Hoje é mais difícil operar a partir de uma separação clara entre
as dimensões simbólicas e químicas do sofrimento psíquico, entre as
necessidades de libertação pela rememoração de um neurótico, digamos,
e as necessidades fisiológicas de um paciente psicótico. Uma crise de
ansiedade pode e comumente é rapidamente medicada. Acreditamos
que tudo isso não é consequência exclusiva da transição da atuação da
medicina de uma perspectiva integrada para uma disposição fenomenista,
ou seja, que passou a tratar o mal-estar subjetivo como coisa-em-si, mas
antes algo que corresponde também às demandas do sujeito moderno,
responsável por si (GIDDENS, 2002), que precisa se compor em tempo
real e é “meio” de uma sociedade que converteu os níveis satisfatórios de
bem-estar e cuidado em possibilidades de consumo (BARROS, 2004).
233
Jonatas Ferreira e Erliane Miranda
Quais as consequências disto? De um lado a reflexividade passou a
figurar uma espécie de bússola que orienta a monitoração dos indivíduos
com relação à perspectiva de sofrimento psíquico ou à deficiência em
obter um prazer adequado no consumo disponível. Aqui percebemos
a ideia de reflexividade não circunscrita à atuação de um dispositivo
inerentemente humano e, especialmente, individualista, que garanta uma
forma de o sujeito se colocar adequadamente no mundo, isto é, como
atividade cotidiana necessária à segurança ontológica que provê o sujeito
moderno da crença e confiança na autoidentidade, no meio em que vive
(GIDDENS, 1991), e que, por outro lado, possibilite sua adaptação, ação
e resposta constante ao imprevisível, ao inédito, ao inusitado. Notamos
que a reflexividade converteu-se na própria condição “funcional” para
esta continuidade a partir de dispositivos como o da informação e da
comunicação, que implicam em uma nova maneira de se relacionar com
“modos de vida culturais específicos” (LASH, 1997, p. 138). Disto, o
elemento de adaptabilidade da noção de reflexividade passa a nos interessar
bem mais que o pressuposto giddensiano de um exercício subjetivo que
busca diuturnamente a reconstituição de um eixo interno de coerência.
De uma perspectiva da relação entre o consumo de psicofármacos
e o cuidado consigo, suspeitamos que o problema se coloca quando a
dimensão simbólica do sofrimento não consegue encontrar espaços
adequados de realização diante de entraves culturais amplos que colocam
a “medicalização da vida” como saída prioritária para nossos problemas
existenciais.
Dedicaremos o próximo tópico a isso que chamamos de crise da
psicanálise, mas que, evidentemente, diz respeito, como veremos, a uma
crise cultural bem mais ampla. Em seguida, buscaremos confrontar essas
primeiras suposições com uma pesquisa empírica realizada entre os anos
de 2008 e 2009 junto a consumidores de psicofármacos.
234
Consumo de psicofármacos: entre o cuidado consigo e a sintetização da catarse
A crise da psicanálise como crise cultural ampla:
a impossibilidade da verdade trágica
Contemporaneamente, muito se tem falado de uma crise da
psicanálise e da psiquiatria como formas de lidar com o sofrimento psíquico
e, de modo mais amplo, como formas estabelecidas de conhecimento das
sociedades modernas e nelas exercer algum tipo de cuidado civilizador.
Fala-se na morte do pai, na triste constatação de que o consumo, o
prazer imediato, é hoje forma privilegiada para mitigar a precariedade de
nossos engajamentos, nosso niilismo, nosso “tédio profundo”, como diria
Heidegger, ou a pobreza de nossas experiências, como afirmava Benjamin
nas primeiras décadas do século passado. Benjamin, em seu famoso texto,
fala de uma miséria que resulta da proliferação de vivências rasas, consumidas
com a mesma inconsequência com a qual nos movimentaríamos numa
loja de departamentos: astrologia, ioga, vegetarianismo, quiromancia etc.
etc., tudo está à disposição dos olhos e do estômago civilizados. Tudo está
fadado à mesma aniquilação vertiginosa. A crise da psicanálise, ao nosso
ver, diz, não apenas da perda de prestígio de uma forma de conhecimento
consagrada, confrontada a todo momento com a perspectiva de alívio
imediato, com a disponibilidade de antidepressivos, ansiolíticos, mas uma
crise mais profunda que diz respeito à importância da verdade trágica em
nossa cultura. E é nessa direção, isto é, refletindo acerca do peso do trágico
na cultura ocidental, que deveremos olhar caso desejemos compreender o
significado de práticas contemporâneas de lidar com o sofrimento. Porém,
se essa reflexão mais teórica é o nosso ponto de partida, nossa bússola, ela
não é o seu propósito último. Trata-se, afinal, de analisar o consumo de
psicofármacos como forma de cuidado consigo próprio. Entender aquela
transformação mais ampla e radical não significa saber de antemão o que
o campo nos trará, mas estabelecer grandes linhas sobre as quais a verdade
da investigação empírica pode ser revelada em sua especificidade.
Mas, o que é a verdade trágica e de que modo ela estrutura o projeto
psicanalítico?
Podemos inicialmente dizer que a tragédia é a verdade da filosofia
ocidental e, portanto, da forma como ela vem influenciando diversos
235
Jonatas Ferreira e Erliane Miranda
campos de conhecimento, entre eles, a psicanálise. A tragédia é o lugar
de um pensar que incomoda, lugar em que o mito que organiza a polis é
posto sob uma luz na qual fica exposta sua ambiguidade fundamental.
Sob essa luz, percebemos que o mito é um nó que amarra verdades tensas
e contraditórias. Perceber isso, todavia, é agir de modo a afrouxar seu
poder organizador, é colocá-lo em perspectiva. A tragédia, que surge na
Grécia democrática, traz em si a possibilidade de perturbação dos valores
fundamentais que estruturam a cidade, a ordem pública, exatamente
por colocá-los numa certa epoché. Sua forma dramática e sua retórica
testemunham, segundo Vernant e Vidal-Naquet (2005), um emaranhado
de problemas jurídicos e políticos em meio aos quais o herói trágico
revolve, dando-nos a perceber, de vários modos, os princípios arcônticos
que organizam a vida civilizada. Talvez por isso mesmo Sólon haja reagido
com indignação ao assistir a esse tipo de espetáculo pela primeira vez. Que
Agamenon, Édipo, Orestes, Antígona possam ser vistos numa perspectiva
ambígua que opõe, por exemplo, a verdade humana e a verdade divina,
ethos e daimon, deveres cívicos e deveres de sangue, pareceu insuportável ao
célebre legislador. E aqui temos uma primeira constatação acerca da verdade trágica:
ela perturba por tornar visíveis as tensões, as violências sobre as quais a pólis se organiza
jurídica e politicamente. Para usarmos Derrida, diríamos que a tragédia deixa
ver os “princípios arcônticos” sobre os quais a vida civilizada se estrutura.
Em segundo lugar, deveríamos dizer que a ação trágica, a ação do
herói trágico, não é propriamente algo da esfera da vontade. Vernant e
Vidal-Naquet (2005) observam que o grego clássico sequer dispunha de um
verbo específico para dizer o que corresponderia ao nosso verbo “querer”.
O herói, no entanto, possibilita-nos “uma interrogação ansiosa da relação
do agente com seus atos: Em que medida o homem é realmente a fonte
de suas ações?” (p. 23). Os planos divinos e humanos se contrapõem,
essa é a conclusão a que chegamos ao ver em cena Édipo, por exemplo.
Mas se o querer, a vontade, não define a ação do herói trágico, podemos
dizer que ele é aquele que decide (ou em que algo é decidido) quando essa
decisão é impossível. O herói trágico decide o indecidível. Antígona é presa a
suas obrigações de sangue e, ao mesmo tempo, a seus deveres para com
a cidade de Tebas, a suas obrigações para com divindades ctônicas e, ao
mesmo tempo, para com divindades olímpicas. Ali, na impossibilidade da
236
Consumo de psicofármacos: entre o cuidado consigo e a sintetização da catarse
decisão, algo é decidido. E essa decisão não resolve a tensão sobre a qual saltou: a
ambiguidade, a tensão trágicas continuam pulsando mesmo quando tudo já foi decidido.
Deste ponto de vista, não há verdadeira catarse na tragédia, pois o rastro da violência
continua operando no espectador mesmo findada a ação dramática.
Schelling constata alguma coisa muito parecida com isso em Cartas
sobre o dogmatismo e o criticismo. Porém, aqui a catarse é uma possibilidade
ligada à liberdade do herói diante de forças fatais que o subjugam.
A tragédia grega honrava a liberdade humana ao fazer seu herói lutar
contra o poder superior do destino: para não ultrapassar os limites da
arte, tinha de fazê-lo sucumbir, mas, também para reparar essa humilhação
da liberdade humana imposta pela arte, tinha de fazê-lo expiar – mesmo
que através do crime perpetrado pelo destino... Foi grande pensamento
suportar voluntariamente mesmo a punição por um crime inevitável, a
fim de, pela perda da própria liberdade, provar justamente essa liberdade
e perecer com uma declaração de vontade livre (SCHELLING apud
SZONDI, 2004, p. 29).
A verdade trágica nos fala de algo há muito esquecido, sepultado,
e que retorna. O trágico, nesse sentido, é sempre o retorno de Dionisos,
a sua ressurreição. Édipo constata a verdade do Oráculo de Delfos;
Agamenon redescobre a hybris, a desmedida incompatível com sua
condição de mortal, que o acompanha desde que sacrificou a lebre prenha
de Diana, redescobre a própria ambição e vaidade desmedidas através
da armadilha que lhe propõe Clitemnestra. Assim, Heidegger propõe
que precisamos redescobrir uma dimensão da verdade obscurecida pela
metafísica, e particularmente pela modernidade. Uma verdade que é um
desesquecimento, uma aletheia. Ora, essa dimensão trágica da verdade
também não é fundamental na psicanálise? Sua própria técnica não se
estrutura sempre sobre o retorno de Dionisos? Isso é bastante evidente
no próprio fato de a exegese psicanalítica investir sobre algo como uma
memória do esquecimento, sobre o reprimido que deve vir à consciência.
E esse retorno teria a possibilidade de libertar. O estranho, o estrangeiro retorna na
psicanálise como aquilo que há de mais íntimo. A verdade trágica se estrutura
como rememoração de algo que nos é fundamental mas que, por ser
perturbador, esquecemos.
237
Jonatas Ferreira e Erliane Miranda
Finalmente, podemos dizer que a verdade trágica é um aprendizado
pela dor. Posto que o saber humano está separado do saber divino, todo
aprendizado implica necessariamente um padecer em que se afirmam
valores fundamentais de convívio: a sabedoria, a moderação, a justiça. Tal
é o sentido das linhas de Agamben (2008, p. 27):
É esta a diferença que o coro da Oréstia de Ésquilo sublinha, caracterizando
– contra a hýbris de Agamenon – o saber humano como páthei máthos,
um aprender somente através de e após um sofrimento, que exclui toda
possibilidade de prever, ou seja, de conhecer com certeza alguma coisa.
Por isso também, a verdade trágica nos conduz a um sentimento
de desamparo, de derrelição. Em Agamenon, Ésquilo expõe, de forma
belíssima, o que caracterizaria para o homem grego a relação entre
prudência e experiência. Aos mortais, Zeus abre um só caminho para a
experiência, para a prudência, para o saber: a dor:
Él, que abrió a los mortales
la senda del saber;
Él, que en ley convertiera
“Por el dolor a la sabiduría”.
En vez de sueño rezuma dentro del pecho
un dolor que recuerda el mal antiguo.
Así, aun sin querer, le llega al hombre
la prudencia. Favor violento de los dioses
que en su augusto trono se sientan,
junto al timón!
Por último, diríamos que a verdade trágica se impõe como
discussão semântica, uma discussão acerca do sentido conveniente das
palavras. Essa verdade nos é proposta como acontecimento que ocorre em
meio à constatação de ambiguidades léxicas no discurso dos personagens,
uma homonymia, que se torna “possível pelas imprecisões e ambiguidades
da língua” (VERNANT e VIDAL-NAQUET, 2005, p. 73). A tragédia
é, portanto, o lugar de uma batalha discursiva que se decide de modo
violento, ocasionando a oportunidade de surgimento de uma verdade
marcada de cicatrizes, uma verdade finita. Eis que:
238
Consumo de psicofármacos: entre o cuidado consigo e a sintetização da catarse
Na boca de diversas personagens, as mesmas palavras tomam sentidos
diferentes ou opostos, porque seu valor semântico não é o mesmo na
língua religiosa, jurídica, política, comum. Assim, para Antígona, nómos
designa o contrário daquilo que Creonte, nas circunstâncias em que está
colocado, chama também nómos (VERNANT e VIDAL-NAQUET,
2005, p. 74).
Quando a psicanálise ou o pós-estruturalismo elege o discurso
como campo em que a cultura ocidental será colocada em questão, é um
compromisso com essa verdade antiga que se busca estabelecer.
A verdade trágica constituiu no ocidente um espaço crítico
para colocar em perspectiva o poder, para colocar em epoché nossos
compromissos irrefletidos da vida cotidiana, nosso automatismo, nossa
compulsão, nossa hýbris. Ela se estrutura, como vimos, sobre algumas
ideias-chaves. Primeiro, o trágico é a possibilidade de pensar o mito,
perceber as tensões que o estruturam, afrouxá-las, apropriá-las da
perspectiva de nossa humanidade. Segundo, no trágico algo se decide
mesmo na impossibilidade de decisão. O que diferencia Orestes e Hamlet
não é o problema básico sobre o qual se debruçam: honrar a memória
de um pai assassinado, vingar-se de seu assassino e da própria mãe sobre
quem a cumplicidade paira como uma dúvida ou como uma certeza.
Tampouco a incerteza de quais os compromissos que devem guiá-los. No
Coéforos, de Ésquilo, Orestes chega a vacilar diante dos apelos da mãe,
diante da possibilidade de cometer um crime que o tornará para sempre
impuro. “Oh Pílades, que hacer? Ella es mi madre!” Oscila entre seus
compromissos com seu pai, com Apolo, por um lado, e com sua mãe, por
outro. Hamlet também vacila no que toca aos seus compromissos. Será o
fantasma de seu pai na verdade um demônio? Mas Orestes age quando há
tudo ainda por perder; Hamlet age quando já nenhuma ação faz sentido.
Na Origem do Drama Barroco Alemão (1984), Benjamin fala do traço deste
último tipo de personagem, a acedia, a incapacidade de decidir, o discurso
interminável onde a ação é requerida. Diante do indecidível, o herói do
drama barroco acumula dúvidas e palavras e recusa o gesto trágico. Para
Benjamin, essa é uma marca moderna, a incapacidade da violência da
decisão trágica. Mas, como tal violência pode ser sequer concebida quando
239
Jonatas Ferreira e Erliane Miranda
não há valores em tensão, quando o niilismo da cultura ocidental parece
nossa realidade inquestionável? A terceira ideia-chave, nós a colocamos
assim: “A verdade trágica se estrutura como rememoração de algo que
nos é fundamental mas que esquecemos”. E diante disso perguntaríamos:
o que é mesmo fundamental diante da pobreza de nossa vida cotidiana,
diante da impossibilidade de experiência? E aqui recorremos mais uma vez
a Benjamin. Diante de um mundo que se apresenta como desprovido de
significados últimos, diante do “tédio profundo” da aceleração tecnológica
de que nos fala Heidegger, do niilismo da contemporaneidade, a vivência
do estranho, do não familiar, já não nos retorna algo fundamental. Dionisos
ficou retido em alguma operação de combate ao terror num país oriental.
Mas há ainda um motivo para essa impossibilidade. Para falar sobre ela,
deveremos avançar para nossa quarta ideia-chave.
A verdade trágica implica em um aprendizado pela dor, onde
reconhecemos nossa mortalidade, nossa finitude. E a partir desse
reconhecimento poderemos constituir a experiência de significados
fundamentais. Mas, como nos ensinam Horkheimer e Adorno no Segundo
Excurso da Dialética do Esclarecimento, a cultura moderna se estrutura a
partir de uma distância emocional, uma apatia, de uma analgesia intelectual
que inviabiliza tal tipo de aprendizado. No “Excurso II” da Dialética do
Esclarecimento, dedicada a Sade, Adorno e Horkheimer constatam a esse
respeito:
‘A apatia (considerada como fortaleza) é um pressuposto indispensável
da virtude’, diz Kant, distinguindo essa ‘apatia moral’ (um pouco à
maneira de Sade) da insensibilidade no sentido da indiferença a estímulos
sensíveis. O entusiasmo é mau. A calma e a determinação constituem a
força da virtude (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 93).
E, citando diretamente Sade, eles consideram: “Minha alma é
dura, e estou longe de achar a sensibilidade preferível à feliz apatia de
que desfruto” (p. 94). E para que sofrer se temos analgésico? Para que
entristecer se os antidepressivos estão disponíveis?
Se aqui não estamos fazendo uma defesa explícita de verdade
trágica, acreditamos que ela vem orientando a possibilidade de crítica
na cultura ocidental. Nossa pergunta então é: o que acontece quando os
240
Consumo de psicofármacos: entre o cuidado consigo e a sintetização da catarse
pressupostos dessa cultura são radicalmente transformados? Uma cultura
da medicalização da vida parece-nos apenas uma evidência da escala
dessas transformações: nossa impossibilidade de decidir, nossa acedia,
nossa incapacidade de encontrar um sentido fundamental para nossas
ações, nossa recusa de enfrentar o sofrimento quando esses valores, esses
sentidos, não estão disponíveis. Esse tipo de constatação, no entanto,
peca ao propor um tipo de orientação teórica por atacado, no que pese
ela ajudar a entender dados bastante concretos do trabalho empírico que
orientou a elaboração desse texto.
O Consumo de psicofármacos
O tópico que se segue sintetiza a análise do material empírico
coletado entre os anos de 2008 e 2009. Nesse período, foram realizadas
dezoito entrevistas semiestruturadas com uma rede de informantes
usuários de ansiolíticos e antidepressivos. Esta rede foi formada numa
estratégia de bola de neve e, embora não pretenda ser representativa da
população de consumidores desses tipos de medicamentos na Região
Metropolitana do Recife, onde o estudo se realizou, acreditamos que nos
forneça subsídios importantes acerca da forma como os indivíduos os
consomem e do tipo de reflexividade implícita neste consumo.
As informações adquiridas no campo investigado contribuíram
para a percepção de como o psicofármaco intervém na construção e
manutenção de uma espécie de “muleta química” para a segurança básica
contemporânea dos sujeitos acometidos de mal-estares psicoafetivos. Nesse
sentido, as entrevistas confirmaram a hipótese mais ampla que orientou o
presente trabalho e que formulamos no tópico anterior; porém, mais que
isso, elas mostraram reflexividades de curto alcance que viabilizam essa
terapêutica. Comecemos afirmando que os indivíduos desta rede não se
reconheceram como doentes, mas antes como pessoas desestabilizadas
emocionalmente. Mesmo assim, em suas falas foi constante a definição
dos males pelos quais eles próprios se dizem afligidos, como “depressão”,
“transtorno”, “ansiedade”. A perspectiva de que esses sintomas possam
ser encarados como parte de uma patologia é algo que os entrevistados
241
Jonatas Ferreira e Erliane Miranda
recusam terminantemente – o que eventualmente pode indicar uma
ansiedade quanto a essa possibilidade. A análise do sofrimento deu lugar
ao uso de metáforas singelas. Uma deficiência na produção de endorfina
foi formulada como se o medicamento viesse a preencher um “baldinho”
que não se encontra cheio, como esperado, e precisa ser “preenchido”.
Chama a atenção nesse tipo de imagem que a solução de um problema
psicoafetivo implique algo muito semelhante à compra de produtos no
mercado para abastecer, digamos, uma dispensa. Contudo, e não raro, os
mesmos sujeitos consideraram a necessidade de se trabalhar também num
âmbito simbólico, dando a entender que o medicamento era assimilado
como “parte” de uma terapêutica mais ampla. Ficou claro, entretanto, que
o consumo de psicofármaco mantinha algumas funções fundamentais para
os entrevistados: evitar o sofrimento psíquico proveniente da ansiedade e
da depressão relativos a rotinas de trabalho percebidas como extenuantes93,
relativos à insegurança de viver numa grande cidade, à tristeza sem foco
definido que só pode ser compreendida como dificuldade de encontrar
sentido na existência. Verificamos que o que lhes interessava, de fato, era
cessar seu mal-estar subjetivo - muitas vezes traduzido fisicamente por
sudorese, palpitação, sono descontrolado, apatia – de maneira rápida.
Rapidez é o primeiro elemento da reflexividade subjacente a tais processos terapêuticos
que gostaríamos de destacar: “A minha psiquiatra queria que eu fizesse terapia
com ela, mas eu a acho meio doida. Eu fiz terapia um tempo e enjoei.
Acho que os remédios são mais rápidos” (Caio).
Dentre as justificativas para a eleição pragmática do psicofármaco
como dispositivo do cuidado consigo, encontramos argumentos como
a comparação entre os preços de uma sessão de análise e uma caixa de
um psicofármaco. Na Região Metropolitana de Recife, verificamos que
atualmente o preço de uma sessão de análise está na média de R$ 80,00 a R$
350,00. Quanto ao custo de uma caixa de ansiolíticos ou antidrepressivos,
há uma variação de preços: há antidepressivos, por exemplo, cujo preço
“Eu trabalho, faço faculdade, trabalho em casa, enfim, tenho que corresponder à demanda de
ser mãe, ser esposa, cuidar das coisas da casa, orientar a babá, cuidar do dinheiro... Tudo é comigo.
Eu vou dormir todo dia a uma e trinta da manhã. Acordo às sete e trinta à pulso. Aí a gente fica
com olheira. Você tem que usar maquiagem para ninguém no trabalho dizer que você está com
olheiras... É aí que entra o remédio” (Rosa).
93
242
Consumo de psicofármacos: entre o cuidado consigo e a sintetização da catarse
varia de R$ 3,47 – caixa de Rivotril® de 0,5 mg com 20 comprimidos –
a R$ 162,00 – caixa de Paxil® de 20mg com 28 comprimidos. A partir
da ilustração aqui proposta, mesmo que um antidepressivo seja prescrito
em combinação com um ansiolítico, o custo financeiro do bem-estar
proporcionado pela terapia medicamentosa é percebido como melhor
negócio que o investimento lento, pressuposto, por exemplo, na terapia
pela fala. Claro que aqui estaríamos diante de um falso problema. Ora, a
psicofarmacologia não prescinde da terapêutica convencional, psicanalítica
ou psiquiátrica. Mas é exatamente a ponderação com relação aos custos
aqui envolvidos e o “falso” problema colocado que nos permitem
perceber o quanto é sedutora a perspectiva de automedicação ou da
medicação prescrita por um não especialista. Claramente, um investimento
terapêutico que vá além do consumo de medicamentos é oneroso sob outra
perspectiva: ele significa suportar um sofrimento do qual o psicofármaco
aparentemente nos poupa. E sob esses dois aspectos percebemos o custo como um
segundo elemento de reflexividade. Em contrapartida a este argumento, não é
possível descartar outros dois aspectos: i) a avaliação do custo-benefício
entre uma caixa de medicamentos (R$3,47) e uma consulta (R$80,00) não
poder ser relativizada, por exemplo, entre dois informantes que recebam,
um e outro, respectivamente, um e dez salários mínimos (hoje, R$510,00)94;
ii) seja na rede pública ou privada, no Brasil é tanto desigual como instável
o acesso ao profissional médico que realiza terapia pela fala, embora seja
perceptível que novas políticas de saúde mental estejam tentando mudar
este quadro95: “Minha assistência só dá direito ao psicólogo uma vez por
mês, eu preciso do remédio, se não, eu não aguento” (Verônica).
Medida Provisória nº 474/2009, de 24.12.2009.
No Sistema Único de Saúde (SUS), responsável pelo atendimento público, em 2006 havia
aproximadamente vinte mil psicólogos para atender mais de 100 milhões de usuários. Neste
mesmo ano, o Conselho Regional de Psicologia da 6ª Região (CRP SP) denunciou uma discrepância
entre os aportes quantitativos e qualitativos destes profissionais, alegando que grande parte deles
precisava de grupos de trabalho para viabilizar atualização de seus conhecimentos e práticas
na saúde pública; até janeiro de 2010, as assistências médicas privadas, em sua grande maioria,
restringiam o acesso ao profissional psicólogo a doze sessões por ano, ou seja, uma sessão por mês,
até que em resolução normativa - RN Nº 211, de 11 de janeiro de 2010 - foi promulgado que os
associados das redes privadas de assistência médica brasileira têm direito a cobertura de 40 acessos
a psicólogos por ano.
94
95
243
Jonatas Ferreira e Erliane Miranda
Eis uma “condição ‘funcional’” que pode ser caracterizada como um terceiro
elemento de reflexividade.
Para a maioria dos sujeitos-consumidores da rede investigada,
tanto o comportamento de sofreguidão decorrente do estado ansioso
como a apatia característica do estado depressivo, apesar de íntimos e
impartilháveis, são perceptíveis e facilmente identificados. Por isso, para
os informantes, esses estados precisam ser suprimidos em tempo real
a fim de que não lhes sejam imputados estigmas como o da loucura e
o da improdutividade. Neste sentido, é relevante ressaltar que a dor, o
sofrimento subjetivo, muitas vezes foi relatada como vivência que se dá
em meio a um conjunto de sensações confusas e, portanto, difícil de ser
verbalizada. Essa experiência é acompanhada de sentimentos de culpa, impotência
e, sobretudo, vergonha e insegurança. Notou-se, ainda e claramente, que a
vergonha de estar acometido com tais sensações concorre com a própria
solução encontrada, que é a de tomar a medicação psicofarmacológica
para remediá-las. Os entrevistados manifestaram receio de assumir
publicamente o tratamento com psicofármacos no âmbito público, como
o do trabalho, bem como em círculos mais fechados, como o de amigos,
embora, na relação com a família, este receio torne-se menos forte. O
medicamento, nesse caso, é uma forma de manter controle sobre sua imagem diante do
grupo, além de poder indicar a impermeabilidade para lidar com o sofrimento subjetivo.
A elaboração de performances para lidar com efeitos colaterais
indesejados dos psicofármacos - como a perda da libido no que concerne
às relações de maior intimidade como a prática sexual - constitui parte de
um arsenal de estratégias importantes no trato com a questão da imagem.
Mais de uma entrevistada revelou disfarçar a queda no interesse sexual
decorrente da baixa da libido, por temer que isto pudesse ser confundido
com diminuição de interesse ou de afeto pelo parceiro. Quanto aos
homens, alguns revelaram planejar o ato sexual de modo a parar de tomar
o medicamento dois dias antes da data pretendida para tal. Ambos, homens
e mulheres, afirmaram que se programam para consumir bebida alcoólica.
Aliás, neste aspecto, uma das constatações mais emblemáticas do campo
foi a de que estes sujeitos-consumidores operam uma espécie de economia
subjetiva na qual atribuem, de forma individual, “pesos” a diferentes
elementos da vida. O que pode ser classificado como essencial para uns,
244
Consumo de psicofármacos: entre o cuidado consigo e a sintetização da catarse
é dispensável para outros. Esta economia surge, ganha importância e é operada no
campo exclusivo da subjetividade e tem uma finalidade pragmática: equalizar a tensão
entre usufruir o bem estar e a segurança tanto física como psicoafetiva proporcionados
pelo consumo do psicofármaco e, ao mesmo tempo, manter a certo grau, ainda que
baixo, de autonomia sobre seu corpo. É também nesta perspectiva, a partir da
experiência de um “reconhecimento de si”, através do exercício de uma
consciência prática, ou seja, de um monitoramento reflexivo que estes
sujeitos realizam sobre si mesmos, que eles calculam riscos, como a possível
dependência química e/ou psicológica de um determinado medicamento,
de modo a garantir certo grau de autonomia sobre o medicamento que
consomem. Um exemplo disto foi citado acima: os indivíduos elaboram uma
espécie de cronograma onde jogam com suas necessidades e desejos cotidianos, como as
de ter relação sexual ou consumir bebida alcoólica, e testam a adaptação das dosagens
recomendadas ou prescritas do medicamento até encontrar o “timing” que corresponda
ao equacionamento de suas demandas.
Assim, o psicofármaco também surgiu nas falas dos informantes
como um auxiliar na lida contra a impotência, a insegurança e o medo
que se experiencia na vida pública. Foi mesmo identificada a expectativa de o
psicofármaco poder atuar também como um dispositivo profilático, por exemplo, frente
a eventuais situações de violência urbana nas quais uma vida possa ser posta em risco
pela mera falta de um “controle” emocional. Uma de nossas informantes revelou que
se prepara para sair de casa: ela sai “abastecida” por seu ansiolítico. Ora, isso não
parece ser um caso isolado diante das informações que obtemos na grande
mídia, reportando o uso de psicofármacos para melhorar a performance no
trabalho. Esse é, por exemplo, o segredo da popularidade da Ritalina, nos
EUA.
Da leitura deste campo, contudo, nada nos autoriza a deixar
de reconhecer que a prática de uma reflexividade na adesão à terapia
medicamentosa está de um todo ausente. Embora o consumo de
psicofármacos apresente elementos que remetam a um cuidado do ser
humano consigo mesmo, especialmente no que diz respeito à inquietação
que produz a reflexividade, constatamos que algo se perdeu no processo de
modernização. O cuidado consigo circunscrito à terapia medicamentosa
que dispensa a aprendizagem pelo erro e pela dor para a construção de
uma subjetividade calcada na reflexão e na possibilidade da transformação
245
Jonatas Ferreira e Erliane Miranda
de si ilustra uma reflexividade contingente e localizada que impõe limites
à reflexão e, portanto, ao autogoverno dos sujeitos da rede investigada.
Bibliografia
ADORNO, Theodor W., HORKHEIMER, Max (1985). Dialética do
Esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
AGAMBEN, Giorgio (2008). Infância e História. Belo Horizonte, UFMG.
AGUIAR, Adriano Amaral de (2004). A psiquiatria no divã: entre as ciências
da vida e a medicalização da existência. Rio de Janeiro, Relume Dumará.
AQUINO, Daniela Silva de (2010). “Por que o uso racional de
medicamentos deve ser uma prioridade?” Ciência da saúde coletiva. Disponível
em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141381232008000700023&lng=en&nrm=iso. Accessado em 30 July 2010.
BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott (1997). Modernidade
reflexiva: trabalho e estética na ordem social moderna. São Paulo, UNESP.
BARROS, José Augusto C. (2004). Políticas Farmacêuticas: à Serviço dos
Interesses da Saúde? Brasília, UNESCO.
______ (2008). Os fármacos na atualidade: antigos e novos desafios. Brasília,
ANVISA.
BENJAMIN, Walter (1984). Origem do drama barroco alemão. São Paulo,
Brasiliense.
______ (1996). “Experiência e Pobreza”. In Obras Escolhidas, Vol II. Magia
e Técnica, Arte e Política, São Paulo, Editora Brasiliense.
DERRIDA, Jacques (2001). Mal de Arquivo. Uma experiência freudiana. Rio
de Janeiro, Relume Dumará.
246
Consumo de psicofármacos: entre o cuidado consigo e a sintetização da catarse
DIAS, José Pedro Sousa (2003). A Farmácia e a História. Uma introdução à
História da Farmácia, da Farmacologia e da Terapêutica, Notas para Disciplina de
História e Sociologia da Farmácia. Faculdade de Farmácia da Universidade de
Lisboa.
EHRENBERG, Alain (1995). Le culte de la performance (Calmann-Lévy).
Paris, Hachette.
FOUCAULT, Michel (2004). A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo, Martins
Fontes.
FUKUYAMA, Francis (2003). Nosso Futuro Pós-Humano. Rio de Janeiro,
Rocco.
GIDDENS, Anthony (1991). As conseqüências da modernidade. São Paulo,
UNESP.
______ (2002). Modernidade e identidade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
GUIMARÃES, Francisco Silveira Guimarães; GRAEFF, Frederico
Guilherme (1999). Fundamentos de psicofarmacologia. São Paulo, Editora
Atheneu.
HABERMAS, Jürgen (2000). O Futuro da Natureza Humana. São Paulo,
Martins Fontes.
HORWITZ, Allan V., WAKEFIELD, Jerome C. (2010). A tristeza perdida:
como a psiquiatria transformou a depressão em moda. São Paulo, Summus.
ILLICH, Ivan (1975). A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. Rio de
Janeiro, Nova Fronteira.
LUZ, Madel Therezinha (1988). Natural, racional, social: razão médica e
racionalidade científica moderna. Rio de Janeiro, Campus.
MARTINS, Anderson Luiz Barbosa (2005). Biopsiquiatria e Bioidentidade:
política da Subjetividade Contemporânea. Dissertação apresentada à Escola
Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz.
247
Jonatas Ferreira e Erliane Miranda
ROSE, Nikolas (2006). Politics of Life itself. Biomedicine, power and subjetctivity
in the twenty-first century. New Jersey, Princeton University Press.
SPIEGEL, René (2003). Psychopharmacology: an introduction. Sussex, John
Weley and Sons.
SILVA, Marcos Paulo Novais, LEITE, Francine (2010). Terminologia
em saúde: conceito, necessidades e experiências. Instituto de estudos de saúde
suplementar (IESS).
STAHL, S. M. (2000). Essential Psychopharmacology. New York, NY,
Cambridge University Press.
SZONDI, Peter (2004). Ensaio sobre o trágico; Tradução de Pedro Süssekind.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
VERNANT, Jean-Pierre, VIDAL-NAQUET, Pierre (2005). Mito e tragédia
na Grécia antiga. São Paulo, Perspectiva.
248
Corpos en Concierto: diferencias, desigualdades y disconformidades
BASURALES Y DISCRIMINACIÓN.
Cuerpos y Justicia Ambiental
Victoria D’hers
Introducción
Leyendo el matutino Página/12 confirmamos una vez más la
necesidad de ahondar en los estudios de los cuerpos y las emociones en
América Latina. Dice el antropólogo Philippe Bourgois:
No deja de impactarme el hecho de que los dominados sigan tolerando
ese grado de desigualdad. Peor aún: ¿por qué la dominación se internaliza
y se concreta en violencias entre pobres, en vez de apuntar a los poderosos
de una sociedad que no los integra? No hay respuestas automáticas ….
cada detalle de su comportamiento tiene huellas de la opresión (Diario,
p. 12, 13 de agosto de 2010).
Así, creemos de vital importancia encarar estudios de esos
procesos de internalización en cuanto condicionan posibilidades futuras
de emancipación.
Dada la apropiación desigual de las energías tanto ambientales
como corporales que creemos son ejes del capitalismo actual, se conforman
prácticas dirigidas a evitar el conflicto, sostenidas por los mecanismos de
soportabilidad, que a su vez descansan en los dispositivos de regulación
de las sensaciones. Paralelamente, los mecanismos de soportabilidad
configuran el dolor social (SCRIBANO, 2009), que permite trazar una
frontera a la conflictividad, resultando en una división cada vez más
profunda del tejido social.
Consecuentemente, en el presente escrito nos proponemos a partir
de este marco teórico, revisar los conceptos de justicia y discriminación
ambiental desde dos ópticas.
249
Victoria D’hers
Por un lado, realizamos un recorrido por la problemática de la basura
desde una mirada regional, tomando en cuenta la presencia de Sitios de
Disposición de Residuos (de aquí en más, SDR), la relación que se establece
entre el centro metropolitano de la ciudad de Buenos Aires y la provincia;
y las políticas implementadas para su gestión en las diversas jurisdicciones
que configuran esta relación de transferencia de contaminación. Por otro,
proponemos repensar esta dinámica que entendemos como de discriminación
ambiental desde la consideración de los procesos de construcción de
la corporalidad. Ambos planos están profundamente ligados en lo que
definimos como mecanismos de soportabilidad.
Entonces, una mirada ambiental y urbana se ve nutrida desde la
perspectiva de la teoría social de los cuerpos. Enfatizamos la importancia
de analizar estas problemáticas desde un ángulo que se ocupa de los
cuerpos y las emociones, que definirán en última instancia los significados
de las experiencias particulares, más allá de su caracterización externa
(académica, estatal) como discriminatorias.
Estas páginas fueron inspiradas en los fenómenos observados en
trabajo de campo, tanto en asentamientos de la Ciudad de Buenos Aires,
como de la Provincia (específicamente, municipio de Lomas de Zamora).96
Considerando que gran parte de los textos dedicados a la
discriminación y justicia ambiental comienzan refiriendo a la exportación
de los residuos a “países menos desarrollados” (cfr. HARVEY, 2009:
366; ACSELRAD, 2009: 7), planteamos entonces la pregunta por la
discriminación al interior de la discriminación global, más amplia: cómo
se dan las dinámicas de distribución de la contaminación y las potenciales
enfermedades en el marco de las diversas jurisdicciones en la zona de
la Ciudad de Buenos Aires y el conurbano, específicamente los partidos
limítrofes con la ciudad.97 Y finalmente, cómo esta distribución incide
directamente en la percepción y propia experiencia de los que allí residen.
El trabajo comenzó en el marco del Proyecto UBACyT A 804 (subsidio de la Universidad
de Buenos Aires), dirigido por la Arq. María Adela Igarzábal de Nistal y Co-dirigido por el Dr.
Alejandro Cittadino.
97
Esta vinculación es fundamental dado que la cercanía a la ciudad determina tanto la conveniencia
y menor costo de traslado de los residuos de la ciudad a la periferia, como el acceso facilitado de
los trabajadores de la basura que residen en los asentamientos a la ciudad, centro de los materiales
a recuperar.
96
250
Basurales y discriminación. Cuerpos y Justicia Ambiental
Contextualización.
Gestión de Basurales en la ciudad y el conurbano
El contexto histórico de Argentina, y particularmente del Área
Metropolitana de Buenos Aires (AMBA98), muestra una falta de adecuación
de la planificación urbana a las necesidades sociales. Particularmente,
en la segunda mitad del siglo XX se ha producido una urbanización de
crecimiento exponencial con superposiciones de usos del suelo (industrial,
residencial, urbano y rural), que no ha encontrado correspondencia con el
aumento de infraestructura.
En la década del noventa, la preeminencia del criterio de la renta
urbana junto con la desregulación de los mercados internos, la privatización
de servicios públicos y la quita de subsidios estatales de fácil acceso a
la vivienda produjo por un lado, la ampliación de las zonas suburbanas
en la forma de “Barrios Privados”99 para quienes pudieran costearlo (en
consonancia con la configuración de la ciudad pensada para el automóvil
-en detrimento del transporte público mediante la construcción de
autopistas en el último gobierno de facto); y por otro lado, una falta de
planificación de los servicios urbanos para el crecimiento poblacional en la
ciudad ligado a la desarticulación de economías regionales. En este tenor,
Francesc Muñoz expresa:
Buenos Aires, la ciudad y el espacio metropolitano, aparece hoy día como
ciudad “cuarteada”; un espacio urbano en el que las fisuras físicas en
la trama urbana y las fracturas sociales entre sus habitantes configuran
una inalcanzable secuencia de espacios separados. Un espacio urbano
rasgado y discontinuo, donde las líneas que dibujan esas brechas físicas
y humanas, representan una nueva cartografía de lo urbano, común por
otra parte al conjunto del país (2008: 131).
Referimos al AMBA dado que, como especificamos más adelante, la gestión de los residuos en
Relleno Sanitario abarca dicha zona geográfica, a saber, la ciudad de Buenos Aires y 34 municipios
del Conurbano. Ver www.ceamse.gov.ar
99
Nótese la contradicción en los términos. Hay una amplia bibliografía referente a ese tipo de
urbanizaciones.
98
251
Victoria D’hers
Esta realidad es parte de la dinámica propia de un sistema de
relaciones (entre otras, sociales) constituido por las formas y posibilidades
de vivir la ciudad. Hablar de sistema implica un conjunto de relaciones
complejas y entramadas, que se condicionan mutuamente. El sistema
más amplio caracterizado como “la ciudad” contiene numerosos sistemas
otros, subsistemas con lógicas diversas y contradictorias, particulares,
indispensables para su funcionamiento. Así, el caso de los basurales a cielo
abierto se ha constituido en problemática tanto para las consideraciones de
la gestión de la basura como para la continua expansión de asentamientos
humanos sobre esos suelos.
Antes de continuar, definimos los sitios de disposición de residuos
–SDR- junto con la Organización Mundial de la Salud, que considera SDR
todo espacio donde se hayan almacenado residuos. El rasgo definitorio es
la presencia de basura, que expresa dicha relación vital entre la Ciudad de
Buenos Aires y la Provincia.
Esto es de vital importancia, dado que abre dos nuevas
consideraciones: en primer lugar, refiere a sitios “controlados” (Rellenos
Sanitarios, por ejemplo), y no controlados. Además, a nivel temporal, esto
implica considerar todo sitio que haya sido depositario de residuos, más allá
de que luego hayan sido cubiertos con tierra, pasto, viviendas, etc. A menos
que un sitio sea saneado, sometido a remediación en sentido biológico, se
debe considerar como SDR. En los SDR no controlados, la contaminación
puede ser múltiple dado que no se sabe qué se dispone o ha dispuesto
allí. Esto se ve agravado en la zona sur de la ciudad, caracterizada por
el funcionamiento actividades productivas, desde saladeros y curtiembres
desde fines de siglo XIX hasta industrias en la actualidad. Es decir, sus
consecuencias son inimaginables puesto que la concurrencia de diversos
materiales y sus reacciones en el tiempo (como la combinación de diversos
metales pesados -sinergia) puede llevar a consecuencias no conocidas para
la salud, o la exposición prolongada puede producir efectos que no serán
vistos en el mediano plazo. Por la forma de acumulación de dicha basura,
la contaminación ambiental es “eminentemente incierta” (AUYERO,
2008). Así, su caracterización contextual, a nivel regional e histórico,
reviste importancia.
252
Basurales y discriminación. Cuerpos y Justicia Ambiental
Entonces, a la hora de hablar de basura y su destino, el sistema pasa
de ser “la ciudad” a la región, dado que muchos de los SDR generados
en el AMBA se deben a la dinámica de disposición de residuos de la
Ciudad de Buenos Aires en el conurbano como parte de una política de la
gestión de residuos. En este sentido, actualmente ha tomado relevancia la
consideración de centros metropolitanos a nivel de gestión de cuencas hídricas,
pero esta intención aún es muy nueva para poder ver en funcionamiento
políticas de largo plazo en este nivel geográfico.
Lo esbozado aquí es parte de un temática compleja, en permanente
cambio, y excedería los objetivos de esas páginas saldar su discusión, pero
presentamos la importancia de comprender que en la constitución misma
de los SDR se manifiesta quién merece los espacios (veáse Infra), y quién
merece una ambiente sin la basura que genera, resultando en otros que
deben soportar su presencia (tanto de la propia basura como de la del centro
principal de consumo), e incluso se benefician de ella, redefiniéndola.
Veamos en principio cómo se ha conformado la basura como
problema, y específicamente el problema de los “basurales a cielo abierto”,
dado que durante los últimos años la temática de la basura ha sido una
de las principales preocupaciones de la gestión pública, hecho puesto en
evidencia en la multiplicidad de discusiones y nuevas legislaciones, no
siempre correspondidas con políticas concretas. Entre las cuestiones más
destacadas de esta notoriedad podemos nombrar:
• el aumento de asentamientos sobre terrenos que fueran depositarios de
basura, como dijéramos;
• la licitación para el servicio de recolección en la Ciudad de Buenos Aires
que debía definirse el pasado febrero pero aún sigue sin solución. Este
contrato es el más alto de la ciudad;
• el incremento de trabajadores informales que viven de la recuperación y
reventa de los desechos;100
Hay numerosos trabajos dedicados a esta temática. Interesa específicamente referir al grupo
de Investigadores del CEA-UNC que trabajan en la línea de análisis de la Conflictividad y sus
vinculaciones con estudios de cuerpos y emociones: “tanto la recuperación de residuos como de
empresas, implican la reinserción al sistema capitalista de diferentes “des-hechos” –ya sean cuerpos,
bienes o empresas– que emergen como problemáticos a partir de la crisis de 2001.” (AIMAR, et
al.: 2008).
100
253
Victoria D’hers
• la sanción en noviembre de 2005, y reglamentación parcial en mayo de
2007, de la Ley 1854 de Gestión Integral de Residuos Sólidos Urbanos
-conocida como Basura Cero-; la misma ley que en provincia de Buenos
Aires fue sancionada en diciembre de 2006 como Ley 13.592, GIRSU:
ambas apuntan a la reducción de los residuos desde su generación a su
disposición final;
• la saturación de algunos de los rellenos sanitarios que reciben la basura
de la ciudad y de algunos municipios, y la negativa de los vecinos de
diversos partidos frente a la posible utilización de terrenos cercanos para
la apertura de nuevos rellenos (conocido como Efecto NIMBY, “Not in
my backyard”, no en mi patio trasero);
• la re-edición de la discusión de cambiar el pago a las empresas recolectoras
que actualmente cobran por cuadra limpia, para volver al pago por
tonelada recogida (contra la idea de reducción de la generación de RSU
que dispone la citada ley). Al día de hoy, esto parecería ya superado…;
y finalmente,
• como referimos más arriba, la instancia con intenciones interjurisdiccionales
de la Autoridad de la Cuenca Matanza-Riachuelo, ACUMAR, encargada
del saneamiento de dicha cuenca a partir de un fallo de la Corte Suprema
que establece plazos para realizar el diagnóstico y tomar medidas de
remediación tanto referentes a los residuos generados como a los sitios
ya contaminados, los “basurales”. Se creó además el Observatorio
Nacional para la Gestión de Residuos Sólidos Urbanos, dependiente
del gobierno nacional, con miras a articular acciones entre diferentes
localidades apuntando a una gestión integral.
En este marco, y a pesar de su aparente contrasentido dado que
son el circuito informal, ilegal de los residuos, se ha dado una dinámica
de gestión y puesta en agenda de los basurales como parte de las políticas
aplicadas a gestionar la basura en general. Así, se deben tener en cuenta
las relaciones entre la presencia de basurales y la gestión de los residuos a
través de su disposición en rellenos sanitarios vigente en la actualidad, el
rol dado a los recuperadores y cooperativas de trabajadores de reciclado
–rol creciente en las definiciones de la gestión pero aún sin los recursos
correspondientes a lo que recuperan en términos económicos.
254
Basurales y discriminación. Cuerpos y Justicia Ambiental
Pero antes de profundizar en el estado de la cuestión hoy, revisamos
brevemente el desarrollo histórico de la problemática, para trazar líneas
comunes en cuanto a la jerarquización de espacios y así, de los cuerpos que
en ellos habitan, construyen, sueñan...
Discriminación e Injusticia ambiental.
Historia de un destino
Hablar de Justicia Ambiental refiere tanto a un movimiento social,
como a un conjunto de estudios interdisciplinarios que se ocupan de
estudiar los impactos ambientales diferenciales de la contaminación en las
minorías -de clase, etnia, género.
Como movimiento social nació en Estados Unidos en 1987 al sur
de Chicago, en una comunidad afro-americana de bajos recursos donde
resistieron al funcionamiento de un incinerador de residuos peligrosos
encadenándose a vehículos en la ruta de los camiones que debían ingresar a
la planta incineradora. Allí fue fundada la organización People for Community
Recovery (Gente para la Recuperación Comunitaria) por Hazel Johnson.
Según explica David Pellow: “Conocido indistintamente como racismo
ambiental, desigualdad ambiental o injusticia ambiental, este fenómeno
ha capturado gran atención por parte de académicos en años recientes.”
(PELLOW, 2006: 17 [Traducción propia]). En esa línea el académico
Robert Bullard pasó a ser su referente desde el establecimiento de los
Principios de Justicia Ambiental en octubre de 1991 en Washington DC
(ver http://www.ejrc.cau.edu/princej.html). En América Latina, Brasil es el país
donde ha tenido importancia y desarrollo creciente: la Red de Justicia
Ambiental fue fundada en 2001. En palabras de Henri Acselrad:
Para designar este fenómeno de imposición desproporcionada de riesgos
ambientales a las poblaciones dotadas de menos recursos financieros,
políticos e informacionales, ha sido consagrado el término injusticia
ambiental. Como contrapunto, se acuñó la noción de justicia ambiental para
denominar una imagen futura de vida en la cual esta dimensión ambiental
de injusticia social sea superada. Esa noción es utilizada, sobretodo, para
255
Victoria D’hers
constituir una nueva perspectiva de integrar las luchas ambientales y
sociales (ACSELRAD, 2009: 9 [Traducción propia]).
Actualmente, la Justicia Ambiental es una categoría utilizada por la
Agencia de Protección Ambiental de Estados Unidos (EPA, Environmental
Protection Agency), que la define como:
El tratamiento justo y la consideración significativa de toda persona sin importar
raza, color, origen, nacionalidad, o ingresos con respecto al desarrollo,
implementación y puesta en vigencia de leyes, regulaciones y políticas
ambientales.
Tratamiento Justo significa que ningún grupo de personas debería
soportar una carga desproporcionada de daños y riesgos ambientales,
incluyendo aquellos resultando de consecuencias ambientales negativas
de operaciones comerciales, industriales, y gubernamentales o programas
y políticas.
Consideración Significativa implica que: 1) miembros de una comunidad
potencialmente afectada tienen una oportunidad apropiada de participar
en las decisiones sobre una actividad propuesta que va a afectar su
ambiente y/o salud; 2) la contribución pública puede influenciar las
decisiones regulatorias de la Agencia; 3) las preocupaciones de todos
los participantes involucrados serán consideradas en los procesos de
toma de decisiones; y 4) los decisores buscan y facilitan la incorporación
de aquellos potencialmente afectados (EPA, noviembre de 2010
[Traducción propia]).
La EPA ha incluido en sus consideraciones que tanto las cargas
como los beneficios sean distribuidos uniformemente. En Brasil, es
definido como:
[…] el mecanismo por el cual sociedades desiguales, del punto de vista
económico y social, destinan la mayor carga de los daños ambientales
del desarrollo a las poblaciones de baja renta, a los grupos sociales
discriminados, a los pueblos étnicos tradicionales, a los barrios obreros,
a las poblaciones marginalizadas y vulnerables (www.justiciaambiental.
org.br).
256
Basurales y discriminación. Cuerpos y Justicia Ambiental
Proponemos entonces en esa clave, realizar una breve revisión
de la “problemática de la basura” en su desarrollo histórico para poder
comprender más cabalmente los asentamientos pasivos de discriminación,
y lentamente acercarnos a sus implicancias más profundas en cuanto a
dinámicas de acostumbramiento, como parte de los mecanismos de
soportabilidad social.
Siguiendo los trabajos de Francisco Suárez, se puede ver cómo el
problema ha sido tratado marginalmente a nivel del gobierno municipal
de Buenos Aires. En un primer momento se la definió solo en un sentido
estético para la ciudad (a pesar de la presencia de intelectuales que referían
a la posibilidad de reutilizar materiales, cfr. SUÁREZ, 2004), a la vez que
estaba siendo definida la idea misma de lo higiénico y la salubridad a nivel
del gobierno nacional.
Buenos Aires paradójicamente se identificó desde fines del siglo
XIX como propicia a la enfermedad, frente a la incapacidad de detección
del agente externo que generaba la “peste histórica” (SALESSI, 1995: 49).
Ya en 1871 el Riachuelo, corriente por la que el Río Matanzas desemboca
en el Río de la Plata fue utilizada para delimitar el sur de la ciudad a la vez
que se la definía como una herida al sur. Así, comenzaría la estigmatización
e identificación del sur con lo insalubre, lo caótico, lo otro.101
En ese espacio es donde se localizó oficialmente el primer basural
municipal donde los residuos se quemaban al aire libre y se concentraban
para la recuperación de materiales. En una etapa intermedia se depositaban
en “huecos”, espacios intersticiales de la ciudad. Dados el creciente
volumen de residuos y la consecuente –y notoria- contaminación del aire,
se aplicaría la incineración, es decir quemas centralizadas y la utilización de
lo resultante para la:
[…] habilitación de áreas anegadizas mediante el relleno con escombros
y cenizas, y tuvo en algún momento una orientación social a través
del empleo oficial de cirujas.102 Finalmente, con una decidida intención
de habilitar nuevas áreas de suelo para usos urbanos, de suprimir el cirujeo, de
aplicar un manejo regional de los residuos y de eliminar el hollín y los gases 101
102
La conceptualización de la basura como lo abyecto es tratada en un trabajo en prensa.
En sentido de los cirujanos de los residuos.
257
Victoria D’hers
emanados de la incineración; surge el último método, conocido como
relleno sanitario (SUÁREZ, 2004 [destacado propio]).
Esta técnica de ingeniería implica la compactación de los residuos,
el enterramiento en espacios destinados a tal fin preparados para impedir
el filtrado de lixiviados que podrían contaminar las napas subterráneas de
agua y el suelo. Tienen cierta “vida útil”, un número determinado de años
en el que pueden ser utilizados, pasados los cuales deben ser cerrados.
Luego, se deben recubrir, y uno de los destinos posibles es el de espacios
verdes.
En términos generales, con la aplicación de esta tecnología en la
Ciudad y Provincia de Buenos Aires a través de la creación de la CEAMSE
(Coordinación Ecológica Área Metropolitana Sociedad del Estado, durante
el gobierno de facto en 1978) y a pesar de sus intenciones de “manejo
regional”, sin embargo: el número de basurales a cielo abierto no disminuyó
sino al contrario (eliminando así el hollín de la incineración pero no los
gases tóxicos de la quema en los basurales, altamente contaminante y más
por el tipo de residuos de hoy en día); pocas áreas fueron “habilitadas para
usos urbanos” como se suponía dado que no se realizaron nuevos rellenos
cuando correspondía sino que se utilizaron los mismos hasta luego de su
colapso.
Además, tras las políticas de ajuste estructural, la desindustrialización y la precarización del trabajo a nivel regional, el referido
cirujeo fue en aumento y formalización dada la creciente desocupación.
Junto con el desempleo urbano se dio la “descampesinización” del ámbito
rural (también a nivel regional, cfr. PALAU, 2009; TEUBAL, 2005),
expulsando mano de obra, lo cual colaboró a la crisis habitacional actual y a
la creciente ocupación de los citados espacios intersticiales, en numerosos
casos ocupados ya por basura o rellenados al ritmo del asentamiento, cerca
de las grandes urbes como Buenos Aires. El “caso del Riachuelo” resulta
paradigmático en este sentido, y ha sido objeto de innumerables estudios
tanto sociales como ambientales. Pero en este marco, resulta significativo
por la velocidad de generación y crecimiento de los asentamientos en su
ribera, característicamente contaminada.
258
Basurales y discriminación. Cuerpos y Justicia Ambiental
Así, se ve cómo frente al discurso oficial actual, el Estado abordó
la problemática básicamente desde soluciones paliativas, y cuando aplicó
políticas más abarcativas (más allá del acuerdo que se puede tener o no con
ellas), no fueron aplicadas cabalmente ni sostenidas en el tiempo.
Entonces, en este sentido se puede ver cómo la transferencia de
costos ha operado en varios niveles. Por una parte, el manejo regional
referido, cuando funcionó fue en el sentido de trasladar, sacar de la
ciudad los efectos del consumo. Trazar la línea de aceptabilidad de la
presencia de los residuos más allá del límite de la urbanidad. La ciudad,
interesante e importante por la disponibilidad centralizada de una siempre
creciente oferta de recursos, no puede ser a su vez su destino final. En el
metabolismo social del capitalismo, lo generado en una urbe no puede
ser parte de su paisaje, dado que esta evidencia pondría en cuestión (al
menos mínimamente) la misma lógica de consumo y deshecho necesarias
para el capital (al menos en la forma en que lo conocemos, que ya está
mutando hacia una reconversión rentablemente “verde”). Lejos están
estas dinámicas de los planteos expuestos anteriormente en los manuales
de la EPA de consideraciones de la población local de la provincia.
Consecuentemente, al estudiar la problemática de la basura,
podemos marcar el recorrido que nos hay llevado a analizar asentamientos y
villas, y a ver plasmadas las situaciones de injusticia ambiental, confirmando
que la relación entre basurales y asentamientos no es casual.
Abarcando los 17 partidos del sur de Buenos Aires se han detectado
según el listado provisto por el mismo CEAMSE (2004) 91 basurales -65,
5% del total (ATLAS DE LA BASURA, 2008 [Ver Anexo]). Además,
en la zona sur se encuentran 2 rellenos sanitarios (Villa Domínico –hoy
cerrado para la disposición- y Ensenada), frente a 48 SDR de zona norte y
oeste.103 La selección de SDR ocupados por población conllevó a estudiar
“villas” y “asentamientos informales”, también referidos como “nuevos
asentamientos urbanos o NAU”, dado que son territorios desplazados,
Sin embargo, en este momento, en la zona norte está presente el relleno sanitario Norte II y III,
actualmente el más grande del AMBA, ya que recibe el 80,8% de los residuos totales que generan 34
partidos por día, adheridos al CEAMSE. El análisis de este sitio ameritaría otro trabajo, sobretodo
teniendo en cuenta las diversas condiciones socio-demográficas de la población lindante, y cómo
este factor incide o no en la configuración de su relación con el Relleno.
103
259
Victoria D’hers
zonas no consideradas (aún) por la renta urbana formal, aunque sí por
el mercado informal que se establece en su interior. En muchos casos
son considerados como renta política, teniendo así una particular renta
urbana. Este es el caso de terrenos privados, por ejemplo, en los que el
dueño original no daba valor a la tierra por sus características (inundables,
sin servicios públicos, etcétera), y al producirse la ocupación, dicho dueño
se reapropia del terreno con mira a la negociación con los poderes del
gobierno local que deben dar solución a la demanda de las familias.
Entonces dicha negociación produce un nuevo valor de cambio dada la
situación irregular en primer término.
Vemos un solapamiento de pobreza y condiciones “irregulares”
a nivel urbano, en el sentido expresado por el ya clásico texto de Oscar
Oszlak Merecer la ciudad, que destaca la dinámica expulsiva de la Ciudad de
Buenos Aires, con políticas de delimitación y expulsión de las llamadas
villas de emergencia. Así, la población con menos recursos ve obturado su
acceso a servicios públicos que definen al espacio urbano (ver Anexo).
A esto se suma que su destino en la configuración espacial es aquél
de las áreas inundables, desvalorizadas, desocupadas, los intersticios de
la ciudad y sus alrededores. Este “destino” traza los posibles caminos a
nivel de la configuración de oportunidades en cuanto a qué biografía será
posible escribir, encarnar…
Ambiente y Teoría de los cuerpos.
Movimientos y soportabilidad social
Finalmente, abordamos de manera ilustrativa las dinámicas de dos
SDR en estudio actualmente, en el municipio de Lomas de Zamora, y al
sur de la ciudad de Buenos Aires. Estos casos nos permiten plantear el
eje de todo lo hasta aquí expuesto: el acostumbramiento como una de
las dinámicas de regulación de las sensaciones, parte de los mecanismos
de soportabilidad social. ¿Cómo desnaturalizar estas experiencias y
enmarcarlas en nociones como la de discriminación ambiental, cuando
han sido profundamente internalizadas, ya no visibles? Así, brevemente
definimos:
260
Basurales y discriminación. Cuerpos y Justicia Ambiental
Los dispositivos de regulación de las sensaciones consisten en
procesos de selección, clasificación y elaboración de las percepciones
socialmente determinadas y distribuidas. La regulación implica la tensión
entre sentidos, percepción y sentimientos que organizan las especiales
maneras de “apreciarse-en-el-mundo” que las clases y los sujetos poseen...
Los mecanismos de soportabilidad social del sistema no actúan ni directa
ni explícitamente como “intento de control”, ni “profundamente” como
procesos de persuasión focal y puntual. Dichos mecanismos operan “casidesapercibidamente” en la porosidad de la costumbre, en los entramados
del común sentido, en las construcciones de las sensaciones que parecen
lo más “íntimo” y “único” que todo individuo posee en tanto agente social
(SCRIBANO, 2009: 93-4).
Entonces, teniendo en cuenta lo desplegado hasta aquí, vemos
cómo en nuestro caso se dan dos fenómenos paralelos. Por una parte
una creciente relevancia de movimientos ligados a demandas ambientales;
y por otro, una profundización y eficacia en cuanto al funcionamiento
del “siempre-así”, a la reproducción de esquemas de percepción que
establecen prioridades según las posibilidades de su consecución.
En primer lugar, podemos citar cómo en los últimos años se ha
ido afirmando a nivel local la actividad de diversas organizaciones que
toman las reivindicaciones ambientales como bandera para sus luchas y
organización. Reunidos alrededor de problemáticas específicas y urgentes
como las inundaciones crónicas y las subidas de las aguas servidas, han ido
articulando su entendimiento con una mirada regional, planteando que
las soluciones deben ser elaboradas desde una óptica integral. Un caso
relevante aquí es el del Foro Hídrico de Lomas de Zamora,104 que lucha y
realiza el seguimiento de la gestión de obras de saneamiento desde hace
años. Cabe destacar que su actividad data de años, pero que actualmente se
ve una repercusión mayor y una posibilidad de hacerse oír dadas las políticas
referentes a la Cuenca Matanza Riachuelo que citáramos al comienzo.
Nacidos en 1985 en torno a las inundaciones como La Interbarrial, se constituyen en el Foro
Hídrico en el año 2000: “El problema reconocido como ambiental, deviene en algo importante ya
que el medio ambiente es un problema relacionado con las condiciones de vida, y el mejoramiento
o cambio de estas va a incorporar y reconocer el cambio del medio circundante.” (FERNÁNDEZ
BOUZO et al., 2007).
104
261
Victoria D’hers
En este sentido, son muchas las organizaciones sociales,
fundaciones, y ONGs que estructuran sus demandas en torno a dicho
espacio (tanto geográfico como a nivel del imaginario social).
Otro caso es el de la Asociación Vecinos de La Boca, oficialmente
parte del Cuerpo Colegiado que debe monitorear las acciones de la
ACUMAR.105 En sus palabras se ve la clara noción de las diferencias entre
la ciudad de Buenos Aires y la Provincia, y la inacción estatal:
En opinión de Alberti, el estudio epidemiológico es “otro de los grandes
puntos flojos”. Un estudio independiente al que accedió la agrupación
señala que la mortalidad infantil en las localidades adyacentes a la Cuenca
Matanza-Riachuelo es el doble que en la Ciudad de Buenos Aires…
“Del reordenamiento urbanístico tampoco se hizo nada, tampoco con
los basurales. Hoy hay medio millón de personas que tiene que ser
relocalizada de las villas. Es que la total ausencia del Estado dejó crecer
anárquicamente las barriadas más pobres”. Según datos que manejan los
vecinos, el 50% de la población que vive alrededor de la cuenca no tiene
cloacas y el 30% no tiene agua potable (INFOBAE, 2010).
Se instala la noción de que hay que relocalizar, que hay un problema
ambiental a enfrentar y que es el Estado el responsable de la falta de
planificación.
En esta línea, los integrantes del Foro Hídrico plantean:
Los funcionarios se comprometieron frente a los vecinos a hacer obras
en el Arroyo Canadá, pero pasaron siete meses y no empezaron. Pedimos
una política seria sobre los residuos sólidos urbanos que también
son contaminantes. Pareciera que los basurales clandestinos y la no
recolección de residuos en los barrios carenciados son una política de
Estado. A la empresa Covelia le pagan varias veces por el mismo trabajo.
No recogen los desechos sólidos urbanos que llegan a los arroyos y luego
al Riachuelo… En todo esto hay una complicidad del gobierno nacional,
“El 8 de julio de 2008, la Corte Suprema condenó al Estado Nacional, a la Provincia de Buenos
Aires y a la Ciudad a sanear el Riachuelo. Ayer se cumplieron dos años de este fallo histórico, pero
según las ONG del cuerpo colegiado que supervisa su cumplimiento, los trabajos de recuperación
de la cuenca avanzaron poco.” Diario Clarín, 9-7-10.
105
262
Basurales y discriminación. Cuerpos y Justicia Ambiental
provincial y municipal. Desde el Foro Hídrico estamos luchando para
acceder a todos los bienes que deberíamos tener. La vida digna es un
derecho humano. Siempre nos prometen que lo van a arreglar pero
no pasa nada. Mis tres hijos tienen problemas respiratorios y yo tengo
problemas en la piel, me salen manchas blancas en el cuerpo (VOCES
EN EL FÉNIX, 2010).
Hasta aquí vemos una posible línea de esperanza en cuanto a
las demandas y su articulación respecto de lo ambiental, claridad en las
ineficacias políticas, e incluso sus estrechas vinculaciones con los cuerpos
de quienes luchan cotidianamente por su lugar.
Ahora bien, resulta significativa la diferencia entre lo expresado
hasta aquí, en el marco de organizaciones sociales de cierta antigüedad,
con nociones de derechos y obligaciones estatales, y lo que ocurre en
asentamientos de más reciente formación como los analizados. En la
provincia, vemos cómo la experiencia de vida en el basural toma otro
carácter, a la luz de las luchas que se pasaron para poder establecerse allí.
En los asentamientos más nuevos, podemos referir a lugares
construidos de forma reticular. En los asentamientos y villas la ocupación
está ligada a relaciones de parentesco, de personas que se acercan por tener
familiares o conocidos y comparten un espacio, para luego (específicamente
en los asentamientos, donde hay espacios aún disponibles) acceder a un
terreno percibido como propio. La tenencia suele ser irregular, pero son
terrenos por los que se abonan diversas sumas de dinero. Esto contrasta
fuertemente con la dinámica del mercado formal en la que se suele llegar
a una vivienda por condiciones buscadas y costos, antes que relaciones
sociales previas. En este marco, cobran importancia las nacionalidades, y
vemos cómo se da una fuerte presencia de poblaciones de países limítrofes,
como Paraguay y Bolivia. Esto genera fuertes grietas al interior de los
asentamientos, en los que se produce una fuerte discriminación según el
lugar de nacimiento.
La posibilidad de vivir allí está muy ligada a tener conocidos que
hayan estado previamente, y luego a poner el cuerpo, al hecho mismo de
estar físicamente en el terreno, apuntalar para delimitar el lote, y “aguantar
el desalojo” en palabras de una entrevistada. Se construye fuertemente la
263
Victoria D’hers
pertenencia por haber aguantado, por haber resistido los desalojos luego
de la toma del lugar. Frente a esto, hablar de contaminación genera muchas
veces incluso, risas. “Nosotros estamos contaminados”, dirán al hablar del
terreno. Esta posibilidad se desdibuja frente a la sensación de haber estado
desde el inicio, haber “agarrado” el terreno cuando estaba la posibilidad y
a partir de allí haber aguantado los miedos, los palos y la fuerza de policía
operando no siempre a la luz del día.
Por otro lado, incluso en la ciudad de Buenos Aires vemos
cómo opera el desplazamiento de la problemática, frente a otros temas
instalados públicamente, como la inseguridad y las drogas. A pesar de
que el Riachuelo está en la agenda pública, mediática, y en los planes
desplegados por el gobierno de la ciudad (como Guardianes del Riachuelo,
que empleó a gente del lugar para realizar recolección y limpieza, cuando
está en discusión la licitación de la recolección en las Villas, y así, su lenta
inclusión –o no- en la trama urbana). Una entrevistada de una villa de la
ciudad expresaba que sus mayores preocupaciones eran las del consumo
de paco (pasta base de cocaína), y de mantener a sus hijos lejos de eso. La
preocupación de vivir a la orilla del Riachuelo aparecía a la hora de referir
a la posibilidad de que la quisiera sacar de su casa, donde vive desde que
llegó del interior del país hace casi dos décadas. Aquí vemos más claridad
en cuanto a los peligros de habitar allí, en la que los médicos claramente
aducen que las enfermedades de los hijos se deben a causas ambientales.
Esto configura una noción de peligrosidad del ambiente circundante, y
a la vez opera el desplazamiento citado por las posibilidades de irse de
allí. Contrariamente, en los asentamientos de la provincia, no hay siquiera
salita (centro de salud) cercano al que recurrir.
Reflexiones finales.
Creemos de vital importancia referir a la urgencia de la problemática
ambiental, que genera nuevos asentamientos crónicamente expuestos
a contaminación, y además, la apropiación del espacio por parte de la
población que se niega a dejar sus hogares: historias, esfuerzos, proyectos…
En este marco, es relevante la noción de discriminación ambiental,
264
Basurales y discriminación. Cuerpos y Justicia Ambiental
a nivel de quiénes son los que sufren dicha exposición. Claramente, la
contaminación está lejos de ser democrática, como plantea Acselrad.
A su vez, al interior de los asentamientos se replica la dinámica
discriminatoria sobre las minorías, sumado a la discriminación ambiental
propia de habitar allí.
Se ve una injusticia ambiental no solo a nivel de políticas y
localización industrial y de los desechos, la falta de consultas con quienes
se verán afectados por dichas localizaciones, sino de qué espacios, qué
suelos, qué oportunidades quedan… Antes que “residuos espaciales”,
extraños a la dinámica urbana esperable, estos espacios constituyen la
marca de la ciudad actual.
Pero estos fenómenos de discriminación e injusticia ambiental,
deben ser puestos en consideración junto con las dinámicas que, silenciada
pero constantemente auspician el desplazamiento de “lo ambiental”
como problema, gracias a la propia experiencia y percepción de las luchas
por construir el propio lugar. Así, se configuran las sensibilidades y se
corporifica el recuerdo y la huella del desalojo, por ejemplo, resultando en
reafirmar el logro de haber aguantado.
Si fue el hecho de poner el cuerpo el que inauguró el movimiento de
Justicia Ambiental, debemos ahora reconsiderarlo junto con las dinámicas
de soportabilidad social que configuran los umbrales de lo “digno” y lo
justo. Este espacio visto como rasgado y discontinuo, tiene sin embargo
profundas continuidades con la dinámica global de distribución desigual
de la contaminación, con dinámicas de discriminación que son replicadas
al interior de nuestros países.
Hablando de injusticia ambiental, debemos pensar tanto en la
transferencia de costos a nivel internacional e interprovincial, como en
la configuración de espacios intersticiales que son reapropiados por la
población local. Esto es encarnado en otra discriminación e injusticia
profunda: la convivencia con la contaminación no vivida como urgente
problemática.
265
Victoria D’hers
Bibliografía citada
AIMAR, L. P. Lisdero, G. Vergara, G. Magallanes (2008). “Transformaciones
de las sensaciones en la estructuración social”. En: Boletín Onteaikén N° 6,
CEA-UNC, Córdoba.
ACSELRAD, Henri (2009). O que é a Justiça Ambiental. Río de Janeiro,
Garamond.
AUYERO, J.; SWISTUN, D. (2008). Inflamable. Buenos, Aires Paidós.
CRAVINO, María Cristina (2008). “Magnitud y crecimiento de las villas y
asentamientos en el Área Metropolitana de Buenos Aires en los últimos 25
años.” Disponible en http://www.redulacav.net/material2008.php (acceso
26 de febrero de 2010).
Environmental Protection Agency, EEUU (2010). “Guidance on
Considering Environmental Justice During the Development of an
Action.” Disponible en
http://www.epa.g ov/environmentaljustice/resources/policy/
considering-ej-in-rulemaking-guide-07-2010.pdf , acceso 12 de agosto de
2010.
FERNÁNDEZ BOUZO, M. S.; AIZCORBE, M.; GIL. A.; RICCO R.
(2007). “Las organizaciones territoriales en el sur del Área Metropolitana
de Buenos Aires: construcción social y política del conflicto ambiental.”
Ponencia presentada en Jornadas de Jóvenes Investigadores IIGG, FSOC,
UBA, 19-21 Septiembre.
FORO HÍDRICO DE LOMAS DE ZAMORA. “Vecinos organizados
en defensa de la vida digna. Agua maldita”. Entrevista realizada por Tomás
Eliaschev a Alejandro Ríos Fernández, Alejandro Almeyda y Teodoro
“Cacho” Mondragón. En Voces en el Fénix. Disponible on-line en http://
www.vocesenelfenix.com/forohidrico.html, acceso 12 de agosto de 2010.
266
Basurales y discriminación. Cuerpos y Justicia Ambiental
HARVEY, David (2009). Justice, Nature & the Geography of Difference.
London, Blackwell Publishing.
MUÑOZ, Francesc (2008). Urbanalización. Paisajes comunes, lugares globales.
Barcelona, Editorial GG.
PELLOW, David (2006). “Social inequalities and environmental conflicto”.
Horizontes Antropológicos. N° 25: 15-29.
OSZLAK, Oscar (1991). Merecer la ciudad. Humanitas. Buenos Aires, Cedes.
SALESSI, Jorge (1995). Médicos, maleantes y maricas. Higiene, criminología y
homosexualidad en la construcción de la nación Argentina (Buenos Aires: 18711914). Buenos Aires, Ed. Beatriz Viterbo.
SCRIBANO, Adrián (2009). “Capitalismo, cuerpo, sensaciones y
conocimiento: desafíos de una Latinoamérica interrogada.” En: Sociedad,
cultura y cambio en América Latina. Lima, Universidad Ricardo Palma.
SUÁREZ, Francisco (2004). “Historia de la gestión de los residuos sólidos
en la Región Metropolitana de Buenos Aires.” Buenos Aires, Fundación
Metropolitana.
--------------- (1998). Que las recojan y arrojen fuera de la ciudad. Historia de la
gestión de los residuos sólidos (las basuras) en Buenos Aires. Documento de trabajo
Nº 8, UNGS, San Miguel.
TEUBAL, Miguel, Diego Domínguez, Pablo Sabatino. “Transformaciones
agrarias en la Argentina: agricultura industrial y sistema agroalimentario.”
En: Giarraca y Teubal -comp.- (2005). El campo argentino en la encrucijada.
Estrategias y resistencias sociales, ecos en la ciudad. Buenos Aires, Alianza Ed..
ZAMORANO, Julieta; OCELLO, Natalia (2008). Atlas de la Basura.
Área Metropolitana de Buenos Aires (AMBA). Centro de Información
Metropolitana, Facultad de Arquitectura, Diseño y Urbanismo. Buenos
Aires, UBA.
267
Victoria D’hers
Notas periodísticas
- “Los que llevan las de perder padecen violencias constantes.” Entrevista
al antropólogo Phillipe Bourgois por Facundo García, Diario Página/12,
13 de agosto de 2010. http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/
espectaculos/17-18928-2010-08-13.html#formu_mail
- “Críticas al poco avance del saneamiento del Riachuelo.” Por Nora Sánchez,
Diario Clarín, 9 de julio de 2010. http://www.clarin.com/ciudades/
capital_federal/Criticas-avance-saneamiento-Riachuelo_0_295170611.
html
- “Vecinos de La Boca denunciaron una “falta total de voluntad política”
para sanear la cuenca del Riachuelo”. Por Diego Gueler, Diario Infobae.
com, 7 de abril de 2010. Reproducido en Página web de Asociación
Vecinos de la Boca: http://www.avelaboca.org.ar/sitio/index.php?id=288
268
Basurales y discriminación. Cuerpos y Justicia Ambiental
ANEXO
A continuación incluimos algunas imágenes publicadas en el
marco del Proyecto UBACyT A804 que pueden ilustrar las relaciones
entre la presencia de SDR y la población en condiciones definidas como
vulnerables: altos índices de NBI, falta de acceso a red de agua segura, falta
de terminación en las construcciones, número de niños menores de tres
años, entre otros.
En primer lugar, en el siguiente gráfico y mapa se ve el solapamiento
de las villas de emergencia el AMBA y los basurales a cielo abierto.
Esto aumenta la vulnerabilidad a la presencia de contaminantes en los
basurales, dada la precariedad de las construcciones, y las condiciones
socioeconómicas de la población.
Figura I. Presencia de Villas y SDR en el AMBA.
Fuente: Atlas de la Basura, CIM-FADU, 2008.
269
Victoria D’hers
Claramente se ve la distribución espacial tanto de los SDR como
de las villas hacia fuera de la ciudad, y con alta concentración en el sur.
A continuación, ilustramos el grado de cobertura con agua de red,
y la presencia de SDR, donde el 81% está en zona sin red de agua potable.
Figura II. Zona con acceso a agua de red y presencia de SDR, AMBA.
Fuente: Atlas de la Basura, CIM-FADU, 2008.
Finalmente, se ve un solapamiento entre las zonas sin agua de red, y
sin red cloacal. A nivel saneamiento, entonces, se ve que las mismas zonas
sin agua, es decir que los vecinos sacarán agua de pozo, son las que no
tienen cloacas, por lo que la contaminación del agua de consumo es más
probable. Además, se suma la presencia probabilidad de contaminación de
suelos por los SDR, por lo que la situación es de alta gravedad.
270
Basurales y discriminación. Cuerpos y Justicia Ambiental
Figura III. Zona con red cloacal y presencia de SDR, AMBA.
Fuente: Atlas de la Basura, CIM-FADU, 2008.
Cabe destacar que la información aquí presentada ha sido elaborada
con la base de datos del último CENSO poblacional del año 2001.
Presumiblemente, hoy en día los datos sean más alarmantes en cuanto
a villas, asentamientos precarios y población con NBI. Al día de hoy el
Atlas de la Basura está siendo completado con nuevos SDR detectados
por imágenes satelitales, pero no se cuenta aún con información censal
confiable.-
271
Corpos en Concierto: diferencias, desigualdades y disconformidades
TRAMAS CORPORALES, PERCEPCIONES Y
EMOCIONES EN LAS MUJERES RECUPERADORAS
DE RESIDUOS DE CÓRDOBA (Argentina)
Gabriela del Valle Vergara
Introducción106
La ciudad del colono es una ciudad dura, toda de piedra y hierro.
Es una ciudad iluminada, asfaltada,
donde los cubos de basura están siempre llenos de restos desconocidos,
nunca vistos, ni siquiera soñados
(Fanon, Los condenados de la tierra)
La ‘ciudad del colono’ en palabras de Frantz Fanon es una
descripción de muchas ciudades latinoamericanas107 que desde hace
décadas ofrecen desde sus ‘cubos de basura’ la oportunidad para que
cartoneros, carreros, cirujas, botelleros, clasificadores, catadores,
pepenadores, entre otros, encuentren restos de comida, ropa usada o
materiales desechados para introducirlos en el circuito del reciclado.
Parte de los desarrollos que se presentan en este artículo forman parte de la Tesis de Maestría
en Ciencias Sociales de la Universidad Nacional de Córdoba, titulada “Percepciones del trabajo
doméstico y extra-doméstico de las mujeres recuperadoras de residuos de las ciudades de Córdoba
y San Francisco”. Año 2010.
107
En Sao Paulo, la primera cooperativa de catadores “Coopamare” se creó en 1989, y al año
siguiente surgió una primera asociación que ocho años después se denominaría “Coorpel”. Véase
De Lucca Reis, Costa, Daniel (2007). En Bogotá, si bien el fenómeno se observa desde hace varias
décadas, algunos estudios daban cuenta de la presencia de unos 6.700 a 8.000 recuperadores en
1993 en la ciudad, cifra que habría ascendido a 13.000 en 1999. Véase Parra, Federico (2007). En
Montevideo, se ha estimado el crecimiento de clasificadores de 3.500 en 1990, a 7.200 para 2003,
tendencia que seguiría en aumento. Véase Fernández, Lucía (2007).
106
273
Gabriela del Valle Vergara
Argentina no ha sido una excepción al respecto, pero sobretodo
desde la crisis de 2001108, la actividad se instaló como una de las formas
de obtener medios de subsistencia para muchos hogares. Esta reciente
notoriedad no debería solapar las condiciones estructurales que el
capitalismo ha generado desde finales de la década del ‘70, en una sociedad
disciplinada primero por la dictadura militar y luego por la hiperinflación
de 1989 (GAMBINA, 2001) que facilitó la aplicación de un modelo postsustitutivo (ASPIAZU et al., 2001) junto con el denominado ‘Ajuste
Estructural’ (CALCAGNO, 2001; NEFFA, 2003).
Este capitalismo periférico, que según Scribano (2007b) se
caracteriza por extraer energías (de los recursos naturales y de las personas),
disponer de mecanismos para regular las sensaciones, la soportabilidad
social y, operar como un aparato militar represivo constituye el telón de
fondo que ha hecho tras el deterioro del mercado laboral y el incremento
de relaciones cada vez más informales, inestables y precarias, que ‘la calle’
se convierta en el nuevo ámbito que brinda oportunidades a los viejos y
nuevos expulsados (GORBÁN, 2004; VERGARA, 2006). Esto es claro si
se repara en el hecho de que a partir de las consecuencias inadvertidas de la
desindustrialización en los barrios que otrora albergaban fábricas de todo
tipo en Buenos Aires, hoy se hallan zonas empobrecidas, cuya principal
actividad para la subsistencia es la recuperación de residuos (GORBÁN,
2006). Las calles se convierten así en la nueva esperanza en donde se busca
irremediablemente alguna ocupación, algún ‘rebusque’109.
La recuperación de residuos no ha sido ajena tampoco a otro
proceso del mercado laboral: la feminización o la incorporación creciente
de las mujeres110.
La modificación en el valor de la moneda tras la salida de la Convertibilidad cambiaria que
equiparaba un dólar con un peso argentino, condujo a algunos sectores de la industria a dejar
de importar ciertos productos y comenzar a buscar en el mercado interno –o bien aumentar la
provisión de- materiales reciclables.
109
Esta expresión coloquial fue utilizada por algunas entrevistadas, como una forma de indicar
modos alternativos aunque precarios de generar ingresos para el hogar.
110
Al respecto, algunos estudios han dado cuenta de una creciente participación femenina a
medida que las economías crecen desde las etapas agrícolas, pasando por la expansión industrial y
finalmente, la diversificación de los servicios. El recorrido de una curva en forma de “U”, indicaba
en series estadísticas que en economías tradicionales o de autoabastecimiento la mujer tenía una
elevada participación en la producción de bienes y servicios, pues era la familia la unidad donde se
108
274
Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)
El último cuarto del siglo XX implicó un cambio estructural en las
relaciones laborales que explica –junto con transformaciones culturales en
los estereotipos y costumbres- el incremento en la participación femenina.
En Argentina, en la década del ‘80 se observó una presencia
importante de las mujeres que comienzan a aportar con ingresos
remunerados a un hogar cuyo proveedor se hallaba desempleado o
subocupado; en otros casos llegan a convertirse en el principal sostén del
hogar (GELDSTEIN, 1994).
En los ‘90, esta tendencia continuó sostenida por el creciente
desempleo de los jefes de hogar o la merma en sus salarios (HALPERIN
WEISBORD et al., 2009), en el marco de la apertura comercial, la paridad
cambiaria, las crecientes importaciones y el consecuente cierre de fábricas
pequeñas y medianas. En este escenario las mujeres siguieron ofreciendo
realizaban concomitantemente las actividades domésticas y económicas. En un segundo momento,
el aumento de la productividad en las industrias y las migraciones rurales a las ciudades, resultó
en un espacio acotado para el trabajo artesanal de las mujeres, por lo que su presencia se reduce.
Siguiendo una línea ascendente del crecimiento económico de las sociedades, en una tercera
etapa en que aumenta aún más la productividad industrial y agrícola, se diversifica y complejiza el
sector servicios, que se torna un demandante de mano de obra femenina (SINHA, 1965, citado
en RECHINI DE LATTES; WAINERMAN, 1977). Si esta tendencia general se desagrega por
ramas o sectores se encuentra que el empleo femenino en actividades modernas no agrícolas se
incrementa a medida que se produce el crecimiento económico. Por el contrario, el empleo en
actividades menos calificadas no agrícolas puede disminuir en las etapas tempranas y aumentar
en las últimas del crecimiento económico. A su vez, dentro de las actividades modernas que
congregan a las mujeres, hay que destacar los grupos de profesionales, administrativas, empleadas
de oficina, y asalariadas en comercio, pues es menor la participación en las ramas industriales
debido a la persistencia de prejuicios y actitudes que limitarían su reclutamiento (BOSERUP, 1975
citado en RECHINI DE LATTES; WAINERMAN, 1977). En Argentina la curva en forma de
“U” se identifica con un descenso –parte izquierda de la curva- desde fines de siglo XIX hasta
mediados del XX –entre 1947 y 1960- para luego comenzar crecer a partir de 1970 –parte derechay seguir esta tendencia de aumento. Véase Rechini de Lattes y Wainerman (1977). En contra de
estas evidencias estadísticas, la historiografía del trabajo da cuenta de la temprana inserción de las
mujeres en la industria textil, alimenticia, de cigarros, como así también en sectores de servicios
como la telefonía, la administración, la docencia y la enfermería, desde finales del siglo XIX,
hasta 1950, asumiendo en muchos casos que la gran industria capitalista requería mano de obra
barata para poder consolidar su expansión y que esto era posible empleando a mujeres y niños
(PASCUCCI, 2007), tal como Marx lo describe en el tomo 1 de “El Capital”. Estas investigaciones
discuten la vigencia del modelo varón proveedor, pues muestran que tempranamente las mujeres se
incorporaron –no sin dificultades- a trabajar fuera de sus hogares a cambio de salarios en diferentes
ámbitos laborales. Véase Lobato (2004, 2007).
275
Gabriela del Valle Vergara
su fuerza de trabajo aunque ésta no logró ser totalmente absorbida, lo
cual se observa en el hecho de que en años de crecimiento económico
como 1993-1995, la tasa de desocupación femenina llegó a los dos dígitos,
superando a la masculina (CORTÉS, 2003). Esta variable indica una masiva
disposición de las mujeres para el trabajo extradoméstico.
La feminización del trabajo se inscribió también en relaciones
precarias, en el marco de circuitos espiralados de empleos informales,
escasos ingresos, desempleo111 y, finalmente períodos sin ingresos. En estos
contextos, las trayectorias laborales trazan unas gramáticas que se vuelven
‘espirales de precariedad’ (PAUGMAN, 1995 citado en BAYÓN; SARAVÍ,
2007: 80), que permiten la emergencia de una feminización de la pobreza
(JELIN, 2006), puesto que las mujeres encuentran un mayor número de
obstáculos que los hombres para mejorar sus condiciones de vida. Esto
deriva del hecho de que las relaciones de género poseen un aspecto dual, es
decir que tienen implicancias –en términos de injusticias- tanto al nivel de
la distribución socioeconómica, como de aquellos mecanismos simbólicos
y culturales (FRASER, 1996) que generan segregaciones horizontales y
verticales en el mercado de trabajo (ARRIAGADA, 2007).
La feminización del trabajo junto con la feminización de la
pobreza nos permite comprender que en muchos casos, la incorporación
de las mujeres se dio principalmente por factores de privación en lugar de
elección (EGUÍA; PIOVANI; SALVIA, 2007), en el marco de ‘estrategias
familiares’ para mantener los ingresos del hogar, cuando el mercado laboral
sólo ofrecía contracción, precarización de las relaciones de trabajo y caída
de los salarios (HALPERIN WEISBORD et al., 2009).
Es posible establecer cuatro tipologías de inserción laboral
femenina que van desde el servicio doméstico (con bajos niveles educativos,
baja protección laboral, e inestabilidad), el empleo en servicios públicos
(principalmente en los ámbitos de docencia, salud, seguridad social que
se caracterizan por un nivel educativo terciario o universitario, protección
laboral, estabilidad), en tercer lugar se identifica el empleo en el sector
privado de baja calificación (como en comercios, o servicios personales,
con secundario completo, inestabilidad y desprotección), y finalmente, “un
Nos referimos al “low-pay-no pay cicle” (STEWART, 1999 citado en BAYÓN; SARAVÍ, 2007:
66).
111
276
Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)
sector de asalariadas de servicios privados en puestos de alta calificación
(educación universitaria completa, inserción protegida y regular, empleo
procíclico)” (CORTÉS, 2003: 100). Considerando estas distinciones puede
advertirse que desde 1990 el aumento en la tasa de actividad femenina no
se tradujo en un crecimiento proporcional en sus niveles de ocupación,
ni en puestos calificados, generando de este modo un incremento en el
desempleo y la subocupación de las mujeres, en lugar una efectiva inserción
(HALPERIN WEISBORD et al., 2009)112. En el escenario posterior a la
crisis 2001-2002, cuando se multiplicó la cantidad de personas dedicadas
a la recuperación de residuos, este fenómeno se mantuvo, dado que el
mercado de trabajo ofreció mayores oportunidades a los varones, cuyas
tasas de empleo crecieron el doble que las de las mujeres (HALPERIN
WEISBORD et al., 2009).
Por ello si se consideran las diferencias intragénero según ingresos
o clases sociales se comprende que hay obstáculos mayores para las mujeres
pobres. Uno de ellos lo constituye el conflicto de la doble jornada, pues
en el caso de las mujeres que pertenecen a hogares pobres “predomina
entre ellas edades y etapas del ciclo de vida donde con mayor intensidad
se presenta el núcleo familiar como demandante de trabajo doméstico”
(MONTOYA, 1993: 215), principalmente por la cantidad de hijos menores
de edad. Esta situación se ve agravada por los bajos niveles educativos que
poseen en general, lo cual dificulta una inserción laboral redituable, estable
y con beneficios sociales, por lo que el trabajo por horas constituye para
este grupo una solución a medias, pues no se logran generar los ingresos
suficientes (MONTOYA, 1993). En cambio, en los hogares no-pobres se
encuentra una mayor cantidad de jefas sin hijos, o con pocos, pero que
pueden acceder al pago de guarderías, niñeras, servicio doméstico, entre
otros (JELIN, 2006).
Las mujeres recuperadoras de residuos constituyen un fragmento
del universo articulado por el trabajo, la pobreza y el género y lo expuesto
hasta aquí nos permite contextualizar su emergencia y permanencia -solas,
con sus hijos, con sus parejas- en la actividad. En las páginas que siguen
Los autores, en el cuadro Nº7 indican que en 2007 en el país, la tasa de feminidad en puestos de
calificación profesional fue del 41,56%, en técnicos del 47,33%, en operativos del 32,22% y, en no
calificados del 57,41%. Véase Halperin Weisbord et al. (2009: 72).
112
277
Gabriela del Valle Vergara
presentamos un análisis de sus experiencias de trabajo extradomésticas,
basado en una perspectiva de la Sociología de los cuerpos y las emociones.
Para ello, recurrimos en primer lugar a la noción de tramas corporales
(VERGARA, 2010) que pueden entenderse como el conjunto de relaciones
entre las diferentes dimensiones de la corporeidad, tal como veremos
seguidamente a través de un breve recorrido teórico y de fragmentos
de entrevistas en profundidad113. En el segundo apartado postulamos el
concepto de percepciones en tanto esquemas de clasificación, apreciación
y anticipación (VERGARA, 2010), basados en los desarrollos de Pierre
Bourdieu y Anthony Giddens; percepciones que se ponen de manifiesto
en las relaciones cotidianas y en el trabajo de las mujeres recuperadoras.
En un tercer momento, discutimos el lugar de las emociones –la
bronca, el miedo y la vergüenza- dentro de las vinculaciones entre tramas
corporales y percepciones, mostrando cómo se hacen presentes en la
ocupación de recuperar residuos.
Finalmente se propone que el enfoque desarrollado permite
realizar estudios de género114 en términos sociológicos recuperando la
condición corporal como premisa y supuesto de la existencia y la acción
social. De este modo se toma distancia de algunas perspectivas feministas
que soslayan o rechazan al cuerpo por considerarlo solamente desde una
perspectiva biologicista.
1. Tramas corporales: una propuesta
para complejizar la visión del cuerpo
El cuerpo es un componente central de los actores que participan
en cualquier relación social. Sin cuerpos no hay acciones sociales. Sin
cuerpos no hay sociedad. Este constituye un supuesto ontológico y
epistemológico de partida. La corporeidad de este modo, se asume como
propiedad constitutiva de los sujetos, de tal modo que “[L]la existencia
Las entrevistas en profundidad fueron realizadas a mujeres recuperadoras de residuos de
las ciudades de Córdoba –Villa Urquiza- y San Francisco, ciudad del interior de la provincia de
Córdoba, durante 2008.
114
Utilizamos esta expresión con cierto grado de amplitud, pues correspondería decir que son
estudios con, de o sobre las mujeres.
113
278
Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)
es, en primer término, corporal” (LE BRETON, 2002: 7). Definir a los
actores sociales no desde su identidad, ni sus representaciones sino en
cambio, desde su condición corporal implica otorgar materialidad a las
prácticas, una ubicación espacio-temporal en el marco de la sociedad
capitalista, junto a la certeza de que no es sino mediante el cuerpo, que se
vive el mundo.
Ahora bien ¿qué entendemos por condición corporal? ¿cómo
definimos al cuerpo? En lo que sigue presentamos un breve repaso de
los aportes realizados por Karl Marx, Norbert Elías, Pierre Bourdieu
y Anthony Giddens que nos conducirán, junto con las dimensiones
propuestas por Scribano (2007a, 2007b) a formular la noción de tramas
corporales.
Karl Marx en los Manuscritos Económicos y Filosóficos de 1844 expresa
que la corporeidad es la que permite apropiarse del mundo a través del
trabajo –que supone gasto de fuerza física humana- y por la cual el hombre
puede gozar. La condición humana entonces puede ser entendida como
“… un ser corpóreo, dotado de fuerzas naturales, vital, real, sensorial,
objetivo significa que tiene objetos reales, sensoriales como objeto de su
ser, de su expresión vital o que solo puede expresar su vida en objetos
reales, sensoriales” (MARX, 2004: 198).
Sin embargo en el capitalismo, a partir de las formas que adquieren
las relaciones sociales de producción que lo caracterizan, tanto los cuerpos
como los objetos se equiparan y vuelven equivalentes con el dinero, en
tanto mercancías, dado que los primeros –aquellos que no poseen los
medios de producción- deben vender lo único que tienen: su fuerza de
trabajo. Si en cuanto ser corporal posee las capacidades necesarias para
trabajar, sólo en función de esto último, es que se puede reproducir como
sujeto físico (MARX, 2004).
A partir de los informes que Marx cita en el tomo 1 de “El Capital”
sobre las condiciones laborales en Inglaterra, el trabajo infantil, el sistema
de relevos durante 24 horas, los lugares encerrados, la imposibilidad de
descanso y alimentación mínimas, las enfermedades, muertes, como así
también el deterioro intelectual en los niños, se advierte que el capitalismo
se reproduce a partir de la apropiación desigual de energías corporales.
279
Gabriela del Valle Vergara
En estas circunstancias el dinero adquiere un carácter relevante
entre el cuerpo, el trabajo y las necesidades del hombre, dado que en
cuanto se torna el equivalente de todas las mercancías –incluida la fuerza
de trabajo, esto es, la condición corporal humana-, cualquier relación con
un objeto que se desee adquirir, debe estar mediada por el dinero. La
diversidad y multiplicidad para el disfrute son opacadas por el dinero, que
se coloca como el objeto por sobre el resto, que puede reemplazar a todos
los demás y que posee la capacidad de “apropiarse de todos los objetos”
(MARX, 2004: 179).
Esto implica que en el capitalismo el cuerpo se vuelve el lugar de
la conflictividad (SCRIBANO, 2007a), de la apropiación diferencial del
mundo, de la desigualdad estructural, pues los cuerpos en este sistema
de estructuración social se inscriben en una dinámica de extracción de
energías ‘naturales’ y ‘sociales’ (SCRIBANO, 2005; 2007b), es decir, de
energías tanto de sujetos dispuestos en el trabajo, como de objetos –como
los residuos- que se re-incluyen en los circuitos de la producción a través
del reciclaje.
Esto nos permite afirmar que en el marco de la sociedad capitalista,
el estudio de la corporeidad se vincula con los procesos de mercantilización
y cosificación de lo humano, lo cual en nuestro caso implica que las mujeres
recuperadoras de residuos se convierten en objetos desechados por la
sociedad, que deben re-hacerse como sea posible para estar dispuestas
a recolectar residuos, en un circuito marcadamente desigual, donde los
últimos ingresan finalmente al proceso de producción de la economía
formal, pero las primeras siguen quedando en los márgenes de las calles,
en la periferia de la expulsión.
Norbert Elías, al analizar el desenvolvimiento del proceso de
la civilización, identifica los cambios que se dan tanto en los gestos y
comportamientos cotidianos -es decir una dimensión exterior o visible del
cuerpo-, como en la interioridad donde van creciendo paulatinamente las
autocoacciones.
‘De civilitate morum puerilium’115, la obra de Erasmo de Rótterdam,
cuyo tema central es el decoro externo del cuerpo, se establece como libro
115
“De la urbanidad en las maneras de los niños”.
280
Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)
de escuela para niños y adquiere una amplia y rápida difusión, hecho que
lo constituye en un texto representativo de principios del siglo XVI, vuelto
objeto de estudio para Elías, quien comenta:
Erasmo habla, por ejemplo, de la apariencia de las personas y da consejos
para que otros aprendan (…) los ojos muy abiertos son un signo de
estupidez; la mirada fija es un símbolo de indolencia; la mirada muy
penetrante indica propensión a la ira; los desvergonzados tienen una
mirada muy viva y muy elocuente (…). La actitud corporal, los ademanes,
la vestimenta, la expresión del gesto, todo ello es el comportamiento
«externo» del que habla el escrito, expresión de la interioridad o de la
totalidad del ser humano (ELÍAS, 1993: 101).
Sobre la base del cuerpo biológico, la sociedad va incorporando
nuevas posturas y gestos, de tal modo que llegan a la interioridad del ser
humano, y se expresan a través de la mirada, pues los modos de observar
al mundo también se constituyen socialmente. Pero esto no fue solo una
característica de la modernidad, sino que la vida urbana contemporánea,
se sigue estructurando a partir de este sentido: “[L]la mirada, sentido
de la distancia, de la representación, incluso de la vigilancia, es el vector
esencial de la apropiación que el hombre realiza de su medio ambiente”
(LE BRETON, 2008: 105).
Para Elías, las transformaciones ‘interiores’ son la expresión de los
cambios estructurales a nivel social, pues al intensificarse la división de
funciones sociales, acentuándose la dependencia entre los sujetos, éstos
debieron ajustar sus modos de acción en términos de mayor regularidad y
estabilidad, conjugando autocoacciones conscientes, junto con otras que,
inculcadas desde la infancia se tornan inconscientes y automáticas, con el
fin de lograr un comportamiento considerado socialmente correcto. Es
decir, que surge “también un aparato de autocontrol automático y ciego
que, por medio de una barrera de miedos, trata de evitar las infracciones
del comportamiento socialmente aceptado” (ELÍAS, 1993: 452).
Esto se complementa con el desarrollo del monopolio de la
violencia física en manos del Estado, por ello, un proceso a nivel subjetivo
no es sino el reverso de los cambios que va generando el proceso de la
civilización:
281
Gabriela del Valle Vergara
[E]el dominio de las emociones espontáneas, la contención de los afectos,
la ampliación de la reflexión, son aspectos distintos del mismo tipo de
comportamiento que se produce necesariamente al mismo tiempo que la
monopolización de la violencia física y la ampliación de las secuencias de
acción (ELÍAS, 1993: 454).
Las coacciones pacíficas –aquellas que no suponen el uso de la
violencia física como la guerra-, toman distancia de las autocoacciones que
se definen como “funciones de una previsión y reflexión permanentes”
(ELÍAS, 1993: 460). Estas son parte de la educación de los niños en su
etapa de socialización y, adquieren tanto la forma de un control consciente,
como el aspecto de costumbres y un funcionamiento casi automático,
inconsciente, que regula y controla, pero que también puede generar
tensiones y desajustes. O los sujetos entran en sintonía con el entramado
social traduciendo sus tensiones y deseos en costumbres aceptables, o los
impulsos imposibles de contener devienen en un desajuste en la acción
(ELÍAS, 1993).
Es decir, que Elías nos permite considerar a la corporeidad desde
una dimensión social que se hace gestos, miradas, composturas, pero
también desde un nivel interno donde los sentimientos, emociones y
pensamientos se van modelando al compás de la sociedad. Más adelante
retomaremos los desarrollos de este pensador en relación a la vergüenza y
el desagrado, como emociones sociales.
Pierre Bourdieu considera que todo actor es capaz de comprender
el mundo en tanto es abarcado, comprendido por ese mundo, en un
modo material, a partir de su corporeidad (BOURDIEU, 1999). Mundo
que es un espacio físico con posiciones objetivamente identificables,
posiciones que, traducidas al espacio social, constituyen lugares distintivos,
mutuamente excluyentes. En este espacio social, los agentes se ubican y
posicionan junto con sus propiedades –cosas apropiadas- en función de
ciertos lugares relativos y distancias, lo cual se expresa casi regularmente
en el espacio físico: por el lugar donde está –clase social-, por la posición
relativa –temporal o permanente, del rico respecto al más rico o respecto a
un pobre- y por la extensión que ocupa el agente y sus propiedades -como
la superficie de las viviendas, el tamaño de sus vehículos-. De allí que la
282
Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)
correspondencia entre cuerpo y mundo en el espacio social sea completa y
mutua, pues, “[L]lo que está comprendido en el mundo es un cuerpo para
el cual hay un mundo” (BOURDIEU, 1999: 179).
La posibilidad de comprender el mundo, se debe a que el cuerpo es
afectado y transformado desde la infancia, y durante mucho tiempo, por
sus particularidades. Así se adquieren disposiciones que permiten estar a
tono con las regularidades del mundo, pre-verlas y saber desempeñarse.
Es decir, el mundo se aprende, se comprende y se conoce por el cuerpo,
mientras aquel se va inscribiendo, va dejando sus marcas, sus huellas.
Aquí el disciplinamiento no se aplica sólo por las vías formales e
institucionales, sino que también se deja escurrir casi desapercibidamente
en la cotidianeidad de los hechos a través de la porosidad de los cuerpos
(BOURDIEU, 1999: 187).
Por ello también se aprehenden los actos corporales que dan
sentido a las equivalencias entre el espacio físico y el espacio social:
lo recto y lo curvo, lo alto y lo bajo, constituyen formas dentro de la
división del trabajo sexual, que dan cuenta de los modos cotidianos en
que se plasma la dominación. El cuerpo aprehende y clasifica desde estos
principios, que no son puramente biológicos, sino en cambio, divisiones
sociales que constituyen divisiones sexuales que también son divisiones
sexuales del trabajo (BOURDIEU, 1991)116. Dicho aprendizaje se logra
casi desaprensivamente, a partir de las advertencias y exhortaciones que
conducen a marcar en los cuerpos las diferencias entre lo masculino y
lo femenino en las formas de caminar, sentarse, hablar, entre otras, pero
también en los ritos de institución, donde se establecen los límites y
clasificaciones sociales que se naturalizan en los cuerpos, de maneras tan
duraderas como los tatuajes (BOURDIEU, 1999).
La división sexual del trabajo es considerada por el feminismo poscolonial como “la asignación
diferencial de tareas en función del sexo; sin embargo esto es muy distinto del significado o valor
que el contenido de esta división sexual del trabajo asume en contextos distintos” (MOHANTY,
2008: 147). Es decir, para esta autora es un concepto descriptivo que se utiliza con un valor a priori
adicional donde los varones siempre y en todo lugar, buscarían explotar a las mujeres. De lo que
se trata en cambio, es de realizar investigaciones empíricas que analicen en qué casos, condiciones,
culturas, grupos sociales, religiones, entre otros factores, la división del trabajo implica a la vez,
dominación.
116
283
Gabriela del Valle Vergara
La hexis delata el paso y la permanencia de la sociedad en el cuerpo
del agente, de modo constante, es decir, como una “manera duradera de
mantenerse, de hablar, de caminar, y, por ello, de sentir y de pensar. La
oposición entre lo masculino y lo femenino se realiza en la manera de
mantenerse, de llevar el cuerpo, de comportarse” (BOURDIEU, 1991:
119), donde las geométricas formas que adquieren los cuerpos, marcan las
diferencias entre sexos, virtudes, estados de ánimo: lo recto, firme, franco
y masculino, por oposición a lo curvo, flexible, reservado, femenino. En
este sentido, el género no es solamente una construcción cultural, sino
el resultante de la compleja combinación entre lugares, posiciones y
extensiones sociales, como así también trayectorias biográficas117. Estos
aprendizajes no siempre institucionalizados, hablan directamente a
la motricidad “en tanto que esquema postural que es a la vez singular
y sistemático, porque es solidario con todo un sistema de objetos y
está cargado por un cúmulo de significaciones y de valores sociales”
(BOURDIEU, 1991: 126).
Las posiciones y disposiciones sociales, las limitaciones surgidas a
partir de ciertas condiciones objetivas que se in-corporan a través, en y por
medio del cuerpo, constituyen habitus, es decir, “sistemas de disposiciones
duraderas y transferibles, estructuras estructuradas predispuestas para
funcionar como estructuras estructurantes, es decir, como principios
generadores y organizadores de prácticas y representaciones”
(BOURDIEU, 1991: 92).
Dado que no hay cuerpos sin mundos ni mundos sin cuerpos,
éstos se modelan a la talla de un mundo cuya espacialidad es tanto física
como social. En este mundo, el cuerpo adquiere la hexis de su historia,
de sus esfuerzos, de su género. El cuerpo habla y se expresa. Bourdieu
es capaz de dar cuenta a través de la hexis y el habitus de los vínculos
estrechos entre cuerpos y sociedad, desde su capa más superficial hasta la
más profunda.
Para Anthony Giddens, el agente o actor, es el “sujeto humano global
localizado en el espacio-tiempo corpóreo del organismo vivo” (GIDDENS,
1995: 86). La corporeidad del agente, no es un factor adicionado, sino
Aquí no deberíamos olvidar las particularidades anatómicas, cuya existencia no es meramente
social, aunque sí lo sean sus denominaciones y sus valoraciones.
117
284
Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)
constitutivo del self que le permite llevar adelante los primeros y más
elementales aprendizajes de los niños y sus exploraciones con los objetos
y personas cercanas (GIDDENS, 1991). Es decir,
[E]el cuerpo es un objeto en el que todos tenemos el privilegio, o la fatalidad de habitar,
la fuente de sensaciones de bienestar y placer, pero también la sede de enfermedad y
tensiones (…) el cuerpo no es solo una entidad física que «poseemos»: es un sistema
de acción, un modo de práctica, y su especial implicación en las interacciones de la vida
cotidiana es parte esencial del mantenimiento de un sentido coherente de la identidad
del yo (GIDDENS, 1991: 28).
De los vínculos entre yo, identidad, cuerpo y presentación social,
pueden mencionarse cuatro modalidades:
• la apariencia corporal, o lo que se expresa a través de la superficie del
cuerpo (peinado, uñas, bigotes, etc.) que dan cuenta de una identidad
social, de la pertenencia a un determinado grupo,
• el porte o el modo de actuar según las convenciones sociales, se conecta
con la identidad del yo pues “mantiene un nexo entre la «sensación
de estar como en casa en el propio cuerpo» y la crónica personal”
(GIDDENS, 1991: 129),
• la sensualidad, o “manipulación dispositiva del placer y el dolor”
(GIDDENS, 1991: 128), la cual se vincula con
• los regímenes corporales, en tanto que son los canales a través de los
cuales las instituciones modernas crean el cuerpo.
Mientras las rutinas suponen aquel control corporal que resuelve
competentemente las situaciones cotidianas, los regímenes “implican un
control riguroso de las necesidades orgánicas” (GIDDENS, 1991: 84), los
cuales se ponen de manifiesto en los hábitos o patrones de comportamiento
estables, que tienen que ver con la alimentación, la ropa y la sexualidad.
La unidad del yo-cuerpo a lo largo de una biografía permite que
el agente sea capaz de elaborar una crónica, un relato de su propia vida,
donde “[L]la reflexividad del yo se extiende al cuerpo, entendido (…) como
parte de un sistema de acción más que como un mero objeto pasivo”
(GIDDENS, 1991: 101).
285
Gabriela del Valle Vergara
La capacidad de vivenciar reflexivamente el cuerpo del yo, otorga
importancia a los procesos corporales en cuanto son parte del actuar en
el mundo, pero también, la conciencia del cuerpo permite controlar el
entorno que se capta por los sentidos, y al cuerpo mismo, en sus regímenes
corporales: dietas, gimnasias, ayunos, entre otros, acentúa una conciencia
de sí cuerpo que cohesiona el cuerpo y el yo.
Para Giddens, el yo es corpóreo y es capaz de ser reflexivo de esta
condición a lo largo de su propia biografía o trayectoria vital. La sociedad
se hace presente a través de sus instituciones en los modos habituales y
concretos de disciplinar los cuerpos, ya sea a través de la alimentación, del
porte, de la estética o de los modos de afectividad.
El breve repaso por estos autores nos permite pensar que la
corporeidad comprende muchas más dimensiones que la estrictamente
biológica. Adrián Scribano distingue analíticamente entre:
[U]un cuerpo individuo que hace referencia a la lógica filogenética, a la
articulación entre lo orgánico y el medio ambiente; un cuerpo subjetivo
que se configura por la autorreflexión, en el sentido del ‘yo’ como un
centro de gravedad por el que se tejen y pasan múltiples subjetividades
y, finalmente, un cuerpo social que es (en principio) lo social hecho cuerpo
(sensu Bourdieu) (SCRIBANO, 2007a: 125).
Pero además
[…] el cuerpo imagen es un indicador del proceso de cómo ‘veo que me ven’. Por su
parte, el cuerpo piel señala el proceso de cómo ‘siento-naturalmente’ el mundo, y el
cuerpo movimiento es la inscripción corporal de las posibilidades de acción. Estas
tres maneras de reconstruir las vivencias corporales se plantean como vías de análisis
e interpretación acerca del modo en que aparecen socialmente las formas corporales
(SCRIBANO, 2007c: 100).
Desde Marx hasta Giddens, pasando por Elías y Bourdieu, estos
niveles de la corporeidad se hacen presentes con mayor o menor énfasis
en cada uno.
Por ello, estos desarrollos nos permiten postular la noción de
tramas corporales, que pueden definirse como el conjunto de relaciones de
286
Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)
correspondencia, tensión o contradicción entre los cuerpos piel, imagen,
movimiento, individuo, social y subjetivo. Tramas corporales que dan
cuenta de un posicionamiento socio-espacial de los agentes en sociedades
como las capitalistas, estructuradas a partir de la desigual apropiación de los
bienes. Tramas corporales que muestran una trayectoria biográfica sociotemporal. En el caso de las mujeres recuperadoras, las tramas corporales
aparecen atravesadas por tres procesos del mercado laboral: la división
del trabajo por género y el conflicto de la doble jornada (MONTOYA,
1993; CARRASCO, 2003) la feminización del trabajo (GELDSTEIN,
1994; CORTÉS, 2003); la feminización de la pobreza (JELIN, 2006) y,
sus interrelaciones, que son expresiones del capitalismo –tal como lo
definimos en la Introducción-, junto a la lógica de la mercantilización, que
actúa homologando los sujetos al mundo de los objetos.
A continuación presentamos a través de las entrevistas, una serie
de modalidades en que operan las tramas corporales en las mujeres
recuperadoras de residuos, durante las relaciones que entablan en las
calles, durante el trabajo que implica un intensivo consumo de energías
corporales como así también una práctica sacrificial: “[…] como ser el hombre
del Bazar está contento [chocho] conmigo viste, en la forma que le dejo el patio .. dicen
las chicas, las empleadas ‘ni nosotros somos así como ella´” (Carmen A., 38 años,
San Francisco).
La presencia de estas mujeres en las calles dispara una multiplicidad
de vínculos y respuestas. En este fragmento se advierte la alegría del
comerciante que entrega los vidrios de un bazar para el desecho, cuando
la mujer que va a buscarlos ordena y acomoda el patio del local comercial.
Esta práctica de la limpieza que realiza el cuerpo movimiento, redunda en
satisfacción para el cuerpo imagen, y permite al cuerpo social ser aceptado
y reconocido para poder continuar con la actividad. En otros casos, las
tramas corporales son objeto de inquietud por parte de los proveedores118:
[…] claro, porque muchos me dicen ´doña -dice- ¿no es pesado para llevar eso?´, ´¡no!
-le digo- ya estoy acostumbrada´ o sea que hay gente que dialoga con uno y hay otros
que no (…) pero ya me conocen ya, o sea que nosotros nos ponemos a conversar con
Denominamos ‘proveedores’ a aquellos particulares, comerciantes o propietarios de industrias
que entregan de manera pautada y previamente acordada a los y las recuperadores de residuos, los
desechos que pueden ser reciclados, u objetos que pueden ser usados/consumidos.
118
287
Gabriela del Valle Vergara
la gente ahí .. dice ´¿señora no se ofende si le traigo unas cosas?´, ´no - le digo- mijo´
.. a veces me da apuro, a veces ¿no? de recibir así (Isabel, 60 años, San Francisco).
La preocupación por el peso de los mismos dada la edad de Isabel
son muestras concretas de un grado de aceptabilidad necesario para un
cuerpo social desechado, cuyo cuerpo imagen, se ve reconfortado. La
costumbre de cargar con el peso de los desechos indica una articulación
entre el cuerpo individuo y el movimiento, que le permiten al primero
garantizar su reproducción mínima a partir de la recepción de comida,
ropa o calzado que suelen obtener junto con los materiales reciclables.
En estas instancias, la recuperación de residuos se traduce en
la recuperación misma de sus tramas corporales, pues mientras son
reconocidas como cuerpos sociales ‘limpios’, ‘laboriosos’ ‘abnegados’,
se reconfortan sus cuerpos subjetivos a partir de lo que sus cuerpos
movimiento son capaces de hacer –clasificar, ordenar, reciclar-, asegurando
así la reproducción de los cuerpos individuo propios y del resto de los
integrantes de la familia.
Las calles también deparan otras respuestas menos agradables a las
mujeres recuperadoras:
[…] te da bronca ¿viste? de que te digan ‘¡no, no, no!’ .. o muchas veces me
ha pasado que toco el timbre, estoy viendo que me ven por la ventana y
no me contestan ni me hablan, ni me abren la puerta, ni me ni levantan la
cortina, ni te dicen ‘no’, nada. Muchas veces, por ahí, me da bronca y le digo
‘bueno gracias, si no le vengo a robar nada’ (Rosa, 40 años, Córdoba).
Los gestos corporales de rechazo, de des-atención des-cortés se
captan en medio de un juego de miradas desencontradas en la distancia
de cuerpos sociales que viven en diferentes y desiguales barrios. La
desconfianza que capta el cuerpo piel a través del sentido de la vista, se
conecta de inmediato con el cuerpo imagen que, ‘al ver que la ven’, genera
un sentimiento de bronca en el cuerpo subjetivo119, que activa al cuerpo
movimiento a reivindicar al cuerpo social como trabajadora y no como
119
La relación entre tramas corporales y emociones la abordaremos en el tercer apartado.
288
Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)
delincuente. También encontramos que las empleadas de estos hogares
descorteses construyen otras modalidades de distanciamiento:
[…] también la misma empleada, las mismas empleadas se hacen las dueñas de casa
y (…) ‘no hay nada’, ‘no hay nada’ y vos la ves son de acá, las conocés y todo (…) la
otra vez una dice, le digo ´buenas, de Reciclar Valores´120, ‘no, no está mi patrona’
(¿?), le digo ´vos vivís allá abajo´, le digo, pero yo le dije, yo no me quedé callada y qué
tanto ´¡no hay nada!´ así, después, ´no está mi patrona´, pero te contestan, así como
(Malvina, 26 años, Córdoba).
El diálogo entre mujeres de igual procedencia social, de quienes
viven ‘allá abajo’ equipara los cuerpos sociales que sin embargo se
desconocen cuando la empleada doméstica trastoca su cuerpo subjetivo
para sentirse ‘la dueña de casa’121. El cuerpo imagen de Malvina se ve
afectado por un rechazo que desconcierta en términos de género y clase
social, y se convierte en la acción del cuerpo movimiento que no se calla,
que no se silencia sino que trata de poner al descubierto la falacia de la
empleada.
Los encuentros o des-encuentros que las mujeres recuperadoras
mantienen en las calles nos han permitido dar cuenta de cómo funcionan
las tramas corporales. Otra instancia es el trabajo en sí mismo con los
residuos, que se caracteriza por la fuerza física realizada durante varias
horas de caminar, circular en bicicletas con carritos, o levantar bolsones
con materiales reciclables:
Marx, en los Manuscritos de 1844, anteriormente mencionado, se refiere a cómo el dinero
trastoca la fealdad de una persona en belleza y le permite así conseguir el afecto deseado,
comprándolo. En este caso, el dinero opera indirectamente –a través del valor social de la viviendauna transfiguración en el cuerpo subjetivo de la empleada doméstica, quien se siente ‘como si’ fuese
la dueña, ‘como si’ estuviese en su propia casa. Véase Marx (2004).
121
Aquí podemos recordar el enfoque psicológico de Carl Jung, quien distingue analíticamente
como modos de conocer el mundo exterior, el juicio -o la razón- de la percepción. Esta última
puede conformarse por las sensaciones o los sentidos, o la intuición que deriva de procesos
inconscientes. Lejos de este dualismo, muchas corrientes psicológicas reconocen la influencia de
la cultura en los modos de percibir los objetos. Las constancias perceptuales de color y forma dan
cuenta de la influencia del aprendizaje y la experiencia en las formas de organizar los patrones de la
percepción. Véase Morris y Maisto (2005).
120
289
Gabriela del Valle Vergara
[Carmen]: Pero .. ya no me siento con las fuerzas que tenía antes, porque es un
trabajo muy (remarca) pesado, si bien tenía los chicos que me ayudaban pero yo el
trabajo pesado lo hacía yo, no ellos, me entendés. Andar con el carrito, los cartones
pesados …
Entrevistadora: ¿cuántos kilos más o menos podías llegar a traer en el carro?
C.: y en el carro .. sí, lo podía cargar pero me tenía que ir caminando .. me entendés
a veces llevaba doscientos, trescientos .. en el carro” (Carmen H., 50 años, San
Francisco).
El tiempo inscribe sus huellas en las hexis, en las posturas de
los cuerpos individuo, que se van desgastando al compás del cuerpo
movimiento y del cuerpo social. La pesadez del trabajo no es otra cosa que
el peso físico acumulado a lo largo de los años, de todos los objetos que
han sido y siguen siendo transportados. Objetos llevados como paseantes
en las ciudades sobre las energías que consumen piernas y brazos de
mujeres que los buscan y re-buscan-en-busca de ingresos para sus hogares.
Esta pesadez de los objetos se hace carne en el cansancio de
un cuerpo individuo muchas veces mal alimentado, mal curado de las
enfermedades. El cansancio podría definirse como el límite mínimo de
energías físicas consumidas en el trabajo: cansa pedalear con el carro lleno,
caminar muchas horas, clasificar y enfardar los materiales –actividades
éstas que muchas veces se superponen con las tareas domésticas-:
[…] no es fácil, porque cansa ¿no?, o sea, cansa para andar en la calle, uno está
acostumbrado pero igual, pero más cansa para enfardar, que no ir a la calle, cansa
más enfardar y acomodar que no andar en la calle” (Isabel, 60 años, San Francisco).
El cansancio que Isabel compara entre ‘andar en la calle’ o ‘enfardar’
en los hogares significa que en este último caso se siente más el esfuerzo
que hay que realizar, porque es una actividad posterior a la recuperación en
sí. Clasificar los materiales y acomodarlos, acondicionarlos hasta su venta
es una tarea que se suma a los largos recorridos. La relación entre la fuerza
física que se consume hasta el cansancio resulta en una práctica sacrificial:
290
Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)
[…] y según, sí, yo como ser cuando traigo los folletos .. y por lo menos traigo cien kilos
y cuando traigo lo de las motos que ahora no voy más viste, y traía por lo menos ciento
cincuenta kilos, doscientos, a veces .. hay días que me tenía que venir a pie (…) en la
bici, a veces no podés ni pedalear de pesado que está entonces ése es el sacrificio viste
(Carmen A., 38 años, San Francisco).
El sacrificio es una ofrenda de los cuerpos individuo de estas
mujeres, dispuestas en las calles a partir de sus cuerpos movimiento, que
como cuerpos sociales desechados tratan de rearmarse para volver desde
los márgenes a ser útiles al circuito de la producción industrial. El sacrificio
es para estas mujeres el significado que le dan al esfuerzo y al cansancio, al
consumo de energías físicas.
El concepto de tramas corporales nos permitió adentrarnos
en el universo de las mujeres recuperadoras. En el siguiente apartado
desarrollaremos la noción de percepciones.
2. Percepciones como un modo corporal
de aprehender el mundo
Las tramas corporales y las relaciones entre sus diferentes
dimensiones, nos permiten dar un primer paso para comprender el
mundo de las mujeres recuperadoras de residuos desde un enfoque de
la Sociología de los cuerpos y las emociones. En el apartado anterior
analizamos las relaciones en las calles, las características del trabajo y las
prácticas sacrificiales desde su condición corporal.
En las páginas que siguen, sostendremos que las tramas corporales
constituyen la plataforma desde donde se constituyen las percepciones
que las definiremos como esquemas de clasificación, apreciación y
anticipación.
En general, podemos decir que las percepciones son una noción que
abarca un nivel sensorial o físico, una actividad cerebral de procesamiento
de información pero fundamentalmente patrones socioculturales de
291
Gabriela del Valle Vergara
interpretación y tipificación122 que se generan de acuerdo con los lugares
sociales que ocupan los cuerpos; lugares diferentes y diferenciales
sobretodo en una sociedad capitalista123.
A continuación proponemos revisar los desarrollos elaborados
por Pierre Bourdieu y Anthony Giddens en relación a este concepto para
poder responder cómo es posible la aprehensión del mundo a través de la
corporeidad.
Como planteamos páginas arriba, existen vínculos estrechos entre
cuerpos, espacios sociales, habitus y esquemas de percepción. Para el
sociólogo francés, como cuerpo y mundo se comprenden mutuamente
y el habitus se modela según la talla del mundo, éste no se percibe
como algo exterior o ajeno. Esto conlleva a que desaparezca la idea de
un observador ante el mundo como una cosa puesta frente a él, como
“espectáculo o representación susceptible de ser aprehendido de un
vistazo” (BOURDIEU, 1999: 188). Inmerso y sumergido en este mundo,
el habitus que hace posible la generación y permanencia de los esquemas
de clasificación y apreciación impide la existencia de un acto cognitivo de
un individuo aislado, externo y consciente. De allí que:
La percepción del mundo social es el producto de una doble estructuración social:
por la parte ‘objetiva´ esta percepción está socialmente estructurada porque las
Aquí podemos recordar el enfoque psicológico de Carl Jung, quien distingue analíticamente
como modos de conocer el mundo exterior, el juicio -o la razón- de la percepción. Esta última
puede conformarse por las sensaciones o los sentidos, o la intuición que deriva de procesos
inconscientes. Lejos de este dualismo, muchas corrientes psicológicas reconocen la influencia de
la cultura en los modos de percibir los objetos. Las constancias perceptuales de color y forma dan
cuenta de la influencia del aprendizaje y la experiencia en las formas de organizar los patrones de la
percepción. Véase Morris y Maisto (2005).
123
Para la Epistemología, las teorías de la percepción se dividen entre realistas y fenomenalistas. Las
primeras afirman que los objetos permanecen independientemente de la existencia del perceptor.
En el segundo grupo se ubican las perspectivas que afirman que no hay otra realidad que no sea
aquella dada por la experiencia, es decir, que no hay mundo más allá de lo percibido. Las realistas
se dividen a su vez en directas, cuando no hay intermediarios u objetos a través de los cuales
percibimos a otros, cuando la aprehensión es total, o indirectas, cuando la aprehensión de los
objetos siempre es mediada por ideas o datos sensoriales. Ambas posturas tienen vigencia, puesto
que los realistas directos no se reconocen como infalibles ni omniscientes en el conocimiento del
mundo. A su vez, dentro de este grupo pueden distinguirse los realistas directos ingenuos de los
científicos. Véase Dancy (1993). Los desarrollos que se realizan en este apartado nos acercarán a la
postura del realismo indirecto.
122
292
Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)
propiedades relacionadas con los agentes o las instituciones no se ofrecen a la percepción
de manera independiente, sino en combinaciones de muy desigual probabilidad (…);
por la parte ´subjetiva´, está estructurada porque los esquemas de percepción y de
apreciación susceptibles de funcionar en un momento dado … son el producto de
luchas simbólicas anteriores y expresan, de manera más o menos transformada,
el estado de las relaciones de fuerza simbólicas (BOURDIEU, 1990: 288).
Las percepciones se estructuran de manera compleja y dual tanto
por los condicionamientos objetivos como por una dimensión simbólica
subjetiva. Por su parte el habitus, constituye una “disposición generadora de
prácticas sensatas y de percepciones capaces de dar sentido a las prácticas
así engendradas” (BOURDIEU, 1998: 170). Los esquemas de percepciones
otorgan sentido a las prácticas, en la medida en que se corresponden con
las formas de visión y división del mundo, dados determinados espacios
sociales. Así, el habitus tiene la capacidad de organizar “las prácticas y las
percepciones de las prácticas” (BOURDIEU, 1998: 170), a la vez “que
organiza la percepción del mundo social” (BOURDIEU, 1998: 170).
Bourdieu nos acerca a la idea de los esquemas de clasificación y
apreciación que conforman una parte de las percepciones sociales. La otra,
tiene que ver con el lugar físico y socio-simbólico en el que el cuerpo
ha aprehendido el mundo. Estos esquemas forman parte de la noción
de habitus sobre la que no profundizaremos, pues daremos lugar a las
consideraciones sobre la percepción que propone Anthony Giddens.
Una de las contribuciones que realiza el sociólogo contemporáneo
inglés, es considerar la presencia del yo corpóreo, dotado de una capacidad
reflexiva respecto de sí, de su historia, de su biografía (GIDDENS, 1991)
y de una capacidad expresiva por la cual puede convertir en palabras, en
lenguaje, sus vivencias, de modo tal que todo agente puede dar cuenta,
si se lo piden de aquellas acciones que ha realizado. Esto se denomina
registro reflexivo de la acción, el cual consiste en “… un rasgo permanente
de una acción cotidiana, que toma en cuenta la conducta del individuo,
pero también la de otros” (GIDDENS, 1991: 43); es un continuo
reconocimiento de las actividades del agente, de los contextos físicos y
sociales, que le permite desenvolverse. Es un registro que se constituye
como un conjunto de acervos de saberes prácticos que tienen que ver con
293
Gabriela del Valle Vergara
“la capacidad de «ser con» en las rutinas de la vida social” (GIDDENS,
1991: 42).
Ahora bien, ¿cómo es posible ese registro del mundo, la aprehensión
de los entornos y de uno mismo, en tanto que yo corporizado?
Para Giddens, las teorías acerca de la percepción pueden
distinguirse en subjetivistas –atravesadas por el paradigma de la conciencia
kantiano, donde el sujeto observador conoce el mundo en forma externau objetivistas –donde el mundo de los objetos organiza previamente
lo percibido-. Sin embargo, en vistas de superar estas dicotomías, las
percepciones deben comprenderse en el fluir del tiempo, la memoria y los
espacios, a partir de esquemas que anticipan y actualizan el pasado en el
presente:
La percepción, en consecuencia, nace de una continuidad espacial y temporal, organizada
como tal de una manera activa por el que percibe. El principal punto de referencia
no puede ser ni el sentido aislado ni el percipiente contemplativo, sino el cuerpo en sus
empeños activos con los mundos material y social. Esquemas perceptuales son formatos
con base neurológica por cuyo intermedio se elabora de continuo la temporalidad de una
experiencia. A su vez se puede entender esta elaboración como una parte intrínseca del
registro reflexivo de una acción en general (GIDDENS, 1991: 82).
Las percepciones contienen una estructura biológica que los agentes
poseen desde su nacimiento y durante sus primeros años de vida, sobre la
cual luego se van agregando los primeros aprendizajes, de modo tal que
percibir no es simplemente captar objetos exteriores, como tampoco es la
aprehensión pragmática que se da a partir de los usos de los objetos, que
varía en diferentes sociedades y culturas. Es decir, no percibimos todo
aquello que captan nuestros sentidos, sino aquello que nos resulta familiar,
tipificable, acorde a nuestros intereses124. Por otra parte, la percepción
implica un proceso complejo donde los sentidos nunca operan en forma
aislada o independiente, como por ejemplo podría suceder frente a una
flor: los colores y sus formas, son aprehendidas simultáneamente al tocar
la suavidad de los pétalos y oler su fragancia. La fluidez de la cotidianeidad
En este punto, Bourdieu y Giddens se acercan, pues la selectividad de la percepción tiene que ver
con los modos en que el cuerpo se corresponde paulatinamente con el mundo.
124
294
Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)
se inscribe de manera simultánea, por lo cual la percepción aparece como
“un conjunto de dispositivos de ordenación temporal configurados por los
movimientos y orientaciones del cuerpo en los contextos de su conducta
–pero que también los configuran-” (GIDDENS, 1991: 83).
El cuerpo inscripto y activo en el mundo conjuga dinámicamente
las percepciones que son selectivas, y que se constituyen a partir de la
combinación de las temporalidades individuales-biológicas (en tanto
tiempo biológico irreversible), en las individuales-sociales (en tanto rutinas
cotidianas recursivas), y en las sociales (propia de las instituciones que
producen y se reproducen por las acciones de los agentes).
En resumen, podemos decir que para Bourdieu cuerpo y mundo/
espacio social son inescindibles, a partir de la vinculación que establece
entre ambos el habitus, estructura estructurada por condiciones objetivas
o de producción del mundo social al que está expuesto el cuerpo y,
estructurante de infinitas posibilidades de pensar, percibir y actuar dentro
de aquellos condicionamientos. Las percepciones, como un componente
del habitus –que genera y organiza percepciones que dan sentido a prácticas
‘sensatas’- se definen como esquemas de clasificación y apreciación, o
también como parámetros de tipificación, categorías dicotómicas que
identifican y valoran al mismo tiempo y recíprocamente el mundo social:
lo valoro porque lo percibo, pero también lo percibo porque lo valoro.
En Giddens, cuerpo e identidad están comprometidos a lo largo
de una biografía que se construye a lo largo de las temporalidades y el
espacio. De este modo, el cuerpo está inmerso en el fluir de la actividad
cotidiana, desde la cual, las percepciones se van constituyendo a partir de
esquemas de anticipación, donde el pasado siempre se hace presente en
virtud del futuro cercano.
Los cuerpos en el mundo, o las tramas corporales implicadas
temporalmente perciben el mundo social a partir de esquemas de
clasificación y apreciación para Bourdieu, de anticipación para Giddens.
Consideramos que ambas conceptualizaciones resultan complementarias,
pues si el primero otorga un mayor énfasis en la espacialidad que ocupan
los cuerpos en el mundo, el segundo remarca la temporalidad que atraviesa
la corporeidad de los agentes. Si en Bourdieu, la noción del yo corpóreo
se ve solapada por las estructuras del habitus, en Giddens se encuentra
295
Gabriela del Valle Vergara
un desarrollo más explícito, pues el yo o cuerpo subjetivo -tal como lo
definimos párrafos arriba- es capaz de hablar de sus propios actos125.
A partir lo expuesto, nos permitimos reconstruir la noción de
percepciones a partir de tres dimensiones. En primer lugar, como esquemas
de clasificación o tipificación de objetos, que implican una distinción
en formas, ubicaciones, tamaños; luego como esquemas de apreciación
que si bien se corresponden a partir de homologías con las formas o los
colores, en términos analíticos es necesario distinguirlos. Un esquema de
clasificación-apreciación opera asociando blancura con bondad o belleza,
en oposición a la negrura y la fealdad. Finalmente, las percepciones
se componen también de esquemas de anticipación resultantes de
experiencias previas, de aprendizajes incorporados que permiten resolver
situaciones imprevistas, inesperadas o bien, contribuir con un esquema de
clasificación para definir un objeto desconocido, lo cual implica la puesta
en evidencia de una presencia temporal del agente, que puede actualizar un
esquema de clasificación o apreciación, o de ambos a la vez. A continuación
identificaremos estos niveles a partir de las expresiones de las mujeres
recuperadoras en sus primeros aprendizajes, en las destrezas adquiridas
en la selección de los negocios y las bolsas de residuos y, finalmente en la
relación con los proveedores de materiales reciclables.
Los tres niveles de esquemas que conforman las percepciones se
van refinando con el paso del tiempo y pueden advertirse en las primeras
experiencias en la ocupación:
[…] ellas me van enseñando, voy aprendiendo día a día qué lo que es, ¿ves esas
botellas? yo no las conozco, yo las rompo porque no sé y bueno, y ellas me van
enseñando las cosas que .. qué es para reciclar, cuál el precio de una, el valor de otra.
Lo más difícil de todo esto es esto, aprender a clasificar porque tardás mucho (Mónica,
42 años, Córdoba).
El trabajo en la cooperativa permite que los saberes prácticos
del oficio de reciclar se vayan incorporando día a día con la ayuda de
Este aspecto lo consideramos importante pues en términos metodológicos el registro reflexivo
de la acción que se vincula con las percepciones nos permite sustentar la validez de utilizar técnicas
como las entrevistas o los relatos de vida.
125
296
Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)
las compañeras. Saberes que implican la conformación de esquemas de
clasificación y apreciación típicos de la actividad, donde algunas botellas
tienen un valor mayor como tales, y otras solo cuentan como vidrio.
Conocer o no conocer lo que hay que romper o descartar implica la
posibilidad de ganar o perder dinero en la comercialización, por lo cual,
estos dos esquemas van conformando con el paso del tiempo, esquemas
de anticipación, clasificación y apreciación por los cuales se perciben
selectivamente los tipos de papeles, de cartones, de plásticos, de vidrios, de
botellas, entre otros materiales para reciclar. De igual modo con que otras
mujeres recuperadoras tipifican los negocios o las bolsas en las calles más
convenientes, en la fase de separación lo que para otros fue simplemente
desechado por carecer de valor de uso o de cambio, adquiere en estas
circunstancias el despliegue de las capacidades que desde el cuerpo piel y
sus sentidos permiten percibir práctica y selectivamente unos objetos y no
otros. La temporalidad de estos aprendizajes también aparece en aquellas
recuperadoras que aprendieron los secretos del oficio de la mano de los
acopiadores o compradores de materiales reciclables:
Sí, a los veintidós años, veintitrés yo ya juntaba cartones. Estuve un tiempo juntando
cartones cuando el acopiador [XX] recién empezaba que era el hombre a quien le
vendía. En esa época cuando lo llevaba de [XX], bueno, en sí a veces ni los ataba
porque lo vendía así nomás, él lo recibía así viste todo ... porque él también o sea, él
recién empezaba y trabajaban él y la mujer nomás en el negocio. Yo antes, el papel
de computadora yo lo ponía así nomás, ése era el que yo no sabía que si lo sacabas
te pagaban más, y lo tenías que enfardar. Entonces digo ‘¡uh pero es un trabajo!’,
porque es un trabajo tener que elegir una bolsa, ponéle del banco, como la podés elegir
enseguida como no, pero encontrar todos estos papeles, así las hojas en blanco, algunos
están todo hechos bollitos, las tenés que abrir, poner una arriba de la otra, y hacer el
fardito, que es un trabajo, un trabajo bárbaro para hacer, pero es lo que más te rendía,
pero bueno el acopiador [XX] me enseñó eso, igual que el diario, tenía que enfardarlo,
atarlo todo para que ellos te lo paguen, sino te lo pagaban menos. Por supuesto vos lo
podés llevar así nomás pero como yo digo bueno, tenía los chicos todo, lo podía hacer
entonces lo hacía (Carmen H. 50 años, San Francisco).
El fragmento de la entrevista describe no sólo los procesos de
aprendizaje de esta mujer recuperadora que comenzó desde joven hace
297
Gabriela del Valle Vergara
más de 20 años a juntar cartones en San Francisco, sino también los del
acopiador que por la misma época comienza con la actividad, y de los
hijos que colaboran con la clasificación. Por otra parte es posible entender
cómo las percepciones en relación a los objetos, sus características de
textura, color, que se traducen en precios mayores o menores conforman
destrezas sensoriales del cuerpo piel, que se conectan con los esquemas de
anticipación frente a nuevas situaciones de trabajo, a fin de que aumenten
las ganancias.
Recuperar residuos abarca un proceso selectivo de discriminación
de objetos que depende de las capacidades de movilidad y carga, de las
necesidades de los hogares, de los hijos que pueden ayudar en la búsqueda
y clasificación como en las tareas domésticas. Proceso selectivo donde
sujetos desechados del mundo social, en nuestro caso, particularmente
mujeres, se encuentran en una situación homologable a los desechos que
re-buscan y transportan: cuerpos desechados dispuestos para los desechos.
En las dos citas que siguen se puede apreciar cómo las percepciones
operan en las mujeres recuperadoras como modos diferentes de aprehender
la ciudad, sus calles, sus negocios:
[…] o sea yo me agarraba nada más que las bolsas de los bancos y ahí puedo sacar el
papel blanco y los otros papeles que los separaba, si yo los hubiese querido vender así
nomás como estaban, bueno me pagaban mucho menos, perdía porque al fin y al cabo
perdía plata. Era de los negocios de los bancos nomás lo que levantaba y de los negocios
ponéle así un negocio de seguros viste, que sé que hay papeles blancos pero sino de otro
lado no juntaba la bolsa. Y los cartones bueno, sí, los cartones, las cajas que veía que
tenían papeles, eso sí los levantaba y sino no, porque para qué voy a levantar basura
si ya la basura que tenían que juntar también viste de los bancos, como tiran papeles
tiran basura también (María, 38 años, San Francisco).
En otro lugar (VERGARA, 2008) hemos identificado algunas
características de lo que podríamos denominar una ‘división de la
recuperación de residuos por género’, que en muchos casos se plasma
-aunque no de manera absoluta- en el hecho de que las mujeres se dedican
a buscar y clasificar en las calles126 cartones, papel, vidrio, y los varones en
126
Estas distinciones no se dan por ejemplo en el caso de quienes clasifican en una cooperativa o
298
Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)
cambio, metales, dadas las asociaciones naturalizadas que se dan respecto
de la contextura física, y de la capacidad de fuerza. La diferencia de los
materiales se traduce en una diferencia en el valor de los mismos, pues el
cobre, el aluminio y el hierro tienen un valor de comercialización mayor
que el cartón o el papel. En este contexto, María recurre a esquemas de
clasificación-apreciación para identificar aquellos comercios en el centro
de la ciudad que principalmente desechan papeles blancos127, tales como
bancos u oficinas de seguros. Estos esquemas se complementan con
esquemas de anticipación que vinculan calidad de los materiales con precio
de venta, además de la optimización de los tiempos y energías, de modo tal
que ‘en otros lados no juntaba las bolsas’, pues éstas muchas veces traen
otro tipo de desechos. La clasificación-apreciación de lo blanco-limpio
que se paga mejor, permite evitar –de modo anticipado- las pérdidas
monetarias al momento de la venta.
En el caso de las mujeres la referencia a la limpieza se inscribe en
las tramas corporales y en sus biografías, donde sus cuerpos sociales –
como hijas y hermanas- y sus cuerpos movimiento aprehendieron desde
temprano las labores de la limpieza doméstica, que en muchas ocasiones
les ha dado la oportunidad para salir a trabajar fuera de sus hogares.
Desde esta configuración biográfico-social, las recuperadoras perciben las
bondades de lo limpio y blanco, que –propio de una sociedad capitalistase expresa en un mayor valor monetario.
En otros casos, la limpieza de las bolsas delata la posibilidad de
obtener objetos para el uso y no para la comercialización, como en el caso
de prendas de vestir:
[Isabel]: a veces la gente tira .. vienen las bolsas, vio que yo abro así en la calle, abro la
bolsa, saco todo lo que preciso y lo vuelvo a embolsar de vuelta y queda la bolsa atada,
en cambio hay otro que no, que abre la bolsa y deja todo así nomás tirado, todo tirado,
pero ahí ¡vienen cosas buenas!
Entrevistadora: y usted ¿cómo se va dando cuenta donde puede haber algo que ..?
I: yo me doy cuenta la bolsa, por el bulto.
están directamente en un basural o relleno sanitario.
127
El papel blanco de las oficinas, que no tiene manchas ni está mojado se paga por kilo hasta cinco
veces más que el cartón.
299
Gabriela del Valle Vergara
Entrev.: ¿ah sí?
I: claro, tenía dieciseis años cuando empecé a cirujear, tengo cincuenta .. y nueve, para
los 60 o sea que para enero voy a cumplir los 60, ¿son años no? (risas)
Entrev.: ¿así que usted cómo es? a ver, va por la calle, ve una bolsa y dice seguro esa
bolsa que debe tener
I: sí, tiene algo, así que yo voy la abro y ..
E: ¿y es lo que usted pensaba que había?
I: sí, ayer iba para allá y había unas bolsas limpias, digo acá hay algo o ropa o diario.
E: ah, si la bolsa está mas o menos limpia.
I: hay gente que la ropa se la tiran bien limpia, bien dobladita, ¿vio cuando usted
la dobla para guardarla así en cajonera? .. remera, pantaloncito, para interior o sea
para varón, o sea para nena, eso ya está todo limpio .. y sino está limpio yo lo agarro
lo voy embolsando y después vengo para casa y lo pongo en remojo, le doy una lavada,
después lo dejo en agua limpia, después la vuelvo a lavar, le doy una enjuagada y a la
soga (risas) (Isabel, 60 años, San Francisco).
Los esquemas de clasificación y apreciación no solo funcionan con
la selección de los comercios como vimos párrafos arriba, sino también
en las bolsas que por su disposición o forma anuncian que no es basura lo
que contienen, sino otro tipo de objetos que se recuperan para volver a ser
usados aunque no como materiales reciclables que se integran al circuito
de la producción industrial. Isabel que lleva muchos años clasificando
residuos en basurales y en las calles, dispone de un cuerpo piel y un
cuerpo movimiento que como parte de su trama corporal le facilitan
identificar perceptualmente las bolsas que conviene abrir. La limpieza o
el orden externo de la bolsa que se ‘tira’ indica que en el interior hay
‘buenos objetos’ que pueden ser usados por los nietos, por los vecinos. Los
esquemas de anticipación la predisponen por otra parte a realizar si fuera
necesario las tareas de lavado y acondicionamiento de la ropa, prácticas
o rutinas que ha desempeñado desde niña colaborando con su madre en
las tareas domésticas. De este modo, la limpieza de la ropa que adviene de
experiencias previas se transforma en un esquema de clasificación de lo
300
Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)
‘limpio’ que se imputa a las bolsas de desechos que se encuentran en las
calles.
Las percepciones también se ponen de manifiesto en la
conformación de las rutinas y los acuerdos con quienes proveen desde los
comercios, desechos reciclabes:
[…] si tenés que salir por ejemplo, porque vos ya tenés un negocio que sí o sí a tal hora
te da la basura y el negocio no puede tenerla afuera, porque el patrón … por ejemplo
el empleado es el que te da, y el patrón le dice que esa basura no tiene que estar ahí
porque le estorba, le incomoda entonces el que sale en el carro tiene que ir, sabe que ya
por más que llueva tiene que ir a buscarla porque sino pierde (remarca) ese negocio,
porque sino el patrón viene al otro día, la basura está ahí, lo reta al empleado, el
empleado tiene problemas con el patrón y encima ya no te dan a vos, entonces se hace
ya como un vínculo que sí o sí tenés que ir a tal hora, sacarle la basura al hombre para
que el hombre no tenga problema, porque encima que él te la guarda (remarca), te la
da porque sino se la da a otro, no la saca para que Cliba128 se la lleve ¿me entendés?
Te la tiene guardada para que vos pasés, la retirés (Lorena, 32 años, Córdoba).
La ocupación de recuperar residuos implica diversos aprendizajes
que se incorporan a medida que transcurren los días, los recorridos y las
relaciones con los proveedores de residuos, con los compradores, con
otros y otras recuperadores. En el fragmento se describe una situación
que denota cómo opera un esquema de anticipación: buscar los residuos
según lo pautado porque de lo contrario se perjudican el empleado del
negocio y el propio recuperador. La puesta en presente, de manera diaria
de estas experiencias previas que Lorena es capaz de poner en palabras
a partir de su registro reflexivo de la acción, da cuenta de que el trabajo
de recuperar residuos se da en el marco de un conjunto de relaciones
laborales, de dependencia entre el dueño y el empleado del negocio, entre
el recuperador y el empleado, entre el recuperador y (¿versus?) la empresa
recolectora. Cumplir con el horario pautado no es una norma, sino un
saber práctico vuelto percepción que le permite a esta mujer anticiparse a
Cliba (Compañía Latinoamericana de Ingeniería Básica Ambiental) es la denominación de la
empresa privada que desde 1986 hasta comienzos de 2009 obtuvo la concesión del servicio de
recolección de residuos domiciliarios en la ciudad de Córdoba. Desde esa fecha hasta la actualidad,
este servicio lo realiza CRESE (Córdoba Recicla Sociedad del Estado).
128
301
Gabriela del Valle Vergara
la posibilidad de perder un proveedor. Pero este esquema de anticipación
se completa con los de clasificación-apreciación: hay que ir a buscar los
residuos aunque llueva, para no ‘perder ese negocio’. Aquí la situación de
pérdida como falta, como carencia, como ausencia se vincula claramente
con un perjuicio, con una situación mala, desfavorable, que al estar
identificada previamente por los esquemas de anticipación se evita. En
este caso entonces, podemos decir que el trabajo se percibe como una
actividad en la cual se deben cumplir determinadas rutinas o circuitos para
garantizar su continuidad.
En el siguiente apartado nos centraremos en las emociones y su
relación con las tramas corporales y las percepciones.
3. Sensibilidad social y emociones
Norbert Elías (1993) identificó tempranamente el lugar de las
emociones en las transformaciones de la civilización dado que los
cambios en las estructuras afectivas se correspondían con cambios en
la racionalización de la conciencia. En este proceso, el autor destaca la
presencia de la vergüenza y el desagrado.
La primera puede entenderse como un miedo que surge ante
relaciones de inferioridad con otros, especialmente “cuando el individuo
que teme a la supeditación no puede defenderse de este peligro mediante
un ataque físico directo u otra forma de agresión” (ELÍAS, 1993: 499). Es
decir, que es una emoción que se produce en el marco de entramados de
interdependencia (ELÍAS, 1995) donde hay vínculos de subordinación y
poder, pero además, donde la agresión física está socialmente desaprobada.
Por lo tanto, la vergüenza se liga estrechamente con otras emociones como
el miedo a una sanción posterior y la impotencia de no poder concretar el
ataque. Estas tensiones se producen en el interior del sujeto y es por ello
que resulta poco observable.
A medida que avanzan los límites de la vergüenza, las agresiones
físicas y los miedos a recibirlas se reducen -favorecidas por el creciente
monopolio de la violencia que logran los Estados a través de sus leyes, sus
ejércitos, sus controles-, crecen los temores internos que acompañan a la
302
Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)
primera. El paralelismo entre las grandes transformaciones estructurales
y los cambios en la subjetividad que Elías sostiene a lo largo de sus
investigaciones socio-históricas le permite explicar que las distinciones de
las instancias de la personalidad propuestas por Freud son resultantes de
procesos sociales y no característicos de una inmutable naturaleza humana,
de allí que:
[…] el fortalecimiento de los sentimientos de vergüenza y el aumento en la
racionalización sólo son aspectos diferentes de la creciente división en la economía
espiritual de los individuos que aparecen con el aumento en la división de funciones,
esto es, aspectos distintos de la diferenciación creciente entre funciones instintivas y
funciones de vigilancia de los instintos, entre «ello» y «yo» o «super-yo» (ELÍAS,
1993: 501).
Este complejo entramado subjetivo de emociones, se complementa
con otra, que es el desagrado. Elías lo define como un “disgusto o miedo
que surge cuando otra persona quiebra o amenaza con quebrar la escala
de prohibiciones de la sociedad representada por el super-yo” (ELÍAS,
1993: 503), y lo identifica por ejemplo, en la etapa donde los guerreros
se van convirtiendo en miembros de las cortes. Esto implica un proceso
de refinamiento de los modales, aprendizajes de gestos y posturas menos
violentas y agresivas.
Como vemos en ambos casos, las emociones sufren modificaciones
en función de un proceso de racionalización general, pero también en
virtud de nuevas pautas de convivencia que no sólo afectan la parte
más externa de las tramas corporales de los sujetos en sus relaciones de
interdependencia, sino también el nivel más íntimo de las emociones. Por
lo tanto, la vergüenza y el desagrado en los análisis de Elías, son causados
por y refuerzan los comportamientos socialmente aceptados, por lo cual
regulan las relaciones sociales y las tornan previsibles sin la necesidad de
apelar al castigo físico o la sanción. Por otra parte, los cambios en el largo
plazo muestran la manera en que ambas emociones se constituyen social e
históricamente, variando según lugares y períodos. La vergüenza no es la
misma en una sociedad estamental, que en la burguesa.
303
Gabriela del Valle Vergara
Algunas de estas consideraciones están presentes en el enfoque
de Arlie Russell Hochschild, quien marca un descuido en el planteo de
la acción dramatúrgica. Para ella “Goffman nos muestra que calculamos
mucho más de lo que pensamos, pero pasa por alto el hecho de que
también sentimos de maneras socialmente establecidas mucho más de lo
que creemos hacerlo” (HOCHSCHILD, 2008: 113).
La preocupación por un abordaje sociológico de las emociones
la lleva a encontrar una imagen del yo que no es totalmente cognitiva ni
completamente inconsciente. Entre el yo calculador de Goffman y el yo
inconsciente de Freud, la autora delimita un “yo sensible, un yo que tiene
la capacidad de sentir y conciencia de tal característica” (HOCHSCHILD,
2008: 114), es decir que reconoce y puede expresar –tal como lo plantea
Giddens por la capacidad reflexiva del agente- sus sentimientos y
emociones, cuyos significados han variado a lo largo de la historia, de
los grupos sociales, de las diferentes culturas, por lo cual el disgusto, la
apatía, la vergüenza o la decepción no son fenómenos inalterables de la
humanidad. De allí que resulte relevante para un abordaje sociológico
considerar lo que el propio actor expresa de sí, el modo en que es capaz
de codificarlo, o definirlo.
Max Weber129 diferenciaba en su tipología de la acción social, lo
racional en oposición a la irracionalidad de los afectos y sentimientos,
e identificaba la presencia de emociones en situaciones extraordinarias,
como el pánico ante una crisis bursátil. Sin embargo había perdido de vista
que “la emoción y los sentimientos también son ingredientes activos de la
conducta racional” (HOCHSCHILD, 2008: 116), es decir las emociones
nunca están ausentes en las relaciones sociales.
Una mirada sociológica de las emociones requiere un componente
más: asumir y reconocer las vinculaciones con el entorno social, más
cercano a las interacciones, más lejano y general. Es por ello que la autora
asegura que las emociones y sentimientos tienen causas y consecuencias en
un contexto compuesto por reglas de sentimientos, reglas de expresividad
Desde otra perspectiva, Eduardo Bericat Alastuey (2001) indica que una de las claves de “La
ética protestante y el espíritu del capitalismo” es el lugar que desde la doctrina protestante se le dio
a la humillación que actuó con mayor intensidad en el nivel vivencial en los creyentes, por sobre la
dimensión cognitiva de los dogmas.
129
304
Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)
o comunicación, y sanciones. Cada uno de estos tres niveles implica
que toda sociedad establece qué es lo debemos o deberíamos sentir en
determinadas circunstancias, cómo podemos transmitir con claridad
un sentimiento sin que quienes están a nuestro alrededor interpreten
otro contenido, y finalmente hacia qué clase de objetos se dirigen esos
sentimientos considerando que la sociedad ubica a los actores en posiciones
superiores, equivalentes o inferiores (HOCHSCHILD, 2008).
Tanto Elías como Hochschild proponen un estudio sociológico
de las emociones y establecen los vínculos entre éstas y las estructuras
sociales, considerando además su variabilidad socio-histórica. Sin
embargo, el primero identifica con mayor claridad el lugar del cuerpo en
los entramados de interdependencias como una instancia de mediación
que posibilita que las emociones del ‘yo sensible’ encuentren un anclaje en
un ‘yo corpóreo’. Es decir, retomando lo desarrollado párrafos arriba, las
emociones se constituyen desde las tramas corporales y desde los modos
de aprehender el mundo que son las percepciones en tanto esquemas de
clasificación, apreciación y anticipación. Por otra parte, Hochschild afirma
que los sujetos pueden expresar y definir por sí mismos las emociones que
sienten, lo cual nos brinda la posibilidad de un abordaje metodológico que
se vincula con el registro reflexivo de la acción, tal como lo planteamos en
el apartado anterior.
En las entrevistas a las mujeres recuperadoras de Córdoba y San
Francisco aparecieron la bronca, el miedo y la vergüenza como emociones
inscriptas en su ocupación. A continuación analizaremos brevemente cada
una de ellas:
[…] es otro descuido del carrero, que anda con los vasitos pobrecito en el asfalto
sangrando, que se pone medio rengo, que no camina bien, y ellos le pegan, le pegan,
digamos eso mirándolo hasta a mí me da odio porque o sea, a mí me da bronca, yo que
he sido carrero, que he vivido siempre arriba del carro (Teresita, 60 años, Córdoba).
Ser carrero o carrera implica algo más que buscar desechos, juntar
escombros o alimentos. El carro tirado con la fuerza del caballo permite
desplazarse, sobretodo en las grandes ciudades donde los recorridos son
largos. Pero también el carro con caballo contribuye a establecer una
relación con este último quien en muchos casos se convierte en un cuasi305
Gabriela del Valle Vergara
integrante más del hogar, al que hay que alimentar, cuidar, curar, pues no
solo sirve como medio de carga sino también como medio de transporte
para diversos fines130. La bronca expresada en la cita, remite a los malos
tratos que algunos carreros le dan a los animales en la calle, y podría ser
traducida en los términos de Elías como una emoción de desagrado, de
disgusto ante el comportamiento de un tercero que se percibe desde
determinados esquemas de clasificación-apreciación como incorrecto.
Pero el acto mismo del carrero que golpea al animal puede ser
interpretado siguiendo a Hochschild:
[…] el enojo se desvía de su objeto ‘legítimo’, por ejemplo, suele desviarse
hacia ‘abajo’ y caer en relativos vacíos de poder. Así es más probable que
el enojo se dirija a personas cuyo poder es menor, y menos probable que
recaiga en personas más poderosas: el enojo corre por los canales que
ofrecen la resistencia más débil (HOCHSCHILD, 2008: 125).
El enojo sería la emoción que atraviesa a los carreros que golpean
a sus caballos como una forma de desplazar la impotencia o la bronca
que generan determinadas condiciones de vida, de trabajo para cuerpos
expulsados, desechados. El desagrado aparece en los ojos de una mujer
carrera, que desde joven está en la actividad. Podemos entender estas
diferencias a partir de las tramas corporales y los esquemas que conforman
a las percepciones. En algunas entrevistas han emergido temáticas
vinculadas a la violencia doméstica contra las mujeres, los niños, por lo cual,
los golpes, las agresiones físicas –que Elías veía retroceder en una sociedad
que se iba civilizando pero que evidentemente no desaparecieron- son
tipificadas y apreciadas por las mujeres131 de modo diferente a los varones.
Las mujeres, los niños, o en el caso de la cita los animales, advienen como
estos objetos débiles por los cuales corre el enojo, sensu Hochschild.
Vemos pues, que las emociones no pueden ser cabalmente comprendidas
sino es considerando las percepciones y las tramas corporales en las cuales
se constituyen.
En la entrevista con Lorena nos comentó un episodio en el que su hijo se vio involucrado en un
robo de un vehículo al que habían desarmado y cargado algunas partes en un carro tirado a caballo.
131
En la misma cooperativa en la que participa Teresita se había conformado en 2008 un grupo de
ayuda a mujeres golpeadas.
130
306
Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)
Otra manifestación de la bronca, puede encontrarse en las disputas
que se dan entre los mismos recuperadores de residuos:
nosotros sabíamos juntar ahí [señala la casa de sus padres] hace un par de años, atrás
sabíamos juntar, traíamos dos, tres, cuatro bolsones, pero una vuelta los prendieron
fuego, porque hasta eso son mal llevados acá. Le prendieron fuego y te morís de la
bronca y de la impotencia porque no podés hacer nada ¡no!, ves que te matás laburando
para que te hagan maldad, viste así que ahora tratamos de juntar lo que se hace en
el día o hasta el otro día nomás, hacemos un bolsón y lo vendemos (Rosa, 40 años,
Córdoba).
La bronca no deviene en enojo en este caso pues se atrofia en la
impotencia de lo irremediable. Perder por el efecto del fuego bolsones de
materiales reciclables que ya no se podrán vender, actualiza las derrotas
acumuladas de estos cuerpos cuyas tramas a lo largo de sus biografías han
recibido muchos otros golpes, han perdido muchas otras oportunidades.
Si la impotencia puede definirse como “la permanencia de un estado de
minusvalía frente a las condiciones materiales de existencia” (SCRIBANO,
2007b: 27), dicha minusvalía aquí se convierte a partir del cuerpo
movimiento en una solución regresiva como la de vender diariamente, lo
cual trae aparejado el hecho de que los precios –considerando la cantidadsean menores. Este estado de incapacidad, de algo que inevitablemente se
termina aceptando, se torna esquemas de anticipación para evitar mayores
pérdidas. En otras circunstancias, la emoción que articula los encuentros
con los otros intra-clase es el miedo:
[Isabel]: sí, tengo miedo, sí, me da así escalofrío pero ..
Entrevistadora: y ¿miedo a qué le tiene? por ejemplo ..
I: de la gente, de la gente hay mucha .. ya me salvé como dos o tres veces que me
golpearan, sí es peligroso, o sea, cirujas que son .. son viejos borrachos. Sí, es jodida la
calle ahora, los cirujas, porque hay mujeres o varón que son peligrosos, después ‘buenas
tardes’, ‘buenos días’, y chau .. (Isabel, 60 años, San Francisco).
Las disputas por los bienes a recuperar instalan el miedo hacia
aquellos que buscan y re-buscan afanosamente cartones, botellas, o
simplemente comida para subsistir. Las relaciones intra-clase se fragmentan
307
Gabriela del Valle Vergara
en estos espacios en los que la expulsión los torna desconocidos, cuasienemigos, contrincantes en virtud de los residuos-objetos, que son los
que en definitiva, terminan articulando las relaciones sociales en estos
espacios. La cortesía del saludo es una marcación de la distancia que estos
cuerpos sociales requieren para no recibir los golpes, que para las mujeres
adquieren otros sentidos y emociones, como vimos antes. El escalofrío
que tiene el cuerpo piel, expresa el miedo ante los otros, un miedo que se
conecta con esquemas de anticipación de experiencias previas, donde el
peligro toma prestado el rostro de otros y otras recuperadores, que pasan
a ser indeseables. También en las recuperadoras de residuos aparece el
miedo provocado por una minusvalía en el cuerpo subjetivo, en instancias
de presentación social inter-clase:
[…] salía con miedo porque al no .. porque no tenía carácter para hablar con la gente,
tenía miedo, vergüenza, no sé … y claro, sí, era la primera vez, digo yo no sé cómo, qué
decirle a la gente y menos mal que me dieron un carrito con gorrito acá porque nunca
así yo hice este trabajo, digo yo no sabía hablar, yo o tocaba timbre y me aparecían la
gente y me quedaba callada y de a poco fui, bueno, fui criando coraje (risas) (Mónica,
42 años, Córdoba).
Cuando los cuerpos sociales desechados deben rearmarse para estar
a disposición de los objetos que deben ser recolectados casa por casa, las
emociones que atraviesan sus tramas oscilan entre el temor y la vergüenza,
junto con un cuerpo movimiento que se siente incapaz de hablar, un cuerpo
subjetivo inseguro, un cuerpo imagen deteriorado. No sólo los esquemas
de clasificación, apreciación y anticipación deben adiestrar al cuerpo piel
para distinguir los objetos –como vimos párrafos arriba- sino que además
el cuerpo social y el movimiento también deben entrenarse para enfrentar
el encuentro con un alter que pertenece a otra clase social, para estar cara
a cara con el ‘colono’ sensu Fanon. Irving Goffman ha desmenuzado este
tipo de interacciones en términos del manejo de impresiones, pero no en
cómo actúan y se transforman las emociones que como en el caso de la
cita van desde el miedo inicial hasta la práctica subjetiva de ‘criar coraje’.
Junto con la bronca y el miedo, la vergüenza es otra emoción
presente:
308
Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)
[María]: uno la primera vez le da medio temor
Entrevistadora: ¿temor?
M: sí, vergüenza, pero después no, después ya seguís, seguís hasta que .. digo .. hasta
acá llegué, hasta acá, voy a salir
Ent.: y vergüenza de .. ¿de qué te da?
M: y que por ahí uno está juntando y te miiira la gente, te miiira, te miiira y no te
saca los ojos de encima (María, 40 años, San Francisco).
Disponer los cuerpos en las calles para las mujeres por razones
de privación, cuando se siente que se toca fondo, y que ‘salir’ a buscar
residuos es la única alternativa posible implica romper con determinados
esquemas de clasificación-apreciación que ubican los cuerpos femeninos
en los hogares con los hijos, los masculinos en las calles, con el trabajo. El
miedo y la vergüenza ante las miradas de la gente impactan en el cuerpo
imagen y en el cuerpo subjetivo, que sienten el peso de aquellos ojos
‘encima’ de una. Las mujeres recuperadoras, que en muchos casos han
tenido experiencias laborales en el servicio doméstico, en el cuidado de
niños o ancianos, disponen de tramas corporales que las habilita para estas
ocupaciones de lo doméstico mercantilizado sensu Jelin, pero que aún
no se encuentran diestras para revolver las bolsas, separar lo útil. Esto
no implica solamente un aprendizaje cognitivo, estrictamente racional,
sino sentidos prácticos y sensatos, saberes que se van haciendo cuerpo y
sensorialidad y que están atravesados por emociones.
Como lo sugiere Elías, la vergüenza se da en el marco de relaciones
diferenciales entre un subordinado y un superior. En el caso de las mujeres
recuperadoras, estas distancias sociales se marcan en las calles céntricas,
en los barrios del ‘colono’ que se ven irrumpidos por estos cuerpos
expulsados:
[Carmen]: todos hombres eran, claro después cuando me vieron a mí se ve que las
otras se animaron a juntar, las que necesitaban juntar y no se animaban a lo mejor
(risas). Es decir sí me daba un poco de qué sé yo .. vergüenza de juntar cartones, me
daba, pero digo yo (hace un chasquido con la boca) total es un trabajo como cualquier
otro, peor es salir a robar y bueno entré en coraje y salí y bueno, todo tenía que hacerlo
309
Gabriela del Valle Vergara
por los chicos porque .. no tenía trabajo y los chicos hay que darle de comer todos los
días, mandarlos a la escuela, todo eso entonces bueno decidí hacer eso
Entrevistadora: Carmen y ¿qué es lo que da vergüenza?
C: las miradas, ‘mirá la ciruja aquella’ o qué sé yo (Carmen H. 50 años, San
Francisco).
En la cita la vergüenza tiene dos causas. La primera se vincula con el
hecho de ser la única o una de las pocas mujeres que comienza a recuperar
residuos en la ciudad, cuya presencia anima a otras, posteriormente a
‘salir’. Compartir o bien, disputar con los varones el espacio público pero
precarizado de las calles en busca-de-rebusques es una situación conflictiva
que desata la vergüenza. La segunda, se activa por el cuerpo imagen, a través
de las miradas por las cuales se siente observada, catalogada. Tanto en las
relaciones intra-clase como inter-clase, para las mujeres permanecer en las
calles en una ocupación no típicamente femenina desarticula esquemas de
clasificación, apreciación y anticipación en las propias tramas corporales
de las recuperadoras, como en la de quienes las observan. El freno para la
vergüenza es el coraje –que hay que criarlo o al que hay que entrar- que se
sustenta en la urgente y apremiante necesidad de la supervivencia propia
y de los hijos.
En este apartado hemos analizado las emociones desde una
perspectiva sociológica, contando con los enfoques de Norbert Elías y
Arlie Hochschild quienes nos permitieron bucear a través de las entrevistas,
particularmente los lugares de la bronca, el miedo y la vergüenza. En el
siguiente apartado recapitulamos lo desarrollado hasta aquí para mostrar
cómo una sociología de los cuerpos y las emociones constituye una
herramienta válida para los estudios de las mujeres.
Consideraciones finales
Paul Auster, en su novela “El país de las últimas cosas”132 describe
la relación de una joven con una mujer mayor dedicada a juntar desechos
132
Agradezco a Ana Cervio por sugerirme la lectura de esta novela.
310
Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)
para venderlos. Anna Blumer intrigada por el ‘talento extraordinario’ que
demostraba esta mujer que por momentos parecía “una bruja consumada
que encontraba las cosas por arte de magia” no logra obtener respuestas
concretas, del cómo lo hacía.
Si Anna leyera este artículo seguramente comprendería que no es
por arte de magia como se encuentran los desechos en las calles de una
ciudad, sino a partir de una compleja combinación entre lo que hemos
dado en denominar tramas corporales, percepciones y emociones. Tres
vectores que se interconectan para delimitar el mundo de las mujeres
recuperadoras de residuos que se inscriben dentro de las principales
transformaciones del mercado de trabajo y las relaciones sociales de las
últimas décadas en nuestros países latinoamericanos en general, y en
Argentina particularmente. Tres vectores que asumen la necesidad de
vincular la Sociología de los cuerpos y las emociones y los estudios de las
mujeres.
Es por ello que, en primer lugar definimos las tramas corporales
como el conjunto de relaciones de correspondencia, tensión o contradicción
entre los cuerpos piel, imagen, movimiento, individuo, social y subjetivo,
las cuales nos muestran el lugar socio-espacial de estas mujeres expulsadas
y desechadas, junto con una trayectoria biográfica hecha cuerpo.
Las tramas corporales de las mujeres recuperadoras –en particular
el cuerpo social- están atravesadas por una división del trabajo por género,
por el conflicto de la doble jornada, por la feminización del trabajo y de
la pobreza y las pudimos identificar en aquellas situaciones de encuentro
con otros en las calles como durante el trabajo que implica un consumo de
energías corporales que se traduce en una práctica sacrificial.
A continuación postulamos el concepto de percepciones conjugando
los aportes de Pierre Bourdieu y Anthony Giddens y establecimos sus
tres dimensiones. En primer lugar, son esquemas de clasificación o
distinción de objetos; en segundo término son esquemas de apreciación o
valoración de aquello tipificado. Los esquemas de clasificación-apreciación
se complementan con los esquemas de anticipación resultantes de
experiencias previas, de aprendizajes incorporados que permiten resolver
situaciones imprevistas o, permitir al esquema de clasificación definir
un objeto desconocido. Esta conceptualización nos permitió identificar
311
Gabriela del Valle Vergara
percepciones en los primeros aprendizajes, en las destrezas adquiridas en
la selección de los negocios y las bolsas de residuos y, finalmente en la
relación con los proveedores de materiales reciclables.
El tercer vector fueron las emociones que se constituyen desde
las tramas corporales y las percepciones. Emociones que se crean y
recrean socialmente y que pueden expresadas y definidas por los actores
sociales. Por ello, nos detuvimos en la bronca, el miedo y la vergüenza, que
atraviesan las relaciones de la ocupación de recuperar residuos.
Este recorrido nos permite mostrar el modo en que la condición
corporal y sus mecanismos de aprehender y sentir el mundo, se tornan
relevantes a la hora de realizar estudios de las mujeres, pues a partir de
esta estructura analítica se puede comprender un fragmento de cómo se
viven la precariedad, las relaciones desiguales del género y el trabajo, las
sombras de la pobreza que se vuelve monocromática cuando la suciedad
de la basura contagia la epidermis de estas mujeres.
El cuerpo ha sido para el feminismo una categoría discutida,
rechazada, o también resignificada, pues en principio quedó ligado a la
noción de sexo, y ésta a la de naturaleza, opuesta por su parte a la cultura.
Por ello, la frase de Simone de Beauvoir de que no se nace mujer sino que se
llega a serlo, pretendió resaltar el peso de la sociedad en la construcción del
género –algo que también está presente en la obra de Pierre Bourdieu que
desarrollamos páginas arriba-.
En otro sentido, el cuerpo fue asociado a una categoría del discurso
biológico y médico que sirvió para legitimar el modelo de varón-proveedor,
mujer ama de casa, pues la maternidad equivalía a amor, cuidado, crianza
y primera socialización. Esta idea reguladora de la relación con los hijos,
construida en el siglo XVIII restringió la vida social de las mujeres al
ámbito privado del hogar (GIVERTI, 1996).
En un tercer sentido, el cuerpo femenino dotado de la capacidad de
reproducción, fue considerado causa y objeto de control en dos niveles. Por
un lado, en la exigencia de la monogamia –de las mujeres-, para garantizar
que el hijo ‘sea propio’, es decir del padre y poder hacerse acreedor de
la herencia y el patrimonio133. Por otro, el Estado a partir de programas
Esta es una lectura que pasa por alto, que aquellos hogares en los cuales los hijos no tienen nada
por heredar pues sus padres no tienen patrimonio alguno, este control es más lábil.
133
312
Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)
públicos de control de natalidad también intervino pretendiendo controlar
el cuerpo femenino, favorecido por un mayor desarrollo de técnicas
para prevenir embarazos, y una mayor oferta para aumentar la virilidad
masculina (JELIN, 2006).
En las páginas precedentes hemos mostrado que para la Sociología,
la corporeidad como condición de la acción social no puede concebirse
solamente como anatomía, pero tampoco sin ella. La sociedad imprime sus
marcas; la subjetividad se constituye en y por un determinado cuerpo; la
imagen que construimos a partir de nuestras interacciones cotidianas con
otros está mediada por el cuerpo; la sensorialidad combina los aprendizajes
sociales con los mecanismos físicos; las capacidades sociales de acción se
dan a partir las posiciones que ocupamos. Por ello, recuperar la condición
corporal desde una perspectiva sociológica para el análisis e interpretación
de las experiencias de las mujeres en contextos de expulsión, constituye
un desafío para poder mostrar la avidez con la que el capitalismo sigue
actuando, la precariedad en las condiciones de vida que tienen cada vez
más sectores de la sociedad que rozan los límites de la reproducción
mínima, y la complejidad de las experiencias y las relaciones sociales que
desbordan las identidades, las representaciones y los significados.
313
Gabriela del Valle Vergara
Bibliografía
ARRIAGADA, Irma (2007). “Abriendo la caja negra del sector servicios
en Chile y Uruguay”. En: Gutiérrez, M.A. (Comp.), Género, familias y trabajo:
rupturas y continuidades. Desafíos para la investigación política. Buenos Aires,
Clacso.
ASPIAZU, D.; BASUALDO, E. y SCHORR, M. (2001). La industria
argentina durante los años noventa: profundización y consolidación de los rasgos
centrales de la dinámica sectorial post-sustitutiva. Buenos Aires, FLACSO.
BAYÓN, María Cristina y SARAVÍ, Gonzalo (2007). “De la acumulación
de desventajas a la fractura social”. En: Saraví, G. (Comp.), De la pobreza a
la exclusión. Buenos Aires y CIESAS, México, Prometeo.
BERICAT ALASTUEY, Eduardo (2001). “Max Weber o el enigma
emocional del origen del capitalismo”. REIS. Vol. 95, Nº 1: 9-36.
BOURDIEU, Pierre (1990). Sociología y cultura. México, Grijalbo.
(1991). El sentido práctico. Madrid Taurus, Ediciones.
1998). La distinción. Madrid Taurus, Ediciones.
(1999). Meditaciones pascalianas. Barcelona, Anagrama.
CALCAGNO, Alfredo (2001). “Ajuste estructural, costo social y
modalidades de desarrollo en América Latina”. En: Sader, E. (Comp.), El
ajuste estructural en América Latina. Costos sociales y alternativas. Buenos Aires,
Clacso.
CARRASCO, Cristina (2003). “La sostenibilidad de la vida humana: ¿un
asunto de mujeres?”. En: León, Magdalena (Comp.) Mujeres y trabajo:
cambios impostergables. Brasil, Veraz Comunicação.
CORTÉS, Rosalía (2003). “Mercado de trabajo y género. El caso argentino,
1994-2002”. En: Valenzuela, M. (ed.) Mujeres, pobreza y mercado de trabajo.
Argentina y Paraguay. Santiago de Chile, OIT.
314
Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)
DANCY, Jonathan (1993). Introducción a la Epistemología Contemporánea.
Madrid, Tecnos.
DE LUCCA REIS COSTA, Daniel (2007). “Márgenes en el centro. Calle,
catación y basura en el centro de Sao Paulo”. En: Schamber y Suárez
(Comp.) Recicloscopio. Miradas sobre recuperadores urbanos de residuos de América
Latina. Buenos Aires, Prometeo Libros, UNLA y UNGS.
EGUÍA, A., Piovani, J., SALVIA, A. (2007). “Introducción”. En: Eguía,
A., Piovani, J., Salvia, (comps.) Género y Trabajo. Asimetrías intergéneros e
intragéneros. Buenos Aires, EDUNTREF.
ELÍAS, Norbert (1993) [1977-1979]. El proceso de la civilización. Buenos
Aires, Fondo de Cultura Económica.
(1995) [1970]. Sociología fundamental. España, Gedisa.
FERNÁNDEZ, Lucía (2007). “De hurgadores a clasificadores
organizados. Análisis político institucional del trabajo con la basura en
Montevideo”. En: Schamber y Suárez (Comp.) Recicloscopio. Miradas sobre
recuperadores urbanos de residuos de América Latina. Buenos Aires, Prometeo
Libros, UNLA y UNGS.
FRASER, Nancy (1996). “Redistribución y reconocimiento: hacia
una visón integrada de justicia de género”. Conferencia impartida en el
Congreso Internacional realizado en Santiago de Compostela, Junio.
GAMBINA, Julio (2001). “Estabilización y reforma estructural en la
Argentina (1989/99)”. En: Sader, E. (Comp.) El ajuste estructural en América
Latina. Costos sociales y alternativas. Buenos Aires, Clacso.
GELDSTEIN, Rosa (1994). Los roles de género en la crisis. Mujeres como
principal sostén económico del hogar. Buenos Aires, CENEP.
GIDDENS, Anthony (1991). Modernidad e identidad del yo. Barcelona,
Península.
(1995). La constitución de la sociedad. Buenos Aires, Amorrortu.
315
Gabriela del Valle Vergara
GIVERTI, E. (1996) [1994]. “‘Lo familia’ y los modelos empíricos”. En:
Wainerman, C. (Comp.) Vivir en familia. Buenos Aires, Unicef – Losada.
GORBÁN, Débora (2004). “Reflexiones alrededor de los procesos de
cambio social en Argentina. El caso de los cartoneros”. En: e-l@tina.
Revista electrónica de estudios latinoamericanos. Vol. 2, Nº 8: 3-15, Buenos Aires.
(2006). “Trabajo y cotidianeidad. El barrio como espacio de trabajo de
los cartoneros del Tren Blanco”. En: Trabajo y Sociedad. Nº 8, Vol. VII.
Disponible en: http://www.unse.edu.ar/trabajoysociedad/Gorban.pdf, acceso
octubre 2007.
HALPERIN WEISBURD, Leopoldo et.al. (2009). Documentos de trabajo Nº
13. Cuestiones de género, mercado laboral y políticas sociales en América Latina: caso
Argentina. Buenos Aires, Universidad de Buenos Aires.
HOCHSCHILD, Arlie R. (2008). La mercantilización de la vida íntima. Buenos
Aires, Katz.
JELIN, Elizabeth (2006) [1998]. Pan y afectos. La transformación de las familias.
Buenos Aires, FCE.
LE BRETON, David (2002). La sociología del cuerpo. Buenos Aires, Ediciones
Nueva Visión.
(2008). Antropología del cuerpo y modernidad. Buenos Aires, Nueva Visión.
LOBATO, Mirta Z. (2004). La vida en las fábricas. Trabajo, protesta y política en
una comunidad obrera, Berisso (1904-1970. Buenos Aires, Prometeo.
(2007). Historia de las trabajadoras en la Argentina: 1869-1960. Buenos Aires,
Edhasa.
MARX, Karl (2004) [1932]. Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844. Buenos
Aires, Colihue.
MOHANTY, Chandra (2008). “Bajo los ojos de Occidente: academia
feminista y discursos coloniales”. En: Descolonizando el feminismo. Teorías y
prácticas desde los márgenes. Madrid, Ediciones Cátedra.
316
Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)
MONTOYA, Silvia (1993). “Mujer y pobreza, Córdoba en los ochenta”.
En: Feijó, M. (Comp.) Tiempo y espacio: las luchas sociales de las mujeres
latinoamericanas. Buenos Aires, Clacso.
MORRIS, Charles y MAISTO, Albert (2005). Psicología. México, Pearson
Educación.
NEFFA, Julio (2003). El trabajo humano: contribuciones al estudio de un valor que
permanece. Buenos Aires, Lumen.
PASCUCCI, Silvina (2007). Costureras, monjas y anarquistas. Trabajo femenino,
Iglesia y lucha de clases en la industria del vestido (Bs. As. 1890-1940. Buenos
Aires, Ediciones RyR.
PARRA, Federico (2007). “Reciclaje popular y políticas públicas sobre
manejo de residuos en Bogotá (Colombia)”. En: Schamber y Suárez
(Comp.) Recicloscopio. Miradas sobre recuperadores urbanos de residuos de América
Latina. Buenos Aires, Prometeo Libros, UNLA y UNGS.
RECCHINI DE LATTES, Zulma y WAINERMAN, Catalina (1977).
“Empleo femenino y desarrollo económico: algunas evidencias”.
Desarrollo Económico. Vol. 17, Nº 66. Disponible en: http://www.jstor.org/
pss/3466400.
SCRIBANO, Adrián (2005). “El fantasma cordobés: ni docta, ni isla, ni
progre”. En: Scribano A.(Comp.), Geometría del conflicto: Estudios sobre acción
colectiva y conflicto social. Córdoba, Universitas.
(2007a). “La sociedad hecha callo: conflictividad, dolor social y regulación
de las sensaciones”. En: Scribano, A. (Comp.), Mapeando interiores. Córdoba,
Universitas.
(2007b). “¡Vete tristeza …viene con pereza y no me deja pensar! … hacia
una sociología del sentimiento de impotencia”, en Luna Zamora, R. y
Scribano, A. (Comps), Contigo aprendí. Estudios sociales sobre las emociones.
Córdoba, Copiar.
317
Gabriela del Valle Vergara
(2007c). “Salud, dinero y amor…! Narraciones de estudiantes universitarios
sobre el cuerpo y la salud”. En: Scribano, A. (Comp), Policromía corporal.
Cuerpos, grafías y sociedad. Córdoba, Universitas.
VERGARA, Gabriela (2006). Valoraciones frente a la desindustrialización. Tesis
de la Licenciatura en Sociología, UNVM, Mimeo.
2008). “Género y pobreza: una aproximación a las recuperadoras de
residuos de San Francisco (Córdoba - Argentina)”. Nómadas. Revista Crítica
de Ciencias Sociales y Jurídicas. Disponible en: http://www.ucm.es/info/nomadas/.
(2010). Percepciones del trabajo doméstico y extradoméstico de las mujeres recuperadoras
de residuos de las ciudades de Córdoba y San Francisco. Tesis de Maestría en
Ciencias Sociales, UNC, Mimeo.
318
Corpos em Concerto: diferenças, desigualdades e desconformidades
CORPOS-TEXTO: a Colonização do Sexo pelo Gênero na
obra de Judith Butler134
Cynthia Lins Hamlin
Introdução
“Não se nasce mulher: torna-se mulher”. Com esta afirmação,
Simone de Beauvoir (1989) inaugura uma nova fase nos estudos acerca da
desigualdade entre homens e mulheres, uma espécie de paradigma ou de
programa de pesquisa cujo foco versa sobre a análise dos fatores sociais
e culturais que subjazem àquela desigualdade. As décadas de 1960 e, em
especial, de 1970, servem de palco para a desnaturalização da feminilidade
e da sexualidade em geral, sendo que uma das principais ferramentas
analíticas deste processo, especialmente na tradição de pesquisa anglosaxã, é a distinção entre sexo e gênero. De um ponto de vista puramente
conceitual, no entanto, Beauvoir tem pouco ou nada a ver com esta
distinção.
Utilizado como sinônimo de sexo na literatura desde o século XV,
é apenas na década de 1950 que o termo gênero perde sua conotação
meramente gramatical (HAIG, 2004) e adquire um contorno que o torna
especialmente útil para a agenda de pesquisa dos estudos feministas e de
mulheres disseminada a partir de Beauvoir. Inspirado pelos conceitos
de status e de papel sexual desenvolvidos por Talcott Parsons, John
Money introduz o termo “papel de gênero” em um artigo de 1955 para
dar conta de “todas aquelas coisas que uma pessoa diz ou faz para se
revelar como tendo o status de menino ou de homem, menina ou mulher,
Artigo desenvolvido a partir de texto intitulado “Sexo, Gênero e Políticas Emancipatórias”,
escrito por mim e por Betânia Ávila (SOS Corpo), apresentado no GT “Sexualidades” do XIII
Congresso Brasileiro de Sociologia, Recife, 2007. Agradeço a Betânia a leitura atenta desta versão
que, embora distante da original, é produto de um trabalho a quatro-mãos. Possíveis erros e
omissões são, entretanto, de minha inteira responsabilidade.
134
319
Cynthia Lins Hamlin
respectivamente” (MONEY apud HAIG, 2004: 90). Em 1966, refletindo
acerca deste conceito, Money afirma haver importado o termo para a
sexologia a fim de:
[...] tornar possível escrever sobre pessoas que chegavam ao consultório
como homem ou como mulher, mas das quais não se podia afirmar
que seu papel sexual, no sentido especificamente genital, era masculino
ou feminino, na medida em que tinham tido uma história de defeito
congênito dos órgãos sexuais (MONEY apud HAIG, 2004: 91).
Inicialmente desenvolvido para lidar com situações de
intersexualidade, o conceito de gênero mostrou-se frutífero para o
programa de pesquisa feminista das décadas de 1960 e 1970 ao sugerir uma
distinção entre o sexo biológico, caracterizado por critérios anatômicos,
hormonais ou cromossômicos, e o gênero, relativo a características
socialmente construídas, relativas a homens e mulheres, como papéis
sociais, divisão do trabalho, características psicológicas, comportamentais
etc. (OUDSHOORN, 2000). Estavam lançadas as novas bases sobre
as quais as relações entre o biológico e o social, o natural e o cultural,
influenciavam-se mutuamente. Em uma concepção típica do período,
Gayle Rubin (1975: 159) define o que denomina de “sistema sexo/gênero”
como “o conjunto de arranjos por meio dos quais a sociedade transforma
a sexualidade biológica em produtos da atividade humana e nos quais essas
necessidades sexuais transformadas são satisfeitas”. Apesar de concepções
como esta apontarem para certo borramento de fronteiras entre o natural e
o social/cultural, está pressuposta uma autonomia relativa das duas ordens
em questão e, neste sentido, independentemente do peso causal atribuído
pelos diferentes autores aos elementos biológicos ou sociais, a realidade
objetiva de fatores destas duas ordens era tida como um dado.
Embora a diferença sexual fosse considerada real, ela era também
tida como relativamente trivial, já que não podia dar conta dos traços
de “feminilidade” e “masculinidade”, nem da opressão feminina (NEW,
2005). Nancy Chodorow (1997), por exemplo, argumenta que, ao contrario
do que afirmava Freud, as diferenças anatômicas percebidas por meninos
e meninas não são automaticamente interpretadas como diferenças de
320
Corpos-Texto: a Colonização do Sexo pelo Gênero na obra de Judith Butler
gênero, mas dependem de arranjos socioculturais calcados na centralidade
conferida às mulheres como cuidadoras primárias, por um lado, e à
desvalorização cultural da feminilidade, por outro. Longe de apostar em
um essencialismo biológico do tipo “anatomia é destino”, Chodorow
defende que as diferenças de gênero são parte de um “sistema de relações
sociais assimétricas enraizadas em desigualdades de poder, nas quais nos
desenvolvemos como selves e como mulheres e homens” (1997: 17).
Embora se opondo (com graus distintos de sucesso) ao
essencialismo biológico, as feministas de segunda onda frequentemente
associavam a ideia de feminilidade (gênero) ao “ser mulher” (sexo), na
medida em que “mulher” era considerada uma base real para a solidariedade,
dado que fundamentada em interesses comuns e/ou em uma natureza
comum. Diferenças entre mulheres – baseadas em classe, raça, preferência
sexual, etnicidade, maternidade etc. – embora pudessem ser consideradas
significativas (como era o caso para Chodorow), não eram tratadas
como particularmente relevantes. A partir da década de 1980, algumas
feministas começaram a questionar essa unidade sob o argumento de que
ela obscurecia as diferenças entre as mulheres, tornando o feminismo
uma teoria de mulheres brancas e de classe média. Assim, também o
universalismo passou a ser contestado, gerando uma fragmentação e
uma tensão sem precedentes na teoria feminista: se “mulher” era uma
identidade fragmentada, então a categoria não mais poderia ser utilizada
como base para a solidariedade política. A política do reconhecimento
daquelas identidades subordinadas (não brancas, não classe média) tornouse cada vez mais importante e, com ela, abriu-se espaço para a ideia de
luta como situada de forma privilegiada na esfera discursiva (NEW, 2005),
gerando novo deslocamento entre o natural e o cultural, numa espécie de
colonização do sexo pelo gênero.
Uma análise das principais bases de dados de citações de artigos
científicos do mundo (o Science Citation Index, o Social Science Citation
Index e o Arts & Humanities Citation Index) entre o período de 1945-2001
mostra que, não por acaso, a partir daquela década de 1980, o número de
títulos de artigos contendo a palavra sexo declinou consideravelmente,
enquanto que os títulos contendo a palavra gênero superaram em muito
os primeiros, mesmo fora das ciências sociais (HAIG, 2004). Este
321
Cynthia Lins Hamlin
deslocamento refere-se, em parte, à crítica feminista da ciência operada
por autoras como Ruth Bleier e Anne-Fausto Sterling, que demonstram
como o uso inadequado da categoria sexo pela biologia possibilita que
determinadas construções de gênero (por exemplo, a distinção entre homem
ativo e mulher passiva com base na presença do Fator Determinante dos
Testículos – FDT - no cromossomo Y) passem por fatos biológicos e não
por efeitos de gênero, ou distinções culturais calcadas em linhas de poder
(KRAUS, 2000; 2005). Mais uma vez, as situações de intersexualidade
tornaram-se o ponto de partida para o estabelecimento de um continuum
sexual entre macho e fêmea e a partir do qual se questiona a existência do
dimorfismo na natureza. Entre homem e mulher, macho e fêmea, uma
variedade de “sexos” que abala a matriz binária dominante, sugerindo que
o sexo é uma categoria tão instável e heterogênea quanto o gênero.
Judith Butler: sexo como gênero
De um ponto de vista mais geral, no entanto, o que estamos
chamando aqui de colonização do sexo pelo gênero tem relação íntima
e direta com o pós-estruturalismo, uma abordagem que tem privilegiado
o discurso como forma social por excelência ao focar as condições
de possibilidade da emergência de determinados objetos, conceitos,
estratégias e sujeitos. Uma das principais representantes desse movimento,
Judith Butler propõe demonstrar que categorias de identidade como sexo e
gênero são efeitos de instituições, práticas e discursos, e não a origem ou a
causa destes últimos; mais especificamente, tenta demonstrar que a relação
que se estabeleceu entre sexo e gênero foi um efeito de duas instituições
principais: o falocentrismo e a heterossexualidade compulsória, instituições
que devem ser desestabilizadas caso se pretenda estabelecer uma política
de gênero emancipatória (BUTLER, 2003). Neste sentido, Butler opera
um deslocamento radical entre sexo e gênero (no sentido de que o gênero
é concebido como absolutamente independente do sexo), em busca de
outra concepção daquilo que Rubin Gayle denominou “sistema sexo/
gênero”. Para ela, contrariamente a Gayle, a relação entre sexo e gênero
é absolutamente contingente: o gênero pode se tornar uma espécie de
322
Corpos-Texto: a Colonização do Sexo pelo Gênero na obra de Judith Butler
“artifício flutuante”, com a consequência de que “homem” e “masculino”
podem facilmente significar um corpo masculino ou feminino, e “mulher”
e “feminino”, um corpo masculino ou feminino. Assim, enquanto Gayle,
de alguma forma, “amarra” o gênero ao sexo ao pressupor a existência
de “necessidades sexuais biológicas” (ainda que estas sejam socialmente
transformadas), Butler implode todo e qualquer fundamento biológico
e concentra-se nas formas como os atributos flutuantes de gênero
são regulados, gerando padrões identitários relativamente estáveis ou
identidades de gênero inteligíveis. Partindo de uma perspectiva genealógica,
Butler vai em busca das “condições de possibilidade” de determinados
discursos ou formulações de sexo/gênero; dito de outra forma, daqueles
elementos sociais/culturais que garantem a inteligibilidade de certas
formulações do que seja “masculino” ou “feminino”, ao passo que impede
outras por torná-las inconcebíveis ou impossibilidades lógicas (como a
existência de outros sexos ou identidades de gênero) (BUTLER, 1993).
Ao focar o discurso, Butler não pretende negar a materialidade
dos corpos, mas sugere que ela seja concebida como efeito de poder
dissimulado, como efeito de normas reguladoras heterossexistas ou da
instituição da heterossexualidade compulsória. A divisão dos corpos
entre masculinos e femininos é uma interpretação política desses corpos
(não existem corpos sem marcadores sexuais), e o sexo é compreendido
como uma categoria normativa e não simplesmente descritiva, que
produz, circunscreve e regula os corpos ao possibilitar ou impossibilitar
determinadas identificações que, por seu turno, “produzem” corpos
sexuados culturalmente inteligíveis (BUTLER, 1993). A relação entre
sexo e gênero, ou mais especificamente a construção do sexo como efeito
de gênero, dá-se pela noção de performance, ou um conjunto de gestos
desempenhados sob a superfície do corpo, mas que instituem as fronteiras
desse corpo a partir dos limites do socialmente hegemônico. Em outras
palavras, o sexo é materializado por meio da performatividade dos agentes
sociais, inclusive por meio de práticas sexuais que “abrem ou fecham
superfícies ou orifícios à significação erótica”, reinscrevendo as fronteiras
do corpo (BUTLER, 2003: 190).
De uma perspectiva política, a performance adquire o papel
central no processo de transformação. Partindo da definição usual de
323
Cynthia Lins Hamlin
atos performativos de J. L. Austin (sentenças que, ao serem proferidas,
desempenham certa ação e exercem um poder coercitivo, como sentenças
legais, declarações de propriedade etc.), Butler (1993: 225) conclui que o
“performativo é um domínio no qual o poder age como discurso”. Mas,
como mencionado acima, o poder do discurso é circunscrito: para que
materialize seus efeitos ele deve estar em consonância com seu poder de
circunscrever o domínio da inteligibilidade. Isto nem sempre ocorre. A
força normativa da performatividade, ou o seu poder de estabelecer o
que conta no domínio ontológico (corpos masculinos ou femininos, por
exemplo), opera por meio da reiteração das normas e também por meio
da exclusão (não há nada fora do dimorfismo, por exemplo). Assim, as
identidades de sexo e gênero são concebidas como práticas e, os sujeitos,
como “efeitos de um discurso amarrado por regras” (BUTLER, 2003:
208).
A capacidade de mudança reside no fato de que, embora as
performances sejam consideradas como constitutivas do sujeito, este
sujeito não é determinado pelas regras (assim como os corpos não são
gerados pelos discursos). De fato, as repetições das regras via performance
nunca são simples repetições, mas sempre geram uma espécie de excedente,
pequenas variações que abalam os significados instituídos dessas normas,
o que abre espaço para sua desestabilização e, em última instância,
para o fim do binarismo que regula a heterossexualidade compulsória.
A agência crítica está, portanto, intimamente ligada à possibilidade da
desestabilização das normas a fim de que se possam rearticular os termos
da inteligibilidade e da legitimidade simbólica via discursos políticos que
mobilizem categorias de identidade. Isto é feito por meio de identificações
e desidentificações que possam servir a objetivos políticos definidos,
embora os marcadores de identidade não sejam considerados um prérequisito para a participação política (BUTLER, 2004). Talvez fosse mesmo
mais adequado afirmar que, no caso de Butler, é a desidentificação que
possibilita uma transformação hegemônica dos horizontes que garantem
a inteligibilidade. Isso porque as categorias politicamente disponíveis
para a identificação restringem de antemão o jogo da hegemonia. No
entanto, dado que a desidentificação não pode ser considerada um mero
processo psíquico - o que “transformaria a psicanálise no ponto final da
324
Corpos-Texto: a Colonização do Sexo pelo Gênero na obra de Judith Butler
política” (BUTLER, 2000: 156), a importância da identidade é mantida na
medida em que se faz necessário conhecer como determinadas formas de
instabilidade se abrem dentro do campo político em virtude dos próprios
processos de identificação. É por esta razão que a autora considera possível
uma política feminista sem a existência de um sujeito “mulher” (mesmo
no plural), uma concepção que - segundo ela - deve ser combatida, dado
que se apoia na heterossexualidade compulsória e em seus mecanismos
de exclusão. O que não fica claro, no entanto, é como as trajetórias de
identificação que possibilitam a viabilidade dos sujeitos políticos podem
se converter naquilo que ela chama de “resistências desidentificatórias”
(BUTLER, 2000), gerando a suspeita de que o processo ocorre, de fato,
num nível individual. Colocando a questão de outra forma, o que, afinal
de contas, possibilita a relativa resistência ou plasticidade das estruturas
sociais e biológicas, tornando-as passíveis de serem transformadas pela
agência humana?
O que parece faltar aqui é uma concepção mais robusta dessas
estruturas do que uma simples referência à instituição da heterossexualidade
compulsória. Algumas dessas estruturas são efetivamente extradiscursivas,
no sentido de que estão localizadas em nível ontológico distinto do
cultural. Ainda que se possa aceitar que as fronteiras do corpo são, em
algum sentido, discursivamente formadas, isso não dá conta daqueles
elementos que estão, por assim dizer, fora do domínio discursivo. Parte do
problema é que Butler, assim como a maioria dos pós-estruturalistas, não
considera como real aquilo que esteja fora do domínio do discurso135: o
sexo, concebido como categoria natural, seria nada mais do que uma ficção
“talvez uma fantasia, retroativamente instalada em um lugar pré-lingüístico
ao qual não se tem acesso direto” (BUTLER, 2004: 5). É interessante,
neste sentido, que frequentemente a categoria sexo seja utilizada por ela de
forma intercambiável com a de sexualidade, que é geralmente entendida
como uma prática. O constrangimento que se impõe sobre estas práticas
são, por seu turno, também da esfera discursiva, não havendo nada em
nossos corpos que possa, em princípio, escapar a esta regra, ou pelo
menos nada acerca do que se possa afirmar alguma coisa. Embora Butler
Para uma exceção importante, ver a noção lacaniana de “Real” e sua apropriação por Slavoy
Zizek (2000).
135
325
Cynthia Lins Hamlin
reconheça a existência de um “excedente” da realidade em relação ao
discurso (daí o subtítulo altamente ambíguo de um de seus livros, “sobre
os limites discursivos do sexo” - o que deve ser compreendido não apenas
no sentido dos limites do corpo impostos pelo discurso, mas também
dos limites do discurso em relação ao sexo como referente), ela se nega
a fazer quaisquer afirmações a respeito deste excedente: assim como o
Real lacaniano, ele é não tematizável. Nenhuma possibilidade, portanto,
de justificar a existência extradiscursiva de algo por meio de observações
(geralmente indiretas) dos efeitos deste objeto, ainda que não se saiba
exatamente o que ele é.
Assim, pouco importa que nossos corpos “funcionem”
independentemente do tipo de conhecimento que temos acerca deles,
ou que diversas de nossas performances de gênero sejam restringidas (e
também capacitadas) por esses limites não discursivos. Não se trata, de
acordo com a nossa perspectiva, de defender posições como a de Lacan,
para quem “a inteligibilidade cultural requer a diferença sexual” (LACAN
apud BUTLER, 2000: 150), mas de reconhecer que a diferença sexual
assume um status (quase) transcendental, no sentido específico de que
ela não apenas coloca limites em relação à plasticidade dos corpos, mas
também que o tipo de constrangimento social e cultural relativo ao que ela
chama performance (relativa ao gênero) é diferente daquele exercido pela
anatomia, fisiologia etc., relativos ao sexo. Por exemplo, a identificação
do corpo de um transexual pós-operado como feminino ou masculino é
culturalmente contingente, mas qualquer política social relativa ao acesso
a técnicas de modificação sexual deve levar em consideração as diferenças
sexuais (cromossômicas, anatômicas, hormonais, corporais, enfim)
para que seja eficaz. Existem determinados clusters de características
manifestas associados ao sexo (timbre de voz, distribuição e quantidade
de pelos corporais, presença de genitália com características especificas,
massa muscular, distribuição de gordura etc.) que, embora isoladamente
não sejam distintivos dos sexos, tendem a aparecer juntos (HULL, 2006); e
isso se deve à presença de determinados mecanismos causais que, embora
possam não se manifestar devido a sua interação com outros mecanismos
contravenientes (podendo inclusive gerar situações de intersexualidade),
devem ser levados em consideração como algo distinto das interpretações
326
Corpos-Texto: a Colonização do Sexo pelo Gênero na obra de Judith Butler
acerca das propriedades desses mecanismos.
Assim, por exemplo, embora a presença ou ausência do hormônio
FDT (Fator Determinante dos Testículos) não possa ser considerada
uma causa de comportamentos ativos ou passivos, ou seja, a descrição
dos “poderes causais” deste hormônio, efetuada até o momento, seja
inadequada, sua presença ou ausência, assim como sua interação com
outros elementos causais da esfera biológica, terá consequências distintas.
O problema real que se coloca não diz respeito apenas à adequação de
nossas descrições ou à relação de adequação empírica entre o signo e seu
referente, mas, de maneira muito mais profunda, à consideração de um
domínio ontológico distinto de um domínio epistemológico (discursivo
ou representacional).
A critica pós-estruturalista ao dualismo sexo/gênero baseia-se
numa elisão entre realidade e representação. O problema com esta elisão é
que, do fato de que a natureza só pode ser conhecida sob certas descrições,
não se segue que nossas descrições constituem a natureza. Como afirma
Vandenberghe (2003: 465): “Colidida em ‘natureza’, a natureza tornase cultura [...]. O significante “natureza” performativamente constrói a
natureza e, no fim das contas, o significado é deferido e o referente é
‘exterminado’ pelo discurso”. Em outras palavras, a prioridade conferida
ao cultural impede que o sexo seja concebido como algo mais do que
aquilo “que a sociedade designa ou o que a sociedade faz dele” (WEEKS,
citado em LAQUEUR, 2000, p. 13).
Assim, embora autoras como Butler e Fausto-Sterling esforcem-se
por admitir a dimensão material dos corpos, a ênfase em sua dimensão
ideológica ou simbólica não apenas erode a distinção entre o corpo físico
e o corpo cultural, mas prioriza o segundo, transformando o primeiro
em mero epifenômeno: “... nós literalmente, não apenas ‘discursivamente’
(isto é, por meio da linguagem e de práticas culturais), construímos nossos
corpos, incorporando a experiência em nossa própria carne”, diz FaustoSterling, complementando, mais adiante: “Eu proponho modificar o
bon mot de Halperin de que a ‘sexualidade não é um fato somático, é um
efeito cultural’, argumentando, em vez disso, que a sexualidade é um fato
somático criado por um efeito cultural” (FAUSTO-STERLING, 2000: 2021 [ênfases no original]).
327
Cynthia Lins Hamlin
A despeito de suas afirmações do sexo biológico como ficção, a
posição de Butler parece, à primeira vista, mais sutil que a de FaustoSterling, e ela se esforça por estabelecer que os discursos não constituem
os objetos naturais em um sentido forte. Em entrevista originalmente
publicada em 1998, Butler (apud PRINS; MEIJER, 2002: 157) afirma
que se enfurece com “as reivindicações ontológicas de que códigos de
legitimidade constroem nossos corpos no mundo”, mas não parece
muito preocupada em tentar determinar quais são os limites (materiais)
para a construção desses discursos136. Isso não seria um problema em si
mesmo se ela não estivesse preocupada em gerar mais do que um projeto
epistemológico (ou, mais apropriadamente, desconstrutivista). Existe, na
verdade, um projeto ontológico em sua obra, mas ele é marcado, como
a própria Butler reconhece (apud PRINS; MEIJER, 2002: 160), por uma
série de contradições performativas: ao mesmo tempo em que ela afirma
que existem determinados tipos de corpos, defende que eles não têm
“reivindicação ontológica”.
Tal contradição performativa é entendida como projeto
essencialmente político: uma forma de instituir novas ontologias (por
exemplo, determinados tipos de corpos considerados abjetos e, por esta
razão, não inteligíveis de acordo com as normas culturais vigentes). Mas,
para que a “existência” de determinados corpos considerados abjetos
possa ser defendida num projeto político, não basta apenas postulá-la: é
preciso justificar as bases segundo as quais essa crença ontológica pode
ser sustentada e considerada, de alguma forma, mais adequada do que
outras concepções acerca do que esses corpos são. E isso Butler recusase a justificar: a fim de evitar o assujeitamento que deriva dos processos
de nomeação, seus pressupostos, ao contrário daqueles cuja ontologia
desconstrói, são mantidos implícitos, impedindo qualquer movimento de
reconstrução que forneça as bases para a ação política, especialmente no
que diz respeito a intervenções materiais.
A este respeito, remetemos à irônica nota de Vandenberghe (2003: 472): “Judith Butler é a teórica
da transexualidade. Mas na medida em que dificilmente se encontrará em seus textos referências a
injeções de silicone, operações estéticas ou a outras práticas materiais que subvertem a naturalidade
da distinção entre os sexos, pode-se muito bem afirmar que sua teoria da transexualidade é,
na verdade, uma teoria da transtextualidade. Sempre encapsulado na linguagem, o corpo é tão
intangível quanto a coisa-em-si kantiana”.
136
328
Corpos-Texto: a Colonização do Sexo pelo Gênero na obra de Judith Butler
Conclusão
Embora não se trate de negar a importância da desconstrução
para a produção do conhecimento e para a ação política via construção
de discursos contra-hegemônicos, este último, em particular, implica
não apenas num movimento de desconstrução a fim de desestabilizar os
significados instituídos, mas no compromisso explícito com uma ontologia
que possibilite também um movimento reconstrutivo. Este movimento de
reconstrução deve, de acordo com a perspectiva defendida aqui, basearse no estabelecimento de uma ontologia que possibilite a defesa de
critérios de existência de determinados mecanismos, irredutíveis, relativos
aos diferentes níveis da realidade - como o biológico, o psicológico, o
cultural, social etc. Só assim se pode pensar nos limites e possibilidades
efetivamente colocados pela realidade às nossas práticas culturais.
Embora a descrição desta ontologia fuja ao escopo deste trabalho
(a este respeito, ver HAMLIN, 2000, 2008; NEW, 2005; HULL, 2006),
reproduzimos, a seguir, uma explicação típica da relação sexo/gênero
concebida em termos da interação dos mecanismos de diversos níveis
da realidade, conforme efetuada por Caroline New para dar conta da
bandagem de pés das mulheres chinesas entre o século X e meados do
século XX. Pode-se começar fazendo referência a alguns elementos
discursivos, como o fato de o imperador Li Yu haver ordenado a suas
concubinas amarrassem seus pés em um determinado ponto da história
e, em outro momento, Mao Tse Tung haver proibido a prática. Mas, para
que as demandas de um homem (se é que elas de fato existiram) tenham
se tornado uma moda que findou por se transformar em uma instituição
social durável, diversos fatores certamente se fizeram presentes para que
isto se fosse possível. Assim:
No nível dos mecanismos biológicos, o dimorfismo sexual deve se
manifestar de tal forma que as mulheres tendem a ser menores do que os
homens (ou teria que haver outra origem contingente para a significância
simbólica desta prática). Os pés humanos devem apresentar determinados
poderes e possibilidades, de forma que se a maioria dos artelhos fossem
quebrados e envolvidos em bandagens quando a criança tivesse cerca de
329
Cynthia Lins Hamlin
três anos de idade, o pé permaneceria pequeno. [...] No nível psicológico,
a sexualidade humana deve apresentar tal maleabilidade cultural que um
andar com passos diminutos possa ser imbuído de significado erótico.
Em particular, as diferenças que expressam ou simbolizam as diferenças
sexuais e de gênero (tais como o exagero do tamanho relativamente
pequeno dos pés femininos) teriam que ter a tendência a causar excitação.
No nível cultural, crenças acerca da diferença sexual teriam que legitimar
tal prática, e associações simbólicas teriam que torná-la inteligível
e capaz de ser sexualmente carregada. No nível social, a estrutura de
classes, incluindo a autoridade, poder papel simbólico do imperador,
deveriam capacitá-lo a lançar modas. As relações de poder entre homens
e mulheres, adultos e crianças, teriam que ser tais que as mulheres da
família desempenhariam o ato inicial (“caso contrário, nenhum homem
bom vai querê-las”) e a criança e as diversas testemunhas permiti-lo-iam.
A economia deveria possibilitar a incapacitação da maioria das mulheres
de classe média e alta. Estes e muitos outros mecanismos em diversos
níveis teriam que exercer seus poderes emergentes de formas particulares
e com base em relações particulares entre si para que esta instituição
possa ter se desenvolvido e perdurado. (NEW, 2005: 9-10)
O exemplo possibilita perceber que a diferença sexual não causa,
por si só, nem as diferenças nem as desigualdades de gênero que a teoria
feminista se propõe a explicar e transcender. No entanto, deixa claro
que qualquer projeto emancipatório que se pretenda eficaz deve levar
em consideração os limites e possibilidades impostos por mecanismos
relativos aos diversos níveis da realidade, sendo um deles o biológico.
330
Corpos-Texto: a Colonização do Sexo pelo Gênero na obra de Judith Butler
Bibliografia
BEAUVOIR, Simone (1989). The Second Sex. Nova York, Vintage Books.
BUTLER, Judith (1993). Bodies that Matter: On the Discursive Limits of Sex.
Nova York e Londres, Routledge.
________ (2000). “Universalidades en Competência”. In: Judith Butler,
Ernesto Laclau e Slavoj Zizek, Contingencia, Hegemonia, Universalidad: Diálogos
Contemporáneos en la Izquierda. Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica.
________ (2003). Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade.
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
________ (2004). Undoing Gender. Nova York e Londres, Routledge.
CHODOROW, Nancy (1997). “Gender, Relation, and Difference in
Pscychoanalytic Perspective”. In: Diana Tietjens Meyers (ed.), Feminist
Social Thought: a reader. Londres e Nova York, Routledge.
FAUSTO-STERLING, Anne (2000). Sexing the Body: gender politics and the
construction of sexuality. Nova York, Basic Books.
HAIG, David (2004). “The Inexorable Rise of Gender and the Decline
of Sex: Social Change in Academic Titles, 1945–2001”. Archives of Sexual
Behavior. Vol. 33, No 2: 87–96.
HAMLIN, Cynthia (2000). “Realismo Critico: um programa de pesquisa
para as ciências sociais”. Dados. Vol. 43, No 2: 373-398.
________ (2008). “Ontologia e Gênero: realismo crítico e o método das
explicações contrastivas”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 23:. 7181.
KRAUS, Cynthia (2000). “La Bicatégorisation par Sexe a l’‘epreuve de la
science’: Les cas des Recherces en Biologie sur la Détermination du Sexe
chez les Humains”. In: Delphine Gardey e Ilna Löwy (Orgs.), L’Invention du
331
Cynthia Lins Hamlin
Naturel: Les Sciences et la Fabrication du Féminin et du Masculin. Paris, Éditions
des Archives Contemporaines.
________ (2005). “‘Avarice Épistemique’et Économie de la Connaissance:
Le Pas Rien du Constructionisme Social”. In: Hélène Rouch, Elsa Dorlin
e Dominique Fougeyrollas-Schwebel (Orgs.), Le Corps, entre Sexe e Genre.
Paris, L´Harmattan.
NEW, Caroline. (2005). “Sex and Gender: A Critical Realist Approach”.
New Formations. No. 56: 54-70.
OUDSHOORN, Nelly (2000). “Au Sujet des Corps, des Techniques et
des Féminismes”. In: Delphine Gardey e Ilna Löwy (Orgs.), L’Invention du
Naturel: Les Sciences et la Fabrication du Féminin et du Masculin. Paris, Éditions
des Archives Contemporaines.
RUBIN, Gayle (1975). “The Traffic in Women: Notes on the ‘Political
Economy’ of Sex”. In: Rayana Reiter (Org.), Toward and Anthropology of
Women. Nova York e Londres, Monthly Review Press.
VANDENBERGHE, Frédéric (2003). “The Nature of Culture. Towards a
Realist Phenomenology of Material, Animal and Human Nature”. Journal
for the Theory of Social Behaviour. Vol. 33, No 4: 461-75.
ZIZEK, Slavoy (2000). “Mantener el Lugar”. In : Judith Butler, Ernesto
Laclau e Slavoj Zizek, Contingencia, Hegemonia, Universalidad: Diálogos
Contemporáneos en la Izquierda. Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica.
332
Corpos en Concierto: diferencias, desigualdades y disconformidades
LA TAUTOLOGÍA DEL SOLIDARISMO EN EL
BICENTENARIO: “Argentina abraza a Argentina”
María Eugenia Boito
Dicen que la vida te hace olvidar las ilusiones que tenés de chico.
Yo estoy convencido de que se puede cambiar el mundo... los burgueses como yo,
a las revoluciones las leemos en los diarios, pero no nos enganchamos en ninguna.
Todas las revoluciones parecieran tener sangre y horror; llevan
a la venganza de vencedores y perdedores.
La revolución solidaria es constructiva, sin mucho debate.
Juan Carr. Responsable de Red Solidaria, O.N.G. creada en 1996.
(L)a caridad es, hoy, parte del juego, en tanto máscara humanitaria que
oculta la explotación económica subyacente”. Slavoj Žižek Analía Hounie
(Compiladora) “Violencia en acto. Conferencias en Buenos Aires” 2004.
El presente trabajo retoma reflexiones previas sobre el solidarismo137
y pretende debatir sobre “la revolución solidaria”. La estrategia
interpretativa se inscribe fuera del discurso autorreferencial, tautológico
de la solidaridad, instancia a partir de la cual es posible cuestionar la doxa
que remite a la apoliticidad de lo solidario, en tanto fantasía social que
genera prácticas que se instituyen repudiando el antagonismo de clase
constituyente de la formación social contemporánea.
Para alcanzar dicho objetivo se ha seleccionado la siguiente
estrategia argumentativa: en primer lugar, se realizan consideraciones
teóricas sobre la operatoria del solidarismo en la regulación de la
Ver Eugenia Boito. “El retorno de lo reprimido como exclusión social y sus formas de borramiento:
Identificación, descripción y análisis de algunas ‘escenas’ de lo construido hegemónicamente como
‘prácticas solidarias’. (2002-2004)”, Tesis de Comunicación y Cultura Contemporánea, CEA, UNC,
mimeo, Diciembre de 2005.
137
333
María Eugenia Boito
soportabilidad/deseabilidad social retomando la perspectiva de S. Žižek
sobre la ideología; en segundo lugar, se aborda la convocatoria Argentina
abraza Argentina en el marco de la conmemoración del Bicentenario,
por parte de Red Solidaria, Margarita Barrientos (por el comedor “Los
Piletones”) y el actor Ricardo Darín; en tercer lugar, y a modo de cierre
se retoma el recorrido propuesto, en vistas a exponer algunos rasgos de
la “religión del desamparo neo-colonial” en los términos de A. Scribano, que
expresa en las prácticas del solidarismo analizadas una máscara humanitaria,
la contratara del capitalismo como religión-profana de la que nadie reniega
ser practicante.
I.
Antes de iniciar una exploración sobre la dinámica del solidarismo,
se parte de reconocer tres creencias ideológicas materializadas que
centralmente organizan el quehacer antes expresiones sintomales de
carencia.
En la Argentina contemporánea:
1- La estructuración en clases está naturalizada y la pobreza aparece como
paisajística.
2- La oclusión de derechos sociales se concreta mediante la subsunción
en la forma equivalencial hegemónica ‘cumplir un sueño’ para la
simbolización de las más heterogéneas demandas.
3- El orden solidario138 actúa como mandato transclasista para actuar
Todo aparece subsumido en esta nominación, lo más diverso, heterogéneo, extraño y disímil
puede disponerse como objeto de acciones solidarias: ‘Solidaridad’ ante el crecimiento de la
pobreza, la necesidad de donar sangre por un accidente reclama del ‘compromiso solidario’, la
crisis energética hace que el ahorro de la misma se constituya en un ‘gesto solidario’, la muerte de
un joven a manos de la policía suma a los ciudadanos en marchas de reclamo en ‘solidaridad’ con
las víctimas del ‘gatillo fácil’, la muerte de otro joven víctima de un secuestro ‘extorsivo’ genera
expresiones de acción colectiva de alta participación ciudadana. ‘Solidaridad’ con víctimas anónimas
o mediáticas, individuales o colectivas, por un tornado, el desborde de un río, un accidente, la
‘desidia estatal’, la acción un grupo extremista o fundamentalista. Como mecanismo ideológico,
la fantasía solidaria no sólo interviene desarraigando significantes de ciertos contextos de sentido
y ejerciendo desplazamientos hacia la definición de otro tipo de interacciones, sino capturando
heterogéneos y múltiples modos de afectación a las sensibilidades y subsumiéndolos en la unicidad
del sentir solidario.
138
334
La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”
sobre expresiones sintomales que refieren a la desigualdad estructural,
instanciando un modo de interacción que produce figuras de expresa
crueldad o insensibilidad de clase.
Estas tres creencias (no como fenómeno mental, sino como
dimensiones ensambladas en una matriz socio-perceptiva que organiza
prácticas) se traman entre si en los siguientes términos: La construcción
(ideológica) hegemónica que organiza la visibilidad y la discursividad sobre las expresiones
de pobreza -síntomas de la estructuración clasista y de sus dinámicas regresivasopera mediante el borramiento de los colectivos de identificación, fundamentalmente
los clasistas.139 Sin embargo, no sólo es pertinente precisar que es lo que
se borra -las formas de ocultación y de invisibilidad- sino la dimensión
productiva de estas prácticas; es decir, que es lo que aparece y en que
términos es construido.
Ya desde un primer acercamiento al campo de estudio en cuestión,
se ha podido reconocer la recurrencia de un significante que aparece como
privilegiado en relación a la definición de las interacciones que se generan
entre sujetos que ocupan posiciones de clase diferenciadas. Éste refiere
a la solidaridad. Se trata de un significante que no sólo aparece de manera
compulsiva para configurar y actuar en las objetivaciones de las relaciones
de desigualdad, sino que se manifiesta como reconocido, valorado y
disputado por diversos actores que tienen la intención de subsumir las
prácticas bajo esa noción.
Así la noción de ‘solidaridad’ actúa como un significante fundamental que por
un lado, oculta las contradicciones de clase que caracterizan a esta formación social, y
por otro legitima el accionar “ciudadano” y del “mercado” en el abordaje de expresiones
Dice Juan Carr, representante de ‘Red Solidaria’: “son imágenes de un país que vemos todo el
tiempo. Un país con dos caras muy evidentes. Por un lado, la tragedia de todos los días, la situación
institucional más que complicada, los chicos que se mueren de hambre, los abuelos sin medicación.
Por otro lado estamos tapados de solidaridad. Es una catarata solidaria, en todos los ámbitos, sea
con un caso de cáncer, un trasplante, un discapacitado...” “Un país con dos caras. Juan Carr se
sorprende todos los días con el agudo contraste entre la crisis y la avalancha solidaria” (Revista
Nueva, anuario 2002, pág. 10).
139
En relación a la realidad Argentina, Adrián Scribano expresa la tendencia antes descripta: ‘en
nuestra sociedad estamos asistiendo a dos procesos diversos y convergentes que la visión social
legítima oculta. Por un lado, la fragmentación y, por el otro, la exclusión. Desde un punto de vista
identitario asistimos a la disolución de los apelativos organizacionales de pertenencia’ (SCRIBANO,
2002: 123).
335
María Eugenia Boito
de la ‘cuestión social,’140 nombradas como demandas de los pobres.141 A partir de
este designante, se configura un campo unificado de significado donde se
concretan diversas operaciones ideológicas: la pretensión de unificación
mediante simbolizaciones sucesivas de unidad que borren la contradicción
estructural, el mecanismo de disimulación mediante operaciones de
desplazamiento y / o eufemización, la desjerarquización de la reflexión
sobre la desigualdad en pos de la exposición y / o narración de acciones
de ‘ciudadanos comprometidos’, constituyen algunos ejemplos de las
estrategias típicas de construcción ideológica.142
El significante ‘solidaridad’ opera en dos sentidos: construye
un espacio proyectivo donde a través de colectivos de identificación
vinculados a la idea de ‘nación’143, ‘los argentinos’ responden a estrategias
de interpelación y ponen en acto prácticas orientadas a la satisfacción
de necesidades de otros; y a la vez ocluye la visibilidad de procesos de
fractura social contemporáneos, desplazando antiguos significantes en
tanto maneras de configurar/ocluir las contradicciones. Por ejemplo, el
Fitoussi y Rosanvallon afirman que las modalidades de constitución y abordaje de las ‘nuevas
cuestiones sociales’, revelan la constitución de un consenso alrededor de una ‘ideología humanitaria’:
“En primer lugar, el retorno de lo social se acompaña hoy por una confusión perversa de la política
y de los buenos sentimientos. A la palabra ‘exclusión’, un moderno diccionario de ideas admitidas
le añadiría imperativamente un ‘indignarse por ello’. El problema ya no es juzgar acciones ni evaluar
prácticas, sino escapar a lo que se manifestaría como la suprema infamia: la indiferencia” (1996: 24).
Continúan los autores: “En la política de los buenos sentimientos, no se habla ni de impuestos ni
de costo de la solidaridad; no se discuten los efectos eventualmente perversos de ciertas políticas
sociales, así como tampoco se procuran determinar verdaderos derechos. Uno se contenta con
dar testimonio de una forma de solicitud. Es una manera piadosa de erigir la impotencia en valor
moral” (1996: 25).
141
En este sentido, como afirma Therborn “La lucha ideológica ... es también la lucha por la
afirmación de una determinada subjetividad – como creyente, ciudadano o miembro de una clase
p.e – por la definición de determinados sujetos ... como ‘clases productivas’, el ‘pueblo’ o ‘los
explotados’ – y por el tipo de subjetividad que debería aplicarse. (...) En la batalla ideológica lo que
está en juego es la reconstitución, desometimiento o resometimiento y cualificación ya constituidos
o su reproducción ante este desafío” (1998: 64–65).
142
J. B. Thompson, en ‘Ideology and modern culture’ identifica modos generales de la ideología
(legitimación, disimulación, unificación, fragmentación y reificación). Cada uno de estos modos, se
objetiva en estrategias: por ejemplo el modo de fragmentación se expresa en estrategias tales como
la diferenciación y la expurgación del otro (Citado en ARIÑO, 1997: 128).
143
En contraposición a la lectura de Žižek: “La nación es una ‘comunidad imaginada’... en el
sentido más radical de ser un ‘suplemento imaginario’ a la realidad social de la desintegración y los
antagonismos irresolubles” (2003d: 121–122).
140
336
La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”
significante ‘justicia social’ no aparece o lo hace como ‘arcaico’144, en el
sentido de Raymond Williams.
A través de este acto de construcción/oclusión, las prácticas
solidarias se sostienen en el borramiento de preguntas fundamentales:
¿por qué es necesario dar? ¿Por qué los sujetos, más allá de la posición
que ocupen en la estructura social, son interpelados y se reconocen en la
interpelación que los constituye como donantes y con esta acción suturan
el hecho de que otro sujeto carezca de algo? ¿Por qué aparece como
transparente e incuestionable la modalidad de lazo social que se instituye?
El solidarismo como fantasía obtura la emergencia de estos interrogantes.
Dice Scribano:
La fantasía no deja ver lo que hay de antagónico en las prácticas que
estructuran lo social. La fantasía obtura la visión de una visión y la
transforma en un velo que permite ver solo los contornos de lo concreto.
La fantasía ocluye el conflicto que subyace en la natural explicación de la
vida cotidiana y consagra el conflicto como vacío (2002: 19).
Ante el retorno de lo real como horror (imágenes del hambre)
el campo de la fantasía social ‘solidaria’ lee estos síntomas sociales a
través de un mecanismo que genera una lectura invertida y que opera por
transformación en lo contrario: el acento y la intensidad se concentra no
en la pobreza, sino en la multiplicación de ‘microrevoluciones’ solidarias
(imagen de una torre de alimentos, como se analiza a continuación).
Una complacencia colectiva centrada en el síntoma; una reunificación
imaginaria en episódicos goces de una sociedad fragmentaria y disgregada.
El solidarismo como fantasía social en sentido amplio aparece
entonces como una formación reactiva en relación a ese núcleo
traumático, en la que operan mecanismos como la represión. Hay un tipo
de represión característica de las formaciones sociales capitalistas: la que
Arcaico es lo que sobrevive del pasado, pero como pasado, como referente de una formación
cultural ya concluida. En relación al significante justicia social, para ser mas precisos, habría que
analizar su funcionamiento en diversas construcciones discursivas, ya que quizás puede actuar no
como arcaico’ sino como ‘residual’, en tanto elemento de otra formación cultural que sin embargo
encuentra lugar en el presente del proceso cultural que se analiza.
144
337
María Eugenia Boito
remite a la continuidad y perduración de las relaciones de explotación.145
Pero en el tercer tiempo de este proceso,146 los representantes retornan
y el ‘inconsciente social’ se expresa. Es así que “la realidad social no es
entonces más que una telaraña simbólica que la intrusión de lo real puede
desgarrar en cualquier momento” (ŽIŽEK, 2000: 36).
A partir de lo expuesto, se puede ensayar la siguiente interpretación:
la fantasía solidaria protege del horror de lo real-social, (en tanto instancia
donde se proyectan posibilidades de acción) espanta los fantasmas de
reclamos ancestrales por parte de las clases subalternas (por la generación
de modalidades de interacción para operar sobre los síntomas sociales que
retornan) y las prácticas solidarias operan mediante la fetichización de las
situaciones de donación que se concretan. Esto último requiere precisar el
significado del concepto de fetiche y su relación con los síntomas sociales.
Dice Žižek:
El fetiche es, efectivamente, una suerte de envés del síntoma. Es decir
que el síntoma es la excepción que agita la superficie de la falsa apariencia,
Creo que este es un lugar significativo para sostener una disputa con el proyecto político de
‘radicalización de la democracia’ que distingue a la propuesta de Laclau - Mouffe: para los autores
el socialismo es una más de las dimensiones de su proyecto de ‘radicalización’ (y obviamente se
resignifica en el marco de una construcción teórica y política cuyo significante fundamental es
‘democracia’).
146
La definición psicoanalítica de represión tiene diversos sentidos. En un sentido amplio refiere
a “una operación defensiva por medio de la cual un sujeto intenta rechazar o mantener en el
inconsciente representaciones (pensamientos, imágenes, recuerdos) ligados a una pulsión, cuya
satisfacción ofrecería el peligro de provocar displacer en virtud de otras exigencias”. A través de
este mecanismo se constituye en el conflicto psíquico estructurador del sujeto, donde se instaura
una ley que prohíbe la satisfacción del deseo. Pero Freud no sólo conformó una modalidad de
abordaje de la psique individual, sino que desarrolló lo que algunos denominan ‘ensayos’ y otros
‘extensión legítima’ del modelo teórico construido hacia a la explicación del origen y desarrollo de
la civilización y de la cultura. Como se sabe en “El Malestar de la Cultura” (1930) afirma que la
vida cultural se originó a partir de la represión de los impulsos, instalando un conflicto permanente
entre los deseos del individuo y lo requerido para la vida en sociedad. Para el autor esta limitación
de la gratificación se fue intensificando con el desarrollo de las sociedades. En las vinculaciones
marxismo/psicoanálisis es Herbert Marcuse quien reflexiona sobre el plus de represión/represión
sobrante o excedente, que conforma a las formaciones sociales capitalistas y se distingue de
la represión básica, en tanto modificación ‘necesaria’ de los impulsos para la instauración y
perpetuación de la vida social. (“Eros y Civilización”) Žižek - a diferencia de Marcuse - en lugar
de centrar la atención en el plus de represión que caracteriza a los procesos de dominación social
capitalistas va a analizar el plus de goce.
145
338
La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”
el punto en el que emerge la Otra Escena reprimida, mientras que el
fetiche es la personificación de la mentira que nos permite mantener
la verdad insoportable... un fetiche puede desempeñar un papel muy
constructivo, permitiéndonos sobrellevar la cruda realidad: los fetichistas
no son soñadores perdidos en sus mundos privados, son enteramente
‘realistas’, capaces de aceptar el modo en que las cosas son realmente - ya
que tienen su fetiche, al que pueden aferrarse para cancelar el impacto
total de la realidad (2001: 22).
Lo desarrollado permite abordar otra característica de la fantasía:
la oclusión narrativa del antagonismo mediante la fetichización de la
interacción solidaria. Señala Žižek que el hecho mismo de narrar testimonia
la intención de establecer un orden, un tipo de registro y de secuencia
(por lo menos temporal, sino lógica) a un antagonismo fundamental. Así,
“sentirse” solidario o “ser” solidario es una fantasía que sostiene al sujeto
en su adaptación a la realidad, fantasía que acepta como “natural” y que lo
lleva a rechazar cualquier irrupción que amenace con su desintegración. Si
puede hablar sobre ‘eso’, si puede hacer algo, evita el roce con lo traumático.
La ideología solidaria en tanto creencia se sostiene en lo que se
puede llamar ‘apariencia esencial’: los sujetos que participan en estas
prácticas no se interrogan sobre el impacto y la capacidad de resolución de
las cuestiones sociales problematizadas y planteadas, sin embargo actúan
como si creyeran. Continúan con los rituales, con la carnavalización de la
necesidad, se reconocen en los señuelos ‘para poder permanecer sensatos’
(ŽIŽEK, 2003d: 146). La energía social invertida en estas acciones se
invierte (en el sentido de cambiar la dirección) y vuelve a ellos, para que
‘el sujeto conserve su ‘cordura’, su funcionamiento ‘normal’. (ŽIŽEK,
2003d: 146) Es así que el destinatario privilegiado de estas prácticas es
quien ocupa la posición de ‘donante’, ya que a través de su participación
puede ubicarse en la posición del ‘alma bella’ en el sentido hegeliano.
Por esto Žižek cuestiona estas supernumerarias voluntades que
manifiestan que ‘realmente quieren hacer algo para ayudar a la gente’.
Las cantidades de energía social que parecieran traducirse en una serie de
actividades, en realidad proporcionan:
339
María Eugenia Boito
[…] el ejemplo perfecto de interpasividad, de hacer cosas no para lograr
algo, sino para evitar que algo pase realmente, que algo realmente cambie.
Toda la actividad del filántropo frenético, políticamente correcto, encaja
en la fórmula de ‘sigamos todo el tiempo cambiando algo, para que
globalmente las cosas permanezcan igual’ (2003d: 23).
Un primer cierre (o apertura interpretativa) permite afirmar que
la construcción de esta fantasía social supone la implementación de
diversos mecanismos: inversión de lo real, oclusión el antagonismo, constitución
de un orden: lo que es regla aparece como excepción, el carácter clasista se
ocluye y las diversas formas de ‘compromiso solidario’ emergentes son
materializaciones de resolución ‘imaginaria’ de un antagonismo estructural.
De este modo, la fantasía crea una gran cantidad de ‘posiciones de
sujeto’, entre las cuales el sujeto está en libertad de flotar, de pasar de
una identificación a otra. Aquí se justifica hablar de ‘posiciones de sujeto
múltiples y dispersas’, en el entendimiento de que estas posiciones de
sujeto deben distinguirse del vacío que es el sujeto (ŽIŽEK, 1999: 16).
No hay un fuera de lugar, no hay un lugar más allá de lo solidario, porque
se apela a colectivos de identificación que imposibilitan este desplazamiento:
‘los argentinos somos solidarios’ es el continente de la interacción a analizar.
En este sentido la emergencia de múltiples interacciones solidarias, como
intentos por representar una idea de “comunidad” nacional, aparece como
un tipo particular de construcción ideológica que reprime la visualización de
las dinámicas regresivas de reorganización de las relaciones entre las clases.
Así, las canciones de cuna ‘solidarias’ interpelan a una sensibilidad para la cual
existe un lugar para todos, orientan prácticas para dar un espacio a las más
diversas demandas. En este sentido, la referencia a ‘los argentinos’ permite
enfatizar la intencionalidad de contener y la disposición de ‘continente’ de
estas acciones.
Parafraseando irónicamente algunos aspectos de la propuesta de
inteligibilidad de Ernesto Laclau y Chantal Mouffe, se puede sostener que
el “molde” solidario establece equivalencias entre diversas relaciones de
desigualdad. Pero las diversas ‘relaciones de subordinación’ no culminan
redefiniéndose como ‘relaciones de opresión’ a partir del reconocimiento
340
La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”
de ciertos ‘antagonismos’, sino que el antagonismo desaparece mediante
acciones que operan en la superficie de manifestación de los efectos de los
mismos, suturando el sentido de la práctica en este plano.147
La falta de criterios de ponderación de las desigualdades junto
a la concreción de reacciones epidérmicas, expresan las consecuencias
políticas del régimen de verdad (como discursividad – visibilidad) de esta
matriz.148
En la sociedad contemporánea, atravesada por procesos de creciente
mercantilización y mediatización de la vida social, el solidarismo genera
una sensación de desplazamiento del lugar hegemónico que tiene “el otro”
(el extraño) en las grandes ciudades; temporariamente, permite expresar
el sentirse afectado por su situación, desestructurando las habituales
relaciones de indiferencia. Así las prácticas del solidarismo reconfiguran
modalidades de experiencia integrando -imaginaria y fugazmente- a los
sujetos en un horizonte compartido de acciones.
En la constitución de este orden sociosimbólico, los medios
masivos de difusión contribuyen en la simulación de la posibilidad
de integración, de clausura del imaginario a través de narraciones o
informaciones que ocluyan los antagonismos. Con relación a este tema,
se recordará que en ‘Poesía y Capitalismo’ Walter Benjamin149 conecta la
emergencia de un género literario (la literatura panorámica, el folletín) con
procesos de transformación social. Así dice que las caracterizaciones del
‘otro’ que el género presenta al lector son bonachonas (un parecer sobre el
La polémica Žižek - Laclau generada por diversas lecturas sobre la actualidad del pensamiento
de Marx se hace cada vez más evidente. Precisa Žižek: “(l)a apuesta del marxismo es que existe
un antagonismo (‘lucha de clases’) que sobredetermina a todos los demás y que como tal es el
‘universal concreto’ de todo el terreno” (2005: 72).
148
Adrián Scribano en el CD ‘Combatiendo Fantasmas’, Chile, 2004, aborda una indagación
sobre las formas comunes existentes entre el pensamiento neoliberal y la propuesta posmarxista
de Laclau, en función de las visiones de la política que están inscriptas respectivamente: la política
como catalaxia y como catacresis La lectura de estas reflexiones permite identificar como, en
determinado sentido, la batalla ideológica ejerce su acción considerando ‘gestaltd’ existentes, en
tanto encuadres de las percepciones, ‘Catalaxias y catacresis: lo que está pero no se ve, lo que no se
puede nombrar pero es performativo’ (2004: 122). “Crítica a la razón narrativa: un homenaje a la
crítica adorniana en el marco de una discusión de la teoría social en Argentina” (122–126)
149
Debo este señalamiento a Silvina Mercadal, a partir de la lectura de ‘Le Flaneur’ de W. Benjamin.
147
341
María Eugenia Boito
prójimo alejado de la experiencia cotidiana, del encuentro cara a cara), en
un espacio que se vuelve cada día más inquietante (la ciudad).
Esta construcción de fantasía operante en ese momento histórico,
que finge integrar lazos sociales que se disgregan, encuentra analogías
con ciertas construcciones mediáticas sobre ‘lo solidario’ en la actualidad.
Continúa Benjamin: “La prensa organiza el mercado de los valores
espirituales, que es donde surge la especulación alcista” (en Baudelaire
o las calles de París). Parafraseando: La página web “por los chicos”, la
presencia de Juan Carr y Ricardo Darín en distintos programas difundiendo
Argentina abraza Argentina organiza el mercado de los valores solidarios, que
es donde surge la especulación alcista, expuesta en la imagen de “ladrillos”
que van formando la Torre del Hambre Cero. 150
De esta forma este sensorium colectivo instituye momentos de
encuentro con el otro en tanto ‘semblant’ en un universo social en
mutación, donde lo real-social refiere a procesos de fragmentación y a la
emergencia de nuevas tipologías de desigualdad.
En términos de Scribano:
En la actualidad esto se puede observar en el surgimiento de una /nueva/
religión del desamparo (en países) neocoloniales… compuesta por el consumo
mimético, el solidarismo y la resignación. Religión cuya liturgia es la construcción
de las fantasías sociales, donde los sueños cumplen una función central en tanto
reino de los cielos en la tierra, y la sociodicea de la frustración el papel de narrar
y hacer presentes-aceptables los fantasmáticos infiernos del pasado vuelto
presente continuo.
Mandatos sociales se instalan como las “nuevas tablas” de la Ley. ´Consuma
que será feliz,… “Sea bueno alguna vez en el día”,… “Resígnese! porque eso
El ser solidario al alcance de un ‘click’ (un mensaje por celular, un doble click del mouse en la
computadora, etc.) expresan el carácter predominantemente indicial del régimen que organiza las
pasiones. En contextos de mediatización de la experiencia, se requiere del esfuerzo de un ‘click’
para producir un instante de fantasía donde se activa una especie de función fática, de contacto,
sin desplazamiento del lugar que se ocupa. Sin embargo y en términos de plus-valía ideológica
producida en el “vínculo”, el clickleo ofrece descargas de valoraciones sociales que modifican la
percepción que el si mismo tiene sobre el propio self (el ser solidario, por ende, valorizado en
tanto tal) y la mirada de los otros (materializada en la narración del acto que se comparte luego
por fuera del dispositivo tecnológico). La fuerza del solidarismo invierte su dirección y como plus
retorna al sujeto, mediante el proceso de fetichización asociado al quehacer a distancia, mediado
tecnológicamente. Debo la posibilidad de estas consideraciones a Belén Espoz.
150
342
La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”
es lo único que Ud. puede hacer”…son algunos de esos mandatos. Desde -y
para- esta trinidad moesiana entre el consumo, que nos hace ser alguien, entre
la solidaridad, que al único que beneficia es al que da, y entre la resignación que
lo único que hace es procurar la aceptación de la limitación de la capacidad
de acción, existen consecuencias sociales de multiplicación colectiva que se
ritualizan y entrelazan. (SCRIBANO, en SCRIBANO; FÍGARI, 2009: 146,
147).151
En el año del Bicentenario, Argentina conmemora los doscientos
años de la revolución enmarcando las acciones deseables y posibles
desde el orden solidario152. En el próximo apartado se analiza una escena
particular de este “orden”: Argentina abraza Argentina. Sin embargo, son
numerosas las recurrencias de esta modalidad de interacción.
Por ejemplo en el programa “Showmatch”, que desde hace algunos
años ha instalado el compromiso solidario en las competencias de canto
y baile “por un sueño” (sueños que remiten a demandas de comedores
comunitarios, aportes de tecnología a hospitales, compra o pago de servicios
médicos, etc.) el Bicentenario se conmemora con características solidarias
y federales: diversas ciudades del país, en el marco del segmento “Canta
Argentina” compiten por necesidades de sus localidades. El equipo de
producción del programa se desplaza a las ciudades y durante una semana
organiza una coreografía con sus habitantes, que va a ser votada por los
televidentes153. Todos son uniformados con camisetas del programa y
algunos pobladores agradecen haber sido elegidos como ciudad por el
equipo de producción. Es esta la “oportunidad” de resolver demandas que
no han sido tratadas como “cuestiones sociales” por los poderes políticos
en sus territorios.
Adrián Scribano ‘¿Por qué una mirada sociológica de los cuerpos y las emociones? A Modo de
Epílogo’, en “Cuerpo(s), Subjetividad(es) y Conflicto(s). Hacia una sociología de los cuerpos y
las emociones desde Latinoamérica”. Carlos Fígari y Adrián Scribano (compiladores), CLACSO/
Ciccus, 2009.
152
‘Orden’ en el sentido de ‘organización’, pero también en términos de mandato social. ‘Orden’
que se va instituyendo y que aparece como posible y como deseable en el marco de la perspectiva
hegemónica sobre el mundo social expuesta.
153
El viernes 14 de mayo e 2010 competían las ciudades de Comodoro Rivadavia y Cafayate.
El lugar donde se hizo la coreografía en la primera ciudad, es un cementerio de los pobladores
originarios, que en la actualidad es un descampado.
151
343
María Eugenia Boito
Si hace 200 años, en la configuración de los estados nacionales, los
procesos de penetración ideológica encontraban en la organización escolar
un dispositivo para la realización de la unificación /donde el guardapolvo
aparece como imposición corporal orientada a la homogeneización/, la
escena anteriormente referida señala al mercado -en lugar de la institución
escolar- como instancia de creación de posibilidades y a las remeras de la
Fundación y del programa como el ropaje que les permite a los pobladores
aspirar a “cumplir sueños” en otro tiempo denominados “derechos”. La
revolución solidaria a la que remite J Carr, sin mucho debate, aparece como
una dogmática que es parasitada por el despliegue del capitalismo como
religión en el sentido que identificaba W. Benjamin en un texto inconcluso
de la década del 20.
Precisa Benjamin:
Hay que ver en el capitalismo una religión. Es decir, el capitalismo sirve
esencialmente a la satisfacción de las mismas preocupaciones, penas e
inquietudes a las que daban antiguamente respuesta las denominadas
religiones. La comprobación de esta estructura religiosa del capitalismo,
no sólo como forma condicionada religiosamente (como pensaba
Weber), sino como fenómeno esencialmente religioso, nos conduciría
hoy ante el abismo de una polémica universal que carece de medida. [Y
es que] no nos es posible describir la red en la que nos encontramos. Sin
embargo, será algo apreciable en el futuro (BENJAMIN, 2008: 1).
¿Qué implica afirmar ‘el capitalismo sirve esencialmente a la
satisfacción de las mismas preocupaciones, penas e inquietudes a las
que daban antiguamente respuesta las denominadas religiones’? El
carácter religioso de las prácticas generadas a partir de la dominancia
de la mercancía, evidencia no sólo el desplazamiento de “lo religioso”
como fenómeno hacia nuevos espacios, sino también su emplazamiento
en el “laico” mundo de la vida cotidiana; en el profano espacio/tiempo
de la producción y el consumo. Como fenómeno esencialmente religioso
instanciado en la cotidianeidad, se encuentra en condiciones primarias,
matriciales y persistentes de ejercer formas de regulación política sobre la
sensibilidad social, mediante la capacidad performativa sobre el “humus”
socio-perceptivo que organiza la experiencia.
344
La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”
Lo anterior permite desplegar un significado que tiene centralidad
en la afirmación benjaminiana sobre el empobrecimiento de la experiencia:
para Benjamin la experiencia que se reconfigura tiene como clave el
rasgo de la pobreza de una sensibilidad en reconstitución, pregnada
por la fetichización de la mercancía. Distancia y mediación por un lado
(aprender a verlo todo sin tocar, relación con un mundo /de objetos/
que se disponen como espectáculo para la mirada), apropiación mercantil
por el otro (materialización del sueño en un producto) expresan una
particular manera de jerarquizar y tramar los sentidos de la vista y el
tacto, en contextos que configuran tipos subjetivos interpelados desde
el consumoEn el Bicentenario la religiosidad del capitalismo se muestra
pornográficamente como ideología materializada que atraviesa y alimenta
al solidarismo. El capitalismo como religión funciona como un opiáceo,
que condena a la replicabilidad de prácticas orientadas a la celebración
cultual, in-interrumpida de la mercantilización equivalencial de las más
heterogéneas demandas nominadas como “sueños”.
Se trabaja en el próximo apartado las imágenes, los actores y la
nominación que conforma Argentina abraza Argentina.
II.
El domingo 16 de mayo de 2010 en Figueroa Alcorta y La Pampa
-Palermo, ciudad autónoma de Buenos Aires- Red Solidaria (con apoyo
del grupo mediático Clarín), Asociación Civil “Por los Chicos” y el actor
Ricardo Darín dieron inicio al festival solidario llamado Argentina abraza
a Argentina,154 con el objetivo de construir la “Torre del Hambre Cero”
para que todos los argentinos tengan, por un día, su alimento asegurado.
Participaron los siguientes grupos musicales: Vicentico, Los Auténticos
Decadentes, Arbol, Fidel, Estelares, D-Mente, entre otros (Al mismo
tiempo hubo actos en 52 ciudades del país).
La construcción de la “Torre” se inscribe en una serie de actos
organizados en vistas a la conmemoración del Bicentenario de la Argentina
Un megaconcierto gemelo del que hace unos meses se organizó para colaborar con los
damnificados por el terremoto en Chile, llamado Argentina abraza a Chile.
154
345
María Eugenia Boito
(se celebró el 25 de mayo) y supone la participación de la ciudadanía
de tres formas: asistiendo al recital y llevando para donar paquetes de
arroz, fideos o polenta destinados a levantar la torre; de manera virtual,
escribiendo un mensaje en la dirección www.porloschicos.com, (un saludo,
palabras de aliento, una poesía, un abrazo) que se transforma en un ladrillo
a través de la donación de la empresa transnacional Unilever o reuniendo
las donaciones en colegios, universidades, lugares de trabajo y luego hacer
el envío a Red Solidaria.
La meta es construir una “torre” conformada por 875.000
“ladrillos” (cada uno es un paquete de polenta, arroz o fideos). Esta es
la cantidad de comida necesaria, para que todos los argentinos tengan su
alimento asegurado por un día.
346
La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”
Las imágenes
Sábado, 15 de mayo.
La primera torre es la de los aportes virtuales; la segunda es la que reúne lo donado en
las escuelas y en el concierto al que asistieron 50.000 personas.
347
María Eugenia Boito
Martes, 18 de mayo, pos-concierto.
Sólo queda una torre, han sido unificadas a nivel gráfico.
En la primera imagen aparecen dos torres, cada una para los
aportes de los cibernautas por un lado y los ciudadanos que o bien asistían
al festival, o bien juntaban las donaciones en las escuelas o los lugares de
trabajo por el otro. En el primer caso, mandar un mensaje realiza la magia
348
La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”
de transformar un buen deseo en un alimento. Apretar una tecla aparece
como una acción fetichizada; 155 la mirada queda estupefacta ante la imagen
Esta fetichización en las interacciones solidarias es un rasgo que prevalece en distintos
contextos. Por ejemplo en un segmento del programa televisivo ‘CQC’ (‘Caiga quien Caiga’, canal
13, 2004) se expone la objetividad de la creencia solidaria en el sentido Žižekeano: las acciones de
numerosas manos pueden resolver la tensión entre demandas de bienes y necesidades sociales, ya
que instituyen formas de nexos sociales que muestran su impacto resolutivo.
El segmento empieza con los itinerarios de un botón. O más precisamente, todo empieza con la
salida del cronista del programa C.Q.C. a un pueblo del interior de la Argentina y la visita a una
escuela o un hospital (siempre organizaciones públicas), para constatar cuales son las necesidades
insatisfechas que portan. Después los niños o los enfermos deben entregar algo –un botón–
que mágicamente volverá transformado en los satisfactores que requieren. El botón opera como
fetiche, pero se trata de un fetiche extraño ya que no permanece idéntico a si mismo sino que muta
en diversos objetos por los que va a ser trocado: un botón por un paquete de praliné, que a su vez
se transforma en un periódico, en un video del actor Pablo Echarri con un ‘Feliz Cumpleaños’
que es ofrecido por un tío a su sobrina (como el regalo de quince años más anhelado), que luego
se transforma en un monopatín, en una foto de la modelo Dolores Barreiro como publicidad de
un café-bar, hasta finalizar en un cuadro de la galería de arte Malbrán que se transforma en una
camioneta para la escuela rural.
Un fetiche ‘tradicional’, como objeto cultual, permanece. Pero las formas de culto tradicionales
‘se desvanecen en el aire’ en el marco de relaciones sociales de producción donde la liquidez, y
consecuentemente la mutación, se constituyen en rasgos definitorios. Nueva transubstancialización:
las múltiples identidades de un botón se suceden y complejizan, generando situaciones de intercambio
entre no equivalentes en términos de valor de cambio, que sin embargo aparecen como tales en
función del valor de uso que le otorgan los respectivos sujetos La mirada queda estupefacta ante estas
fuerzas extrañas que mágicamente, en las sucesivas mediaciones, van incrementado el valor de cambio
de mercancías que, en su comportamiento aparentan un olvido de las reglas que las constituyen. La
no referencia al valor de cambio es ficticia, ya que en cada transacción, el antiguo botón incrementa
potencialmente su cotización. Todo sucede en el momento del intercambio, en escenarios de mercado
improvisados, puntuales, contingentes. La instancia de la producción está ausente y así el precio de las
mercancías aparece fijado por los valores de uso que los sujetos le otorgan.
De esta forma, los deseos y las preferencias individuales que sostienen intercambios, cuando están
orientadas a un fin solidario, realizan la multiplicación de los panes y los peces. Se trata de un
milagro, pero de un tipo de milagro postmoderno. No se trata de que los sujetos no conocen
las explicaciones de la ocurrencia de un fenómeno (que entonces aparece como ‘maravilloso’,
‘mágico’) sino que, parafraseando a Žižek, ‘los sujetos saben y sin embargo lo hacen’. Todos los
participantes de las escenas solidarias saben que en formaciones sociales capitalistas, la existencia de
sujetos con carencias nada tiene que ver con las oportunidades de satisfacción de sus necesidades.
La mercancía interpela a consumidores solventes, no a sujetos necesitados. Así, una camioneta o
tecnología e instrumental médico son mercancías que requieren de dinero para cambiar de manos
propietarias. En la participación en las escenas, los sujetos actúan ‘como si’ el valor de uso rigiera
los intercambios, pero finalmente el dinero tiene que aparecer y finaliza el juego con la compra
del instrumental médico. Emergencia del patrón de medida que efectivamente fijó el valor de las
transacciones, exposición del carácter de relación social que porta el dinero.
155
349
María Eugenia Boito
de incorporar otro ladrillo (un paquete de alimento) en la torre. En cada
acto, las sensibilidades comprometidas parecen realizar un acto de ‘magia
social’: la sumatoria de cada ‘granito de arena’ retorna simbólicamente al
lado dador como imagen y número (un ladrillo, un cambio en el monto
de los ladrillos que ya existen) que registra el impacto de la solitaria acción
de teclear.
Richard Sennett, siguiendo los estudios de Marcel Mauss sobre
el don y trasladando sus enseñanzas para el estudio de sociedades
occidentales, afirma:
En un intercambio capitalista ordinario: yo te vendo caviar y tú me pagas
en dinero, guantes o espinos de erizo de valor equivalente. Si ambos lados
se equilibran, el mercado cuadra. Pero este intercambio, dice Mauss,
no crea vínculo emocional. Nuestras relaciones solo arraigarán cuando
dejemos de reconocer equivalencias (...) (2003: 222).
En la interacción analizada, el mercado de la solidaridad ‘cuadra’
y crea formas particulares de vínculo emocional, aunque en un sentido
distinto al que pensaba Mauss: ese plus que se conforma en cada instancia
de interacción microsocial de intercambio, naturaliza las posiciones que
los actores ocupan a nivel estructural. Mauss se preguntaba si las cosas
tienen alma. Así pudo identificar fuerzas que operan en los objetos
constituyendo relaciones entre los grupos, basadas en el ciclo de actos de
dar, recibir, devolver. En la práctica solidaria estudiada, los objetos que
se dan -doblemente transformados, vueltos imagen y ladrillo- sellan las
posiciones sociales de quienes participan en la interacción.
Si como indicaba Mauss, las cosas que se dan están animadas
por un querer volver a su lugar de origen, en los vínculos contingentes y
esporádicos que se conforman en esta interacción solidaria, el alma de los
objetos retorna suturando el sentido de la participación en esas prácticas;
los objetos donados fetichizan la capacidad de impacto resolutivo de cada
acción, vuelven a los cibernautas -también mediados como donatarios,
ya que su función se centra en escribir un mensaje y dar el enter- como
‘aliento’ que fundamenta el quehacer y ‘conspirando’ (junto con el objeto,
en el sentido de respirar juntos) con ‘animosidad’ contra cualquier indicio
350
La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”
o rasgo que remita a la continuidad del fantasma de la desigualdad. Este
retorno cierra el círculo de la “economía o “ley de la casa”; lo que se
da vuelve tanto a la empresa Unilever como la plusvalía de la publicidad
y la “responsabilidad social” como a cada cibernauta en términos de
“fraternidad cristiana”, “buena conciencia ciudadana”, etc.
La articulación de acciones individuales donde siempre existe
algún interés (publicidad e incremento de las ventas para Unilever, sentirse
solidario para los cibernautas, asistir a un recital que además es “solidario”
y requiere llevar un alimento, para los fans de los grupos de música que
participan del evento), muestra que las acciones ‘solidarias’ no son lo otro
de la lógica del interés individual, sino que esta ecuación ‘irresoluble’ se
resuelve transformando (¿invirtiendo?) la lógica del don: Y todos (¿todos?)
ganan.
La metáfora del “ladrillito” o la de “el granito de arena” son
recurrentes en una temporalidad mas vasta;156 en el Bicentenario la ONG
“Un techo para mi país”157 se propone contribuir en la fecha patria con la
Esto queda claramente graficado en la siguiente ‘forma de acción individual - colectiva’ que
publicó del diario local ‘La Voz del Interior’ el 24 de julio de 2005. Una bufanda de más de tres
kilómetros y medio, conformada por cuadraditos de lana, fue tejida por habitantes de la ciudad
cordobesa de Carlos Paz y después se transformó en frazadas para indigentes. Esta acción solidaria
y la intención de figurar en el Récord Guinness por la producción de la bufanda más larga del
mundo no son incompatibles; de igual manera que en las empresas con responsabilidad social, en
las que ser solidario y productivo puede suturarse. Cada cuadradito tejido no es cosido directamente
para hacer una frazada, sino que los sujetos invierten tiempo y recursos para darle la forma de una
amplia bufanda. Así, cada cuadradito donado vuelve externalizado y objetivado como un extenso
abrazo de lana que protege. Carlos Paz quiere mostrar que se puede hacer turismo también con
la solidaridad, presentándose como ciudad/comunidad activa, participativa, ganadora y solidaria.
Esta escena retoma la etimología de la palabra ‘favor’ vinculada a ‘favorecer’, ‘aplaudir’, ‘demostrar
simpatía’. Como en la película ‘Cadena de favores’, todo termina con un aplauso.
157
Según la información institucional de la ONG el jesuita chileno Felipe Berríos (¿una versión
religiosa del compatriota Juan Carr?)es el responsable máximo de “Un techo para mi país”. En
el 2001 (tras los terremotos de Perú y El Salvador) crea “Un Techo para mi país”, extendiendo
la experiencia de trabajo en Chile al resto del continente. El proyecto se expande por toda
Latinoamérica a partir del año 2001. Hoy está presente en 15 países. Argentina, Bolivia, Brasil,
Chile, Colombia, Costa Rica, Ecuador, El Salvador, Guatemala,[ ]México, Nicaragua, Paraguay, Perú,
República Dominicana y Uruguay, a través del trabajo de miles de jóvenes voluntarios. Además,
actualmente es columnista de la revista Sábado de “El Mercurio” y sus artículos han sido reunidos
en tres libros: “Para Amar y Servir”, “Lo mínimo Indispensable” y “Puntadas con Hilo”. En marzo
del 2006 publica “Todo comenzó en Curanilahue…”. En 2007 publica “Ojos que no ven” y en
2008 “En todo amar y servir”. En Córdoba, también después de la crisis institucional de 2001, el
156
351
María Eugenia Boito
construcción de 200 viviendas en Argentina, cuyo déficit habitacional al
24/05/2010 es de 2 millones de viviendas, que se incrementa anualmente
en alrededor de 120.000 según datos de la Subsecretaría de Desarrollo
Urbano y Vivienda.158
Lo anterior evidencia que la telaraña solidaria aparece como
aurática y se sostiene en la fascinación escópica: en las puestas en acto
de lo solidario la mirada es objeto de una praxis política y de la captura
a partir del señuelo que configura cada micro-acción /”ladrillito”/. El
compromiso solidario supone un régimen de visibilidad que centra la
mirada en cada escena (en la que se reune el valor cultual y exhibitivo) y a
la vez la desvía del horror cotidiano de las mayorías.
Si como señala Žižek, en el retrato de Dios se identifican todas
las miradas en una imagen que cumple una función cultual, cada escena
solidaria como fotografía también pretende ser vicaria, en el doble
sentido de la palabra: la fetichización de la interacción solidaria pretende
constituirse en representante (apoderado, sustituto) y sacerdote (superior)
mediando lo imposible y religando a los sujetos en un tipo de lazo inasible.
Es así como se realiza ‘el milagro de dar’, exorcizando los espíritus
que se apoderan de los objetos, negando las deudas ancestrales que portan.
El compromiso solidario, expresado en números, en la inteligibilidad de
ecuaciones que miden el impacto de las reparaciones y de los beneficios
obtenidos, expulsa los demonios de reclamos que tienen más de 200, hasta
500 años. De esta forma la resultante de la sumatoria de favores no es
sólo la ‘denegación sistemática de los conflictos sociales’ (SCRIBANO,
2005a) sino la potenciación del solidarismo como un tipo de religiosidad
sin conflictos con los procesos de mediatización y mercantilización de la
vida social.
diario local “La Voz del Interior” creó una sección similar: “Oasis. Para saciar la sed de esperanza”.
Los medios y la centralidad de simulación de integración de imaginarios en sociedades cada vez
más fragmentadas y socio-segregadas, tal como se señalaba en el apartado anterior.
158
/www.reporteinmobiliario.com/
352
La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”
Las lógicas y los actores: Unilever
Miralles afirma que en la historia del ‘marketing con causa”, una de
las primeras manifestaciones tuvo como protagonista a la entidad financiera
‘American Express’, en 1983. En función del crecimiento de empresas que
competían en el mismo mercado, ‘American Express’ dio a conocer su
compromiso de financiar - con un centavo de cada transacción realizada
con la tarjeta de crédito y un dólar por cada nueva tarjeta contratada - la
restauración de la Estatua de la Libertad de Nueva York. “Los resultados
fueron incontestables: la compañía pudo distanciarse de sus competidoras, incrementando
su cuenta de resultados en cerca de un 30%.” (MIRALLES, 2001: 128)159.
En la Argentina del Bicentenario no se trata de restaurar ninguna
estatua, sino de construir un monumento: “La Torre del Hambre Cero”,
mediante los ladrillos de fideos, polenta y arroz que va a “donar” Unilever,
si los mensajes dejados en la web llegan a 875.000. ¿Qué es Unilever
en la vida cotidiana de los argentinos? Los productos de limpieza CIF,
los jabones Dove, los calditos Knorr, la pasta dental Mentadent, los
desodorantes Impulse y Axe entre otros productos.
Como firma, Unilever se estableció oficialmente en 1930.160 Sin
embargo la historia se inicia a finales del siglo XIX, en Holanda, donde
Jurgens y Van den Bergh -dos empresas familiares- iniciaron el comercio
de exportación al Reino Unido y a posteriori hacia las colonias inglesas de
ultramar. Una empresa de mantequilla junto a una empresa productora
de jabones -Lever Brothers- van a formar Unilever, la primera compañía
multinacional moderna, el 1 de enero de 1930. En ese tiempo empleaba a
un cuarto de millón de personas y en términos de valor de mercado fue la
compañía más grande en Gran Bretaña.
“Un fenómeno nuevo de marketing solidario, todavía en proceso de consolidación, se desarrolla
ahora en Internet. La mayoría de las ONG disponen de páginas webs desde donde se difunden sus
objetivos y campañas. (cibermarketing solidario).
Hay una página que se llama lugar del hambre (www.thehungersite.com), una página a través de la
cual los internautas sólo por pinchar en una ventana asignan al proyecto y sin costes para ellos una
determinada suman de dinero. La original fórmula hace que el anunciante asuma el abono de un
importe económico para cada persona que visite la web” (MIRALLES, 2001: 133).
160
Se utiliza información de la página institucional.
159
353
María Eugenia Boito
Ya en 1926 la empresa Lever Brothers aparece resolviendo la
ecuación entre solidarismo-productividad: como buena vendedora de sus
propios productos lanza la Campaña “Manos Limpias”. Inicia acciones
dirigidas a crear hábitos de higiene-salud apelando a los niños de las clases
trabajadoras, interpelándolos y animándolos a lavarse las manos antes del
desayuno, antes de la cena y después de clases.
Los contextos de guerra y destrucción no sólo permitieron la
operatoria solidaria, sino que la potenciaron hasta la concreción de figuras
extrañas: En 1941, en el marco de la segunda guerra mundial y durante
los bombardeos, jabón Lifebuoy proporcionó un servicio de lavado de
emergencia gratuito a los londinenses: furgonetas equipadas con duchas
de agua caliente, jabón y toallas.
Al comienzo de la década de 1980, Unilever es el negocio más grande
del mundo. Sus intereses incluyen plásticos, embalajes, las plantaciones
tropicales y una línea de transporte marítimo, así como una amplia gama
de alimentos, el hogar y productos de cuidado personal. A principios de
la década decide volver a centrarse en las áreas de productos básicos con
un mercado fuerte y potencial de crecimiento. La racionalización necesaria
condujo a grandes adquisiciones y desinversiones: Unilever redujo de más
de 50 productos a sólo 13 a finales de la década. Esto incluyó la decisión
de vender o retirar muchas marcas y concentrarse en aquellos que tengan
mayor potencial. La reestructuración creó cuatro áreas clave de negocio:
Cuidado del Hogar, Cuidado Personal, Alimentos y Productos Químicos. 161
El siglo 21 comenzó con el lanzamiento del Camino al Crecimiento
- una estrategia para transformar el negocio, lo que llevó a más adquisiciones
y la racionalización de la fabricación y centros de producción. Esto fue
seguido por el programa Uno Unilever, en vistas a alinear la organización
detrás de una estrategia única, la simplificación del negocio y encontrar la
escala más eficaz.
En la escena solidaria contemporánea denominada Argentina
abraza Argentina Unilever podría directamente haber donado los
También durante esta década Unilever establece un programa de agricultura sostenible en vista
de las crecientes presiones ambientales y preocupaciones de los consumidores acerca de la cadena
alimentaria. Otras iniciativas para preservar los recursos hídricos y la fuente de pescado procedente
de poblaciones sostenibles que pronto le sigan.
161
354
La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”
alimentos; alimentos que la misma transnacional produce. Pero el montaje
y la construcción de la interacción requiere interpelar e involucrar el
tecleo solidario de los ciudadanos, para materializar la experiencia de
la posibilidad del aporte como “granito de arena” /o “ladrillo”/. Este
ejercicio de variación imaginaria sobre otras formas de construir la escena,
también evidencia como la mediación de la ciudadanía-cybernauta logra
desplazar la atención sobre la centralidad del interés y la vinculación de
Unilever con la construcción de la “Torre de alimentos”: el intercambio
de alimentos por publicidad. Así la escenificación está armada para la
inclusión ‘solidaria’ de la misma empresa que en realidad no dona nada; la
“publicidad filantrópica” aparece auratizada al punto de obscurecer cuales
son efectivamente los equivalentes que se intercambian.
La nominación: Torre del Hambre Cero
La manera de nominar este evento refiere al conocido programa
“Hambre Cero” propuesto por el presidente de Brasil Lula da Silva.
Con relación al programa afirma Frei Betto162 que cuando Lula propuso
“Hambre cero mundial”, “un presidente de Europa Occidental dijo:
“sí, mi país va a enviar a África mucha comida”, y Lula respondió: “no,
de ninguna manera, nunca comida”. Porque hay cuatro errores en esta
supuesta generosidad: primero, es la mejor manera de justificar los
subsidios agrícolas en Europa (y en Estados Unidos también); segundo,
destruye las culturas locales; tercero, crea dependencia; y cuarto, es un
regalo para los políticos corruptos, que van a administrar esos subsidios”.
No se trata en este escrito de abordar la propuesta del presidente
Lula, pero si de indicar como la nominación invierte y opera de manera
especular con relación a algunas propuestas centrales de programa.
Hambre cero camina sobre tres piernas; primero está la política de
transferencia de renta a cada una de las familias. Pero aquí hay un detalle,
el dinero no pasa por las manos del alcalde… Cada familia tiene una
tarjeta ciudadana y cada mes va al banco federal y saca su dinero. Esta
tarjeta se entrega de preferencia a las mujeres, por razones que, si los
162
www.congreso.gob.gt
355
María Eugenia Boito
hombres quieren saber, que pregunten a las mujeres, ellas van a saber
contestarles (…)
Ahora bien, la familia tiene que cumplir tres condiciones, que son deberes
básicos: primero, no puede tener analfabetos; si tiene analfabetos tiene
que ir a un curso de alfabetización y tenemos dentro de Hambre cero,
una campaña nacional de alfabetización; la segunda condición es, que
todos los hijos tienen que estar en la escuela, hasta los quince años de
edad; la tercera, seguir un programa de salud.
Son políticas efectivas de transferencia a la gente; esa es la primera
pierna. Pero no basta; con esto no se va a sacar a la gente de la miseria;
entonces hay un segundo aspecto, una segunda pierna: son las políticas
estructurales. Hambre cero es una política pública, un abanico que
comprende sesenta programas públicos, con la participación de la
sociedad civil. Va desde la reforma agraria, la capacitación laboral, el
cooperativismo, la agricultura familiar, hasta un complejo de programas
distintos que crean las condiciones para que la gente pueda salir de la
miseria.
La tercera pierna de Hambre cero es la educación popular…
La “Torre del Hambre Cero” débil y lentamente se va erigiendo
porque sus límites son estructurales: ninguna referencia al antagonismo
estructural clasista, ausencia del estado o su ubicación en un mismo plano
de acción junto a las empresas con responsabilidad social, la “ciudadanía”
con voluntad de “hacer algo” y los “famosos” con compromiso social.
Por esto si la atención hace foco en la interacción solidaria, en
la estructura del vínculo que persiste, se puede identificar al destinatario
fundamental: la escena parece ser montada para quienes ocupan el lado
‘dador’ de la relación: los voluntarios y los ciudadanos, son designados
y pretenden ser reconocidos como ‘protagonistas’ en la semantización
discursiva que se hace de esta práctica. Dice Žižek:
Cuando Lacan define el impulso freudiano como reflexivo, como la
instancia de ‘se faire’... ¿no está apuntando de este modo a la teatralidad
más elemental de la condición humana? Nuestro mayor esfuerzo no
está dedicado a observar, sino a formar parte de una escena armada,
356
La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”
a exponerse a una mirada -no la mirada determinada de una persona
existente - sino de la pura mirada inexistente del Gran Otro (2005: 147).
Es por esto que la pregunta Žižekeana ¿Para qué mirada se escenifica
la puesta en acto de esta construcción? permite identificar en un mismo
acto reflexivo los rasgos de las posiciones de los “protagonistas” y del
“Gran Otro” inexistente. Se trata de posiciones en la que se ubican sujetos
con expectativas empobrecidas y miserables a 200 años de la revolución.
En términos de A. Scribano:
El desplazamiento, elusión y evitación sistemática de los conflictos
sociales se ha logrado a costa de elaborar un conjunto de sensibilidades
sociales que encuentran en las nuevas reglas de la economía política
de la moral una morada tranquilizadora. Como lo venimos señalando
en diversos lugares, se ha elaborado en consecuencia una religión
neocolonial donde consumo mimético, solidarismo y resignación ocupan
los lugares de una trinidad que estructura la soportabilidad de la vida (En
SCRIBANO; BOITO, 2010: 253).
A modo de cierre
El recorrido realizado pretendió mostrar que en la experiencia
social contemporánea:
1 - La estructuración en clases está naturalizada y la pobreza aparece como
paisajística.
2 - La oclusión de derechos sociales se concreta mediante la subsunción
en la forma equivalencial hegemónica ‘cumplir un sueño’ para la
simbolización de las más heterogéneas demandas.
3 - El orden solidario actúa como mandato transclasista para actuar sobre
expresiones sintomales que refieren a la desigualdad estructural,
instanciando un modo de interacción que produce figuras de expresa
crueldad o insensibilidad de clase.
De allí las distancias entre la revolución de hace 200 años y los
gestos que la conmemoran. En el Bicentenario la revolución solidaria,
357
María Eugenia Boito
sin ningún debate, -tal como lo proponía Juan Carr al inicio de estas
reflexiones- tautológicamente sigue sellando a los sujetos en las desiguales
posiciones que ocupan a nivel estructural.
La construcción de monumentos en este presente refiere a la
estetización y celebración de haceres mínimos, donde el horizonte de lo
posible y deseable es un día, sólo un día para reunir alimentos que -por
sus características- bien podrían ser destinados a los perros: arroz, polenta,
fideos.
La fantasía solidaria, operando desde la lógica policial de los
cuerpos, imposibilitó e imposibilita la emergencia de partes no contadas,
en el sentido de J. Ranciére. Ante el horror social, la solidaridad actúa
como casco que en lugar de proteger en la lucha con lo horroroso (casi
el 30% de los niños argentinos se encuentra en lo que hoy se denomina
eufemísticamente “riesgo alimentario”) incrementa el grado y la forma
de soportabilidad social /insensibilidad de clase/ ante la agudización
de la fractura que nos constituye: nos/otros, los argentinos. Pero para
Juan Carr de lo que se trata es de “Globalizar la solidaridad. Y todo será
alegría”. (Aleluya).
En el Bicentenario, Argentina no reconoce su desgarro clasista y
la máscara humanitaria no alcanza a revelarse nutrida por la religiosidad
del capitalismo. Ante “La Torre del Hambre Cero” los argentinos llegan
a rendir culto, celebrar y emocionarse de sus posibilidades castradas de
justicia. Argentina abraza Argentina es un asfixiante pleonasmo cacofónico
que ahoga la emancipación.
Bibliografía
ARIÑO, Antonio (1997). “Sociología de la Cultura. La constitución
simbólica de la sociedad”. Edit. Ariel, Barcelona.
BENJAMIN, Walter (1973). “Experiencia y Pobreza”. En: Discursos
Interrumpidos 1 España, Edit. Taurus.
358
La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”
--------------- “El capitalismo como religión” capitalismo_religion.pdf.
Created Apr 24, 2008 by economia UNAM. Disponible en: economiaradio.
blogspot.com
--------------- (2005). “Libro de los Pasajes”. Toledo, AKAL.
--------------- (1999). “Poesía y Capitalismo. Iluminaciones II”. España,
Taurus.
BOITO, Eugenia (2005). “El retorno de lo reprimido como exclusión
social y sus formas de borramiento: Identificación, descripción y
análisis de algunas ‘escenas’ de lo construido hegemónicamente como
‘prácticas solidarias’. (2002-2004)”. Tesis de Comunicación y Cultura
Contemporánea, CEA, UNC. Mimeo.
EAGLETON, Terry (1997). “Ideología. Una introducción”. Buenos
Aires, Paidós.
--------------- (2006). “La Estética como Ideología”. Madrid, Editorial
Trotta.
FITOUSSI, Jean-Paul; ROSANVALLON, Pierre (1996). “La nueva era de
las desigualdades”. Buenos Aires, Manantial.
MAUSS, Marcel (1971). “Ensayo sobre los dones. Motivo y forma del
cambio en las sociedades primitivas”. En: Sociología y Antropología. Madrid,
Edit. Tecnos.
MARX, Carlos (1994). ‘El fetichismo de la mercancía, y su secreto’. En:
El capital. Crítica de la economía política, Tomo 1. México, Fondo de Cultura
Económica.
MIRALLES, Rafael (2001). La solidaridad y las ONG en la publicidad: una
moda arriesgada. Artículo que resume la ponencia presentada en Valencia el
7 de abril de 2001 en las Primeras Jornadas sobre Comunicació, Educació
i Solidaridat, organizada por Entrelinies, Xarxa d’ Educació i Comunicació
y la Coordinadora Valenciana de ONGD.
359
María Eugenia Boito
RENAUD, Alain (1989). ‘Comprender la imagen hoy. Nuevas imágenes,
nuevo régimen de lo visible, nuevo imaginario’. En: Videoculturas de fin de
siglo. Madrid, Cátedra.
SCRIBANO, Adrián (2002). De gurúes, profetas e ingenieros. Córdoba, Edit.
Copiar.
-------------(2004a).”Combatiendo
Fantasmas.
Teoría
Social
Latinoamericana. Una visión desde la historia, la sociología y la filosofía
de la ciencia”. En formato CD, Argentina.
--------------- (2004b). “La insoportable levedad del hacer. De situaciones,
fantasmas y acciones”. Ponencia presentada en el marco del seminario
‘Desarrollo con inclusión y equidad’. Córdoba, SEHAS.
--------------- (Comp.) (2005a). Geometría del conflicto. Estudios sobre acción
colectiva y conflicto social. Madrid, Universitas.
----------------- (Compilador) (2007a). Mapeando interiores. Cuerpo, Conflicto
y Sensaciones. Buenos Aires, UNC-CEA/CONICET/ Jorge Sarmiento
Editor.
--------------- (2009). “¿Por qué una mirada sociológica de los cuerpos y las
emociones? A Modo de Epílogo”. En: Carlos Fígari y Adrián Scribano
(Comp.), Cuerpo(s), Subjetividad(es) y Conflicto(s). Hacia una sociología de los
cuerpos y las emociones desde Latinoamérica. Buenos Aires, CLACSO/Ciccus.
SCRIBANO, Adrián; BOITO, Ma. Eugenia (Compilador) (2010). El
purgatorio que no fue. Acciones profanas entre la esperanza y la soportabilidad.
Buenos Aires, Ciccus.
SENNETT, Richard (2003). El respeto. Sobre la dignidad del hombre en un
mundo de desigualdad. Barcelona, Anagrama.
THERBORN, Goran (1998). La ideología del poder y el poder de la ideología.
Madrid, Siglo XXI.
ŽIŽEK, Slavoj (1992). El sublime objeto de la ideología. Madrid, Siglo XXI
Editores.
360
La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”
--------------- (1994). ¡Goza tu síntoma! Jacques Lacan dentro y fuera de
Hollywood. Madrid, Nueva Visión.
--------------- (1999). El acoso de las fantasías. Madrid, Siglo XXI.
--------------- (2000). Mirando el sesgo. Una introducción a Jacques Lacan
a través de la cultura popular. Buenos Aires, Paidós.
--------------- (2001). El espinoso sujeto. El centro ausente de la ontología
política. Buenos Aires, Paidós.
--------------- (2002). ¿Quién dijo Totalitarismo? Cinco intervenciones
sobre el mal uso de una noción. Valencia, Pre-Textos.
--------------- (2003a.). Las metástasis del goce. Seis ensayos sobre la mujer
y la causalidad. Buenos Aires, Paidós.
--------------- (Comp.) (2003b). Ideología. Un mapa de la cuestión. México,
Fondo de Cultura Económica.
--------------- (2003c). A propósito de Lenin. Política y subjetividad en el
capitalismo tardío. Buenos Aires, Atuel / Parusía.
ŽIŽEK, Slavoj, Analía HOUNIE (Compil.) (2004). Violencia en acto.
Conferencias en Buenos Aires. Buenos Aires, Paidós.
--------------- (2005). La suspensión política de la ética. México, Fondo de
Cultura Económica,.
--------------- (2006). Visión de paralaje. México, Fondo de Cultura
Económica.
ŽIŽEK, Slavoj, Ernesto LACLAU y Judith BUTLER (2003b).
Contingencia, hegemonía, universalidad. Diálogos contemporáneos en la
izquierda. México, Fondo de Cultura Económica.
361
María Eugenia Boito
Diccionarios consultados
J. Lapanche y J.B. Pontalis. «Diccionario de Psicoanálisis». Labor. S/D.
Diccionario de sinónimos y antónimos de la lengua española. Verón
Editores, 1994.
Breve diccionario etimológico de la lengua castellana, de Joan Corominas,
Edit. Gredos, 1994.
Otras fuentes
Revista Nueva, anuario 2002.
www.congreso.gob.gt
www.lavoz.com.ar
www.reporteinmobiliario.com
www.unilever.com.ar
www.untechoparamipais.org
.
362
Corpos em Concerto: diferenças, desigualdades, desconformidades
Cuerpos en Conciertos: diferencias, desigualdades y disconformidades
Formato
15,5 x 22 cm
Tipografia
Garamond
Papel
Capa em Triplex 250g/m2
Miolo em Offset 75g/m2
Montado e impresso na oficina gráfica da
Editora
Universitária
UFPE
Rua Acadêmico Hélio Ramos, 20 | Várzea
Recife - PE CEP: 50.740-530
Fones: (0xx81) 2126.8397 | 2126.8930 | Fax: (0xx81) 2126.8395
www.ufpe.br/edufpe | [email protected] | [email protected]

Documentos relacionados