Versão Integral da Edição on-line - Programa de Pós

Transcripción

Versão Integral da Edição on-line - Programa de Pós
ISSN 1980-6493 (eletrônica)
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem
Universidade do Sul de Santa Catarina
Palhoça – SC
v. 7, n. 1, p. 1-179, jan./jun. 2012
Reitor
Ailton Nazareno Soares
Vice-Reitor
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Chefe de Gabinete e Secretário Geral da Unisul
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Diretora do Campus Universitário Unisul Virtual
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Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem
Fábio José Rauen (Coordenador)
Solange Leda Gallo (Coordenadora Adjunta)
C95
Crítica cultural = Cultural critique/Universidade do Sul de Santa Catarina. v. 1, n. 1 (2006). - Palhoça : Ed. Unisul, 2006-. v.; 23 cm
Semestral
ISSN 2179-9865
1. Linguagem e cultura. 2. Comunicação e cultura I. Universidade do Sul
de Santa Catarina. II. Título: Cultural critique.
CDD (21. ed.) 401.4
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Universitária da Unisul
Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v. 7, n. 1, p. 1-179, jan./jun. 2012
http://linguagem.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/critica/revista.htm
Editores/Editors
Alessandra Soares Brandão (Universidade do Sul de Santa Catarina)
Antonio Carlos Santos (Universidade do Sul de Santa Catarina)
Dilma Beatriz Rocha Juliano (Universidade do Sul de Santa Catarina)
Fernando Vugman (Universidade do Sul de Santa Catarina)
Ramayana Lira de Sousa (Universidade do Sul de Santa Catarina)
Conselho editorial/Editorial board
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Equipe Técnica/Technical Team
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Walterson de Faria (Secretaria)
Fernando Vugman (Resumos em inglês)
Fábio José Rauen (Editoração e Diagramação)
Volume 7 ▪ Número 1
jan./jun. 2012
Dados postais/Mailing address
Revista Crítica Cultural
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem
Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL)
Av. Pedra Branca, 25 – Cidade Universitária Pedra Branca
CEP: 88.132-000
Palhoça, Santa Catarina, Brasil
[email protected]
4
SUMÁRIO
Summary
ENSAIOS
Essays
O tempo da máquina de produção/fruição de arte:
o relógio como metáfora em Osman Lins
The time of the machine of art production/fruition:
the clock as a metaphor in Osman Lins
Dilma Beatriz Rocha Juliano ...................................................................... 15
Vanguardia, Barroco, Antropofagia
Avant-garde; baroque; anthropophagy
Juan José Mendoza .................................................................................. 23
Fronteiras da crítica literária brasileira:
Oswald de Andrade e João do Rio na cena do novo
Frontièrs de la critique littéraire brésiliènne:
Oswald de Andrade et João do Rio dans la scène de la nouvelle
Sebastião Marques Cardoso ...................................................................... 35
La figura del escritor. Dos generaciones en Argentina
The writer’s profile. Two generations in Argentina
Elizabeth Hutnik ..................................................................................... 53
Los registros de la violencia en La hija del caníbal de Rosa Montero
The ranges of violence in Rosa Montero’s La hija del caníbal
Adriana Virginia Bonatto ........................................................................... 67
Memória e documento: o diário de Gonzaga Duque
Memory and document: Gonzaga Duque’s diary
Alexandra Filomena Espindola ................................................................... 83
Volume 7 ▪ Número 1
jan./jun. 2012
Teorias Oníricas e O Romance Onírico de Inversão de Nuruddin Farah
Dream Theories and Nuruddin Farah’s Dream Novel of Inversion
Divanize Carbonieri ................................................................................. 97
João Guimarães Rosa, um filossemita?
A questão judaica, as cartas e o testemunho de Israel Klabin
João Guimarães Rosa: a philo-semite?
The Jewish issue, the letters and the testimony of Israel Klabin
Jacques Fux .......................................................................................... 117
Adorno e o jazz
Adorno and jazz
Elder Kôei Itikawa Tanaka....................................................................... 137
Rios, pontes e overdrives:
trânsito e a (de)composição do espaço em Amarelo Manga
“Rivers, Bridges and Overdrives”:
transit and the (de)composition of space in Amarelo Manga
Ramayana Lira ...................................................................................... 149
Crimes e pecados: Woody Allen, Hollywood e o cinema independente
Crimes and sins: Wood Allen, Hollywood and the independent cinema
Marcos Soares
Ana Paula B. Anjos
Marcos Fabris ........................................................................................ 159
O material melodramático na forma cinematográfica de Ken Loach
The use of melodrama in the cinematographic form of Ken Loach
Cristiane Toledo Maria ............................................................................ 169
6
Editorial
O presente número da nossa Crítica Cultural, depois de abrir amplo espaço para
discussão e análise das literaturas africanas, devota-se, essencialmente a uma série de
reflexões sobre literatura e sobre o cinema, com uma bem-vinda riqueza de
perspectivas e abordagens.
Sem a preocupação de separar os ensaios sobre literatura e sobre o cinema em
distintas seções, os primeiros textos apresentados se debruçam sobre questões
literárias, seguidos de um conjunto de ensaios sobre cinema.
Assim, abrindo este número, Dilma Beatriz Rocha Juliano reflete, em seu “O
tempo da máquina de produção/fruição de arte: o relógio como metáfora em Osman
Lins”, sobre as transformações ocorridas na produção/fruição dos objetos culturais,
especificamente, sobre as mudanças operadas no tempo/ritmo/velocidade a partir dos
processos industriais e tecnológicos, do final do século XIX para o XX, tomando a
máquina, em seus diferentes procedimentos de fabrico, como metáfora da produção
artística, tendo em vista a sua aceleração e o seu aperfeiçoamento técnico neste
período. Para isto, aproxima a máquina à dobra narrativa de Osman Lins ao escrever
“O relógio de Julius Heckethorn”, no romance Avalovara.
A seguir, Juan José Mendoza, em “Vanguardia, Barroco, Antropofagia”, especula
sobre algumas das possíveis conexões da pós-vanguarda argentina dos anos 1970
com as tradições da antropofagia brasileira e do barroco novo-hispânico. Partindo da
identificação de possíveis afinidades teóricas, o ensaio busca servir de base para uma
leitura excêntrica da revista Literal (Buenos Aires, 1973-1977), para além do
telquelismo Francês e da tradição literária argentina. Seu objetivo é pensar o barroco e
a antropofagia como outras possíveis linhas de abordagem para alcançar outra
dimensão das vanguardas latino-americanas em geral e da vanguarda rio-platense em
particular.
Em “Fronteiras da crítica literária brasileira: Oswald de Andrade e João do Rio na
cena do novo”, Sebastião Marques Cardoso apresenta uma releitura sobre o
modernismo literário brasileiro, buscando romper com o olhar canônico sobre esse
movimento. Para isto, analisa o discurso crítico de Oswald de Andrade, apontando,
tanto aspectos impulsionadores de uma nova maneira de ver e fazer literatura quanto
elementos ainda reminiscentes de uma cultura literária arcaica.
Elizabeth Hutnik, em “La figura del escritor. Dos generaciones en Argentina”,
revisita as figuras do escritor que circulam entre os autores argentinos consagrados
por leitores e pela crítica, bem como essa imagem se projeta entre escritores
contemporâneos. Para estabelecer um estado da arte da figura do escritor, a autora se
baseia nas proposições teórico-críticas de Juan José Saer, Ricardo Piglia, David Viñas e
César Aira.
Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v. 7, n. 1, p. 1-179, jan./jun. 2012
Volume 7 ▪ Número 1
jan./jun. 2012
“Los registros de la violencia en La hija del caníbal de Rosa Montero”, de
Adriana Virginia Bonatto, apresenta um leitura deste romance de Rosa Montero,
publicado em 1997, momento em que o “novo romance histórico” espanhol se
encontrava em seu início, com os objetivos de localizar os registros da violência
inscrita na voz do protagonista e narrador e de compreender os modos como seu
discurso se desenvolve como linha de fuga de algumas configurações socioculturais e
literárias, entendidas como opressivas ou restritivas.
Já em “Memória e documento: o diário de Gonzaga Duque”, Alexandra Filomena
Espindola discute como a biografia de Gonzaga Duque se estrutura e se assemelha à
lógica estrutural da narrativa da História Tradicional. A autora aponta que, assim, a
biografia encontra um lugar de legitimidade como um discurso de “verdade”. Para isto,
procura compreender como procedem os gêneros história e biografia e a relação que
mantêm com “realidade” e ficção, apoiando-se em teóricos como Jacques Rancière,
Juan José Saer e Nietzsche para ajudar a pensar a relação entre “verdade” e
aparência, ficção e não-ficção.
Divanize Carbonieri, em seu ensaio “Teorias Oníricas e O Romance Onírico de
Inversão de Nuruddin Farah”, estabelece uma conexão entre os estudos dos sonhos e
a literatura, analisando como diversas teorias oníricas influenciaram a leitura e,
possivelmente, a construção de três romances africanos contemporâneos, a saber, a
trilogia Blood in the sun, do escritor somali Nuruddin Farah, na qual o autor propõe a
combinação de duas camadas narrativas, uma dada pelo que os personagens
experimentam em sua vida de vigília e a outra configurada por seus sonhos. Conclui
que, para a compreensão de obras desse tipo, em que os sonhos não são apenas
apêndices narrativos, mas elementos que alteram profundamente a estrutura
romanesca, é necessário o alargamento do repertório crítico a partir do diálogo com
múltiplas teorias oníricas.
Jacques Fux investiga, em seu ensaio “João Guimarães Rosa, um filossemita? A
questão judaica, as cartas e o testemunho de Israel Klabin”, as relações que João
Guimarães Rosa travou com a família judaica de Israel Klabin. Faz isto a partir das
correspondências entre Rosa e Klabin e de uma entrevista realizada por ele mesmo,
com o intento demonstrar o filossemitismo de Rosa.
Em “Adorno e o jazz”, Elder Kôei Itikawa Tanaka apresenta o diálogo
estabelecido entre Adorno e seus críticos, partindo de algumas formulações do próprio
Adorno sobre esse gênero musical. O seu objetivo é compreender as afirmações do
crítico cultural alemão sobre esse gênero musical, além de entender as especificidades
do jazz como forma musical norte-americana do início do século XX.
O ensaio de Ramayana Lira abre a sequência de textos preocupados com as
questões do cinema. Em “Rios, pontes e overdrives: trânsito e a (de)composição do
espaço em Amarelo Manga”, a autora discute a visão do filme de Cláudio Assis como
obra de um cinema que quebra com centralidade da figura humana e apresenta uma
composição peculiar do espaço, em especial em relação à representação da decadência
urbana do terceiro mundo. Investiga as manobras da narrativa e das imagens para,
em última análise, apontar o filme de Assis como um exame do declínio da cidade que,
ao mesmo tempo, instiga a crítica à vontade humana e a valores liberais.
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Ainda preocupados com questões do cinema, Marcos Soares, Ana Paula B. Anjos
e Marcos Fabris analisam, em “Crimes e pecados: Woody Allen, Hollywood e o cinema
independente”, as reflexões do diretor sobre a situação do cinema independente no
final dos anos 80 nos Estados Unidos, bem como sobre as condições de possibilidade
de sua própria carreira.
Por fim, Cristiane Toledo Maria dedica seu ensaio “O material melodramático na
forma cinematográfica de Ken Loach” para discutir o projeto estético-político do
cineasta inglês Ken Loach dentro da história da arte política, e como fruto de um
processo histórico de crise da esquerda e fragmentação da classe trabalhadora,
intensificado durante a segunda metade do século XX, especialmente em países como
a Inglaterra. A autora observa de que maneira a obra de Ken Loach cria uma forma
que realiza um resgate de materiais melodramáticos e as consequências de tal escolha
formal para o conteúdo político de seus filmes.
Boa leitura!
Os Editores
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Editors’ note
The present issue of Crítica Cultural, after making room for debate and analysis
on African literatures, is essentially devoted to a series of reflections on literature and
cinema, along with a rich variety of approaches and perspectives.
With no concern for creating specific sections on each theme, the initial essays
presented are dedicated to literary issues, while the latter ones focus on issues of
cinema.
Thus, and opening this first number in 2012, Dilma Beatriz Rocha Juliano’s “The
time of the machine of art production/fruition: the clock as a metaphor in Osman Lins”
one finds a reflection on the changes that have occurred in the production/fruition of
cultural objects, more specifically on the changes occurring on time/rhythm/speed due
to industrial and technological processes at the turn of the nineteenth century to the
twentieth, taking the machine in its different manufacturing procedures, as a metaphor
for artistic production, having in view its acceleration and its technical advancement
during that period. In order to create such a metaphor the author makes an
approximation to the narrative folding by Osman Lins in his “O relógio de Julius
Heckethorn”, in the novel Avalovara.
Next,
Juan
José
Mendoza
speculates
in
his
“Avant-garde;
baroque;
anthropophagy” on some possible connections among the Argentinean post-vanguard
of the 1970s, the traditions of the Brazilian anthropophagic movement and of the NewSpanish baroque. Beginning by identifying possible theoretic affinities, his essay
creates a basis for an eccentric reading of the Literal magazine (Buenos Aires, 19731977), a reading beyond the French telquelism and the Argentinean literary tradition.
The objective is to think the baroque and the anthropophagic movement as other
possible lines of approach in order to reach another dimension of the Latin-American
vanguards in general and of the Argentinean in particular.
In “Fronteiras da crítica literária brasileira: Oswald de Andrade e João do Rio na
cena do novo”, Sebastião Marques Cardoso presents a rereading of the Brazilian
literary modernism, in an attempt to break with the canonic view on that movement.
In order to reach such a goal, the author analyzes the critical discourse by Oswald de
Andrade, while pointing at both those aspects that worked to propel a new way of
seeing and making literature, and those elements still reminiscent of an archaic
literary culture.
Elizabeth Hutnik, in her “The writer’s profile. Two generations in Argentina”,
revisits the profile of the writer, which circulate among Argentinean writers
consecrated by readers and critics, as well as how such an image projects itself among
contemporary writers. In order to establish a state of the art of the profile of the
writer, the author bases herself on theoretical-critical propositions by Juan José Saer,
Ricardo Piglia, David Viñas and César Aira.
Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v. 7, n. 1, p. 1-179, jan./jun. 2012
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“The ranges of violence in Rosa Montero’s La hija del caníbal”, by Adriana
Virginia Bonatto, presents a reading of that novel by Rosa Montero, published in 1997,
a moment when the Spanish “new historical novel” was in its beginnings, with the aim
of trying to find the records of violence inscribed in the voice of the protagonist and
narrator, and of understanding how his discourse develops as a line of scape for some
literary and sociocultural configurations, understood as opressive and restrictive.
Already in “Memory and document: Gonzaga Duque’s diary”, Alexandra
Filomena Espindola discusses how the biography of Gonzaga Duque structures itself
and comes close to the structural logic of the narrative of Traditional History. The
author notes that in that way biography finds a place of legitimacy as a discourse of
“truth.” To support her argument, she seeks to understand how the historical and
biographical genres proceed, as well as the relation that each keeps with “reality” and
fiction, basing herself on theoreticians as Jacques Rancière, Juan José Saer and
Nietzsche, and their ideas on the relation between “truth” and semblance, between
fiction and non-fiction.
Divanize Carbonieri, in her essay “Dream Theories and Nuruddin Farah’s Dream
Novel of Inversion”, establishes a connection between dream studies and literature,
while analyzing how diverse oneiric theories have influenced literature and, possibly,
the construction of three contemporary African novels, namely the trilogy Blood in the
sun, by Somali writer Nuruddin Farah, in which the author proposes a combination of
two narrative layers, one given by what the characters experience while awake, and
the other configured by their dreams. She concludes that for the understanding of
works of such kind, in which dreams are not Just narrative appendices but elements
that alter profoundly the novelistic structure, it is necessary to enlarge the critical
repertoire by resorting to the dialogue between multiple oneiric theories.
Jacques Fux investigates in his essay “João Guimarães Rosa: a philo-semite?
The Jewish issue, the letters and the testimony of Israel Klabin”, the relations between
João Guimarães Rosa and the Jewish family of Israel Klabin. His investigation is based
on letters exchanged between Rosa and Klabin and on an interview performed by
himself, with the intent of showing Rosa’s philo-semitism.
In “Adorno and jazz”, Elder Kôei Itikawa Tanaka presents the dialogue
established between Adorno and his critics, starting from some formulations by Adorno
himself on such a musical genre. The author’s goal is to understand the claims by the
German cultural critic on that musical genre, in addition to understanding the
specificities of the jazz as a North-American musical form from the beginning of the
twentieth century.
The essay by Ramayana Lira opens the series of texts concerned with cinema
issues. In “Rivers, Bridges and Overdrives: transit and the (de)composition of space in
Amarelo Manga”, the author discusses the film by Cláudio Assis as the work of a
cinema that breaks with the centrality of the human figure and which presents a
peculiar composition of space, particularly in relation with the representation of urban
decadence in the third world. She investigates the maneuvers of the narrative and
images to point the film by Assis as a look on the decline of the city, which at the
same time instigates the criticism to human Will and liberal values.
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Still concerned with questions of cinema, Marcos Soares, Ana Paula B. Anjos and
Marcos Fabris analyze in “Crimes and sins: Wood Allen, Hollywood and the
independent cinema” the reflections of the director on the situation of the indies at the
end of the 1980s in the United States, as well as on the conditions of possibility for his
own carrier.
Lastly, Cristiane Toledo Maria dedicates her essay “The use of melodrama in the
cinematographic form of Ken Loach” to a discussion on the aesthetic-political project
of English director Ken Loach within the history of political art, and as a result of a
historical process of crisis of the left and of fragmentation of the working class, which
was intensified during the second half of the twentieth century in countries like
England. The author observes how Ken Loach’s production creates a form that rescues
melodramatic materials and the consequences of such a formal choice for the political
content of his films.
Have a nice reading!
The editors
13
O tempo da máquina de produção/
fruição de arte: o relógio como
metáfora em Osman Lins
Dilma Beatriz Rocha Juliano*
Resumo
Pretende-se com este texto refletir sobre as transformações ocorridas na
produção/fruição dos objetos culturais, especificamente, sobre as mudanças operadas
no tempo/ritmo/velocidade a partir dos processos industriais e tecnológicos, do final
do século XIX para o XX. Para tanto, toma-se a máquina, em seus diferentes
procedimentos de fabrico, como metáfora da produção artística, tendo em vista a sua
aceleração e o seu aperfeiçoamento técnico neste período. Aproxima-se, neste sentido,
a máquina à dobra narrativa de Osman Lins ao escrever O relógio de Julius
Heckethorn, no romance Avalovara.
Palavras-chave
Produção artística. Tempo maquínico. Osman Lins. Avalovara
Os relógios correntes, que funcionam a saltos e com os quais estamos habituados,
parecem-lhe corromper uma noção que os primeiros instrumentos de medir o
tempo, como a ampulheta ou o relógio de sol, restauram e transmitem de um
modo menos infiel: a de ser o tempo em fluxo, um fenômeno contínuo e indiviso.
Muito reflete sobre isto e sobre o quase impossível equilíbrio de processos
modernos e de elementos arcaicos que exige para a futura invenção. (Osman Lins)
Impulsionada pela necessidade de entendimento e síntese histórica que se
repete, diferentemente, de tempos em tempos, pretendo com este texto refletir sobre
as
transformações
ocorridas
na
produção/fruição
dos
objetos
culturais,
especificamente, sobre as mudanças operadas no tempo/ritmo/velocidade a partir dos
processos industriais e tecnológicos, marcadamente na virada do século XIX para o
XX. Para tanto, tomo a máquina, em seus diferentes procedimentos de fabrico, como
metáfora
da produção
cultural,
tendo
em
vista
a
sua
aceleração
e
o
seu
aperfeiçoamento técnico neste período. Aproximo-a, neste sentido, à dobra narrativa
de Osman Lins (1973) ao escrever O relógio de Julius Heckethorn dentro do romance
Avalovara. É o relógio que não só marca a cronologia do tempo, mas registra, como
*
Doutora em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina, professora do Programa de
Pós-graduação em Ciências da Linguagem (Unisul).
Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v. 7, n. 1, p. 15-22, jan./jun. 2012
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máquina, a transformação do objeto artístico. No relógio, Osman Lins descreve a
ambiguidade do tempo/escritura que só pode ser compreendido pela sutileza do
artesão/autor. É a arte que vai além do utilitário, que opõe o efêmero do valor de uso
ao perene que sobrevive ao próprio construtor/autor.
A passagem da manufatura à máquina industrial é a marca fundamental para
uma análise do tempo; essa mudança não só instaura a diferença na produção que, no
processo artesanal, dava ao autor o tempo de desdobrar-se sobre seu próprio objeto
de criação “aperfeiçoando-o”, tornando-o sua “arte”; como também na recepção desse
objeto que expunha-se a um valor de uso em marcas singulares até que um novo
estivesse disponível. A velocidade dos meios de comunicação responsáveis pela
difusão da informação e da cultura é, hoje, superior à capacidade humana de retenção
e elaboração de conteúdos. É o tempo da memória, tempo humano suplantado pelo da
máquina.1
Machado de Assis (1994, p. 943), Correio Mercantil - 1859, escrevia em sua
crônica diária:
A lei eterna, a faculdade radical do espírito humano, é o movimento. Quanto maior
for esse movimento mais ele preenche o seu fim, mais se aproxima desses pólos
dourados que ele busca há séculos. O livro é um sintoma de movimento? Decerto.
Mas estará esse movimento no grau de movimento da imprensa-jornal? Repugno
afirmá-lo. [...] Depois, o espírito humano tem necessidade de discussão, porque a
discussão é – movimento. Ora, o livro não se presta a essa necessidade, como o
jornal. A discussão pela imprensa-jornal anima-se e toma fogo pela presteza e
reprodução diária desta locomoção intelectual. A discussão pelo livro esfria pela
morosidade, e esfriando decai, porque a discussão vive pelo fogo. O panfleto não
vale um artigo de fundo.
Este fragmento mostra que, desde metade do século XIX, esta reflexão já
estava posta por Machado de Assis que, sabiamente, apontava a discussão livro x
máquina colocando-a analogamente à oposição morosidade x rapidez.
Apesar de separados por quase um século, em 1954, Osman Lins (1979, p.
128), em entrevista publicada no Diário de Pernambuco, apontava algo semelhante:
DP - Os meios de comunicação de massa serão um eterno refúgio de subliteratura?
OL - Mais de infraliteratura, uma produção de urgência que pode perder pelo
desvio, pelo cansaço, muito talento ainda não definido. Sabemos que a criação
literária não se processa em minutos, mas em anos, e à custa de árduo, longo
estudo. A urgência do rádio e da TV obriga a uma utilização do imediato, do que
está nas camadas recentes da memória, nas capas exteriores da sensibilidade.
Tudo com a noção da tarefa paga e a terrível consciência do efêmero, de compor
frases que, segundo todas as probabilidades, não voltarão a ser ouvidas. Por isto, a
tarefa do produtor radiofônico ou de TV tem o seu aspecto trágico. Ele se
assemelha, de certo modo, àqueles condenados que faziam e desfaziam cordas.
Não pode contemplar o seu trabalho: o que faz está sempre a lhe escapar das
mãos, e para sempre.
1
Em Estética e anestética: o ‘ensaio sobre a obra de arte’ de Walter Benjamin reconsiderado,
Susan Buck-Morss (1996, p. 22) diz que “Sem a dimensão da memória, a experiência se
empobrece” e ainda acrescenta, em nota de rodapé nº 48, p. 22: “A lembrança é [...] um
fenômeno que visa dar-nos tempo para organizar a recepção dos estímulos que inicialmente
nos faltavam. (Paul Valéry, apud BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do
capitalismo, 1997. p. 116)”
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A literatura nasce da calma, do trabalho persistente e lento de muitas recusas. Uma
simples frase, a frase certa, final, pode exigir um dia de esforço ou mais. Pode
consumir páginas de papel. E o lucro não conta para o homem que escreve o seu
poema ou compõe o seu romance. Ele cumpre, tanto quanto possível, uma
atividade independente.
É do tempo que falam tanto Machado de Assis quanto Osman Lins, um tempo de
produção, que de tão primordial altera o objeto produzido. É a matéria produzida que
vai sofrendo deslocamentos histórico-sociais a ponto de transformar a percepção
humana e ser transformada por ela. Ao contrário da matéria do séc. XIX que permitia
entrever as camadas de sua produção, a partir do séc. XX ela se presentifica por uma
tecnologia que prescinde do conhecimento de sua composição, uma espécie de
“mística” eletrônica que sustenta um saber técnico-científico. Susan Buck-Morss
(1996, p. 32), referindo-se à visão fenomenológica, diz que “A substância material
desaparece atrás da intenção ou significado da imagem.”. Osman Lins se refere aos
resíduos orgânicos da produção, onde palavra “certa” aparece manufaturada, a
procura da “frase final” não obedece ao tempo cronológico.
Roland Barthes (1986) sustenta as matérias e seus usos como importantes
componentes narrativos que, no entanto, demoraram muito tempo a serem assim
reconhecidos pela literatura. Ainda segundo Barthes, no processamento das matérias
estão as máquinas; são elas que intermediam a relação do homem com o objeto, e
como mediadoras exercem influência tanto sobre o homem como no objeto por ele
produzido. Os processos modernos de progresso tecnológico separam os homens da
produção, fazendo com que percam de vista a participação na fruição do resultado de
seu trabalho, beneficiando, desta maneira, o recrudescimento das relações de poder
que dividem detentores e trabalhadores.
Barthes descreve duas máquinas: a enciclopédica e a moderna (embora ele não
o faça, situamos, para o reforço desta reflexão, a primeira no final do século XIX, e a
segunda, no final do século XX). Da máquina enciclopédica o homem participa
ativamente de seu funcionamento uma vez que a energia que a anima é o movimento
humano. O caráter instrumental desta máquina está demonstrado em sua mediação
entre o homem e o objeto. As mãos são a imagem enciclopédica do ser humano, são
elas que se deixam entrever nas lâminas da matéria. Desta forma, fica em destaque a
sua organicidade, a sua continuidade com a natureza. É, então, a máquina servindo ao
homem.
Ao contrário, na descrição barthiniana da máquina moderna o que se evidencia é
a descontinuidade, é a máquina que corta a relação do homem com a natureza. 2 Na
máquina moderna, diferentemente de ativar o funcionamento, o homem exerce
apenas a vigilância. Apartado da produção, pela ação maquínica, não mais coloca sua
energia no movimento; aquilo que move a máquina moderna é oculto, trata-se de
uma espécie de “maravilhoso moderno”, fazendo de seu funcionamento algo intrincado
2
Para Georges Bataille (1987, p. 152) é o tempo do trabalho que retira o homem de sua
“animalidade”. Subtraído da natureza, por força da “humanização”, é ele que se coisifica pelo
trabalho: “O trabalho é também a via da consciência por meio da qual o homem saiu da
animalidade. Foi pelo trabalho que a consciência clara e distinta dos objetos nos foi dada, e a
ciência sempre foi a companheira das técnicas.”
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e secreto, onde “[...] las percepciones no están sujeta al límite corporal de los
sentidos.”, como observa Beatriz Sarlo (198?, p. 136).3 . É a virada, onde o homem
passa a servir à máquina e esta, por sua vez, movimenta os interesses políticos e
econômicos daqueles que estão no poder.
Enquanto para a máquina enciclopédica eram as mãos a representação humana,
para a máquina moderna o que remete ao ser humano é o olhar, ao contrário da
primeira que produzia matéria tátil, a segunda gera matéria-imagem, volátil e fugaz.
Como se referia Osman Lins ao comparar a tarefa do produtor midiático à dos
condenados, no trecho da entrevista transcrito anteriormente, do qual repito: “[...] o
que faz está sempre a lhe escapar das mãos, e para sempre.”, podemos dizer então
que, o que a máquina moderna produz é uma simulação de objeto. Escapando, assim,
duplamente das mãos: em direção à mecanização do produto que, por sua vez,
encaminha o homem em direção à escravização pela máquina. 4
A máquina moderna, em sua velocidade estonteante e voracidade mecânica,
trabalha ainda sobre a tinta fresca, destituindo valores como tradição, estética, função,
educação do gosto, tão reconhecidamente utilizados na avaliação artístico-literária
estabelecida. Para a máquina moderna, o ritmo de produção quer superar o vazio e o
silêncio que abrem espaços perigosos de uma possível crítica que ameaçaria o lucro
certo, o qual ela sustenta. Nas palavras de Susan Buck-Morss (1996, p. 24),
É claro que os olhos ainda vêem. Bombardeados com impressões fragmentárias,
vêem demasiado – e nada registram. Assim, a simultaneidade de uma sobrecarga
de estimulação e de um entorpecimento é característica da nova organização
sinestética como anestética.
Máquina-Relógio de Julius Heckethorn
O espaço de tempo - o instante mínimo - que entre o tic e o tac do relógio foge
à utilidade do contínuo do lucro financeiro, “tempo é dinheiro”, pode estar
representado na construção d’O Relógio de Julius Heckethorn de Avalovara de Osman
Lins (1973, p. 166).
Os relógios - escreve J.H. - têm estreita relação com o mundo e o que representam
ultrapassa largamente a sua utilidade. Desde a origem, opõem ao eterno o
transitório e tentam ser espelhos das estrelas. Mais ainda: exprimem em números
simples - tão simples que, ingenuamente, julgamos compreendê-los - o ritmo
impresso desde a origem à marcha solene e delicada dos astros.
3
4
Sarlo (198?, p. 136) segue dizendo: “[...] cuando sonidos e imágenes se difunden por
conductos invisibles e inmateriales, todo um sistema de equivalencias puede edificarse a
propósito de otras transmisiones y recepciones a distancia. [...] La ciencia pone en escena
‘milagros’ que autorizan a creer en otros.”
Jean Baudrillard (1997, p. 147), em seus constantes estudos dedicados a ‘era do virtual e da
imagem’, afirma: “As máquinas só produzem máquinas. Isso é cada vez mais verdadeiro na
medida do aperfeiçoamento das tecnologias virtuais. Num certo nível maquinal, de imersão na
maquinaria virtual, não há mais distinção homem/máquina: a máquina situa-se nos dois lados
da interface. Talvez não sejamos mais do que espaços pertencentes a ela – o homem
transformado em realidade virtual da máquina, seu operador especular, o que corresponde à
essência da tela.”
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Julius Heckethorn, em sua obstinação pela construção do relógio, está
consciente de que sua máquina deverá trazer, em seu funcionamento, não só a
marcação linear do tempo – a fim de fazer-se reconhecida pela humanidade como
valor de uso – como também deverá fazer pulsionar, por trás dos “números simples”,
o enigma que o tornará obra de arte. É a construção da arte como paradoxo, da
oposição entre o tempo eterno que se alonga num futuro infinito e o transitório já
passado que, de tão rápido, cria a ilusória ideia de retorno ao mesmo. Nomeia Gilles
Deleuze (1998, p. 65): “[...] é o Cronos físico e cíclico do vivo presente variável. [...] É
o Aion incorporal que se desenrolou, tornou-se autônomo desenbaraçando-se de sua
matéria, fugindo nos dois sentidos ao mesmo tempo do passado e do futuro [...]”
É o artesão/autor de Osman Lins (1973, p. 243) inventor da máquina que
atravessa uma cronologia social de modo de produção e de valor e, mesmo
sobrevivendo como matéria à morte do artesão, perde sua identidade de peça única e, portanto, aquela que possui uma história, “O relógio de que nos ocupamos e do qual
não existe, que se saiba, réplica no mundo [...]” para perpetuar-se como objeto de
troca, desencarnado do momento artístico-poético de sua produção.5
Agora, aí está o relógio, há doze anos e meio aí está, ante tapetes sem vida e
poltronas fanadas, elegante e sóbrio, soando de tempos em tempos, com os seus
misteriosos sons. Já ninguém acredita que os aparelhos sonoros, se é que existe
mesmo mais de um, reconstituam a frase de Scarlatti. Nem sequer ocorre (a quem
ocorreria?) que as engrenagens ajustadas e expostas à falha calculada, voluntária,
do mecanismo imperfeito, marcham calmamente para esse milagre: a confluência,
o eclipse. Julius, perdido no pó, ouvirá esse momento? (LINS, 1973, p. 376-7)
Osman Lins, ao mesmo tempo, suspeita da reprodutibilidade e aponta o
descrédito no objeto artístico único como produtor da simulação da arte. A urgência na
materialidade do objeto não crê que sua completude pode estar na transcendência
humana. A sonata completa que, por “uma falha calculada do autor”, jamais poderá
ser ouvida uma vez que seu tempo de composição é mais longo do que o de uma vida.
O narrador d’O Relógio de Julius Heckethorn não desqualifica o relógio/matéria como
“obra de arte”, ao contrário, o faz duradouro – é Aion desenrolado.
Osman vê no todo “a grande obra de arte”, o sentido cósmico do literário,
embora não despreze as partes - como pedaços poéticos que escapam do continuo da
história reprimida pelas relações autoritárias com se produzem as obras de arte. A
história do relógio se confunde, na narrativa, com a história de seu criador. É inserindo
a narrativa de Julius Heckethorn na dobra de Avalovara que Osman Lins, ao revés,
desdobra a construção literária do próprio Avalovara, fazendo do fabrico do relógio a
5
É da autenticidade aurática da obra de arte que parece falar Osman Lins ao remontar a
construção do relógio – do material bruto à sofisticada engrenagem milimetricamente
engendrado – numa aproximação com a expressão de Walter Benjamin (1994. p. 167), “Mesmo
na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra de arte, sua
existência única, no lugar em que ela se encontra. É nessa existência única, e somente nela,
que se desdobra a história da obra. Essa história compreende não apenas as transformações
que ela sofreu, com a passagem do tempo, em sua estrutura física, como as relações de
propriedade em que ela ingressou. Os vestígios das primeiras só podem ser investigados por
análises químicas ou físicas, irrealizáveis na reprodução; os vestígios das segundas são objeto
de uma tradição, cuja reconstituição precisa partir do lugar em que se achava o original.”
19
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explicitação da escritura do romance maior. O relógio representaria, por isso, uma
metonímia para a dimensão temporal do romance, uma alegoria do romance
artesanal. Assim, pela construção da máquina-relógio de Julius Heckethorn o autor faz
Avalovara na forma enciclopédica barthiniana, ou seja, deixando entrever no objetoromance suas matérias e seus usos. 6 São as mãos do autor/relojoeiro que trabalham a
palavra no tempo de Aion, criando a arte que resiste a Cronos e, portanto, à máquina
pasteurizadora como uma ficção-imagem da máquina moderna.
Cresce nossa estranheza ao percebermos que não se repetem [os sons], antes
variam nas horas seguintes, sem que possamos alcançar a lei – pois há de haver
uma – que rege tais mudanças. Conhecidos os princípios que orientam o fabrico do
relógio, serão também explicadas essa lei e uma parcela de suas implicações.
Acrescentará nosso interesse por um engenho assim raro, a narrativa de certas
vicissitudes humanas com ele relacionadas. (LINS, 1973, p. 203)
É o narrador onisciente que traça dupla trilha: a do tempo cronológico que conta
a história linear de Julius e do relógio, e a do tempo poético que, ao confundirem-se
narrador e Julius Heckethorn, é contada aos saltos, do retorno à memória dos sons
dos carrilhões de Julius ao presente da escritura, onde
[...] os costumes mudaram. As cidades já não precisam de relógios para os seus
habitantes e o sentido como que sacral das horas (hábito do tempo?) perdeu-se
para os homens. As informações relacionadas com o sentido rítmico do tempo
também caíram em desuso e agora o rádio assume a função das campanários,
informando a esmo a passagem das horas, em cutiladas - e não em obediência a
um rito. (LINS, 1973, p. 324).
Segundo o narrador, o tempo flui, “repudia as interrupções, os seccionamentos”.
No entanto, a ação do homem sobre o tempo não permite que ele seja representado
de outra forma senão pelo ritmo “aos saltos”. Do tempo orgânico – o da criação, ao
tempo maquínico/cronológico que corta, dividindo-o em partes iguais.
Um erro ambicionarmos, para a representação do tempo, engenhos contínuos,
nunca interrompidos, sem pausas, renegando a nossa natureza, que pulsa como
pulsam os pulsos - e que tudo corta, como corta o pensamento, em palavras, em
sílabas, em letras. (LINS, 1973, p. 324)
Em oposição à linearidade, ou melhor, à aceitação da impossibilidade de imitar o
tempo e fluxo contínuo do tempo cósmico, Osman Lins reconhece a impossibilidade da
consciência total sobre ele. Há os espaços de queda neste tempo completo, onde
abrem-se espaços subjetivos de uso, diferenciando os seres e as coisas, criando-se as
poéticas. A consciência da representação do tempo aos saltos retira o homem da
anestesia do modo de produção capitalista que, por seu lado, o escraviza e reprime
pela extração lucrativa das lacunas do antigo tempo de ócio.
6
Barthes (1986, p. 136), “[...] está encarregada de representar o final glorioso de um grande
trajeto, o da matéria transformada, sublimada pelo homem através de uma série de episódios e
de estações:...”
20
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[...] – pensa Julius Heckethorn que uma conquista técnica em órbita de
transcendência igual à da escritura, a órbita da mediação do tempo, jamais será
gratuita. Impossível, trabalhando com relógios, manter-se alheio e deixar de
obedecer a vozes silenciosas. Por menos que as ouçam ouvidos, nunca poderão
ignorá-las mãos e imaginação. (LINS, 1973, p. 316)
Novamente, Osman Lins (1973, p. 360) redobra a tarefa do relojoeiro/autor de
romper o non sense totalitário ao alçá-lo à posição “transcendente” e, pelas “mãos e
imaginação” controlar o tecido escritural/temporal. Resiste o autor em desritualizar a
arte embora a dimensão política em que ela se encontra não deixe de ser assinalada
desde à referência à marcação utilitária do tempo -”só têm sentido os relógios de
ponto e os cronômetros de precisão” - até a situação socio-histórica da construção da
máquina, qual seja, a guerra: “A fabricação das peças iniciada em 1933, poucos meses
após a subida de Hitler ao poder, dura quatro anos e oito meses.”. Osman Lins fala de
um tempo repressor do homem e da arte sem, no entanto, deixar de debatê-los em
prol da libertação da palavra.
A narrativa em O Relógio de Julius Heckethorn não está distanciada das
transformações históricas perceptivas ocorridas no decorrer do séc. XX. Pelo contrário,
ela informa o grau de deslocamento do objeto artístico, passando da dependência
direta da criação humana para a condição residual de produto maquínico. Sem
desprezar, também, a modificação operada na recepção da arte, que de valor de uso
chega, ao final do século, do valor de troca e exposição mercadológica. É a alegoria da
máquina literária que, em sua transitoriedade, vê dessacralizada a palavra em
detrimento da imagem, ícone das narrativas contemporâneas.
E é precisamente no desenvolvimento tecnológico da máquina que Susan BuckMorss (1996, p. 27) afirma: “Fantasmagorias são tecnoestéticas. [...] Tem o efeito de
anestesiar o organismo, não por entorpecimento, mas pela inundação dos sentidos.”
Na velocidade da máquina, a produção pretende ocupar cada espaço de tempo, não no
sentido do fluxo contínuo do tempo de fruição, mas num aproveitamento constante do
homem anestesiado para fins de acumulação do capital. Na contracorrente dessa
produção, bate o relógio que repete o número, mas não a hora, nem o som, pulsa o
enigma da máquina literária de Osman Lins. Da artesania da palavra, da palavra vital
que tem sua trajetória marcada pelas operações técnicas que vão da “estética da
nudez” à “estética do ornamento”. Lendo através de Walter Benjamin, o relógio parece
marcar o trajeto do romance, o resgate de uma estética dos sentidos da arte, da
palavra e do tempo como signos de ‘conscientização’ social, histórica e política.
Referências
ASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v.III.
BARTHES, Roland. Novos ensaios críticos: o grau zero da escritura. 3. ed. São
Paulo: Cultrix, 1986.
BATAILLE, George. O erotismo. Porto Alegre: L& PM, 1987.
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BAUDRILLARD, Jean. Tela total: mitos-ironias da era do virtual e da imagem. Porto
Alegre: Sulina, 1997.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história da cultura. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BUCK-MORSS, Susan. Estética e anestética: o ‘ensaio sobre a obra de arte’ de Walter
Benjamin reconsiderado. Travessia – Revista de Literatura, n. 33, Ilha de Santa
Catarina, ago./dez. 1996.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1998.
LINS, Osman. Avalovara. São Paulo: Melhoramentos, 1973.
_______. Evangelho na taba: outros problemas inculturais brasileiros. São Paulo:
Summus, 1979.
SARLO, Beatriz. La imaginación técnica: sueños modernos de la cultura argentina.
Buenos Aires: Nueva Visión, 198?.
Title
The time of the machine of art production/fruition: the clock as a metaphor in
Osman Lins
Abstract
This
text
aims
at
reflecting
on
the
transformations
occurred
in
production/fruition of cultural objects, specifically, on the changes of time/pace/speed
from the industrial and technological processes, from the late 19 th to the 20th century.
For this purpose, the machine is considered, in its various manufacturing processes, as
a metaphor for artistic production, in view of its acceleration and technical
development during this period. In this manner, the machine approaches the narrative
fold of Osman Lins in the writing of O relógio de Julius Heckthorn, in the novel
Avalovara.
Keywords
Artistic production. Machinic time. Osman Lins. Avalovara.
Recebido em 17/04/2012. Aprovado em 28/06/2012.
22
Vanguardia, Barroco, Antropofagia
Juan José Mendoza*
Resumen
El presente ensayo se propone como una especulación teórica en torno a
algunas de las posibles conexiones de la pos-vanguardia argentina de los años 70 con
las tradiciones de la antropofagia brasileña y del barroco novo-hispano. A partir de la
identificación de posibles “afinidades teóricas” (entre nociones como “transculturación”
(Rama), “antropofagia” (Andrade), “secuestro del barroco” (De Campos)), el ensayo
procura servir de base para una lectura de la excéntrica revista Literal (Buenos Aires,
1973-1977) por fuera del telquelismo francés y de la tradición literaria argentina. A
partir de ello se intenta pensar en el barroco y en la antropofagia como otras de las
posibles líneas de tiro que ayudan a comprender otra dimensión de las vanguardias del
arte latinoamericano en general y de la vanguardia literaria rioplatense en particular.
Palabras claves
Antropofagia. Barroco. Vanguardia. Literal.
Transculturación & antropofagia
Como se sabe, las vanguardias adoptan en la Argentina la forma de una
modernización político-crítico-literaria antes que la sola internalización de la avantgarde que embarga a los procesos artísticos europeos. De un modo distinto – más
profundo todavía– ha sucedido en Brasil, donde la “identidad artística” llegó a
desarrollarse como “diferencia” respecto de las modernidades centrales.1 No se trató
allí de una “modernización” en particular sino de múltiples modernidades en tensión
con diferentes formas de “regionalismos”. La vanguardia paulista en particular (Mario
de Andrade, Buarque de Holanda, Paulo Prado, entre otros) y el movimiento
antropófago, tal como el mismo puede ser concebido desde Oswald de Andrade,
llegaron a promulgarse como una producción enmarcada en la subversión y el “desvío”
*
1
Crítico e investigador de la Universidad de Buenos Aires y del CONICET.
Así mismo en Perú, donde Carlos Mariátegui, mediante sus Siete ensayos de interpretación de la
realidad peruana (1928), abogará por lo que Ángel Rama caracteriza como otra de las fuerzas
ideológicas que operó en la literatura latinoamericana de la época y que reconoce como
“literatura social indigenista”. En ese modus mariateguiano, singular caso ocupa para Rama la
publicación de El tungsteno de César Vallejo (1931), que inaugura el gran “período beligerante
que corresponde a la ‘década rosada’ del antifascismo universal” (RAMA, 1982, pp. 24-25).
Será esa la década que también coincidirá con el advenimiento antifascista de “los acéfalos” en
París.
Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v. 7, n. 1, p. 23-33, jan./jun. 2012
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de la modernidad europea. A su manera, ella también podría ser vislumbrada desde lo
que Ángel Rama llamó “transculturación”. Lo “experimental” presente en las
vanguardias brasileñas será asimismo controversial para las tesis freyreanas del lusotropicalismo que combatirá muy especialmente producciones como las de Mário de
Andrade. Pero el “regionalismo” –con su Manifiesto Regionalista redactado por Gilberto
Freyre en 1926–, también será el correlato de una experiencia foránea y estará
orientado desde la antropología de Franz Boas. Como procurará Ángel Rama, tanto la
vanguardia como el “regionalismo” se impondrán de diverso modo en Brasil como
formas de responder al problema de la urbanización de los recursos literarios, pero
será la antropofagia una forma de transculturación mucho más radical:
[...] las técnicas narrativas de la novela social eran muy simples, opuestas a las del
regionalismo como a las del fantástico aunque menos a las del realismo-crítico,
porque traducían diversas perspectivas sectoriales, de clases o grupos o
vanguardias, que habían entrado en una pugna que la crisis económica habría de
agudizar. (RAMA, 1982, p. 25)
A partir de estas controversias Rama analiza la historia de la literatura
latinoamericana en los términos de una tensión entre modernidad y regionalismo y, en
ese plan, la transculturación aparece como un proceso que se intensifica a partir de los
años ‘30. Esta transculturación encuentra asimismo su génesis en una solución
intermedia de las diatribas entre, precisamente, las modernizaciones y los localismos:
[...] echar mano de las aportaciones de la modernidad, revisar a la luz de ellas los
contenidos culturales regionales y con unas y otras fuentes componer un híbrido
que sea capaz de seguir transmitiendo la herencia recibida. Será una herencia
renovada, pero que todavía puede identificarse con su pasado. (RAMA, 1982, p. 29)
Asimismo, contraria a esta diatriba entre luso-tropicalismo y vanguardia que
enfrentará a Gilberto Freyre con Mário de Andrade, por su lado Gilda de Mello e Souza
se propondrá leer Mancunaíma (1928) sosteniendo:
[...] la hipótesis de una doble fuente que simbólicamente expresaría un verso del
poeta (“Soy un Tupí tañendo el laúd”) para comprender la obra: “el interés del libro
resulta así, en gran medida, de su ‘adhesión simultánea a términos enteramente
heterogéneos’ o, mejor, a un curioso juego satírico que oscila sin cesar entre la
adopción del modelo europeo y la valoración de la diferencia nacional” (RAMA,
1982, p. 29)
Así
la
“transculturación”
se
impone
como
una
estrategia
contra
la
“aculturación”.2 Del mismo modo se puede concebir la antropofagia de Oswald de
Andrade:
“Tupi,
or
not
tupi,
that
is
the
question”.
En
esta
«tupinización
shakespeareana», lo antropófago emerge como una forma de disolución de las
diferencias o, mejor, como una forma hinterland de asimilación de lo extraño: “E
2
Esto mismo es lo que llevará a Rama a pensar como verdaderas soluciones vanguardistas no
precisamente obras autodefinidas de ese modo sino producciones como las de César Vallejo o
Juan Rulfo (y, muy especialmente en su trabajo, la obra de José María Arguedas).
24
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nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental.” El “Manifesto
antropófago” se posiciona como un palimpsesto iberoamericano: basta ver la cantidad
de referencias que conviven en ese texto para advertirlo. Pero no sólo ello: lo
antropófago
también
se
impone
como
un
modo
de
invertir
la
importación
transformándola en una exportación diferencial: “Sem nós a Europa não teria sequer a
sua pobre declaração dos direitos do homem.”3 El par importación/exportación es
suplantado por la noción de “préstamo”: una política que actúa como nueva forma de
la “distribución”. Este sentido de lo antropófago también adopta la fisonomía de un
tránsito: “As migrações”, “Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.
Roteiros”, “Desvia-se e transfere-se” – escribe Oswald de Andrade en su manifiesto–
van minando los sentidos de una ley que encuentra en el periplo y la metamorfosis su
forma.
El barroco antropófago [una conjetura]
Si, como sostiene Sarduy, la antítesis es la figura central del barroco, el barroco
es entonces susceptible de ser pensado en términos estructurales. Positivo/negativo,
potencia/acto son, en efecto, algunos de los pares que se podrían establecer en un
sistema de valencias puras. Si el barroco americano, en términos de oposición, puede
ser concebido desde Lezama Lima como un “arte de la contraconquista”, Haroldo de
Campos apunta que ya ello también desde Oswald de Andrade puede concebirse como
parte de la “devoración antropófaga”:
[…] comparen el elogio del barroco, como estilo utópico, estilo de los
descubrimientos que rescataron a Europa de su egocentrismo ptolomaico (elogio
hecho por el “antropófago” Oswald de Andrade), con el del cubano Lezama Lima. El
autor de Paradiso proponía leer la historia como una sucesión de eras imaginarias,
repensables por una memoria espermática, apta para establecer conexiones
sorprendentes, regidas por una causalidad retrospectiva o analógica. Para Lezama,
el Barroco iberoamericano es un arte de la contraconquista, un estilo pleno, que él
define corrosivamente como una gran lepra creadora (en oposición a un barroco
europeo ya degenerado, en el cual él ve acumulación sin tensión). (DE CAMPOS,
1989, p. 175).
Haroldo pergeña una suerte de teoría de la importación: describe a esa historia
de la vernaculización o “secuestro del barroco” como recepción y maquinación
“plagiotrópica” de las trayectorias oblicuas y de las derivaciones discontinuas.4
Concurrencia de diversidad y pluralidad de los “tempi” es como asimismo llama a la
descompensación de los relojes que embarga a los flujos transatlánticos. “Asimilación”,
3
4
América como una gran poseedora de bienes de exportación: desde los intercambios que se
narran en el diario de Colón (bonetes colorados por papagayos y hilos de algodón); o el saqueo
del cerro de Potosí que da origen a la fórmula “vale un Perú”… la nómina sería extensa, y nunca
rigurosa.
Haroldo de Campos ha pensado “la cuestión del origen” como “un problema instigador de la
historiografía” latinoamericana y en relación con la perspectiva derridiana de la deconstrucción.
Esta consideración teórica, susceptible de comprenderse en términos constelares (tal como de
algún modo se procura aquí), es particularmente fecunda para guiar la comprensión de ese
campo historiográfico de la literatura argentina en relación con lo latinoamericano y lo barroco.
25
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“fusión”, “armonización de contrarios” son también adjetivaciones que abonan el
campo
semántico
de
este
secuestro
vernaculizador.
Es
en
este
interregno
historiográfico en el que también puede comprenderse la vocación eversiva con lo
foráneo en experiencias rioplatenses como la de la revista Literal en los años ‘70.
La “cuestión del origen” repone la pista de este hilo past5 que el siglo XX
pretendería retomar e, incluso, vitaliza la pregunta por los propios orígenes del
barroco. Haroldo sitúa la “cuestión del origen” del barroco novohispano en Gregório de
Mattos, Sor Juana, Juan del Valle y Caviedes, Hernando Domínguez Camargo. Ya antes
señala que el manierismo de Luís Vaz de Camões es precursor del barroco de Góngora
y de Quevedo. Así, al origen hispano del barroco americano le añade el origen lusitano
del barroco español.6 Al mismo tiempo va a proponer estirada hasta el siglo XX la
acción duradera de ese movimiento. Pero esa acción duradera habría acaecido en las
sombras, de manera subterránea; se habría desplazado en la nubosidad de la marca
de agua que define la ilegibilidad barroca. Habría, antes que un horror vacui, un horror
a lo barroco. De ello da testimonio la negación que al barroco le brindan los
neoclasicistas españoles del XVIII (la poética de Luzán es el gran testimonio hispano
de ese proceso) y los sucesivos proyectos importadores del “iluminismo modernizador”
que se imponen a partir de la expulsión de la compañía jesuítica en América Latina.
Haroldo de Campos permite inferir este desplazamiento del barroco como génesis de la
puesta en duda de la existencia de Gregorio de Mattos (Gregorio de Mattos pareció no
haber existido durante siglos para la historiografía literaria lusitana y brasileña). Estas
“negaciones” del barroco –o, más precisamente, de “lo barroco”– ponen un vacío allí
donde el barroco había querido erigir un monumento al exceso. Deleuze también da
cuenta de estas negaciones “reductoras” de lo barroco:
Los mejores inventores del Barroco, los mejores comentaristas, han dudado sobre
la consistencia de la noción, espantados por la extensión arbitraria que corría el
riesgo de adquirir a pesar suyo. Asistimos, entonces, a una restricción del Barroco a
un solo género (la arquitectura), o bien a una determinación de los períodos y de
los lugares cada vez más restrictiva, o incluso a una negación radical: el Barroco no
había existido. (DELEUZE, 1988, pp. 48-49).
Esta negación del barroco sólo puede ser comprendida en tanto que en la
esencia extravagante y artificiosa de su estética se refugia la perversión de un orden
(el barroco como una manifestación “antisistémica”). En tanto perversión de un orden
es también descentramiento, llenar el vacío que deja la ausencia de centro:
5
6
Sobre esta concepción de lo “past” como apócope de pastiche vuelvo en diferentes momentos
de mis trabajos. Entre ellos, en el libro Escrituras past_ tradiciones y futurismos del siglo 21
(17grises, 2011). Sobre la aplicación de esta noción referida a Literal remito a “El pastiche
Literal”, Boletín/16, Centro de Estudios de Teoría y Crítica Literaria de la Universidad Nacional
de Rosario. Disponible on-line: http://www.celarg.org/int/arch_publi/mendoza_argumentos.pdf
[última consulta: 01/02/2012].
La cuestión del origen: el barroco aparecería para Sarduy, para Haroldo de Campos, como un
ylem literario americano. Para la perspectiva de Sarduy, si el universo produce hidrógeno a
partir de nada, la literatura también será eso: materia fónica a partir de nada.
26
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Horror al “horror al vacío”, miedo a la proliferación incontrolable que cubre el
soporte y lo reduce a un continuum no centrado, a una trabazón de materia
significante sin intersticio para la inserción de un sujeto enunciador. El horror al
vacío expulsa al sujeto de la superficie, de la extensión multiplicativa, para señalar
en su lugar el código específico de una práctica simbólica (SARDUY, 1974, p. 51).
Así, el lenguaje se transforma en el barroco en un código. Este apartamiento del
lenguaje implica, a su vez, un abandono de la subjetividad: en el código barroco no
hay yo y, por tanto, ya no hay estilo: el barroco no es un estilo. También este
fenómeno particular puede señalarse en la revista Literal al vislumbrarse los artículos
que se desarrollan en sus páginas con muchas de las firmas de los supuestos autores
elididas.7 Sumado a este descentramiento del yo aparecería también la pérdida de
“propiedad privada” del lenguaje, condición de posibilidad para la comprensión del
disparo de lo past:
Así el lenguaje barroco: vuelta sobre sí, marca del propio reflejo, puesta en escena
de la utilería. En él, la adición de citas, la múltiple emisión de voces, niega toda
unidad, toda naturalidad a un centro emisor: fingiendo nombrarlo, tacha lo que
denota, anula: su sentido es la insistencia de su juego (SARDUY, 1974, p. 52).
Y en una nota al pie Sarduy prosigue:
El lenguaje barroco podría compararse a esa “lengua de fondo” (Grundsprache) en
que el presidente Schreber escucha sus alucinaciones y que Lacan identifica con los
mensajes autónimos de que hablan los lingüistas: el objeto de la comunicación es
el significante y no el significado. El mensaje, en el barroco, es la relación del
mensaje consigo mismo (SARDUY, 1974, p. 52).
Las citas aparecen como “marquetería” del código y las mímesis se posicionan
como repeticiones tout court. Lo barroco se exhibe, es ostentación: de citas, de
lenguaje, de significantes… Se vuelve jactancia exhibicionista, un hacer por hacer que
la revista Literal llegará a declarar desde su primer número como la puesta en escena
de un arte porque sí (LITERAL 1, 1973, p. 13). Ya Sarduy también concibe el barroco
como algo en lo que todo es fragmentable y, a partir de ello, el barroco es el “espacio
del viaje” y la “travesía de la repetición” (SARDUY, 1974, p. 62). La repetición es el
protocolo que instaura la torsión, la corrupción, la reanudación diferida de lo mismo:
transducción, secuestro, vernaculización, deglución, antropofagia no se vuelven otra
cosa más que modos de reeditar. El problema de la recepción lleva a pensar en otra de
las características del barroco: el barroco acontece en un universo “culturalizado”: la
elipsis y la supresión funcionan desde un productor o ante un receptor que repone lo
“fuera de campo”. Si la escritura del barroco es código, la lectura es decodificación:
lectura à clef. Pero no se tratará siempre de reponer lo fuera de campo: muchas veces
se leerá simplemente la alusión a un mundo cultural que, al evocarse, también se
propondrá como perdido.
7
Obras como las de Manuel Puig, desde luego, donde se asiste a la pulverización de la voz del
narrador (en La traición de Rita Hayworth, en Boquitas Pintadas) o incluso obras como las de
Ricardo Piglia (los desdoblamientos del yo y los ejercicios epistolares de Emilio Renzi en
Respiración artificial) se imponen como otras manifestaciones de estos descentramientos del yo.
27
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Ya directamente en relación con un código barroco presente en Literal, que
Josefina Ludmer adjudica al contexto de recepción del telquelismo francés y María
Moreno a las propias condiciones de censura del período, 8 también se puede
considerar, siguiendo a Sarduy, la impronta del corte declaradamente psicoanalítico:
La mecánica clásica de la elipsis, es análoga a la que el psicoanálisis conoce con el
nombre de supresión (Unterdrückung/répression), operación psíquica que tiende a
excluir de la consciencia un contenido desagradable o inoportuno. La supresión,
como la elipsis, es una operación que permanece en el interior del sistemaconsciencia: el significante suprimido, como el elidido, pasa a la zona del
preconsciente y no a la del inconsciente: el poeta tendrá siempre más o menos
presente el significante expulsado de su discurso legible. (SARDUY, 1974, p. 73)
Esta supresión, a la que Lacan refiere como forclusión (1956), se produce de
manera imaginaria: lo neo-barroco,9 en tanto que retorno de lo suprimido, sería este
regreso fantasmático de lo jamás ido del barroco. Escritura barroca: el derroche al
servicio de una represión como la verdad de todo lenguaje. Aquí parecieran resonar las
palabras de Blanchot: el silencio que se afirma en el murmullo: un hablar que
mediante el exceso produce su silencio. De esto se desprende que ese hilo past que
define el pastiche Literal, además de trabajar con la repetición, también trabaja con lo
elidido. Si El Quijote y Las Meninas son para Sarduy la manifestación de una doble
elipsis –la de la representación y la del sujeto–, al mismo tiempo, ambos son la
representación invertida de sí mismos:
El Quijote se encuentra en El Quijote –como Las Meninas en Las Meninas– vuelto al
revés: del cuadro en el cuadro no vemos más que los bastidores; del libro en el
libro, su reverso: los caracteres arábigos, legibles de derecha a izquierda, invierten
los castellanos, son su imagen especular… (SARDUY, 1974, p. 80)
Literal es también la manifestación de este reverso: en las recensiones críticas
que aparecen en la revista no se ven sino el reverso de las ficciones que tematizan a la
teoría y la crítica literaria. En las páginas de la revista emergen asimismo las
aplicaciones críticas de la ficción. Incluso esto se aprecia también en las políticas
internas de la cita Literal: los momentos en que Literal se cita a sí misma: La flexión
Literal del volumen 2/3 citando fragmentos del artículo homónimo del mismo volumen;
los fragmentos de “No todo es historia” del volumen 4/5 reponiendo voces
(resonancias) de entrevistas a los miembros de la revista en suplementos culturales de
la época.
Este barroco proliferante también encuentra en el hilo past una superación de la
cuestión del origen: lo past se yergue como una serie sin emisor centrado o
privilegiado, rompe la vernaculización y la transforma en una literatura porque sí.
8
9
Josefina Ludmer y María Moreno en entrevistas personales. En Dossier Literal (Biblioteca
Nacional, 2011). Disponible on-line: http://www.bn.gov.ar/dossier-literal [última consulta:
07/09/2011].
Ya Haroldo de Campos había elaborado la noción de “neobarroco” antes que Sarduy (DE
CAMPOS, Haroldo (1955). “A obra de arte aberta”. Diario de S. Paulo, 3 jul.)
28
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Teoría del resto
Más o menos por la misma época en que aparece Literal Sarduy afirmará:
Ser barroco hoy significa amenazar, juzgar y parodiar la economía burguesa,
basada en la administración tacaña de los bienes, en su centro y fundamento
mismo: el espacio de los signos, el lenguaje, soporte simbólico de la sociedad,
garantía de su funcionamiento, de su comunicación, malgastar, dilapidar, derrochar
el lenguaje únicamente en función de placer –y no, como en el uso doméstico, en
función de información- es un atentado al buen sentido (SARDUY, 1974, p. 99).
Así, entendido como una erótica del suplemento, del derroche y del desperdicio,
el placer de gastar también postula al objeto parcial como objeto barroco por
excelencia. La carencia funciona así como fundamento epistemológico, tal como se
anunciará desde el epígrafe de Literal 1. Lo barroco, a su vez, aparece ligado a lo
lúdico, en oposición a la concepción clásica del arte como un trabajo. Alfonso Ávila, tal
como lo apunta Haroldo de Campos, también había hecho esa consideración: “vértigo
de lo lúdico”, “ludificación absoluta de sus formas” (DE CAMPOS, 1989, p. 149). El
neobarroco radicaliza ya el programa de movimiento y descentramiento del primer
barroco latinoamericano (el de Gregório de Mattos, Sor Juana, Juan del Valle y
Caviedes, Hernando Domínguez Camargo). Se plantea también como la pérdida de ese
ailleurs inicial, lo radicaliza pulverizándolo, volviéndolo, una vez vacío, zócalo del
nuevo ornamento. El pastiche Literal se inscribe de ese modo, desbordando la mera
mímesis paródica.
El horizonte barroco de las vanguardias
El siglo XX es el siglo de la revalorización barroca. Si la fuente de esta
revalorización puede encontrarse en el siglo XIX, como lo señala Octavio Paz (en la
relación imaginaria que establece entre “Primero sueño” de Sor Juana y “Un coup de
dés” de Mallarme (PAZ, 1982, pp. 470-471 y 505)), en el siglo XX Dámaso Alonso,
Gerardo Diego, García Lorca (toda la generación del ‘27 en España), Eliot y los
metaphisical poets en la lengua inglesa y Benjamin con su noción de la alegoría para la
teorización del auto-fúnebre alemán, Luciano Anceschi y la polémica anti-Croce en el
Ermetismo italiano son para Haroldo de Campos modos de esta vuelta al barroco (DE
CAMPOS, 1989, p. 149). El hilo past también aparece aquí como operación y protocolo
de recuperación (de “secuestro”), como “una glosa que recorre las entrelíneas”
abonando una concepción “vehicular” de la literatura (DE CAMPOS, 1989, p. 150). El
barroco también comporta un interés historiográfico particular en tanto que revitaliza
la auto-reflexión teórica pero sólo desde la perspectiva misma que otorga la práctica.
En contraste con la Poética de Aristóteles, “El arte nuevo de hacer comedias” de Lope
de Vega se presenta como uno de los grandes documentos de esta autoreflexión. En
contrapunto con la auto-reflexión de Lope sólo parece imponerse la esterilidad artística
del neoclasicismo (meramente prolífico en grandes reflexiones sobre las reglas del
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arte). El hilo past también se erige en la larga saga de las imitaciones y
transposiciones que
caracteriza a la historia literaria: pasaje
del
barroco
al
neoclasicismo, de este al romanticismo y al naturalismo, luego al modernismo y en el
último tercio del siglo XX este “retorno” lacaniano a lo barroco. Los barrocos, en tanto
que escritores negados, son poseedores de nervios invisibles: como es el caso de
Góngora hasta la generación del ‘27 (¿Habrá existido un escritor llamado Gregório de
Mattos en el XVII brasileño? se pregunta Haroldo de Campos): como Macedonio
Fernández hasta Borges o Literal, o como incluso la obra del propio Osvaldo
Lamborghini para muchos de sus contemporáneos.10 O incluso: la invisibilidad misma
de la revista Literal, también enmarcada en este ejercicio de “obras abiertas”, en esta
construcción de “obras inorgánicas”; toda ella entendida como work in progress,
también abocada al hilvanado de fragmentos sueltos; también, al igual que el barroco,
por algunos momentos, perdida y olvidada.
Hay otro rasgo del barroco que parece también tomar a la máquina
vanguardista: es el marco de la ilegibilidad, la escritura inefable, el hermetismo, la
incomprensibilidad, la ostentación. Pero antes que ello es fundamentalmente la
impugnación del clasicismo por parte del barroco lo que lo hace susceptible de ser
interpretado como una primera forma de la vanguardia. Ese anti-clasicismo del barroco
conforma una ardua tradición característica también en las escuelas del provenzal, del
minnesinger trobal di Arnaut Danièl, del Dolce Stil Nuovo de Dante, de los poetas
culteranos de España, de las tendencias órficas de los románticos (POGGIOLI, 1962,
pp. 162 y ss.).11
En un sentido inverso, así como las vanguardias históricas en el período tardo
romántico abandonan la vertiente anarquista de la cual también proceden (recuérdese
L’avant-garde, el periódico anarquista de Bakunin fundado en 1878), en su segunda
fase –la fase de las neo-vanguardias de los años ‘60–, las vanguardias abandonan la
resistencia a la mercantilización que las había caracterizado en el primer tercio del XX.
Así, la mercantilización de la estética pasa a ser la forma específicamente social del
arte, lo que redunda, a su vez, en su neutralización política. Esto es lo que para
Sanguinetti define el problema de la autonomía del arte: “Tenemos así otra vez ante
los ojos, como en un gráfico esencial, el cuadro estructural ya conocido dentro del que
se articula el proceso de toda vanguardia. Pues bien, sigue siendo la mercantilización
la que decreta, en la neutralización, el divorcio entre cultura y política” (SANGUINETTI,
1972, p. 29).
10
11
En esa misma línea también la propia invisibilidad de los integrantes del grupo Literal.
La obra de Poggioli, si se la despoja del espiritualismo que le infringen nociones como “genio” y
“obra”, permite considerar al suyo como un planteo sumamente prolífico para este enfoque.
Asimismo, tampoco su concepción trascendental de la historia del arte (con sus siempre
insistentes nociones de “Zeitgeist” y “palengenesia”) impide comprender los procesos
historiográficos que se procuran alcanzar aquí como partes de una “organización constelar” de
los movimientos literarios (DE CAMPOS, 1989, pp. 171) y una concepción bergsoniana del
tiempo como “duración heterogénea”.
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La vanguardia es visualizada así por Sanguinetti como el cuestionamiento
histórico a la neutralización política que el mercado en determinado momento le
imprime al arte. En un sentido muy distinto, ya desde la perspectiva de Foucault que
también se puede perseguir aquí, en El pensamiento del afuera la autonomía es
presentada como la coincidencia del lenguaje consigo mismo y la no-autonomía
aparece como la huida del lenguaje de sí mismo:
La literatura no es el lenguaje que se identifica consigo mismo hasta el punto de su
incandescente manifestación, es el lenguaje alejándose lo más posible de sí mismo;
y si este ponerse “fuera de sí mismo”, pone al descubierto su propio ser, esta
claridad repentina revela una distancia más que un doblez, una dispersión más que
un retorno de los signos sobre sí mismos. El “sujeto” de la literatura (aquel que
habla en ella y aquel del que ella habla), no sería tanto el lenguaje en su
positividad, cuanto el vacío en que se encuentra su espacio cuando se enuncia en la
desnudez del “hablo”. (FOUCAULT, 1966, pp. 12-13)
El pastiche, en tanto que bucle repetitivo y barroco, está también inscripto en
este “hablo” que se señala en este pensamiento del afuera foucaultiano. El propio
Germán García, sin referir a Foucault, da cuenta de esto en su ensayo catalán de 1980
precisamente titulado “El oxímoron barroco”: “si en la alegoría yo hablo de otra cosa,
en el manierismo no hay ninguna otra cosa que el hablar mismo” (GARCÍA, 1980, p.
28). Entendido desde este ángulo, Literal también emerge formando parte de este
movimiento indefinido del lenguaje cuyos orígenes podrían situarse en el barroco. Rizo
verbal, bucle lingüístico, todo una vez más deviene esta argamasa que aquí se procura
inscribir en los términos de la emulsión barroca y que en rigor también habría
embargado al proyecto Literal.
¿En qué sentido puede entonces impugnarse esta emulsión –esta ilegibilidad
barroca– a un proyecto emparentado con las vanguardias? Desde determinada
perspectiva puede considerarse que las vanguardias “fracasan” porque “el arte”
finalmente sobrevive a ellas e, incluso, las institucionaliza. Ya desde la perspectiva de
Rusell Berman las vanguardias participan del proceso de consolidación de la cultura de
masas. Ya desde el enfoque de Daniel Bell, todas las ideologías políticas (incluidas las
de las vanguardias artísticas) en algún momento terminan menguando con el arraigo
del capitalismo. Según sea la perspectiva que se asuma, variarán las dimensiones de
las vanguardias como acontecimiento artístico, cultural, político o económico. Más allá
de ello, y en diversos puntos, ninguna de todas estas perspectivas llega a negar la
potencia de la vanguardia como máquina de leer reconfiguradora del canon. Así, la
ilegibilidad de proyectos de escrituras como el de Literal emerge necesariamente como
parte de una desestabilización del sistema literario. Precisamente desde estos dos
sentidos, ilegibilidad y desestabilización, es como puede comprenderse uno de los
rasgos más sustantivos de toda vanguardia. Tomando a las vanguardias históricas
como
referente,
y
explorando
la
relación
que
mantienen
con
la
paulatina
mercantilización de las estéticas, la vanguardia se presenta para Sanguinetti como una
aventura contra el orden. Para Poggioli, por su parte, las vanguardias aparecen como
rupturas o contra el público o contra la tradición. Al mismo tiempo, y abonando ambas
perspectivas, para Bürger las vanguardias ya significarán el importante capítulo de
autoreflexión de la historia del arte.
31
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De un extraño modo, barroco, antropofagia y vanguardia confluyen en Literal. Al
tiempo que la vanguardia encuentra su propia tradición americana en experiencias
como el barroco novo-hispano o la antropofagia brasileña, de un extraño modo,
experiencias de las pos-vanguardias de los años ‘70 en Argentina, como la de la
revista Literal, habilitan un nuevo motivo de reflexión. Es la revista Literal una
interface extraña, un núcleo denso. Son sus páginas escenario de una emulsión
inusitada entre “vanguardismo criollo” y “barroco pop”; y un capítulo inédito de la
“antropofagia rioplatense”.
BIBLIOGRAFÍA
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BELL, Daniel. Las contradicciones culturales del capitalismo. Madrid: Alianza,
2006 [1976].
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brasileña: el caso de Gregório de Mattos. De la razón antropofágica y otros
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Umbertina Larraceleta. Barcelona: Paidós, 1989 [1988].
FOUCAULT, Michel. El pensamiento del afuera. Traducción de Manuel Arranz.
Valencia: Pre-Textos, 2004 [1966].
GARCÍA, Germán. El oxímoron barroco. Diwan 8-9 (1980): 27-33.
PAZ, Octavio. Sor Juana Inés de la Cruz o las trampas de la fe. Barcelona: SeixBarral, 1982.
POGGIOLI, Renato. Teoría del arte de vanguardia. Traducción de Rosa Chacel.
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RAMA, Ángel. Transculturación narrativa en América Latina. México: Siglo XXI,
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SANGUINETTI, Edoardo. Por una vanguardia revolucionaria. Buenos Aires: Tiempo
Contemporáneo, 1972.
SARDUY, Severo. Barroco. Buenos Aires: Sudamericana, 1974.
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Title
Avant-garde; baroque; anthropophagy
Abstract
This paper sets itself as a theoretical speculation around some of the possible
connections of the 70s’ Argentinian Post-Avant-garde with the traditions of the
Brazilian Anthropophagy and the Novo Hispanic Baroque. From the identification of
certain theoretical affinities (between concepts such as ”transculturación” (Rama),
“antropofagia” (Andrade), “secuestro del barroco” (De Campos), the essay tries an
eccentric reading of Literal magazine (Buenos Aires, 1973-1977) outside French
telquelism and the Argentinian tradition. From this point, it is attempted to think of the
Baroque and the Anthropophagy as another possible trigger that helps to understand
other dimensions of the Latin American art Avant-gardes in general, and of the River
Plate in particular.
Keywords
Baroque. Anthropophagy. Avant-Garde. Literal.
Recebido em 21/11/2011. Aprovado em 28/06/2012.
33
Fronteiras da crítica literária
brasileira: Oswald de Andrade e
João do Rio na cena do novo
Sebastião Marques Cardoso∗
Resumo
Em linhas gerais, o presente texto tem como objetivo apresentar uma releitura
sobre o modernismo literário brasileiro. Na tentativa de romper com o olhar canônico
sobre esse movimento, iremos analisar o discurso crítico de Oswald de Andrade [18901954]. Nossa intenção será a de apontar, no texto de Oswald, tanto aspectos
impulsionadores de uma nova maneira de ver e fazer literatura quanto elementos
ainda reminiscentes de uma cultura literária arcaica. Partindo da própria sugestão
crítica de Oswald, iremos, em seguida, discutir com mais interesse, a presença de João
do Rio [Paulo Barreto, 1881-1921] no imaginário do escritor paulista. Por fim,
questionaremos a ideia de ruptura estética tout court no modernismo, sugerindo, no
seu lugar, uma compreensão sobre o movimento mais abrangente, que possa incluir,
também, autores remanescentes do período.
Palavras-chave
Literatura Brasileira do século XX. Oswald de Andrade. João do Rio. Revisão
Crítica.
Considerações iniciais e problematização
Oswald de Andrade faz uma reflexão acerca da relevância das literaturas de
cultura ibérica na construção do idealismo latino (ANDRADE, 1992). Em D. Quixote, de
Miguel
de
Cervantes,
o
escritor
paulista
vê
o
elemento
que
une
nossa
contemporaneidade aos valores e anseios do velho mundo, e, também, o elemento
que funda e inaugura, em nossos trópicos, o desejo ibérico de construção cultural.
Quixote, à procura de Dulcinéia de Toboso − a mulher ideal−, embarcou na caravela
dos descobridores, rumo à América do Sul. Essa simbologia estaria ligada às missões
jesuíticas. No discurso crítico de Oswald, há uma certa modulação. A hipostação da
cultura jesuítica não deve ser confundida com a hipostação da cultura do homem
∗
Doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas. Professor Adjunto
de Teoria Literária da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).
Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v. 7, n. 1, p. 35-52, jan./jun. 2012
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simplesmente português. Oswald não nos surpreende ao apontar o padre latino como
um dos elementos diversos, juntamente com o índio, o português e, posteriormente, o
negro, responsáveis pela formação de nossa cultura, na sua fase inicial. Num estudo
ainda instigante, Luiz Costa Lima (1981, pp. 3-9) mostra-nos que a cultura construída
e herdada pelas missões jesuíticas resultou numa “cultura auditiva”, avessa à reflexão
e à teoria.
De acordo com Oswald de Andrade, a presença marcante e decisiva do padre
latino em nossa gleba, em tempos remotos, fez com que a cultura do português, do
índio e do negro se agregassem ao valor e à empresa da fé:
Reconhecendo a eficácia da fé no bom êxito das suas empresas, o português, que,
sozinho, logrou resistir ao missionário, deu-lhe, nas primeiras assembléias do
continente descoberto, uma ascendência preponderante. O índio politeísta não
tardou a agregar um novo deus à sua mitologia, e o negro, habituado a ver em
tudo manifestações sobrenaturais, deixou-se batizar com uma alegria de criança.
(ANDRADE, 1992, p. 29).
O fenômeno do domínio intelectual “auditivo” do padre latino na formação
histórica da sociedade sul-americana tornou-se uma tradição secular, cujo expoente
maior, em inícios do século XX, no Brasil, foi, na análise de Oswald de Andrade,
Alexandre Corrêa (1890-1984). Em seus primórdios, a “cultura auditiva”, iniciada pela
pregação do padre latino aos gentios, expandiu seu império através da escolástica;
sobreviveu, em meados do século XIX, nos artigos de roda-pé; no século XX, nos
discursos acadêmicos das universidades.
Entretanto, ao lado desse horizonte cultural “auditivo”, existiu, segundo Oswald,
“um movimento” nacional de “expressão superior”, no início do século XX, no Brasil.
Trata-se da obra de Farias Brito, seguida posteriormente por Jackoson de Figueiredo,
Renato Almeida, Castro e Silva, Nestor Victorio, Almeida Magalhães, Xavier Marques,
Perillo Gomes e Tasso Silveira. Hoje, autores pouco conhecidos e discutidos nas
academias nacionais. Esse “movimento”, porém não menos “auditivo” na nossa
opinião, procurou se opor aos germanistas de Tobias Barreto e aos positivistas de
Teixeira Mendes, ou seja, às duas correntes críticas mais aceitas e difundidas na
época. Sem alongar nos detalhes sobre a fé panteísta do brasileiro, retratada na obra
de Farias Brito, e de seus possíveis desdobramentos, Oswald de Andrade cita en
passant João do Rio e Severiano de Resende como antecessores desse “movimento”.
Para Oswald de Andrade (1992, p. 30), As religiões no Rio, de João do Rio, e Meu Flos
Santorum, de Severiano de Resende, precedem, como documentos, a obra de Farias
Brito.
Provincianismo e cosmopolitismo na vida cultural
brasileira
A afirmação de Oswald de Andrade de que o livro As religiões no Rio traz para o
âmbito da literatura brasileira “um contigente pitoresco” insere a literatura do escritor
carioca na rota do projeto de construção de uma identidade nacional, preconizado pelo
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escritor paulista, na década de 20 do século XX. Diante dessa possível aliança entre a
literatura de João do Rio com o programa político-cultural de vanguarda, pensado por
Oswald de Andrade, faremos, a partir de agora, algumas aproximações entre esse
projeto oswaldiano e a literatura de João do Rio.
As religiões no Rio, obra publicada em 1904, teve uma tiragem pequena, cerca
de mil exemplares, e logo se esgotou. (Cf. MAGALHÃES JÚNIOR, 1978, pp. 33-36).
Reunindo as reportagens publicadas entre fevereiro e abril de 1904, na Gazeta de
Notícias, do Rio de Janeiro, João do Rio aborda as religiões praticadas no Rio de
Janeiro ainda desconhecidas pela imprensa e o grande público. (Cf. RODRIGUES,
1994, pp. 32-34). As reportagens causaram sensação e foram lidas avidamente.
Muitos leitores duvidaram da veracidade das reportagens, considerando-as uma
fantasia ou mesmo uma invenção de um escritor bastante imaginoso; outros, depois
de publicadas em livro, consideram a obra um plágio de Les petites religions de Paris,
de Jules Bois. (Cf MARTINS, 1976, p. 9).
O que fazia e pensava Oswald de Andrade em 1923 quando, presidida por Souza
Dantas, embaixador brasileiro na França, resolve pronunciar a conferência “L’Effort
Intellectuel du Brésil Contemparain”, na célebre Universidade de Sorbone, no dia 11 de
maio? A apresentação de sua conferência contou com o convênio da Academia
Brasileira de Letras, com o patrocínio do Groupement des Universités e das Grands
Écoles de France pour Rélations avec Amérique Latine. Esse texto de Oswald, ainda
pouco conhecido, é considerado, ao lado do artigo “Pintura Nacional” e dos manifestos
“Pau-Brasil” e “Antropófago”, um dos pilares do ideário estético e político do
nacionalismo de Oswald e, por extensão, da geração modernista ligada ao autor. (Cf.
BOAVENTURA, 1995, p. 92; Cf. FONSECA, 1990, p. 128).
Oswald de Andrade, antes de sua viagem à Europa, era, porém, um escritor
reconhecidamente convencional, embora tivesse apresentado, desde cedo, um espírito
inquietante. Mesmo encabeçando, em fevereiro de 22, a barulhenta Semana de Arte
Moderna, que contava com a participação de literatos como Ronald de Carvalho,
Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia e Mário de Andrade, a sua literatura, lida
em viva-voz, não tinha nada de extraordinário à época. Os condenados, hoje Alma (o
primeiro dos romances da Trilogia do Exílio, publicado recentemente pela Editora
Globo), têm uma dimensão simbolista-decadente que não supera o período literário do
momento nos termos propostos pelas vanguardas artísticas tout court. (Cf. CARDOSO,
2010). A viagem à Europa foi, para Oswald (e isso é inegável), fecundante. Na Europa,
o escritor provinciano de São Paulo teve a possibilidade de se atualizar no âmbito das
artes e, por conseguinte, a oportunidade (que não era para poucos) de mudar sua
direção estética. Em outras palavras, foi durante a longa estada parisiense de 1923
que assomou a figura do escritor propriamente modernista que habitualmente
costumamos ver recenseado nas histórias literárias nacionais. (Cf. DANTAS, 1991, p.
193; Cf. CASTELO; CANDIDO, 1997, p. 14).
Um pouco antes de 23, em dezembro de 22, Oswald de Andrade parte para a
Europa a bordo do navio capitaneado pela Compagnie de Navegation Sud Atlantique.
Na Europa, Oswald estreita suas relações de amizade com Tarsila do Amaral que, por
sua vez, contribuiu grandemente para a sua introdução no meio artístico francês.
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O casal Tarsiwal, assim como eram chamados por Mário de Andrade, consolidou,
em 23, suas relações, passando a residir no celeiro dos artistas, no quinto andar sem
elevador do n°. 9, Hégésippe Moreau − 18ème, Montmartre −, nas imediações da Place
Clichy. Um pouco antes, porém, moraram no n°. 6, Le Chapelais− 17ème−. (Cf.
BOAVENTURA, 1995, p. 84).
Passadas algumas semanas, após a sua apresentação em Sorbone, Oswald
conhece, no final de maio do mesmo ano, Blaise Cendrars. O pirate du Lac Léman,
como Oswald assim o chamou uma vez (pois Cendrars pretendia fazer fortuna
financeira no Brasil), apresentou o casal de ricaços, vindos do Brasil, ao mundo
intelectual francês. A partir do contato com o autor de Feulles de route, (cf. SOUSA,
1995) Oswald e Tarsila conheceram artistas como Brancusi, Jean Cocteau, Erik Saltie,
Delaunay, Jules Romains, René Bacharach, De Chirico, Radiguet, Picabia, Aragon, Jean
Giraudoux, John dos Passos, Jules Supervielle, Fernand Léger, Maximillien Gautier,
Valéry Larbaud, André Lhote, Picasso e outros.
Blaise Cendrars ciceroniou o casal de noivos também nos hábitos mais distintos
e elegantes de Paris. A agenda incluía: restaurantes “escolhidos”`, como Le
Moustique, La Retonde de Montparnasse, La Tour d’Argent, Brasserie Lippe e os mais
preferidos como o Clube dos 100 e a casa de Mme. Monteuil (em Les Halles); casas de
shows (o cabaré Boeuf sur le Toi); a livraria La Maison des Amis des Livres de
Adrienne Monnier; e indicações de marchands confiáveis, como Mr. Level e Ambrosie
Vollard. Ainda nesse período, Oswald assistiu no Teatro do Champs Elysées a uma
peça do amigo Cendrars, visitou a exposição de Arte Negra no Museu de Artes
Decorativas e apreciou a apresentação das peças “Les Mariés de la Tour Eiffel”, de
Jean Cocteau, e “L’Homme et son désir”, de Paul Claudel. (Cf. BOAVENTURA, 1995, p.
90).
Percebemos,
depois
de
explicitados
alguns
dos
roteiros
culturais
e
gastronômicos de Oswald e Tarsila em Paris, que o casal encontrou, na França, uma
tradição moderna estabelecida prestes a ser oficializada, contando com uma infraestrutura de mercado em plena atividade. A mercantilização da arte tinha tomado
proporções tentaculares e complexas naquele meio. O que assegurava o sustento e a
independência à própria vanguarda funcionava, ao mesmo tempo, como agente de
conflito e contra-ofensiva. Com isso, Oswald e Tarsila puderam perceber que, ao lado
da discussão formal da estética moderna, existia uma cultura modernista francesa em
curso arrefecida, conservadora e comercial. Então, o que se coloca em pauta não é
exatamente o novo, mas a busca, no antigo, da sensação do novo.
A modernidade que se inscrevia em 23, na França, obrigou tanto os modernistas
quanto os vanguardistas a operarem uma apropriação estética no contexto das
envelhecidas rupturas modernas. A modernidade deixava de ser o sinônimo de
progresso técnico e, agora, passava a incorporar os componentes regressivos deste
último. A Arte Negra, exposta em Paris, foi o termômetro dessa nova conjectura. O
“novo”, agora, é obtido através da absorção de elementos residuais (locais, nacionais
e
tradicionais).
Esses
elementos,
agraciados
por
Irlemar
Chiampi
de
“contramodernidade”, constituem uma nova metáfora para o novo na modernidade. A
“contramodernidade” não significa uma negação do moderno. Trata-se, pois, da “outra
face” do moderno. (Cf. CHIAMPI; MUTRAN, 1993, pp. 23-33). Mas o que explica
exatamente essa pasmaceira e esse arrefecimento no paradigma da modernidade?
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Na primeira década do século XX, Paris esteve no centro das muitas investidas,
no âmbito das artes, consideradas as das mais valiosas e importantes dentro do
empreendimento dos modernistas. Sua conhecida e tradicional fama de foco da cultura
europeia, bem como a boa acolhida dada aos movimentos e tendências boêmicas do
período anterior, atraíram os inovadores, como Diaguiév, Stravinski, os pintores
cubistas, Apollinaire, Gertrude Stein, que se reuniam com frequência em Paris. Esses
autores despertaram no público parisiense, com suas obras e depoimentos críticos, a
consciência da precariedade da civilização, o que se tornaria mais agônica com a
derrocada da Primeira Guerra Mundial.
Com o advento da Primeira Grande Guerra, as transformações culturais mais
ousadas da Paris pré-guerra caem no refluxo, ao mudar de curso. Tida, antes da
guerra, como um dos centros de revolta, durante a era de opróbrios, transformou-se
em foco de conformismo belicoso. O centro da revolta se deslocou rapidamente para a
Suíça. Em Zurique, por exemplo, nasceu, em 1916, o dadaísmo. Esse movimento
artístico só chegaria, em Paris, no ano de 1920. Por volta dessa mesma época, o
dadaísta Tristan Tzara irrompeu na cena literária de Paris, apresentando como poema
um artigo de jornal lido ao som de sinos e guizos. Um pouco mais tarde, em 1924, a
Paris ficaria mais uma vez abalada com o “Manifeste surréaliste”. (Cf. CAHM in
BRADBURY; MCFARLANE, 1989).
O
modernismo
e
a
experimentação
cultural
(e
social)
despertaram
sistematicamente um protesto conservador moderado e um recuo reacionário
extremista, pois o gosto estético do público parisiense era orientado e dominado pelos
cânones do passado. Os cubistas, citando mais um exemplo, acharam mais difícil
conquistar as galerias oficiais de Paris do que as de outras capitais; enquanto que, na
mesma época, havia Picassos pendurados ao lado de Rembrants, em Amsterdã. Para o
público parisiense do pré-guerra, Gide, Apollinaire e Marcel Proust, que é muito de se
estranhar, continuaram sendo considerados figuras marginais, quase desconhecidas
absolutamente. Como se não bastasse, os rebeldes políticos e sociais encontravam
oposição política não só da liderança republicana, como também de uma linha
expressiva e crescente de nacionalismo e xenofobia de direita.
Mesmo os rebeldes pré-1914 não foram inteiramente modernos se avaliarmos
esse período com base na tradição clássica francesa e no período posterior, situado no
contexto da revolução dos dadaístas, dos surrealistas e dos primeiros comunistas.
Stravinski, os cubistas, Apollinaire e Gide não chegaram a romper totalmente como o
passado. Dentro do sistema de valores do classicismo francês, esses rebeldes não
representaram uma ruptura total com o conceito de uma ordem harmoniosa em
questões políticas e culturais, com uma identificação da razão e da lógica como guias
supremos, no entendimento dos mecanismos do universo e das origens da ação
humana, e com uma concepção de homem vista em termos universais. Assim, a
vanguarda parisiense pré-1914 não era completamente revolucionária no sentido em
que o dadaísmo e o surrealismo viriam a ser nos anos posteriores à guerra. O
dadaísmo e o surrealismo, movimentos que representaram em definitivo uma ruptura
com o passado clássico francês, não foram criações autóctones dos franceses ou
ligadas a eles.
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Volume 7 ▪ Número 1
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Ora,
retornando
à
conferência
de
Oswald,
agora
poderemos
melhor
compreender as posições defendidas pelo autor naquele momento e procurar
desvendar o mecanismo pelo qual esse texto oswaldiano adquiriu o status de crítica
modernista no paradigma da modernidade literária brasileira. O texto oswaldiano não
tem a organicidade discursiva habitual. Lendo-o, dá-nos a impressão de uma rápida
coletânea de pensamentos avulsos, sem nexos, independentes entre si e carentes de
melhores detalhamentos. Uma paráfrase textual que obedeça a “linearidade” não
linear de sua conferência seria, portanto, desastrosa, constituindo um vai-e-vem de
recortes de uma cosmovisão altamente fragmentada. Após o comentário rasteiro da
obra de Farias Brito, Oswald pincela autores e obras nacionais. Comenta o pensamento
crítico brasileiro no âmbito da sociologia, da etnografia, da crítica literária, da literatura
propriamente dita e das artes plásticas. Na literatura, Oswald faz uma sinopse que
parte de Basílio da Gama até chegar aos seus contemporâneos (Ronald de Carvalho,
Menotti del Picchia, Pedro Rodrigues de Almeida, Serge Milliet, Ribeiro Couto e Afonso
Schmit).
Ora, a preocupação de Oswald de Andrade, no esforço de se ter uma literatura
nacional, estava em sintonia com a preocupação dos franceses, resistentes às
transformações mais radicais na cultura e na política, em manter a tradição clássica
erigida sob a égide da ordem, da razão e da civilização. Nisso não existe, portanto,
nada de novo; pelo contrário, como vimos nos parágrafos precedentes, a cultura
francesa reagiu às tendências que representavam uma ruptura total com o modelo
clássico francês desde as primeiras manifestações estéticas desse nível em inícios do
século XX. Nesse sentido, o ambiente vivido por Oswald em 1923, em Paris, foi
decisivo para que o escritor paulista cristalizasse seu gosto, ligado à classe dominante,
ainda conservador em literatura, propondo uma literatura brasileira “pós-colonizada”,
mas de alcance restrito socialmente (falamos, sobretudo, do seu manifesto da poesia
pau-brasil) em relação às manifestações literárias anteriores, como Os Sertões, de
Euclides da Cunha, que toma uma dimensão de Brasil e de cultura literária mais
abrangentes, e das Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, que
circunscreve, no meio urbano, a vida social e política de uma classe dominante em um
profundo desajuste ideológico. Em outras palavras, Oswald, em 1923, não assimilou,
na íntegra, as mais ousadas manifestações artísticas, embora ele tivesse fartas
notícias
sobre
elas;
Oswald
assimilou,
com
certeza,
o
preconceito
a
essas
manifestações mais radicais, ao mesmo tempo em que procurou consolidar e apoiar
sua postura conservadora em relação à literatura brasileira com base no discurso da
ala menos progressista francesa, vinculando as raízes de nossa literatura às raízes
clássicas e ao nacionalismo pernicioso e corrosivo em moda na França.
Buscar ou, melhor dizendo, forjar uma origem em literatura, cuja expressão
dominante é a figura de um padre latino, caracteriza, sem dúvida, uma retórica
autoritária e reacionária, que vincula as produções nacionais às clássicas raízes
europeias:
Com efeito, Dom Quixote, atravessando o mar, não esqueceu as suas leituras. Ele
gozava até ao desvairio e as proezas ideais. Assim, pois, a literatura brasileira
acompanha primeiramente uma linha descendente para esbarrar no esforço
nacional de Machado de Assis. É aí que ela começa a ter uma realidade superior ao
mesmo tempo que nacional. (ANDRADE, 1992, p. 31).
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Oswald sugere uma literatura “brasileira”, cuja formação parte da imitação do
classicismo para, em seguida, ser incrementada de elementos e temas nacionais. Para
o autor, a literatura de Machado de Assis representa apenas esse “esforço de
construção
nacional”.
Despojada
de
qualquer
elemento
retórico
em
moldes
tradicionais, a “cultura auditiva” tem um lugar cativo no discurso crítico-ficcional de
Oswald de Andrade. Simplesmente mágica, mítica e dogmática, é a intenção crítica e
literária de Oswald de Andrade. A conferência de Oswald é débil teoricamente, mas o
que a sustenta discursivamente não é a teoria. O que garante o sucesso das aporias
do “bovarista” paulista é, na verdade, o parque industrial de São Paulo e a antiga
aristocracia do café.
O autoritarismo crítico de Oswald de Andrade tem sua parcela também no
discurso ficcional. Há inumeráveis aspectos regressivos que condicionam a literatura
do autor. (Cf. HARDMAN, 2000, pp. 317-332). Num trabalho recente, Francisco Foot
Hardman supera o “diapasão canônico” da crítica sobre Oswald ao destacar, no
Manifesto da poesia Pau-brasil e na subsequente produção poética do autor, o uso do
método naturalista, para a exploração das paisagens do país; o estabelecimento de
uma origem mítica e autêntica (?); o congraçamento final da verdadeira (?)
comunidade nacional; a conversão da barbárie em produto nacional e doméstico; e,
também, um provincianismo piegas e um bairrismo patético, em vez de um diálogo
satírico com a tradição romântica e um racismo mal dissimulado, bastante ao gosto da
elite brasileira. Para o autor de o Trem fantasma, o “diapasão canônico consiste em
atribuir à produção poética oswaldiana, em maior ou menor grau, o dom de conter um
projeto estético e ideológico de um novo nacionalismo, libertário, sincero, natural,
neológico, despojado, simples, alegre, espontâneo, autêntico, ao mesmo tempo
antenado no tempo e no mundo e fincado no solo mais remoto das raízes pátrias”.
(HARDMAN, 2000, p. 320).
Mas o aspecto que nos parece mais corrosivo no discurso ficcional de Oswald de
Andrade está ligado, exatamente, à sua constante política estética e ideológica “de
exclusão da alteridade”:
A exclusão, aqui, não é aquela praticada pelo colonizador ocupante (e que, no
limite, seguiu seu curso predatório e genocida). O gesto, neste caso, é algo mais
sutil, mas não menos grave. Pois concede, aos de baixo, uma pseudovoz, esta será
sempre representada como voz da subalternidade. Vai-se retratando, assim, uma
série de tipos, figuras engraçadas e homens dignos de registro, porque rústicos,
porque somente assim, subalternos, podem ser incorporados sem ameaça à ordem
discursiva que se debruça até essa espécie de etnografia caricatural, passiva, feita
de notações à moda de um turista espirituoso (Kodak excursionista), para que, em
momento seguinte, os primitivos assim redescobertos sejam neutralizados como
objetos meramente decorativos desse verdadeiro sentimento poético. (HARDMAN,
2000, p. 323).
Em face disso, reside, no discurso ficcional de Oswald, aqui nos restringimos à
sua produção poética ligada ao projeto Pau-brasil, um autoritarismo político que, na
ânsia de realizar um programa político-cultural de uma identidade nacional, acabou
comprometendo sua dimensão puramente literária. Com isso, o “modernismo” não
teria passado de um projeto político-cultural de hegemonia que objetivou, sobretudo,
no discurso ficcional refundir um “neonaturalismo” de bases nacionais.
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O uso do adjetivo “pitoresco” em As Religiões no Rio, de Paulo Barreto, ao tentar
sintetizar o valor da obra do escritor carioca, é novamente empregado por Oswald de
Andrade ao tratar da literatura de José de Alencar. O “sentimento de brasileiro”, que já
se anunciava em Basílio da Gama, Gonçalves Dias e José de Alencar, aparece, neste
último, recalcado à própria linguagem, através do uso de um código específico. O
sentido de “pitoresco” em Oswald de Andrade aponta para um conceito de criação
literária que não se exclui do cânone da literatura europeia, mas que opera com
materiais e técnicas não ligadas necessariamente a essa tradição. Por isso, Oswald
elogia a literatura de Alencar, pois o escritor romântico, no romance As minas de
prata, faz uma leitura “brasileira”, portanto, nacional, da tradição clássica literária que
fundou, em nossos trópicos, a busca alegórico-utópica do idealismo latino. O
explorador de minas ilusórias é uma nova alegoria quixotesca para a construção, no
decênio de 60 de 1800, de uma cultura nacional, que se diferençasse da cultura
lusitana. A brasilidade em Alencar residiria, então, numa operação básica: a
incorporação de elementos, temas e formas distintos que fazem reviver, em nossa
literatura, o mito fundador da tradição clássica: a busca da sagração do idealismo
latino.
Entretanto, no meio intrincado do discurso oswaldiano, cheio de vai-e-vens de
pensamentos avulsos e subitamente interrompidos, talvez por extrema ansiedade
natural aos homens cosmopolitas ou por desinteresse mesmo em continuá-los, o autor
brasileiro em Paris, tentando minimizar a importância de Alencar no cenário da
construção de uma identidade nacional, conclui que o prosador romântico se deixou
levar pela idealização falsa em O Guarani e em Iracema. Com isso, José de Alencar
não teria se “libertado da influência de importação que vinha ampliar o cenário dos
novos páramos”. (ANDRADE, 1992, p. 32). O discurso do proeminente autor do
Manifesto Pau-brasil cai, no mesmo parágrafo, em absoluta contradição. Ao rejeitar a
contribuição de Alencar, Oswald recorre à presença do negro no Brasil como elemento
formativo de nossa cultura. Até aí não há nada de extraordinário, mas, no momento
seguinte, tentando justificar essa presença, Oswald se apoia nas manifestações
artísticas europeias cuja incorporação do elemento negro estava em moda: “Isto [o
realismo do negro] observou-se ultimamente nas indústrias decorativas de Dakar, na
estatuária africana, posta em relevo por Picasso, Derain, André Lothe e outros artistas
célebres de Paris, na antologia, tão completa, de Blaise Cendrars”. (ANDRADE, 1992,
p. 32). Assim como, no Romantismo, o índio foi um elemento decorativo de uma
literatura cuja expressão se desejava nacional, Oswald se apropria do elemento negro,
com
base
no
discurso
modernista,
na
construção
de
uma
literatura
dita
verdadeiramente nacional.
A partir dessa tentativa de ruptura com o processo ideológico imanente à
literatura de José de Alencar, Oswald de Andrade instaura um discurso não menos
pernicioso e circunstancial. O silogismo oswaldiano não é perfeito, mas suficiente o
necessário para legitimar um discurso dito modernista e inovador. Na verdade, com
isso, Oswald estabelece o modelo de modernismo brasileiro a ser seguido, ao mesmo
tempo que se distancia indubitavelmente das vanguardas mais ousadas e extremadas
da Europa. Nesse momento, o modernismo brasileiro assume por completo sua feição
conservadora e autoritária no Brasil.
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A cultura e a raça africanas passam a configurar o elemento “pitoresco”
indispensável na construção de uma literatura que se quer nacional. Neste cânone,
proposto por Oswald, são incluídos Machado de Assis, Euclides da Cunha, Inglês de
Sousa, Afrânio Peixoto, Aluísio Azevedo, Júlia Lopes de Almeida, Casimiro de Abreu e
outros. Ao lado dessa corrente, há ainda mais duas: “a das vilas nascentes”, que
incluem Álvares de Azevedo, Alberto de Oliveira, Emílio de Menezes, Raimundo Corrêa,
Francisca Júlia, Félix Pacheco, Cruz e Sousa, Alfonsus Guimarães, Olegário Mariano e
Álvaro Moreyra, e a do “regionalismo”, que incluem Ricardo Gonçalves, Cornélio Pires
e Catulo da Paixão Cearense. Após esse levantamento de autores nacionais, Oswald
conclui que, apesar dos esforços para se ter uma literatura nacional, faltam, ainda,
“uma expressão e uma forma que podem dirigir nossa arte para o apogeu”.
(ANDRADE, 1992, p. 34).
A nova expressão, profetizada por Oswald de Andrade, procura estar em
sintonia com o Brasil contemporâneo, traduzindo “a medida intelectual da sua
mobilização industrial, técnica e agrícola”. Como modelo dessa nova tendência, Oswald
cita Monteiro Lobato e a “geração construtora”, liderada por Paulo Prado, que incluem
Mário de Andrade, Ronald de Carvalho, Guilherme de Almeida, Graça Aranha, Pedro
Rodrigues de Almeida, Serge Milliet, Ribeiro Couto e Afonso Schmidt. Oswald, no
esforço de erigir uma literatura brasileira “autêntica” (?), contou com toda uma
geração de escritores e artistas jovens e talentosos, que poderiam muito bem
encampar a bandeira do modernismo levantada por ele. Embora reconheça o valor
documental da obra de João do Rio, na edificação do modernismo brasileiro, o escritor
paulista em Paris o exclui do cânone da “geração construtora”. Nisso, consiste um
problema para a crítica de João do Rio, ao mesmo tempo em que essa negativa
oswaldiana nos obriga a rever a crítica modernista empreendida por Oswald de
Andrade.
A apreciação crítica de As religiões no Rio como obra de valor documental− que
antecipa a obra de Farias Brito− obriga Oswald a rejeitá-la no paradigma da geração
modernista, pois a obra, mesmo que trazendo à cena brasileira o elemento pitoresco
de que fala Oswald de Andrade, não converte esse elemento em uma matéria artística
que traduz com magnitude o processo de transformação na vida social, cultural e
técnica do país. Em outro momento, Oswald, em comparação com os ensaios críticos
de Monteiro Lobato, refuta novamente a contribuição de João do Rio no palco
modernista de primeira linha e, com ele, a contribuição de muitos outros artistas, tais
como Veiga Miranda, Albertino Moreira, Godofredo Rangel, Waldomiro Silveira, Elísio
de Carvalho, Tomás Lopes e, em parte, Guilherme de Almeida. Diferentemente de
Lobato, esses autores não saíram do “domínio puramente documental”, com exceção
de João do Rio e dos três últimos escritores. Estes, juntamente com João do Rio,
teriam pecado, por sua vez, em ter introduzido, na própria atividade crítica, uma
“visão histórica” (?) tipicamente urbana. Lobato, entretanto, fugiu e reagiu a esse
meio. (ANDRADE, 1992, p. 34).
Essa concepção crítica de que a literatura de João do Rio é essencialmente
urbana foi, também, compartilhada por Mário de Andrade. Mas, ao contrário da
posição adotada por Oswald, que sobrevalorizou a literatura de Lobato em detrimento
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de algumas produções que se distinguiam pela geografia retratada, Mário − em um
artigo dedicado a Machado de Assis, publicado no Diário de Notícias, de junho de 1939
− se mostrou simpático à literatura de João do Rio. Para o autor, João do Rio, bem
como França Júnior, Lima Barreto e mesmo Aluísio de Azevedo (de O Cortiço), soube
captar o sentido da cidade do Rio de Janeiro muito melhor que Machado de Assis. Este,
por força de seu memorialismo, teria ancorado fundo as suas obras no Rio de Janeiro
histórico que viveu, não se preocupando, com isso, em retratar o sentido que a cidade
do Rio assumia para as novas gerações. (ANDRADE, 1993, pp. 57-58).
As religiões no Rio, série de reportagens publicadas em livro, reúnem doze
reportagens sobre as religiões e cultos não oficiais praticados no Rio de Janeiro.
Algumas dessas reportagens, como
“No
mundo
dos feitiços”, “O movimento
evangélico” e “O satanismo”, são mais longas e apresentam subdivisões, o que atesta
que sua publicação na Gazeta de Notícias foi em pequenas parcelas. “No mundo dos
feitiços” há cinco reportagens menores. “Os feiticeiros”, texto que inicia o bloco de
reportagens sobre as religiões e cultos africanos, foram publicados, pela primeira vez,
em 9 de março de 1904, na Gazeta; seguidos de “As iauô”, em 12 de março; “O
feitiço”, em 14 de março; “A casa das almas”, em 16 de março; e, passadas algumas
semanas, “Os novos feitiços de Sanin”, em 29 de março de 1904. Este último trabalho
encerra, portanto, o bloco destinado às religiões e cultos africanos no Brasil. “No
mundo dos feitiços”, João do Rio, com a ajuda de Antônio, negro bastante
familiarizado com a cultura e os costumes africanos no meio carioca, procurou
desvendar a cidade oculta que fervilhava de misticismo e feitiços muitos antes das
estatuárias africanas e da Arte Negra chamarem a atenção de Oswald em Paris.
Oswald, quando alegou que As religiões no Rio trouxeram à literatura brasileira
um “contingente pitoresco”, devia ter em mente, sobretudo, a primeira reportagem
que dá início ao livro. “No mundo dos feitiços” carrega, por força do interesse em
desvendar um pouco dos mistérios da cultura negra no Brasil: um diferencial que
Oswald procurava, em Paris, para a nossa literatura. Bem antes de 23, João do Rio
havia mergulhado na cultura negra brasileira, tomou-a como matéria em suas
reportagens e mostrou ao público letrado um Brasil bastante adverso da cultura oficial.
Contudo, essa investida de João do Rio à cultura negra, “pitoresca” na percepção de
Oswald, não chegou às raias da expressão modernista que Oswald tanto ansiava. O
aspecto “contingente” reservado à obra do escritor carioca no movimento modernista
pode estar ligado sensivelmente a diversos fatores. Dentre esses fatores, podemos
destacar, hipoteticamente, alguns deles, todos marcados em itálico.
Da impossibilidade de João do Rio poder participar ativamente do movimento de
renovação estética e cultural liderado por Oswald de Andrade, em decorrência da
morte prematura do escritor carioca em 1921, momentos antes da Semana de Arte
Moderna. Em entrevista realizada por Mário da Silva Brito, no Jornal de Notícias, em
26 de fevereiro de 1950, Oswald de Andrade (1995, pp. 159-165) disse que, depois de
meio século de literatura, duas lembranças avultaram em sua memória: a de João do
Rio e a de Mário de Andrade. Para o autor, esses escritores foram os homens mais
importantes que já conheceu nesse período. Quanto à citação de Mário, não há
nenhuma surpresa, pois Mário, além de amigo pessoal de Oswald, foi, com ele, um
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declarado paladino do ideário de renovação estética e cultural de São Paulo. Quanto à
lembrança de João do Rio, há nela certo desconforto com relação à crítica tradicional
do autor, que vê a literatura de Oswald como uma espécie de ícone a ser preservado.
Depois desse flagrante, a literatura de Oswald poderia correr o risco de ser maculada,
devendo reconhecer sua origem bastarda, atrelada a um contexto mais à margem.
Não nos é de estranhar, portanto, declarações de que o escritor modernista de São
Paulo estaria levemente equivocado, ao valorizar “figuras dissonantes”, tais como João
do Rio e Emílio de Meneses ao lado dos grandes modernistas de primeira linha.
(BOAVENTURA, 1990, pp. 11-12).
A verdade é que Oswald de Andrade tinha João do Rio em alta conta. Num
momento em que predominava o monopólio Bilac-Coelho Neto, João do Rio
surpreendia Oswald de Andrade com seus contos magníficos, carregados de estilo
decadista e art-nouveau, o que fazia dele um dos raros escritores nacionais que
propunham uma renovação literária em nosso meio artístico em sintonia com os
grandes centros de cultura internacionais. Porém, a morte prematura de João do Rio,
em 1921, um ano antes da eclosão da Semana de Arte Moderna em São Paulo, teria
representado um duro golpe tanto no projeto artístico de João do Rio quanto às
projeções mais imediatas de Oswald que contavam com a participação de João do Rio.
Num outro depoimento de Oswald de Andrade a Mário da Silva Brito, Oswald confessa
que João do Rio era o escritor que melhor poderia encabeçar a Semana de Arte
Moderna: “Não demorará muito o estouro dos futuristas. Já se estão preparando
mesmo para a tomada de posições. Falta-lhes apenas um pouco mais de organização e
um sólido ponto de apoio, um nome ilustre que se disponha a comprometer-se na
aventura. Oswald de Andrade pensa em João do Rio [...]” (BRITO, 1971, p. 133).
Mesmo depois de alguns anos após a morte, João do Rio ainda continuava sendo alvo
da crítica corrosiva de Antônio Torres. João do Rio causava irritação no cronista de
Pasquinhas cariocas por ter pertencido ao grupo de escritores aureolados pela
consagração social, como Afrânio Peixoto e Coelho Neto, e por ter defendido os
interesses lusos no Brasil. Contudo, nem os críticos literários da época e tampouco os
modernistas se manifestaram a respeito. Em 1925, João do Rio era uma figura literária
que não mais chamava a atenção dos modernistas, embora tivesse preparado dois
escritores modernistas de considerável envergadura: Ribeiro Couto e Peregrino Júnior.
(Cf. BROCA, 1991, pp. 354-357).
Da relativa distância que o conjunto da obra de João do Rio estava
cronologicamente das produções modernistas da década de 20. O período de
renovação na vida social e, por extensão, na vida cultural, ocorre, quando falamos da
literatura de João do Rio, nas duas primeiras décadas do século XX, no Rio de Janeiro.
Na primeira década, houve, a partir do início compulsório das reformas urbanas
empreendidas pelo prefeito Pereira Passos, uma série de medidas que visavam atribuir
ao Rio de Janeiro um aspecto moderno, que substituísse o caráter do velho Rio
imperial, bastante parecido com Lisboa, pelo modelo parisiense. Na década seguinte,
assistimos ao ajustamento dessas ordens sociais, o antigo e o novo, na construção de
uma outra e bizarra paisagem: a paisagem terceiro-mundista. Se avaliarmos com
cuidado o conjunto da obra de João do Rio, perceberemos que o autor acompanhou
muito bem o ritmo de modernização no Rio de Janeiro em escala ascendente e, depois
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Volume 7 ▪ Número 1
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de ter assistido ao seu ápice na Belle Époque brasileira, o seu movimento contrário, de
declínio e estagnação no final da década de 20. O processo de modernização, no Rio,
foi lentamente perdendo suas forças mais atávicas e seu efeito entre os indivíduos
que, nesse processo, participaram direta ou indiretamente. A obra de João do Rio,
além de retratar essa aventura tecnológica, é resultado dela.
Nas primeiras produções do autor, presenciamos um escritor eufórico e
internacionalista (um perfeito aprendiz de feiticeiro), preocupado em renovar o
horizonte
estético
de
nossa
literatura,
oferecendo
ao
público
reportagens
extraordinárias e contos maravilhosos que trazem às letras nacionais um estilo novo e
que, no Brasil, não há tradição. Ao lado desse escritor eufórico e esnobe, existe
também o grande e talentoso cronista melancólico que registra ora ansiosamente, ora
pacientemente, a ambiguidade de vozes e atribulações desse período de constantes
transformações. Por fim, nas últimas produções de João do Rio, seja no conto, na
crônica ou, sobretudo, no romance A correspondência de uma estação de cura,
assistimos a um escritor completamente avesso à alegria, bastante apático e cético.
Neste último João do Rio, já desiludido com o Rio, o autor, tanto criticado pela
superficialidade com que travava suas personagens, faz com que elas, agora, ganhem
vida
própria,
assumindo
o
papel
de
atores
“absolutamente
figurinos”,
como
ingredientes de uma narrativa que atinge sua criticidade no grau máximo. (Cf.
CARDOSO, 2011).
O que João do Rio viveu em duas décadas, certamente muitos artistas não
viveram em uma vida inteira. Quando Oswald dava os seus primeiros passos na crítica
teatral e na literatura, João do Rio já era considerado um escritor consagrado. Em
1915, quando João do Rio, sob a direção de Adelina Abranches, torna pública tanto no
Rio quanto em São Paulo a sua peça Eva, Oswald faz uma crítica bastante elogiosa à
peça do autor carioca. No ano seguinte, em parceria com Guilherme de Almeida,
Oswald publica as peças Mon coeur balance e Leur âme. De alguma forma, João do Rio
teria contribuído com sua literatura e sua visão crítica na formação literária e, no
mínimo, crítica de Oswald de Andrade. No Rio, Emílio de Menezes sugeriu a sua
apresentação na Escola Dramática, com a concordância de Alberto de Oliveira e João
do Rio. Não nos surpreende, portanto, encontrar um exemplar, hoje raríssimo, das
peças de Oswald e Guilherme de Almeida na biblioteca pessoal de João do Rio, com a
seguinte inscrição: “A João do Rio, le maître du Theâtre Brésilien”, assinada pelos
autores. (BOAVENTURA, 1995, pp. 42-44). Corrido mais um ano, em 1917, João do
Rio publica A correspondência de uma estação de cura.
Dois homens das letras nacionais, opostos, mas justapostos. Quando João do
Rio, a duras penas, atingiu a sua maturidade literária, Oswald aprendia com o mestre
do modernismo no Rio as primeiras lições de arte e tecnologia. Ambos unidos e
motivados por uma mesma razão: o desejo de fazer uma nova literatura no Brasil que
levasse em conta a dinâmica da modernização. Contudo, no momento em que os
primeiros modernistas paulistas e cariocas que vieram a reboque começaram a
aparecer no horizonte técnico-industrial e artístico de São Paulo, a produção literária
de João do Rio já não era mais vista como uma novidade no meio literário brasileiro.
Isso teria contribuído negativamente na avaliação, empreendida por Oswald de
Andrade, da literatura de João do Rio no contexto das inovações estéticas que o
escritor paulista estava propondo.
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Da ignorância de Oswald de Andrade em relação ao discurso ficcional e crítico de
João do Rio. A maior desventura de João do Rio foi ter nascido num meio ainda não
preparado para o receber. Mestre da graça intelectual, ironia e sátira misturadas, e
mestre da arte de transformar o jornal em obra de arte, o escritor carioca foi também
filósofo leviano e formulador sarcástico das pequenas sínteses históricas de nosso
tempo. (AMADO, 1971, pp. 28-30). João do Rio foi, para Gilberto Amado, o jornalista
mais venturoso que desabrochou num homem de letras. Autor de uma vastíssima obra
que compreende crônicas, reportagens, romances, peças de teatro e contos, Paulo
Barreto também escreveu conferências reunidas intitulando Psicologia Urbana. O
contrato para a publicação da obra foi firmado em dezembro de 1910 com a Casa
Garnier. Nele incluía, além da publicação de Psicologia Urbana, mais três obras. A
saber: Vida Vertiginosa, Portugal d’Agora: Lisboa antes da República e A Profissão de
Jacques Pedreira. (Cf. MAGALHÃES JUNIOR, 1978. p. 144).
O escritor, a convite de Olavo Bilac e Medeiros e Albuquerque, entrou na onda
de conferências em fins de 1905 com uma conferência sobre “O Amor carioca”. E fez
depois mais três: “O Figurino”, “O Flirt” e “A Delícia de Mentir”. Ao contratar João do
Rio à publicação do livro Psicologia Urbana, a voga das palestras literárias tinha
chegado, contudo, ao fim. (MAGALHÃES JÚNIOR, 1978, pp. 137-138). Há, ainda, em
Psicologia Urbana, o discurso de posse do escritor como acadêmico. Em setembro de
1909 faleceu em Paris o poeta Guimarães Passos. Dois meses depois, João do Rio
lançou-se candidato à cadeira cedida pelo poeta da geração “boêmia”, conseguindo
apoio dos “civilistas” cujo artífice maior era Rui Barbosa, o então presidente da
Academia Brasileira de Letras. Além do apoio dos civilistas, João do Rio contava
também com a simpatia de Medeiros e Albuquerque. Resultado: em sete de maio de
1910, a Academia elegeu João do Rio, depois de duas tentativas frustradas, como
membro dessa instituição. (Cf. RODRIGUES, 1996, pp. 103-106). Mas foi em 12 de
agosto deste mesmo ano que aconteceu a cerimônia de posse do escritor, no prédio do
silogeu. Para além do esnobismo do cronista, o discurso de posse como acadêmico
esteve em perfeita sintonia com as ideias do autor desde os tempos de A Cidade do
Rio. Para João do Rio, a arte devia estar, queiramos ou não, de algum modo vinculada
à época em que foi concebida. (Cf. RODRIGUES, 1996, pp. 116-117). É por isso,
talvez, que Gilberto Amado, em 1911, diz que Psicologia Urbana, bem como outros
livros do autor, está cheio do encanto e da personalidade particularíssima do autor.
(AMADO, 1971, p. 30).
As palavras de Gilberto Amado não foram, contudo, suficientes para legitimar o
discurso ficcional e crítico de João do Rio. Relendo o “Discurso de recepção”,
encontramos nele mais do que elementos que fundamentam a sua trajetória ficcional,
os pressupostos críticos que podem ligar o seu discurso crítico ao conjunto de
escritores e artistas ligados ao projeto modernista de Oswald de Andrade. Muitos
autores, que nem sequer produziram um discurso ou uma literatura “que sabem ser”
modernistas, foram incorporados ao cânone modernista estabelecido por Oswald de
Andrade em troca de apoio à sua empresa. Estes são lembrados ainda hoje, em nossa
história literária, como escritores representativos desse período, enquanto que, João
do Rio, o escritor que mais se envolveu com o discurso modernista num tempo em que
predominava um gosto literário completamente morno e apático, não aparecia ainda
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recentemente nos livros de história literária, quando aparece é visto também como
uma figura literária menor, típico representante do gosto literário comum do período
“pré-modernista”, que pouco contribuiu para a renovação de nossa literatura. Enfim,
João do Rio teria sido excluído do cânone modernista da literatura brasileira,
estabelecido por Oswald de Andrade, não por demonstrar uma incompatibilidade
ficcional e crítica ao projeto de renovação cultural e artística de São Paulo, mas porque
a informação de sua literatura e do seu discurso crítico teriam chegado a ele de
maneira tendenciosa ou turva demais. Embora Oswald admirasse João do Rio,
chegando a ver nele o homem ilustre e bem relacionado politicamente que garantiria o
sucesso da Semana de Arte Moderna em São Paulo, o escritor paulista demonstrava
um profundo desconhecimento acerca da modernidade da literatura e do discurso
crítico que João do Rio tão habilmente empregava.
Da crença de que o domínio do escritor carioca se restringia tão-somente à vida
política e cultural do Rio de Janeiro. Embora o berço e quase a totalidade da obra de
João do Rio demarque geograficamente a cidade do Rio de Janeiro, o escritor carioca
não foi um escritor exclusivamente do Rio de Janeiro. Na sua vasta obra, há crônicas,
reportagens, um romance e uma peça teatral que não são exatamente ambientados
no Rio de Janeiro. João do Rio retratou os páramos mineiros em Os dias passam [...],
publicou um artigo no periódico argentino El País, cobriu, como correspondente
brasileiro no Tribunal de Haia, o término da Primeira Guerra em “Na conferência da
Paz”, retratou a riqueza do interior paulista em Eva, encantou-se com Lisboa em
Portugal d’agora e em Fados, canções e danças de Portugal, e, ao engajar-se na
campanha civilista, visitou a cidade de São Paulo, deixando marcas indeléveis que
confirmam o seu crescente envolvimento com a cidade bandeirante. João não foi só do
Rio, foi também João da Europa, João da Argentina, João de Minas, João de Ribeirão
Preto e, por que não, João da Garoa.
Em se tratando da visita de João do Rio à cidade de São Paulo, em 1915,
podemos lembrar a sua triunfal chegada à cidade num noturno de luxo, da sua
hospedagem no elegante hotel Rôtisserie Sportsman e das suas conferências
proferidas no teatro Santana, em benefício do Centro Acadêmico 11 de agosto, da
Faculdade de Direito. (Cf. BROCA, 1991, pp. 328; Cf. RODRIGUES, 1996, p. 119).
Mesmo depois de alguns anos após sua morte, João do Rio ainda sobrevive na
memória paulistana através da reedição de uma de suas crônicas pelas oficinas
gráficas do Jornal do Brasil, carregada de nacionalismo e amor à civilização paulista:
“São Paulo é o único Estado que absorveu a imigração e não foi por ela absorvido”.
(RIO, 1929, p. 5).
Isso posto, João do Rio participou, como substrato, do modernismo paulista. O
alcance de sua literatura não deve ficar somente restrito à cidade do Rio, como
homologia de seu pseudônimo. João do Rio não teria recusado o convite de Oswald
para integrar o clube dos seletos, pois não havia, por parte de João do Rio, qualquer
objeção. Momentos antes da Semana, João do Rio havia fundado, no Rio de Janeiro, o
jornal A Pátria; isso significa, como o próprio nome do jornal sugere, que o escritor
estava no mesmo caudilho nacionalista por que passavam os “meninos” de São Paulo.
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Da necessidade de ocultar sobremaneira as realizações e produções artísticas
mais extremadas que precediam ou corriam em paralelo ao modernismo paulista,
para, com isso, não arrefecer o impacto desse movimento no âmbito político das letras
nacionais. Para iniciar essa discussão, gostaria de lembrar um chiste de Mestre Cook,
publicado na coluna “Pratos leves”, em A Gazeta, de São Paulo, de 9 de fevereiro de
1922: “A comissão convidou vários literatos do Rio para tomarem parte na festa. / 
Não concordamos. A Semana devia ser rigorosamente paulista. E literatos− louvado
seja Deus!− não nos faltam. Há-os até demais”. (COOK, 2000, p. 357). A empresa
modernista assumia posições hegemônicas, como podemos perceber através da leitura
do chiste de Mestre Cook. Porém, sustentar um movimento artístico tipicamente
regional, circunscrito à paisagem de São Paulo e sob a ajuda divina (o que fere e
questiona em demasia o espírito modernista do grupo), como um evento puro de
proporções nacionais e simplesmente sem a participação de mais ninguém do âmbito
da cultura nacional, soaria como algo profundamente tendencioso e falso. Quando
Oswald inclui Graça Aranha e outros artistas do Rio, o escritor paulista tenta, na
verdade, vender a ideia da amplitude do movimento na cultura nacional. Com isso,
Oswald justifica e naturaliza uma filosofia estética que, em última análise, diz respeito
tão-somente à vida de um grupo restrito à geografia de São Paulo, vendida como
produto representativo de toda a cultura nacional que se quer distinta do futurismo e
do “provincianismo”: “Depois de Graça Aranha ter dado a sua Estética da Vida,
colossal golpe nos arraiais frouxos do passadismo em com a atuação sempre
admirável e aliás tradicional de Ronald de Carvalho e seus amigos, o movimento não
pode mais ser chamado futurista nem paulista. Trata-se de um movimento nacional,
violento e triunfante e no qual se empenham reputações formidáveis”. (ANDRADE,
2000, p. 108).
Podemos aventar, finalmente, que a participação de João do Rio muito
incomodaria a elite paulistana, pois sua presença redimensionaria o horizonte estéticopolítico, ligado à indústria e à agricultura paulistas, para uma possível onda de
lusitanismos. É sabido, pois, que João do Rio, em parceria com João de Barros,
mantinham uma revista binacional, chamada Atlântida, que tinha o propósito de
estreitar os laços culturais entre Brasil e Portugal. Isso, de alguma maneira, poderia
não só mudar o curso do movimento de renovação estética de São Paulo, como,
também, poderia arrefecer sensivelmente o alcance político do modernismo paulista.
Não nos é de estranhar, portanto, o elogio, apesar das divergências estéticas, de
Oswald de Andrade à literatura de Monteiro Lobato e o constante assédio para que o
autor de O Jeca Tatu fizesse parte da Semana de Arte Moderna. Lobato era um ótimo
patrocinador! Com a recusa de Lobato, Oswald providenciou, em última hora, um
outro representante. Mesmo do Rio, Graça Aranha tinha ótimas relações políticas.
Considerações finais
A trajetória desse texto reflexivo acerca de João do Rio e Oswald de Andrade,
tendo como ponto de partida a conferência do escritor paulista, apontou para algumas
conclusões críticas. Reside no discurso ficcional e crítico de Oswald de Andrade um
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autoritarismo na empostação da linguagem, o que nos faz crer que sobrevive em
Oswald a “cultura auditiva” de que fala Luiz Costa Lima; a “cultura auditiva” no
discurso crítico de Oswald está em sintonia com o período remansoso que as artes
atravessam na Paris dos anos 20; a conferência “L’Effort Intellectuel du Brésil
Contemparain” foi analisada com vista no contexto de sua produção e de sua recepção
crítica na historiografia literária brasileira; as negativas oswaldianas à literatura de
João do Rio auxiliaram significativamente para a exclusão do escritor carioca do
projeto de renovação na literatura proposto no período; em decorrência das negativas
de Oswald, faz-se necessário rever o paradigma da modernidade literária paulista com
vistas nas interdições à literatura de João do Rio; e, com base nessas interdições, há
uma série de hipóteses que poderiam ter condicionado tanto o pensamento crítico de
Oswald quanto o dos críticos e escritores contemporâneos de João do Rio.
Dessas interdições, surgiria um senso comum na crítica de João do Rio, como
um escritor menor e superficial, que traduz o “sorriso da sociedade” restrito ao Rio de
Janeiro, ressoando estridentemente nas histórias literárias nacionais. Somente a partir
da década de 80, Flora Süssekind e outros pesquisadores acadêmicos resolveram
reeditar algumas obras de João do Rio e trazer, de volta, a importância da
modernidade literária do escritor, na historiografia literária nacional.
Para finalizar, se é lícito falar em modernismo em Oswald, é lícito igualmente
falar em modernismo em João do Rio. Tanto um e outro têm suas rupturas estéticas, o
que pode caracterizar uma nova técnica artística, porém essas rupturas não chegam a
destruir por completo as velhas concepções e amarras anteriores. Os autores
(re)enquadraram esteticamente suas produções literárias, profundamente mestiças de
nascença e comprometidas até o pescoço com a ideologia oficial da época. Assim
sendo, o modernismo paulista, desejando ainda manter essa premissa, deverá se
acostumar a reconhecer outros modernismos afora.
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Titre
Frontièrs de la critique littéraire brésiliènne: Oswald de Andrade et João do Rio
dans la scène de la nouvelle
Résumé
Comme sujet majeur, cet article va présenter une relecture sur le “modernisme
littéraire” du Brésil ou, autrement dit, sur l’avant-guarde de l’art brésilien du XXe
siècle. En essayant de couper la perspective du canon de ce mouvement littéraire,
nous irons analyser le discours critique de Oswald de Andrade [1890-1954]. Nous
avons l’intention de montrer, dans le texte de Oswald, les aspects moteurs d’une
nouvelle manière de voir et faire littérature et, d’autre façon, les éléments encore
reminiscents d’une culture littéraire archaïque. À partir de la même critique de Oswald,
nous irons discuter, tout de suite et avec patience, la présence de João do Rio [Paulo
Barreto, 1881-1921] dans l’imaginaire de l’écrivain de São Paulo. À la fin, nous irons
mettre en question l’idée de rupture esthétique tout court dans l’art du “modernisme”
brésilien. Nous allons suggérer une compréhension plus élargie sur le mouvement dont
il peut inclure aussi les auteurs descendants de la période.
Mots-clés:
Littérature Brésiliènne du XXe siècle. Oswald de Andrade. João do Rio. Révision
Critique.
Recebido em 17/12/2011. Aprovado em 28/06/2012.
52
La figura del escritor. Dos
generaciones en Argentina
∗
Elizabeth Hutnik
Resumo
Este trabajo repasa las figuras de escritor que circularon entre los autores
argentinos consagrados por lectores y crítica, y cómo esa imagen se proyecta entre
escritores contemporáneos. Para establecer un estado del arte de la figura de escritor,
tomaré planteos teórico-críticos propuestos por Juan José Saer, Ricardo Piglia, David
Viñas y César Aira. Ese entramado de posturas literarias será entretejido con las
visiones de otros escritores argentinos plasmadas en las entrevistas aparecidas en
Encuesta a la literatura argentina contemporánea, publicado por el Centro Editor de
América Latina (1982), y algunos años después, en aquellas llevadas a cabo por
Graciela Speranza en su libro Primera persona (1995). Aquí, una nueva generación de
autores se piensa a sí misma dentro del sistema literario actual, con las influencias y
tradiciones que parecen caracterizarlos. A partir de un corte temporal-generacional,
intentaré relevar los gestos que de lo social se introyectan en el universo literario de
cada escritor perteneciente al corpus de trabajo, utilizando la categoría de ‘estructura
del sentir’ (Williams, 1998).
Palabras clave
Escritor. Estructura del sentir. Experiência. Entrevista.
Sobre el escritor y su práctica
[...] el escritor escribe siempre desde un lugar, y al escribir, escribe al mismo
tiempo ese lugar, porque no se trata de un simple lugar que el escritor ocupa con
su cuerpo, un fragmento del espacio exterior desde cuyo centro el escritor está
contemplándolo, sino de un lugar que está más bien dentro del sujeto y que
impregna, voluntaria o involuntariamente, lo escrito. (SAER, 2004, p. 99)
Saer pone en el centro de la discusión el contexto social, político, cultural y
familiar de producción a partir del que comienza a configurarse el sujeto que escribe.
Ese mismo contexto va a construir a lo largo del proceso de escritura una determinada
figura de escritor, que se posicionará en un espacio también social, político y cultural
específico. Según Saer, la figura que el escritor construye no se reduce a la
∗
Doctoranda en Ciencias Sociales. Universidad de Buenos Aires.
Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v. 7, n. 1, p. 53-65, jan./jun. 2012
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experiencia fáctica (escritor de experiencia vs. escritor de escritorio) sino que se
relaciona con un saber objetivo conjugado con una ignorancia individual, corporal.
El escritor es, antes que nada, hombre de un único discurso, que nace de sus
visiones y que él elabora una y otra vez sin tener en cuenta ni la expectativa de su
audiencia ni los cambios de situación. (SAER, 1999, p. 119).
En este sentido, un escritor no está definido de antemano, sino que se conforma
y adquiere una identidad durante el proceso de escritura, e incluso, en las sucesivas
lecturas que de él se harán. Siguiendo a Musil, Saer confía en ese escritor que se sabe
“un hombre sin atributos” y que crea su propia tradición, aunque más no sea para
luego escribir en contra de ella. Cuando lo entrevistan para el diario uruguayo Brecha
en Francia en 1997 y le preguntan si existe una ética que debe necesariamente
acompañar la estética de un escritor, Saer responde que “Lo principal es que sea un
gran escritor”, -¿No teme pecar de esteticista?, repregunta la periodista, “Yo sólo leo
por placer”.
De acuerdo con Ricardo Piglia, Saer “está situado del otro lado de las fronteras,
en esa tierra de nadie que es el lugar mismo de la literatura” (Piglia, 1996). Él, en
cambio, se dice más acá de ellas. Tanto en Capítulo (Piglia, 1982) y como dirá
nuevamente en Babel (1990), los motivos por los que comienza a escribir tienen que
ver con la lucha del artista con la experiencia. La suya parte de una ausencia, pues
reconoce haber tenido una infancia sin literatura, y esto lo ubica en una tradición. Así,
a los 16 años comenzó a escribir su gran obra: el Diario (obra que pretende póstuma)
cuando “no tenía vida alguna”. En la actualidad, como sugiere Gandolfo, Piglia se ha
convertido en alguien a quien “hay que leer”.
Tampoco se puede no leer a Viñas, quien desde sus inicios parece haber librado
una batalla con la literatura, o por ella. Como dice en Babel (1989), él no cree en una
‘condición de escritor’ sino que su obstinación lo convence de la existencia de una
‘situación’ (de escritor), “algo que por cierto, es bastante insidioso”. El ser escritor se
vuelve para Viñas una circunstancia, un infortunio, una situación inexorable.
Es que es ineludible, salir del silencio, es un privilegio desde cierto punto de vista.
Deja testimonio, hay marcas completas, negro sobre blanco, blanco sobre negro
[...] (SPERANZA, 1995, p. 243).
Al igual que Piglia, para Viñas la producción literaria es el campo de batalla
donde se debate la experiencia y la herencia. Cuando en Capítulo (AAVV, 1982, p.
502) se le pregunta acerca de sus filiaciones con autores argentinos y extranjeros, él
responde “Qué fuentes ni qué influencias ni qué bibliotecas mentales. Confrontaciones.
Tironeos. Pulseadas.” Viñas discute con sus propias certezas y con las de sus lectores,
“escribe al boleo”. Es en esa provocación que Viñas encuentra su propia situación de
escritor.
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Si la literatura no pulsea, es la lata, el aburrimiento. Creo que si se le sustrae eso al
campo literario es, en el mejor de los casos, una especie de práctica canónica, en el
peor sentido de la palabra. Nos convertimos en los monaguillos de una cosa
eclesiástica. Personalmente, me enfrento con las distintas formas del poder.
(SPERANZA, 1995, p. 249).
Otra de las formas de combate es, para César Aira, poseer una “ética de la
invención”. En las clases que dictó en el Centro Rojas, a propósito de la obra de Copi,
Aira propone su propia noción de la figura del escritor:
El trabajo del escritor no puede adoptar otra modalidad que la del infinito. Nunca
dejará de escribir; no importa la brevedad de la vida. (AIRA, 2003, p. 20).
La escritura es una manía, y según dice en estas conferencias, el gesto de
escribir se apodera del hombre y contamina todos sus gestos.
Esta confusión vuelve un monstruo al escritor, un asesino. La mezcla de los gestos,
la eternidad continua que encarna el escritor, funde atrozmente los tiempos. (AIRA,
2003, p. 20).
En este sentido, hombre y escritor son una misma cosa, una única subjetividad
que, por razones prácticas, Aira elige llamar “artista”. “El artista vale por lo que es, no
por lo que hace”. Nuevamente, este autor también parece creer en esa especie de
fatalidad de la práctica escrituraria, dado que la obra de un artista vale menos que él
mismo, “o que la forma de su persona que es su trabajo”, dice Aira hacia el final del
ciclo de sus conferencias. En este punto es interesante trazar algunas relaciones con la
figura de escritor de Borges. Para Aira, Borges era muy consciente de la creación del
mito personal, y con ella mantenía una relación ambigua. La condición necesaria para
la generación de ese mito sólo puede ser producto de la renuncia a crearlo.
El escritor debe ser il miglior fabbro, esto es, aquel que conoce mejor que nadie la
técnica: en este nivel un escritor nunca será suficientemente consciente. (PIGLIA,
1990).
También Piglia atribuye esta inconsciencia casi profesional a Borges, a quien
considera el mejor artesano, pues “conoce como ninguno los límites y las posibilidades
de su arte”.
Borges asume la inconsciencia literaria de la que hablaba Piglia.
Se entendió siempre, de un modo tácito –el mejor modo de entender las cosas- que
yo sería un escritor. […] Yo trato de inmiscuirme lo menos posible en lo que
escribo. Dejo que las cosas se escriban a través de mí o a pesar de mí. Yo trato de
ser un amanuense. (AAVV, 1982, p. 219).
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Figura de escritor
Al trabajar sobre la figura de escritor a partir de un corpus de entrevistas, hay
dos niveles de discurso que se ponen en contacto. Por un lado, nos enfrentamos con lo
que el escritor dice acerca de sí mismo, de su relación con la literatura, con su práctica
y con su obra; pero por otro lado, la mirada de otro interviene en esa configuración de
la identidad: cómo se lo presenta, qué preguntas se le hacen y desde qué medio
periodístico se elige convocarlo. Así, la figura de escritor se define a partir de la propia
mirada, desde un lugar individual y privado; y también a partir de su trascendencia al
espacio de lo público, cuando comienza a configurar el imaginario social de escritor.
En el caso de Encuesta, se conformó un canon de escritores representativos del
sistema literario de un determinado momento y lugar. Las mismas nueve preguntas
fueron realizadas a un grupo de escritores buscando evidenciar “a través de qué
posiciones participaban, en el espacio común de la literatura, escritores que el
consenso del público y la crítica reconoce como contemporáneos.” (SARO;
ALTAMIRANO, 1982, p. 2).
Se les pregunta acerca de sus relaciones con la literatura, la crítica, los lectores,
el dinero y también, respecto del origen de su práctica. Si bien la Encuesta fue
respondida por más de 100 escritores, sólo tomaremos en este análisis una muestra
menor pero representativa de la figura de escritor emergente en la década del 80.
En el caso de Jorge Luis Borges, su circunstancia de escritor aparece ligada a la
fatalidad o el destino. Él parece ser uno de los únicos que liga su vocación literaria a la
predestinación. Julio Cortázar, por su parte, atribuye al azar, la casualidad o la tozudez
su ligazón con la literatura. “Escribir no me parece nada insólito, más bien una manera
de pasar el tiempo.” Cortázar siente “Para empezar: horror a todo profesionalismo,
incluso hoy sigo viéndome como un aficionado, alguien que escribe porque le gusta y
no porque tiene que escribir.” Para él, entonces, la escritura es una “faena”. Para
Bernardo Kordon, en cambio, escribir es un ejercicio.
Me enseñaron a escribir y leer y comencé mi ejercicio de escritor.” Pero luego “Que
escribiera o no, no preocupaba mayormente a mi familia, ni a mis maestros, ni a
los amigos, menos al barrio, la ciudad o el país. Era y sigue siendo algo
rigurosamente personal y nada más. (AAVV, 1982, p. 138).
Borges, Cortázar, Kordon, arman una figura de escritor que no se cuestionan ni
se interesan por la escritura profesional portadora de una función social. Frente a ellos
hay otro grupo que deciden conscientemente convertirse en escritores. Hablando de su
juventud, Adolfo Bioy Casares dice que “En esa época, entre nosotros, es decir en la
Argentina, no se consideraba a la literatura como una profesión.” Pero como su
intención era convertirse en un escritor profesional, Bioy, autodidacta, argumenta:
“[...] quise saber gramática, quise saber versificación, traté de conocer mi oficio, que
nadie me pusiera las comas.”
56
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También para Abelardo Castillo escribir en una decisión, un compromiso del
hombre con la literatura. “Un día, a los 22 años, decidí esto: o era un escritor o me
mataba.” Si bien hay algo de fatalismo en esta disyuntiva, Castillo piensa su elección
en relación con la realidad, y no con las letras, del mismo modo que lo hace Liliana
Heker, para quien escribir significa la posibilidad de fijar y comunicar su visión de
mundo. Para ella “escribir es una forma de militancia y la determinación de ser
escritora me la debo a mí misma.” Ser escritora, y juzgarse tal como dice ella que lo
hace a partir de la publicación de su primer libro es, en su caso, un imperativo.
Entre el azar y el imperativo hay una estación intermedia, en la que se ubican
Isidoro Blaisten y Héctor Tizón. En sus casos, la figura de escritor aparece vinculada a
la necesidad. Blaisten postula una teoría de la necesariedad, pues afirma que los
grandes maestros han escrito siempre por necesidad, por una necesidad interior. En lo
que a él respecta: “Mi propia obra no la pienso, la hago. Y si algo pienso mientras la
hago es con relación a mí, a lo que conozco, a lo que he visto y sufrido y gozado.”
Tizón, por su lado, declarándose un no-escritor profesional, dice que: “No
considero el acto de escribir como un débito conyugal sino como una necesidad íntima
y una aventura [...]”
Ya sea que las figuras de escritor que construyen y representan los
entrevistados anteriores estén ligadas al azar, la necesidad, el destino o a un
imperativo, hay un denominador común que se repite en las respuestas que dan
muchos de ellos a Capítulo, y tiene que ver con un momento de aprendizaje.
Ricardo Piglia,
escribía para tratar de saber qué era escribir: en eso (sólo en eso) ya era un
escritor, es decir, alguien que escribe para saber qué es la literatura. [...] y de ese
modo aprendía a escribir o al menos aprendía a reconocer lo arduo que puede ser
escribir. [...] Digamos que de entrada aprendí que hay que contar una historia
como si se estuviera contando otra. (1982, p. 140).
Antonio Di Benedetto, “los principales autores con quienes me he educado
durante mi aprendizaje de escritor son[...]”
Bernardo Kordon, “Me enseñaron a escribir y leer y comencé mi ejercicio de
escritor.”
Adolfo Bioy Casares, “Soy un autodidacta. Cuando empecé a escribir no sabía
gramática [...]”
Por otro lado, el denominador común, en el caso de las entrevistas de Primera
persona es otro. Si bien las preguntas, inspiradas en Encuesta, giran en torno al
motivo de la escritura, al lector ideal, a la ubicación dentro del campo intelectual, los
comienzos como escritor, y la imagen del mismo; las percepciones que tienen los
escritores más de diez años después, son otras. Como sugieren Gonzalo Aguilar
(1996), Primera persona organiza un mapa, un estado de situación de la narrativa
argentina. En esta nueva referencia, muchos escritores hablan del desarraigo en una
de sus formas posibles: la periferia literaria. Centrándonos en la segunda, la idea de
estar y escribir desde –o fuera de- la periferia de la vida literaria es planteada por
Héctor Tizón quien se dice, nuevamente, “un ejemplar de frontera”.
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-¿Prefiere estar alejado de los círculos literarios?, pregunta Speranza.
-Absolutamente. Eso lo tengo bien claro.[...] Por eso, inclusive, soy enemigo a
muerte de los coloquios que son una especie de certámenes de ingenio en los que
yo no compito por incapacidad. (SPERANZA, 1995, p. 27).
Para Hebe Uhart el pasaje por el proceso editorial es “una mendicidad”.
Posiblemente, es como si no terminara de ver el mundo editorial real de Buenos
Aires. [...] No sé cómo es la forma de moverse y por otra parte demanda mucho
trabajo. Además, quizá tenga algún prejuicio pensando que si uno se está
moviendo mucho no tiene tiempo para escribir. (SPERANZA, 1995, p. 218).
La marginalidad de Hebe Uhart está en línea con la sensación de aislamiento que
plantea Vlady Kociancich.
Tengo la impresión de que mis libros están aislados, de que yo misma estoy
aislada. El hecho de no pertenecer a una estética definida o a una generación
establecida, de que mis libros no se ajusten a ninguna tendencia, inevitablemente
lleva a la sensación de soledad. (SPERANZA, 1995, p. 95).
La soledad y el aislamiento de Kociancich son parte de una política de la
periferia, que la sitúa por fuera de una figura de escritor. De hecho, ella dice no
aprobar lo que hoy se llama ‘perfil’ y antes ‘imagen’ de escritor. Esta autoexclusión
puede deberse tal vez a la percepción que tiene, también, Osvaldo Soriano sobre la
hostilidad de los narradores argentinos.
Creo que falta una suerte de respeto mutuo, de aceptación de la diferencia.
Además, por lo general en este ambiente, la pedantería es sólo comparable a la del
mundo del box. (SPERANZA, 1995, p. 63).
También Saer desde París, como dice Speranza, tiene una distancia saludable
respecto del escenario central de la literatura argentina. Esto puede deberse a que,
como argumenta Elvio Gandolfo, “Buenos Aires es una ciudad que te deja muy
poco en paz […] “Tiene una combinación muy insoportable para mí de
animalidad e intelectualidad perniciosa. Es una ciudad de un cambio de
mundo cada dos o tres años y en alguno de esos cambios se pasa al infierno.”
(Speranza, 1995, p. 170).
Escritores figurados
Como dice Beatriz Sarlo en el Prólogo de Primera persona, los reportajes nos
dan una imagen de escritor. El género entrevista pone en relación dos sujetos cuyos
saberes e intenciones son diferentes. Uno se preocupa por tratar de conseguir la
mayor cantidad de conocimientos posibles, mientras que el otro debe, cuidadosa y
estratégicamente, dosificar la información que luego se hará pública. En esa tensión, a
veces más y otras menos amistosa, se perfilan las bases adecuadas para revelar un
tipo de organización de la creación artística individual, invadida por marcas sociales.
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Esta es una de las ideas que desarrolla Williams (1998), al hablar de la
‘estructura del sentir’1. Sobre el supuesto de que no hay ninguna experiencia colectiva
que no sea individual; ni tampoco hay experiencia subjetiva que no sea a la vez social,
la estructura de sentimientos intenta reconocer las marcas sociales (ya sean prácticas
sociales o un modo específico de vivirlas) presentes en la experiencia individual.
Contra la noción de ideología como doctrina rígida, la estructura del sentir –o
estructura de la experiencia-, está en continua renovación, recreación y modificación,
es una instancia formativa. En este sentido, como sugiere Sarlo en el Prólogo a El
campo y la ciudad (Williams, 2001), el concepto sirve para pensar la emergencia de lo
nuevo, el momento de cambio de las convenciones.
En el caso de las formas literarias ligadas a las experiencias sociales, la
operación involucrada parecería suponer un desborde de las novedades sociales, por lo
que la estructura del sentir desplaza hacia fuera las convenciones conocidas,
resemantizando formas, conceptos y prácticas.
En estos términos, podríamos decir que la estructura de experiencia que surge a
partir de los reportajes aparecidos en Capítulo tiene que ver con el aprendizaje de la
actividad de escritura y el oficio de escritor. Años más tarde, esa estructura de
conciencia y sensibilidad aparece ligada a la ubicación liminal de algunos escritores.
Ahora bien, cómo es que la imagen de escritor (como propone desconfiadamente
Kociancich) perteneciente a una determinada época, cede su lugar a una nueva figura.
La pregunta que guía la lectura de las entrevistas siguientes a ‘escritores jóvenes’ está
relacionada a la emergencia de nuevas formas de conciencia social, hábitos
compartidos y renovadas convenciones; o como diría Williams “experiencias sociales
en solución”, es decir, aquellas formas elusivas no palpables de conciencia social que
son a la vez tan evanescentes como sugiere el ‘sentimiento’, pero sin embargo
muestran una configuración significativa aprehendida en el término ‘estructura’
(Eagleton, 1997, p. 75).
Dentro de lo que es considerado por el mercado editorial como la nueva
narrativa argentina, destacan nombres como Andrés Neuman, Gonzalo Garcés,
Oliverio Coelho, Belén Gache, Damián Tabarovsky, Marcelo Birmajer, Alejandro Parisi,
Esteban Buch, Patricia Suárez, Paola Kaufmann, María Fasce, Sergio Olguín, Mariano
Dupont, Leopoldo Brizuela, Pablo De Santis, Florencia Abbate, Martín Kohan, entre
otros. Todos ellos, escritores argentinos de entre 30 y 40 años, cuentan con más de un
libro publicado por sellos locales. A los fines de este trabajo, me ocuparé de los últimos
cinco escritores mencionados2.
1
2
Raymond Williams propone la noción de ‘estructura de sentimiento’, planteando que “No se
trata solamente de que debamos ir más allá de las creencias sistemáticas y formalmente
sostenidas, aunque siempre debamos incluirlas. Se trata de que estamos interesados en los
significados y valores tal como son vividos y sentidos activamente; y las relaciones existentes
entre ellos [...] Estamos hablando de los elementos característicos de impulso, restricción y
tono; elementos específicamente afectivos de la conciencia y las relaciones, y no sentimiento
contra pensamiento, sino pensamiento tal como es sentido y sentimiento tal como es pensado;
una conciencia práctica de tipo presente.”
El recorte constituye una muestra parcial del campo literario local y es un fragmento de un
trabajo mayo en el que se trabaja con detalle una larga lista de autores. La elección coincide
con un conocimiento mayor de la obra de estos escritores y porque además considero que ellos
constituyen una muestra representativa del grupo.
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Comenzando por Mariano Dupont, Martín Kohan dice que su novela, Aún, “Ha
reconciliado a los premios literarios con la literatura” (Kohan, 2003, p. 62). Un mes
antes, en la misma revista, Dupont es entrevistado para la sección ETC/Libros. Allí
aparece caracterizado por el subtítulo “Premio Emecé de la novela 2003” (como
aparecerá meses después en Soles Digital [2004]). Cuando se le pregunta por el
proceso de escritura de su novela, él responde que en aquel momento pensaba que
“para escribir hay que sufrir mucho. Era un pelotudo fenomenal. [...] Ahora estoy más
relajado, me divierto mucho más a la hora de escribir.” En cuanto a los referentes
literarios, menciona algunos nombres,
Todo muy serio, muy literario. Sentía que lo que hacía era muy importante y no me
daba cuanta de que era uno más entre los miles que andan por ahí escribiendo su
primera novelita. -¿Te sentís un poco al margen de los dictámenes de la moda
literaria?, dice el periodista, -No me siento al margen de nada. De hecho, acabo de
ganar un premio, y eso significa que mi escritura se reconoce, que es digerible.
Sería un ingenuo si pensara que estoy al costado de algo.
En Soles Digital se le pregunta acerca de su producción actual: “Lo que estoy
escribiendo ahora trato de que responda a algo más personal, no tan literario.” En esa
misma nota, Dupont dice haber descubierto que ser escritor no se trata de “hacer
buena letra”, sino de mirar para adentro. Para Dupont escribir debería ser una práctica
desritualizada, de hecho, él aconseja a quienes recién comienzan a escribir “Que lean y
que escriban como quien se da una ducha, como quien se lava lo dientes.”
En un lugar distinto se posiciona Leopoldo Brizuela, a quien la idea de competir
le da terror, pues según dice en La mujer de mi vida (2003, p. 5): “Sigo fuera del
campo.” Para él la escritura constituye una forma de salvación. Brizuela establece una
figura de escritor a partir de una declaración, o al menos una intuición, acerca de su
relación con la escritura como práctica. La escritura entonces, como salvación y como
reservorio de un mundo íntimo, solitario, secreto y angustiante de la infancia; “Soy lo
peor, pero escribo”, dice hacia el final de esta nota. En el caso de una entrevista
previa, aparecida en Clarín (2001), Leopoldo Brizuela aparece referido como el “autor
del premio Clarín de novela” (en otros casos [Brizuela, 2002], se contextualiza a
Brizuela a partir del lugar desde donde responde entrevistas, esto es, desde el Centre
for the Arts de Banff, Alberta, en Canadá, donde trabaja con una beca). Se aclara a
continuación su edad (36 años), y el hecho de que hasta ahora ninguna de sus obras
había logrado la repercusión que se merece. La periodista asegura además que la
consagración que supone ese premio permitirá al autor “obtener finalmente a sus
lectores”. Brizuela se identifica con “una generación que se interesa por el lado
divertido que tiene lo heroico.” Por último, en el Boletín de Madres de Plaza de Mayo
(Brizuela, 1999) la entrevistadora le pregunta por el conflicto con los premios. Brizuela
responde que es la primera que le pregunta sobre ese tema, y que en realidad, el
conflicto no es estrictamente con los premios, sino con el trabajo que uno hace. Para él
la clave está en no entrar “en el mecanismo de que uno está corriendo una
carrera, porque no es así, y no entrar en la idea de que uno compite todo el
tiempo.”
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Pablo De Santis, por su parte, aparece identificado como finalista del Premio
Planeta, en cuatro de las seis entrevistas relevadas. En una de ellas (De Santis, 1998)
se reconoce como un narrador clásico, que armoniza la literatura con otras
inquietudes. “No esgrimo posiciones antiintelectuales, es un campo que valoro
muchísimo. Tampoco tengo mucha experiencia personal con esos simposios.
Fui una sola vez a uno y no me resultó aburrido.” La experiencia parece ser una
constante en las respuestas de De Santis, pues en otra nota (1999) dice que “Con el
tiempo me di cuenta de que la experiencia de uno es fundamental para la
literatura. Y entendí que si bien a la realidad hay que traducirla, convertirla en
otra cosa, es esencial para sonar creíble.”
Posiblemente sea esta la operación aplicada a los personajes asesinos de la obra
de De Santis, que matan por la fama, los premios y la admiración de sus colegas. El
autor argumenta que ese exceso es, para él, la clave para hacer interesante y
entretenido un oficio como el de la escritura, que es “de por sí nada excesivo”. “Traté
de buscar el lado criminal de una vida tan pacífica como es la escritura.” (De Santis,
2001). En esta misma entrevista, De Santis señala que es muy fuerte la marca de lo
argentino en los escritores argentinos, y que es una literatura que con respecto a la
situación del país es marginal, pero que con respecto a la literatura en sí misma es, en
cierto modo, central. Esta idea la retoma en una entrevista para un medio brasilero
(De Santis, 2003) cuando se le pregunta cómo un escritor de su generación tiene que
enfrentarse con autores como Borges y Cortázar.
Quanto mais reduzida é a tradiçao literária de um país, mais difícil é, para o
escritor, dar a sua obra um caráter mais amplo, universal. Mas quando essa
tradiçao é rica e está atravesada por poéticas diferentes e nao contraditórias, o
escritor se vê a salvo de muitas superstiçoes e pode enfrentar os verdadeiros
problemas da escrita.
Opuesta es la opinión de Florencia Abbate respecto de la tradición literaria de los
escritores argentinos. Para ella, la literatura de Borges es muy libresca y aborrece que
sea ese el modelo de escritor. “No tuvimos padres ni madres literarios, hay mucho
vacío, páramo, desierto.” (Abbate, 2004b). En otra nota (2004) Abbate admite que la
cuestión de la genealogía argentina siempre la sintió un poco artificial. Esa
artificialidad, en parte, es atribuida a un complejo de cultura joven. Frente a una
pregunta por la operación de situarse en el centro del campo literario, Abbate reconoce
que “esa clase de operaciones a veces instalan una compulsión a tener que construir
un lugar de enunciación de la tradición argentina”, gesto que ya tildó de artificial.
Desconfía también de la dicotomía ‘literatura de mercado’ frente a ‘literatura de culto’,
pues cree que esa oposición es una de las más dañinas, básicamente, porque el
mercado no debe poseer una connotación moral negativa, dado que es el lugar de
autonomía de los escritores. En cuanto a su propia obra, confiesa encontrar muchos
más materiales en el orden de la experiencia que en la imaginación. La experiencia de
Florencia Abbate aparece atravesada por una década menemista (como ella misma
comenta) “[...] un momento en el que parecía que no pasaba nada; en realidad,
pasaban muchas cosas [...] pero la sensación era como que no pasaba nada. Eso creo
en los escritores mucho desamparo pero a la vez libertad.”
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Dentro de la denominada nueva narrativa local, un nombre que se repite a
menudo es Martín Kohan. En la mayoría de los copetes de sus entrevistas no deja de
mencionarse su edad como dato de importancia a la hora de posicionarlo “en un lugar
central, en el mapa de la literatura joven –si es que tal cartografía existe”. (Kohan,
2002). Para él, los escritores jóvenes no están apareciendo por arte de magia, sino
que
los escritores jóvenes (entre 25 y 40 años) ya estábamos. Quizás lo que está
pasando de un tiempo a esta parte es que se nos empieza a ver un poco más, o un
poco mejor. Es algo que en última instancia depende de la manera en que la crítica
literaria lea y arme los mapas de la literatura presente. Depende de eso, o debería
depender de eso; porque si no depende de la crítica, dependerá de la habilidad de
los agentes literarios o de las dotes que los escritores tengan para la extroversión y
las relaciones públicas.
Siguiendo con este problema, Kohan indica en Ñ que se debe hacer una
distinción entre escribir y publicar. La publicación es un hecho de mercado, mientras
que la escritura puede serlo o no. En su caso, la cuestión no es la publicación –o
incluso el público lector-, sino el tema del lugar que ocupa la escritura. Al igual que
Abbate, Kohan presta atención a la dimensión de los recuerdos que uno pueda tener
desde la experiencia de la vida, para transformarlos en material literario. En cuanto al
material literario de los 90, considera que aún no fue bien leído, pues
no se organizó bien eso que llamamos campo literario, en términos de cómo
funcionan las editoriales, el sistema de lectura, los modos de circulación, los
sistemas de legitimación y la crítica literaria. Creo que eso es algo que la crítica, no
los escritores, tiene aún pendiente: volver sobre los materiales de esos años y ver
qué pasó.
Hay fenómenos marcadamente exteriores que son o se presentan como
realmente íntimas en estos cinco escritores. Todos ellos hablan de la experiencia
propia como algo fundamental. La experiencia de Dupont le enseña que debe escribir
de manera relajada, como quien se da una ducha o se lava los dientes; la de Brizuela,
a través de la escritura, trasforma su mundo privado en una forma de salvación. De
Santis convierte su propia experiencia pacífica en una escritura entretenida y criminal;
Kohan utiliza los recuerdos para producir material literario y Abbate para crear su
propia tradición. En un primer momento, uno tendería a considerar la experiencia
como algo netamente individual, pero en verdad está atravesada por un entramado
social. Paradójicamente, los escritores jóvenes no sienten ni piensan su práctica a
partir de una instancia de aprendizaje, sino que lo que se pone de relieve es la
experiencia de cada uno.
Podríamos pensar el aprendizaje en el sentido de la experiencia adquirida a lo
largo de la vida, y de ese modo vemos por qué los escritores ‘mayores’ hablan de sus
procesos de aprendizaje. Sin embargo, muchos de los autores mencionados en
Capítulo eran también ‘jóvenes’ en el momento en que respondieron aquellas
preguntas. No se trata simplemente de que porque los consagrados tienen más tiempo
vivido pueden evaluar retrospectivamente su historia. Creo, más bien, que se trata de
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una valoración hacia el pasado y los rastros que el tiempo deja en la historia individual
y colectiva de cada sujeto. Que Bioy, Di Benedetto o Piglia estimen y pongan en primer
plano el aprendizaje que han hecho para llegar a ser los escritores que son, supone el
reconocimiento de una tradición anterior y supone también haber transitado por
espacios y momentos en los que no se sabía todo de antemano.
Sea por necesidad, por imperativo profesional o por azar, aquellos escritores
asumen un momento previo (más tarde o más temprano) al devenir de la escritura, es
decir, a la conformación personal de la figura de escritor. En cambio, los
representantes de la llamada nueva narrativa local parecen haber nacido escritores
(recordemos que Martín Kohan dice que los escritores jóvenes no surgen, sino que ya
estaban). Tampoco ponderan una tradición. Para Abbate no hay padres ni madres
literarios, sólo vacío, páramo y desierto; para Dupont la tradición representa algo
“muy, muy serio, muy literario, libresco”. De Santis, en cambio, se reconoce un
narrador clásico, pero no se refiere a la tradición explícitamente; como tampoco lo
hace Brizuela.
Pensando nuevamente en la estructura de sentimiento, la puesta en foco de la
experiencia individual (sin describir demasiado cuál es exactamente) y el rechazo a las
formas de la tradición parece ser el tono de esta nueva promoción intelectual.
Valiéndome todavía de la categoría de Williams, este grupo de escritores se identifican
a sí mismos y se afirman en la búsqueda de una escritura ‘entretenida’, como sugiere
De Santis. Brizuela se interesa en lo divertido de lo heroico y Dupont exalta la
diversión frente al tedio de ‘lo literario’. Este estilo está en consonancia con la relación
que establecen estos escritores con el mercado y con la industria cultural (donde
decididamente se incluye la academia). Los más tibios valoran el campo intelectual,
pero no lo han frecuentado tanto. Los otros no se sienten al margen, ganan premios y
hasta reivindican el mercado por su facultad ‘benéfica’ de generación de autonomía a
los escritores. Kohan, Abbate y Dupont no se sitúan en la periferia del mapa de la
literatura contemporánea, pues ese es un gesto demodé, “una ingenuidad” y “un
complejo de cultura joven”. La constelación de actitudes que conforman a la
“generación de los treinta y pico” y que parecen conferir identidad a esta nueva figura
de escritor consiste en la certeza consagratoria que sienten por publicar, ser
premiados y ser jóvenes. Con todo, Leopoldo Brizuela es el único que “sigue fuera del
campo”.
Si para Macedonio Fernández, un escritor arribista es el que todavía no ha
arribado, los premios, la experiencia propia y la juventud hacen de cuatro de estos
cinco, figuras de escritores arribados. La cuestión sobre arribar es que puede ser un
privilegio de la profesión, un gaje del oficio, o como suponía Thomas Mann, una
maldición.
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Title
The writer’s profile. Two generations in Argentina
Abstract
This paper reviews different writer’s profiles that circulated among Argentine
authors acclaimed by readers and the critic and look into how that profile or image is
projected onto contemporary writers. Theoretical and critical points of view are
consulted, such as Juan José Saer, Ricardo Piglia, David Viñas and César Aira. Theirs
literary postures are related with those of other Argentine writers that appeared in the
book Encuesta a la literature argentina contemporánea, published in 1982 by Centro
Editor de América Latina and with Graciela Speranza’s interviews published in 1995 in
her book Primera persona. In her work, a new generation of writers think themselves
and their place in the contemporary literary system. Taking as a starting point a
temporal and generational cut, I will try to determine the social marks ejected into
each literary universe that belongs to every writer. In doing so, I will use a notion
coined by Raymond Williams (1998): ‘structure of feeling’.
Keywords
Writer. Structure of feeling. Experience. Interview.
Recebido em 23/01/2012. Aprovado em 28/06/2012.
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Los registros de la violencia en La
hija del caníbal de Rosa Montero
Adriana Virginia Bonatto*
Resumen
Este trabajo se propone realizar una lectura de la novela de Rosa Montero,
publicada en 1997, momento en que la “nueva novela histórica” española se
encontraba en ciernes, con el objetivo de localizar los registros de la violencia en los
que la voz de la protagonista y narradora se inscribe, y los modos en que su discurso
se desarrolla a la manera de línea de fuga de algunas configuraciones socio-culturales
y literarias, entendidas como opresivas o restrictivas. En un primer apartado nos
dedicaremos a la revisita que La hija del caníbal hace del género policial negro,
sistema literario que tradicionalmente ha estado a cargo de una voz masculina;
seguidamente nos detendremos en la representación que la novela lleva a cabo de las
relaciones de los espacios de lo público y de lo privado, entendidos como
configuraciones socio-culturales atravesadas por prerrogativas violentas o que han
operado históricamente de una manera opresiva sobre los sujetos a partir de ellos
constituidos; y por último mencionaremos algunos aspectos de la narración en los que
se da cuenta de zonas poco transitadas por el discurso literario, desde la convicción de
que éste también es un espacio constreñido por tradiciones y jerarquías que en buena
medida han limitado sus posibilidades de dar cuenta de sujetos y vivencias alternos.
Palabras clave:
La hija del canibal. Nueva novela histórica. Gênero. Literatura policial negra.
Violência.
En el último capítulo de Marcos de guerra: las vidas lloradas, Judith Butler
distingue entre dos tipos de comportamientos subjetivos en respuesta a la violencia: el
del sujeto herido que responde dando legitimidad moral a conductas dañinas y el del
sujeto dañado que, aunque enfurecido, “intenta limitar el daño que causa y sólo puede
hacerlo mediante una lucha activa con o contra la agresión” (2010, p. 236). La
argumentación de Butler aquí desarrollada apunta a privilegiar la segunda alternativa,
es decir, la de la no violencia, aun cuando la vida social está impregnada de las
perspectivas de la agresión: la lucha contra la violencia, de hecho, parte de la
aceptación de que la violencia es una posibilidad que el sujeto tiene.
*
Doctoranda en Letras. Universidad Nacional de La Plata (Argentina). Centro Interdisciplinario de
Investigaciones en Género (CINIG) / Instituto de Investigaciones en Humanidades y Ciencias
Sociales (UNLP - CONICET). Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación (FaHCE).
Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v. 7, n. 1, p. 67-81, jan./jun. 2012
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El debate sobre la legitimidad de la violencia es uno de los puntos sobre los que
la literatura española contemporánea sobre la Guerra civil se ha pronunciado con
especial interés, participando de una de las preocupaciones políticas y sociales de
mayor envergadura en la última década. En los últimos años, la violencia del trienio
1936-1939 y de los primeros años del franquismo –los más crueles en represalias y
fusilamientos- ha sido primera plana de periódicos a partir de la apertura en distintos
puntos de la Península de las fosas comunes, hecho que no solamente permitió a los
descendientes de los fusilados enterrar dignamente a sus padres o abuelos y contar,
en ocasiones por primera vez, las historias de unas vidas que por décadas fueron
silenciadas, sino que también incorporó al imaginario colectivo fragmentos de una
memoria histórica injustamente poco explorada. La Ley de Memoria Histórica
promulgada en el 2007 fue el resultado de un largo proceso de concientización que en
buena
medida
tuvo
sus
primeros
antecedentes
en
la
actividad
literaria
de
reconstrucción del pasado traumático que desde fines de la década del noventa en
adelante distintos escritores llevaron a cabo, en consonancia con un redespertar de la
narrativa española a los cánones del realismo literario. La novelística sobre la memoria
coincide en un punto: la constatación de que el presente sufre de una carestía de
crítica histórica y de reflexión generalizada en torno a la Guerra civil (Gómez LópezQuiñones, 2006, p. 93). Los personajes de estas novelas representan, además, el
estrato de los intelectuales descontentos con la falta de atención hacia ese pasado por
parte de una sociedad inmersa en los cánones del capitalismo posmoderno: el
consumo, el ocio y la información. Es por eso que en estas historias se pone en juego
un tipo de conocimiento que no puede de ninguna manera ser inmediato, ni mucho
menos adquirirse a cambio inversiones de capital económico: los personajes se
involucran con testigos directos del pasado (que pueden ser reales o ficticios) y junto a
ellos emprenden la tarea minuciosa de recuperar, mediante procesos detectivescos
que también incluyen la investigación bibliográfica, un tipo de verdad histórica que
comunica aquellos tramos del pasado que gracias a la extensa dictadura franquista y
al pacto de silencio que reinó durante y después de la transición democrática fueron
replegados hacia las esferas de la intimidad o el olvido. Entre las novelas que se
inscriben en lo que podría describirse como cruzada moral contra el olvido
encontramos los best-sellers de Javier Cercas Soldados de Salamina (2001) y de
Carlos Ruiz Zafón La sombra del viento (2001), la novela ensayística Las esquinas del
aire. En busca de Ana María Martínez Sagi (2000) de Juan Manuel de Prada, y las
novelas La noche ciega (2004) de Juana Salabert, Enterrar a los muertos (2005) de
Ignacio Martínez de Pisón, El lápiz del carpintero (1998) de Manuel Rivas y La hija del
caníbal (1997) de Rosa Montero. A pesar de sus lógicas diferencias (provenientes de la
ideología y del proyecto estético de cada autor), este corpus novelístico coincide en un
punto: la intervención política en el debate sobre la legitimidad de la violencia a través
de la recuperación encomiástica de cierta violencia (la del bando republicano) en
contraste con la violencia del fascismo y con el tipo de violencia que protagoniza el
presente, atomizada y desprovista de un gran y unitario proyecto comunitario (Gómez
López-Quiñones, 2006, p. 108).
68
Volume 7 ▪ Número 1
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De las novelas mencionadas, y en relación con la problemática de la violencia,
La hija del caníbal de Rosa Montero merece una especial atención por tres razones: en
primer lugar, debido a que se trata de una de las primeras novelas dedicadas a contar
el pasado en relación con el desarrollo de un personaje que no ha tenido ninguna
vinculación biográfica con los hechos de la Guerra civil y a partir de un proceso de
documentación bibliográfica sobre el pasado, en el marco de lo que de acuerdo con la
descripción de Hans Neuschäfer (2006) denominamos como paradigma epistemológico
en la narrativa de la memoria. En segundo lugar, La hija del caníbal recupera y
rejerarquiza la historia del desarrollo del anarquismo y su participación durante la
Guerra civil y en la resistencia clandestina, en un gesto de legitimación del ideario
ácrata que apunta a rescatarlo del silencio historiográfico y literario. Al mismo tiempo,
La hija del caníbal repone una imagen idealizada y romántica del movimiento anarco
sindicalista y de su legendario líder Buenaventura Durruti. Y, en tercer lugar, la novela
de Rosa Montero, construida en base a la estructura del policial negro, concluye con
una defensa de la alternativa de la no violencia, como respuesta a los distintos
registros de violencia que operan en la historia: la violencia del pasado, la violencia del
presente, y la violencia a partir de la cual el sujeto femenino es definido social y
culturalmente como alterno. Esta última característica de La hija del caníbal no puede
entenderse si no es a partir del lugar desde el que el discurso sobre la violencia se
enuncia, es decir, desde la posición del sujeto femenino cuya voz se inscribe en lo que
Deborah
Tannen
denomina
como
generolecto
femenino,
estilo
discursivo
comprometido con la valoración de las relaciones horizontales e igualitarias, por
encima de las verticales y jerárquicas, que serían las desarrolladas por quienes
adoptan el generolecto masculino (Tannen en Castellanos, 2006, p. 35)
En esta novela, Lucía, una escritora de cuentos infantiles con escaso éxito,
experimenta una crisis profesional y personal que coincide con sus cuarenta años y
con su matrimonio poco estimulante con Ramón, un hombre aparentemente previsible
y aburrido, empleado de un Ministerio. El relato se inicia en el aeropuerto de Barajas,
durante unas vacaciones de fin de año que la pareja decide pasar en Viena. En la
espera al embarque, Ramón desaparece y a partir de entonces la vida de Lucía sufre
un cambio dramático: su marido ha sido secuestrado por una organización delictiva
que se hace llamar “Orgullo Obrero” y todo su trabajo, en más, consistirá en rescatar a
Ramón, en principio orientada por el ineficiente comisario García, y en ir desvelando,
con ayuda de dos acompañantes bastante peculiares, la verdadera actividad de la
estructura mafiosa y ficticia “Orgullo Obrero” y la conexión de su marido y del
comisario García con ésta en el mundo de la corrupción ministerial. Entretanto,
ayudada por la soledad y por la compañía de Félix y Adrián, la protagonista y
narradora emprende un recorrido de autoconocimiento, de evaluación de su vida
matrimonial y de la relación con sus padres, hasta el punto en que la pesquisa policial
sólo será un acompañamiento de su lento despertar femenino. Félix Roble, por su
parte, es un anciano vecino de Lucía que se suma a la aventura policial junto con su
otro vecino Adrián, un joven de veinte años, conformando un trío de investigadores
poco apto para una narración que se desarrolla con la lógica del enigma policial.
69
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La novela trabaja en un plano la narración en primera persona de Lucía y en
otro plano la del octogenario Félix, un antiguo anarquista, compañero ficticio de los
legendarios Durruti y Ascaso, que se acerca a su vecina no solamente para
acompañarla en la investigación sino también para ‘distraerla’ con la narración -en
diferentes episodios de intervención oral capitulados de forma independiente- de su
pasado político, del exilio infantil junto a los Solidarios en México, de su regreso como
torero a España durante la República, de su participación en la lucha anarquista
durante la Guerra civil y en la clandestinidad durante la posguerra, hasta su exilio en
México y su posterior regreso a España para unirse a Margarita, su mujer fallecida
poco antes del encuentro con Lucía, y quien además desconocía por completo el
1
pasado de Félix.
Siguiendo el análisis de Escudero Rodríguez, el primero de los
planos, narrado en una primera persona que a veces alterna con la tercera persona –
aunque en todo momento identificable con Lucía-, puede subdividirse en dos tramas
narrativas: la que se centra en la intriga criminal y la que prioriza sobre las
evocaciones de Lucía acerca de episodios de su vida, sus reflexiones sobre el amor,
sobre la pérdida, el paso del tiempo, el deseo, etcétera (Escudero Rodríguez, 2005, p.
153). Cada uno de los registros narrativos enumerados se corresponde con tres
géneros que la novela interrelaciona, haciéndolos dialogar de una manera novedosa: la
novela policial negra (en la narración en primera persona –y a veces en tercera- de
Lucía), la novela de aprendizaje o Bildungsroman femenino (también narrada por
Lucía) y la novela histórica autobiográfica, desarrollada en los cinco capítulos narrados
por Félix, que recrea los inicios del anarquismo en España hasta su declinar e
invisibilización absoluta en la década del 60.
En este trabajo analizaremos tres aspectos de la novela teniendo en cuenta
diferentes registros de la violencia en los que se inscribe la voz de la protagonista y
narradora principal, y los modos en que su discurso se desarrolla a la manera de línea
de fuga de estas configuraciones socio-culturales y literarias. En un primer apartado
nos dedicaremos a la revisita que La hija del caníbal hace del género policial negro,
sistema literario que tradicionalmente ha estado a cargo de una voz masculina;
seguidamente nos detendremos en la representación que la novela lleva a cabo de las
relaciones de los espacios de lo público y de lo privado, entendidos como
configuraciones socio-culturales atravesadas por prerrogativas violentas o que han
operado históricamente de una manera opresiva sobre los sujetos a partir de ellos
constituidos; y por último mencionaremos algunos aspectos de la narración en los que
se da cuenta de zonas poco transitadas por el discurso literario, desde la convicción de
que éste también es un espacio constreñido por tradiciones y jerarquías que en buena
medida han limitado sus posibilidades de dar cuenta de sujetos y vivencias alternos.
1
Tal como indica en “Unas palabras previas”, Montero utilizó principalmente dos fuentes
bibliográficas para construir la historia ficticia de Félix: el artículo de Marcelo Mendoza-Prado
sobre el periplo de Durruti en América, publicado en El País el 27 de noviembre dde 1994, y el
libro de Hans Magnus Enzensberger El corto verano de la anarquía. Además de estas fuentes,
menciona los dos volúmenes de Los anarquistas editados por Irving Louis Horowitz, los tres de
la Crónica del antifranquismo de Fernando Jáuregui y Pedro Vega, Durruti de Abel Paz,
Anarquismo y revolución en la sociedad rural aragonesa de Julián Casanova y la Historia de
España de Ramón Tamames. En su capítulo dedicado a esta novela, Ana Luengo (2004)
desarrolla un análisis exhaustivo de la reconstrucción ficticia hecha por Montero, prestando
especial atención a los mecanismos de mitificación de la figura de Durruti y de romantización
del ideario anarquista, en buena medida despoblado, en el discurso de Félix, del increíble grado
de violencia que adquirió durante la II República. Desafortunadamente no contamos con el
espacio necesario para desarrollar este punto con mayor detalle.
70
Volume 7 ▪ Número 1
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La hija del caníbal y la novela policial negra
La visita que La hija del caníbal hace al género policial negro no debe
desentenderse de la trayectoria que para mediados de la década del noventa éste
había alcanzado en España, desde la publicación en 1974 de la novela Tatuaje de
Vázquez Montalbán y en 1975 de la célebre La verdad sobre el caso Savolta de
Eduardo Mendoza, las cuales abren la puerta al género desde una modalidad
contemporánea y verdaderamente local, que se despega de la tradición popular o ‘de
kiosco’ tanto de la novela clásica de enigma como de su vertiente negra. Uno de los
fines para los cuales la pesquisa policial ha recibido un reiterado uso es la recuperación
de la memoria, llevada a cabo en la mayoría de las novelas de Vázquez Montalbán (la
más significativa al respecto sería Galíndez de 1990), en las de Mendoza, y en la
utilización que del género hicieron Juan Marsé y Juan Manuel de Prada.
2
Por estas
razones, La hija del caníbal se hace eco de una tradición ya importante y bien
codificada. Una característica, por ejemplo, de la adaptación española de los géneros
policiales es el uso constante de la ironía y del humor, y la experimentación
metaficcional con sus convenciones (Colmeiro, 1994, p. 265), que evidencia su uso
literario al exponer el carácter artificioso del texto y la naturaleza estética de sus
personajes. Este último aspecto, no obstante, se combina con el costado ético de esta
narrativa: realizar una profunda crítica del sistema social, de las instituciones legales y
políticas, de la ambigua moral de quienes acceden al poder, resultando la investigación
detectivesca ser un “desvelamiento de la realidad” (Izquierdo, 2002 p. 120), eje de la
propia novela, ya que las causas del delito en el policial negro son siempre sociales.
3
En la novela de Rosa Montero la narradora reitera, a lo largo de sus reflexiones,
su actitud de distanciamiento irónico hacia los estereotipos del policial negro (“Me veía
4
ahí fuera, enfrente de mí, en esa escena típica de película negra”, 65), al tiempo que
lleva adelante, en la línea de la reelaboración española del género, su juego
metaficticio, principalmente con las indicaciones constantes de que la novela que el
lector está leyendo ha sido escrita por la misma protagonista luego de su proceso de
aprendizaje junto a Félix y a Adrián, en las peripecias hasta dar con su marido
secuestrado. Pero a estas características se añade una que la singulariza: se trata,
además, de una escritura que juega con la estabilidad de los referentes, en un desafío
a la creencia de que es posible fijar mediante la palabra escrita una identidad. La
narradora, por ejemplo, ‘miente’ una y otra vez respecto de sus atributos físicos y de
aspectos relacionados con su profesión y con su relación con Ramón
2
3
4
5
5
y lo hace
Nos referimos a Las esquinas del aire (2000) de de Prada y a Un día volveré (1982) de Marsé.
En adelante, las citas literarias de esta novela se indicarán con el número de página entre
paréntesis, correspondiente a la edición Montero (2006).
Otros ejemplos podrían ser el diálogo que mantiene Lucía con el comisario García (“Se ve que
no tiene usted costumbre de secuestrada” [...] ¿Y usted, tiene costumbre de policía?”, 129), o
la acotación irónica que la narradora hace observando su actitud ante la inminente entrega del
rescate (“-Acabarán robándonos el dinero- gemí al fin, incapaz de aguantar la tensión en un
digno silencio de heroína”, 1997: 160).
“He mentido. Llevo escritas cientos de páginas para este libro y he mentido en ellas casi tantas
veces como en mi propia vida” (394). A continuación la narradora confiesa que, al contrario de
lo que había declarado, nunca pudo vivir con el sueldo de sus libros infantiles, sino que
71
Volume 7 ▪ Número 1
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también al comienzo del relato cuando precisa falsamente la fecha del secuestro de su
marido: “El día que desapareció Ramón no fue el 28 de diciembre, sino el 30; pero me
pareció que esta historia absurda quedaría más redonda si fechaba su comienzo en el
Día de los Inocentes” (19). Este primer equívoco instala el principal de los atributos de
una narración en absoluto fiable en cuanto a las referencias que constituyen los
informantes del relato (Barthes, 1977) y que tiene su sustento en las numerosas
reflexiones sobre la precariedad de la identidad –en este sentido, la afirmación,
también en las primeras páginas, acerca de que “la identidad no es más que el relato
que nos hacemos de nosotros mismos” (19) se convierte en un principio al que la
narración adscribirá una y otra vez. Como afirma Izquierdo, la novela de Montero “no
pretende ser un testimonio realista sino que en todo momento muestra su realidad de
producto literario llegando a ficcionalizarse hasta la autora real de la novela,
relacionándola con la autora ficticia y protagonista del texto” (2002, p. 128); sin
embargo, es bastante clara en la propuesta de Rosa Montero la importancia de la
‘verdad’ como categoría ética que puede de hecho ser expresada por medio de un
discurso no necesariamente conforme a las reglas del realismo literario. Esta postura,
analizada por Escudero Rodríguez (2005), ubica la estética de Montero en un punto en
buena medida distanciado de las corrientes literarias posmodernas, que se trazan
sobre la convicción que, desde el giro lingüístico en adelante, ha venido sosteniendo la
radical inconmensurabilidad entre el discurso y aquello que se denomina ‘realidad’. En
este sentido, la identidad que la escritura de Lucía fija, contribuye a cierta redefinición
del sujeto descentrado y fragmentado posmoderno puesto que se trata de una
identidad precisa pero consciente de su carácter cambiante y precario (Escudero
Rodríguez, 2005), lo que permite, en todo caso, recuperar la coherencia del yo,
aunque éste sea parcial y provisional.6
La restauración del yo va de la mano con la restauración ética de la figura del
anarquista derrotado, operación que La hija del caníbal realiza por medio de un relato
de ficción inspirado en circunstancias históricas. De esta manera, la desconfianza
narrativa forma un continuo con la presencia del discurso oral, a cargo de los capítulos
narrados por Félix, con el cual se asemeja en su precariedad y falta de fiabilidad, y
junto con el cual, principalmente, expone, contra toda voluntad historiográfica o
política, la idea de que la autoridad discursiva es un ideal imposible. Este juego con el
dominio discursivo opone, en uno de los niveles más significativos de la novela, las
verdades a medias del discurso historiográfico con la singularidad de historias como las
de los perdedores de la Guerra civil, quienes, especialmente los anarquistas, no habían
recibido hasta entonces más que esporádicos tratamientos literarios y documentales.
6
7
7
dependía económicamente de Ramón y que el fracaso de su relación matrimonial se debió a
que fue ella quien dejó de desear a su marido, y no tanto a que él fuera un hombre aburrido y
mediocre.
“Y además todo lo que acabo de contar lo he vivido realmente, incluso, o sobre todo, mis
mentiras. Me parece, en fin, que hoy empiezo a reconocerme en el espejo de mi propio
nombre. Se acabaron los juegos en tercera persona: aunque resulte increíble, creo que yo soy
yo” (426).
Es significativo, en contraposición con este silencio historiográfico, que en la misma época en
que se publica La hija del caníbal aparecen las películas Tierra y libertad (1995) de Ken Loach,
dedicada a las Brigadas Internacionales, y Libertarias (1996) de Vicente Aranda, dedicada
especialmente a las milicianas anarquistas. En 1997, además, Alfons Cervera publica su novela
72
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La paridad articulada por Lucía y Félix supone una novedad para la novela policial
negra española y la nueva novela histórica en general: se trata de dos sujetos que,
por razones diferentes pero vinculadas con los privilegios culturales de la voz
masculina y la historiografía escrita, han quedado fuera del registro de lo audible.
Asimismo, junto con las digresiones subjetivas de Lucía, la historia de Félix funciona,
formalmente, como una eficaz estructura retardatoria de interrupción (Colmeiro, 1994,
p. 79), mecanismo que aporta suspenso a la novela policial y que se relaciona con una
de sus características distintivas: la “calculada manipulación informativa del narrador”
(1994: 79) en las novelas de este género. Se observa entonces la singular inscripción
de la novela de Montero en la serie de narrativas sobre la historia reciente, que se
produce mediante la intervención del policial logrando un género híbrido difícilmente
identificable con la tradición que lo respalda.
Encontramos, además, en la trama de La hija del caníbal una serie de soluciones
ante la violencia urbana (elemento indispensable de la serie negra) que poco tienen
que ver con el espíritu de venganza y de cinismo que es característico de este género
(Cf. Colmeiro, 1994, p. 218) y que está vinculado a una de sus características
estructurales: la profunda conexión del código policial negro con el mundo patriarcal.
Colmeiro observa que la vertiente negra en España muestra un punto de vista
patriarcal orientado a exhibir y reafirmar las virtudes típicamente ‘masculinas’ por
excelencia, en el que la mujer es siempre un Otro amenazante (1994, p. 211). De
hecho, ella nunca es protagonista, sino que su papel se reduce al de la arquetípica
femme fatale o a su opuesto, la “Eva maltratada” (1994, p. 211). Desde un punto de
vista similarmente crítico, pero en el marco de los estudios feministas sobre cine, Kaja
Silverman propone interpretar el cine negro y el cine tradicional de Hollywood como
una máquina hecha para extraer sólo un grito de la voz femenina (1998, p. 86).
En estas descripciones se observa algo similar a la función que Lévi-Strauss
había asignado a la mujer en el sistema de parentesco definido en Las estructuras
elementales del parentesco y cuyas premisas patriarcales han sido puestas en cuestión
por Gayle Rubin (1996) y Molina Petit (1994), entre otras. La mujer en ese sistema es
definida como un “signo de algo –o alguien- para alguien” (Molina Petit, 1994, p. 257),
puesto que es el objeto de intercambio que posibilita la alianza entre distintas familias
8
y de esa manera promueve la comunicación , y esa condición, que la iguala a la
función de la palabra, significa que “«se habla» de ella o a través de ella, pero que ella
misma no tiene la capacidad de hablar” (Molina Petit, 1994, p. 258). Con premisas
también sesgadas por un entendimiento patriarcal del lugar de la mujer en el sistema
literario, la mujer en la novela policial negra ha sido definida como algo menos que
palabra: es grito, es amenaza, es objeto-víctima. Sin embargo, en La hija del caníbal
observamos que lejos de la incapacidad lingüística del grito o del confinamiento a la
8
Maquis, que luego inspiraría a la película El silencio roto (2001) de Montxo Armendáriz, y en
1999 Javier Quiñones publica Nada que no seas tú, donde relata la relación entre una joven
estudiante de filología y un viejo luchador anarquista; ese mismo año, David Castillo da a
conocer su novela El cielo del infierno, en la que narra la historia de uno de los últimos
militantes anarquistas a principios de la década del 80.
Puesto que el vínculo que crea gracias a su utilización como objeto de intercambio hace que los
hombres se eleven por encima de la organización biológica para lograr una comunicación social
(Cf. Lévi Strauss 1981: 574).
73
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pura interioridad, y también diferenciándose de la polaridad señalada por Colmeiro, el
resultado del proceso de aprendizaje y de la pesquisa policial desarrollados por Lucía
es un discurso cuidadosamente organizado y controlado en el que se recoge con
minucioso detalle la serie de acontecimientos que favorecieron la autoconscienciación
de la protagonista. En este proceso es fundamental la relación erótica y consciente que
Lucía entabla con su vecino y ayudante veinte años más joven, Adrián. Gracias a ese
vínculo (indispensable componente erótico en el código negro), Lucía autoevalúa su
competencia sexual y reconoce el control sobre su cuerpo y su sexualidad, que se
produce como respuesta al temor a verse arrollada por la atracción hacia el
muchacho.9
Lucía, protagonista femenino de una novela negra, encuentra espacio subjetivo
para distanciarse de la realidad de su marido secuestrado y vincularse mediante el
deseo sexual con otro hombre, en una serie de acciones y de giros subjetivos que
concuerdan irónicamente con el arquetipo de la femme fatale. Pero La hija del caníbal
propone para esta figura un desarrollo positivo que escapa al castigo que la narrativa
tradicional reserva para ella (Cf. Zizek, 2006). Teniendo en cuenta los niveles
narrativos a cargo de Lucía, estamos frente a un collage de novela de aprendizaje o
Bildungsroman femenino y novela policial negra, en el que el primero de los códigos
contamina y tergiversa, gracias a su planteamiento de género, los presupuestos
culturales del segundo.
La función narrativa de Lucía se compara, como queda dicho, con la del
detective de la serie negra, personaje que desde los inicios del género en la década del
30 en Estados Unidos ha sido caracterizado como un ser absolutamente marginal, de
ambigua moral, que siente un profundo rechazo hacia la sociedad y sus instituciones –
basadas en el dominio del más fuerte sobre el más débil- y que por eso adopta una
actitud cínica e irónica, configurándose así como ‘antihéroe’ (Colmeiro, 1994, p. 61),
siempre vulnerable tanto física como moralmente, y no pudiendo nunca restaurar el
orden, como lo hacía el detective clásico. La fórmula de la novela policial negra, de
hecho, rehúye el final feliz y su visión es, en palabras de Colmeiro, “pesimista y
desesperanzadora” (1994, p. 63). La novela de Rosa Montero se inscribe con facilidad
en estas generalidades, como lo demuestra, por ejemplo, la preponderancia del
componente ético que dedica a la crítica del orden social capitalista el espacio central
del discurso narrativo. La ironía de la narradora se reserva a sus apreciaciones sobre lo
que conoce, como sus juicios de valor ante la degradación e ineficacia del sistema
10
policial,
las observaciones desdeñosas sobre el funcionamiento de la ciudad
9
“[...] yo me encontraba en ese territorio fronterizo de la locura, a medias devorada por mi yo
amoroso, tan fuera ya de mí, en efecto, que, pese a ser tímida, y emocionalmente cobarde, y a
sentir un paralizador espanto ante el rechazo, y a estar convencida de que veinte años de
diferencia era una distancia insalvable entre nosotros, empezaba a experimentar la
desasosegante certidumbre de que acabaría metiéndome en la cama con él, o por lo menos
intentándolo” (263).
10
“Fue un despliegue de seguridad digno de Hollywood; pero, a diferencia de las películas, aquí
los agentes del orden despedían tal peste a policías que resultaba imposible ignorar su
presencia” (188),
74
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consumista
11
y las reflexiones agudas acerca del carácter de objeto sexual de la mujer
12
y de su desventajosa situación cultural a los cuarenta y un años . Sin embargo, ante
realidades más complejas, desconocidas para un sujeto dedicado, como ella, al mundo
doméstico y a la literatura infantil, la actitud es de desconcierto y de profunda
decepción. Descubrir, por ejemplo, que el Ministerio en el que su marido es empleado
tiene conexiones con la mafia y las redes internacionales del tráfico de armas,
13
que la
mafia resulta un componente inherente en la estructuración de ciertos organismo
públicos, cuya institución principal es el soborno,
14
por medio de la cual quienes
asumen lugares de responsabilidad pública deben pactar con ella para continuar en sus
cargos,
15
dejan a la protagonista en un estado de profundo desencanto, que no la
conduce hacia una actitud cínica ni hace comprometer su posición moral ante el
mundo. Por el contrario, Lucía emprende una tarea reflexiva que apunta a recuperar
los atributos verdaderamente humanos de los individuos en un mundo de injusticias y
de luchas de poder. En este punto, la presencia y la escucha de Félix es fundamental,
porque son sus relatos y reflexiones los que alimentan el autoconocimiento de la
protagonista y alientan su posicionamiento moral y el de la novela. Prestando atención
a la evolución de su narrativa y a sus intervenciones en la tribuna periodística,
Escudero Rodríguez define la propuesta de Rosa Montero como una “ética de la
esperanza” orientada hacia una suerte de reconstrucción parcial del proyecto de la
modernidad (2005: 163). Esta postura está encarnada en el personaje de Félix,
mentor moral y no solamente portador de un discurso histórico silenciado. Los cinco
capítulos
dedicados
a
la
reconstrucción
autobiográfica
del
antiguo
anarquista
incorporan reflexiones morales y existenciales que luego serán interiorizadas en la
visión del mundo expresada por la narración de Lucía. En la concepción de Félix, el
progreso real de la humanidad no es equiparable a los avances técnicos o a la
capacidad consumista, sino al avance moral de los individuos, en función de un
proyecto que asuma como naturales los valores de verdad, justicia y emancipación,
aceptados por todos (Escudero Rodríguez 2005, p. 163). Estas ideas vienen a reponer
la utopía anarquista, depurada de la violencia y del componente delictivo con la que
ésta ha sido asociada, y deben entenderse en función de la realidad a la que la novela
11
“Los grandes almacenes parecían Sarajevo en el momento más crudo de la guerra” (88),
“Ahora eran la realidad tecnológica y el mercado implacable quienes establecían el orden y el
cotarro” (279).
12
“Yo me teñía las canas de la cabeza, y me daba cremas reafirmantes en el pecho, y tenía
celulitis en las nalgas, y por las noches, encerrada a cal y canto en el cuarto de baño, me
quitaba los malditos dientes para lavarlos” (98).
13
“Por último, y arriba del todo en la cadena del mando, hay que citar a los traficantes de armas,
que son los grandes jefes del sector Diurno y que también son respetados por el sector
Nocturno. Esos tipos son los reyes del mundo, prohombres de la patria que presiden
fundaciones internacionales de caridad y terminan convertidos en estatuas” (283).
14
“Verá, no es más que una hipótesis operativa, pero pongamos que la nombran a usted ministra
de alguno de los ministerios que están implicados en la mafia. [...] [...] llega usted a su nuevo
despacho impregnada de gloria y vanidad. Y ahí, a pie de despacho, la espera un hombrecito
con una cartera negra. [...] Y de ahí empiezan a salir sapos y culebras: qué delincuentes
estamos pagando, quién está robando para nosotros, cómo se reparte el dinero de la
corrupción desde el ministro para abajo. Y cuántos muertos llevamos con todo esto, porque
también hay asesinatos en la cartera”. (353).
15
“Pero a estas alturas ya no cabe duda de que hay una trama negra organizada para robar
dinero del Estado, grandes cantidades de dinero, a través de distintos ministerios” (149).
75
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de Montero apunta de manera harto evidente: la decepcionante actuación del segundo
gobierno socialista en la España de los años noventa.
16
Las enseñanzas del anciano, como figura portadora de una sabiduría anterior al
presente que se reiterará en otras novelas de Montero (como en el personaje Cerebro
de Instrucciones para salvar el mundo, de 2008) se traducen principalmente en el
capítulo final de la novela, narrado por Lucía, cuyas reflexiones aspiran a recuperar la
integridad del yo en sus dimensiones narrativa y moral, aceptando la precariedad de
su construcción y de su coherencia, en una singular articulación de aspectos ilustrados
y posmodernos. Esta postura es subsidiaria de la recuperación de la idea que sostiene
la posibilidad de la restauración del orden, fantasía que operaba exitosamente en la
novela policial clásica de enigma y en la novela decimonónica pero que ahora se
articula en un discurso femenino que rivaliza con la premisa de la violencia y el cinismo
como únicos modos de respuesta que caracterizan el código de la serie negra, según
es elaborado en España durante las décadas del ochenta y del noventa: La empresa
regeneradora
del
protagonista
conlleva
un
fuerte
impulso
de
(auto)-
destrucción y de negatividad, sintomático de la desmoralización del héroe, de
su nihilismo desesperanzado y de su escepticismo ante la posibilidad de
regeneración de la sociedad. El espíritu de justicia deja paso al espíritu de
venganza y al cinismo (Colmeiro, 1994, p. 218).
La violencia del espacio público y del espacio privado.
En el último capítulo de la novela, luego de que la trama policial ha sido
resuelta, y de que Lucía haya logrado exitosamente separarse de su marido (quien le
reveló que el secuestro había sido una tapadera y que él de hecho era parte de una
organización mafiosa que robaba dinero público) y reencontrarse de una manera
saludable con su padre (actor venido a menos, apodado “El caníbal”), se produce una
afirmación del espacio de la intimidad y de la privacidad, que se contrapone con la
centralidad que a lo largo de las más de cuatrocientas páginas del relato ha tenido el
espacio público en el que la protagonista y sus compañeros se han movido y contra
cuya violencia, la violencia sórdida de la democracia posmoderna, habían construido
una suerte de comunidad cívica (Gómez López-Quiñones, 2006, p. 120). La narradora,
en soledad por primera vez, afirma: “recupero mi casa con la misma avidez con la que
un país colonial se independiza del imperio. Ahora soy la princesa de mi sala, la reina
de mi dormitorio y la emperatriz de mis horas” (413). El bienestar de Lucía involucra
también una nueva valoración del mundo a través del prisma de la belleza (“pero,
16
La novela de Montero apunta hacia una crítica de la corrupción ideológica y material en ciertos
miembros del Partido Socialista Obrero Español durante fines de la década del 80 y principios
de los años 90, traducida en la implicación del PSOE con el grupo terrorista GAL, en el uso
ilegal de fondos reservados y en la guerra sucia emprendida contra la ETA (V. Escudero
Rodríguez, 2005 y Torcal Loriente, 2009). Escudero Rodríguez propone pensar la figura de Félix
Roble como una invitación para que los dirigentes del PSOE asuman sus responsabilidades y
sus errores en la lucha contra ETA, puesto que el anarquista octogenario se dedica a pasar
revista a sus errores políticos del pasado, buscando una superación marcada por el
reconocimiento de las propias responsabilidades (2005, p. 162).
76
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como dice Félix, siempre existe la belleza”, 429) y de la aceptación positiva de la
transitoriedad de la existencia humana, a partir de la cual la opción del hedonismo
aparece como la más sabia (“Pasará el resto de mi existencia como un soplo y moriré
[...]. ‘Disfruta de la vida mientras puedas’. De acuerdo, lo intentaré. A pesar de la
pérdida y de la traición [...] y del horror que acecha”, 429), de acuerdo con las
enseñanzas
adquiridas
gracias
al
viejo
Félix.
Estas
opciones
existenciales,
nuevamente, se oponen al problema político y ético que la novela ha venido
planteando. Semejante postura de cierre para un relato en el cual se ha desarrollado
con tanto detalle la lucha de un grupo de individuos contra los retos políticos de un
orden público y político cínico y violento ha sido leída como una contradicción de la
novela, “un auténtico colapso de sus planteamientos anteriores” y un “abandono de la
ideología
de
la
protesta”
(Gómez
López-Quiñones,
2006,
pp.
118
y
120,
respectivamente). Sin embargo, podría aventurarse una explicación que de cuenta de
este regreso triunfal al universo doméstico y privado en la que se tenga en cuenta el
planteamiento de género que la novela lleva a cabo y, en relación con este, la
descripción de la violencia que atraviesa la distinción entre lo público y lo privado, a
partir de la cual también se ha configurado histórica y culturalmente la identidad
femenina.
Una de los aspectos sobre los cuales la narración de Lucía insiste es la posición
de dependencia en la que, como mujer, hija y esposa, se encuentra desde el comienzo
del relato: “y hete aquí que yo me he quedado detenida en el estadio intermedio de
hija y sólo hija, hija para siempre hasta el final” (23), declara en relación con el hecho
de no haber sido madre (circunstancia que de todas formas la habría forzado a
continuar con una vida entregada a lo doméstico). La desaparición súbita del marido,
además, confronta a esta mujer con su realidad de no-posesión de una identidad
independiente al vínculo con el hombre: “me quedé sin saber qué hacer con mi tiempo
y con mi vida” (33). El componente minusvalorado de la configuración identitaria del
sujeto femenino, tal como es planteada por esta novela, queda condensado en la
imagen de la protagonista en el aeropuerto mirando la entrada al retrete masculino de donde su marido no volverá a salir- (escena con la que el relato se abre), como un
espacio tabú. Es esta escena simbólica de la añoranza de participar como el varón del
espacio público la clave para entender uno de los recorridos argumentales de la novela
y su aparentemente paradójica solución: “La desesperación y la inquietud creciente me
dieron fuerzas para romper el tabú de los mingitorios masculinos (territorio prohibido,
sacralizado, ajeno)” (14).
La operación de resignificación del espacio de lo privado puede interpretarse
mejor teniendo en cuenta el análisis de Cristina Molina Petit de la relación entre la
división de los espacios de lo público y de lo privado y el funcionamiento del sistema
de sexo-género. En su Dialéctica feminista de la ilustración (1994), la filósofa española
retoma la vía abierta por Michelle Rosaldo en 1979 en la que se articula la dicotomía
de ambos espacios a través de un código valorativo, es decir, “de un contenido
histórico, variable y cultural” (Molina Petit, 1994, p. 244). El par de opuestos públicoprivado no tiene un contenido fijo, sino que se refiere a roles socialmente más o
menos valorados; según esta perspectiva, cada cultura recorta en el ‘continuum’
77
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de los espacios físicos, prácticos y simbólicos, una parcela para el hombre y la
llama ‘pública’ y otra para la mujer que denomina ‘privada’, asignando a cada
una de estas segmentaciones un contenido que depende de lo que en esa
cultura es más o menos valorado respectivamente (1994, p. 245, en cursiva
en el original).
De esta manera, al espacio de lo público corresponden las actividades valoradas
positivamente, y tenidas por relevantes (el “espacio adecuado para la excelencia
humana”, según Arendt [Molina Petit, 1994, p. 249]), mientras que la esfera ocupada
por las mujeres es la que está privada del reconocimiento de los otros, y es por lo
tanto el espacio de lo irrelevante (1994, p. 249). Estas observaciones nos
proporcionan un marco conceptual adecuado para entender la acción de regreso
triunfal al espacio doméstico que lleva a cabo la protagonista de La hija del caníbal
como operación de resignificación de esa esfera y de liberación del marco violento que
ciñe al sujeto femenino a un ámbito cuyo valor es definido por otros y que existe
también como sombra de otro espacio, reservado para el hombre. Retomando la
definición de la mujer proporcionada por Levi Strauss, podríamos afirmar que el
tránsito de Lucía por la esfera pública, involucrándose en sus dominios políticos, así
como su conocimiento de primera mano de aspectos poco documentados de la historia
política reciente de su país, funcionan como entrenamiento en la autonomía: gracias a
esas experiencias la protagonista aprende a responder a su propio deseo, y logra
desvincularse de su posición de alterna en la organización social, de la opresión que
significa ser para los otros y gracias a que los otros poseen el don de definirla. Gayle
Rubin se refiere a la sexualidad femenina con estas palabras, que podríamos hacer
extensiva a la identidad de la mujer (incluyendo su sexualidad así como otras áreas de
la experiencia): “Desde el punto de vista del sistema, la sexualidad femenina preferible
sería una que responde al deseo de otros, antes que una que desea activamente y
busca una respuesta” (1996, p. 59). El abandono de la comunidad cívica y de la
institución matrimonial, y la consiguiente opción por la soledad implican una
revalorización del espacio privado que de ningún modo debería entenderse como
apolítica. Sin una lectura que tenga en cuenta la problemática de género, cualquier
interpretación de la novela queda incompleta.
Por otro lado, en La hija del caníbal la solución para la mujer no es
exclusivamente este regreso consciente al hogar. La novela propone también la
posibilidad de que el dominio doméstico se apropie del espacio público para corregirlo.
Si bien se trata de un personaje que prácticamente se presenta caricaturizado, la jueza
que lleva adelante el caso del secuestro del marido de Lucía y que será la responsable
de
desmontar
la
maquinaria
corrupta
ministerial
es
una
mujer
que
recorre
precisamente los estadios más ‘domésticos’ del género femenino: el embarazo y la
maternidad. Bajo la mirada irónica de Lucía, el despacho del juzgado con la madre y
su niño acompañados por una gata que también ha dado a luz, se percibe, no
obstante, como única y última alternativa a un orden violento y sin sentido: “una
barquita a la deriva, la lancha en donde se apiñaban los supervivientes de un
naufragio, mujeres y niños primero, acosados por un mar de tiburones” (354-355).
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Los temas del “otro”
En la novela de Rosa Montero, por último, se trabajan dos aspectos humanos
escasamente narrados en la literatura: el climaterio masculino y la adultez femenina
sin hijos. Aunque aparentemente de menor concentración argumental, estos temas
merecen ser al menos mencionados porque demuestran, una vez más, el compromiso
de la escritura de Montero con las minorías sociales y culturales, sobre cuyas vivencias
ha funcionado la violencia del silencio literario.
17
Haciendo referencia al ámbito social en general, Gabriela Castellanos llama la
atención sobre la escasa atención que, incluso en el ámbito científico, se le ha
prestado al climaterio masculino o andropausia, a diferencia de la proliferación de
discursos, mitos y prescripciones en torno a la menopausia, como fenómeno que viene
a comprobar el supuesto cultural de que “la sexualidad femenina, distinta de la
masculina, domina totalmente a la hembra de la especia humana” o que “la mujer no
es más que sexualidad” (Castellanos 2006, p. 18). Lo cierto es que, contrastando con
este fenómeno, en La hija del caníbal se narra esta experiencia desde el punto de vista
de un anciano que reconoce transitarla y que admite una serie de realidades subjetivas
que incluso aparecen como revelación y que en su tono concuerdan con el carácter
didáctico del relato de su biografía anarquista: -Te voy a dar una buena noticia, Lucía,
porque te veo demasiado obsesionada con el paso del tiempo y con la muerte. La
belleza siempre existe, incluso en el horror, incluso en la vejez. Te pondré un ejemplo:
probablemente no lo sepas, pero los viejos y las viejas amamos hasta el final. Incluso
cuando ya no hay fuerzas ni capacidad para pasar al acto, nos enamoramos del
médico, de la enfermera, de la asistente social. Algunos se burlan de estos
sentimientos terminales, les parecen chistosos y grotescos, pero para mí son amores
tan serios y tan auténticos como cualquier pasión de la juventud (403).
Por último, la protagonista y narradora de esta novela personifica también, una
vez más, otro tipo de subjetividad difusamente retratada en la literatura (cuando no
ha sido objeto de estereotipos como el de ‘la solterona’, de cuño decimonónico): la
mujer adulta sin descendencia. El relato pone en cuestión, además, uno de los
prejuicios culturales más violentos sobre el género femenino: el rechazo que suscita la
esterilidad femenina. Hacia el final de la novela la narradora confiesa la causa de su no
maternidad: un fatídico accidente que acabó con su embarazo de seis meses y con las
posibilidades de volver a concebir: La maté en aquel choque; y perdí el útero, de paso.
Esto último apenas si importó: de todas formas ya había sido una embarazada
bastante mayor. Una primípara añosa, como dicen los médicos con su jerga insultante.
Me había llevado todo ese tiempo llegar a decidirme, vencer esa voz interior que me
aconsejaba que no tuviera hijos, el imperativo de supervivencia que mi madre me
susurró al oído. Y ahora estoy vacía. Así lo dicen las mujeres que han sido sometidas a
la misma operación que yo: Me han vaciado. Como si todo lo que son fuera ese útero.
Los romanos no le otorgaban ningún lugar social a la mujer sin hijos. Y eso está
enterrado en nuestra memoria. Los pueblos que llamamos primitivos no conciben a la
mujer estéril: es una aberración casi asocial. Y eso está enterrado en nuestra memoria
(399).
17
Una muestra de este compromiso la proporcionan las columnas de opinión que la autora
publica en el diario El país desde hace más de tres décadas.
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Tanto esta cita como la anterior apuntan al registro de la complejidad de unas
experiencias que se descentran de los parámetros de la normalidad. Quedan entonces
mencionados como corolario de este análisis de los modos en que La hija del caníbal
deja constancia del funcionamiento de la violencia en la configuración de las filiaciones
literarias y de las identidades subjetivas; operación para cuya descripción las
herramientas conceptuales provenientes de los estudios de género (y que no han sido
tenidos en cuenta por las lecturas críticas que se han hecho de esta novela) se
presentan como las de mayor pertinencia.
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y Kate Young (comps.). Antropología y Feminismo (trad. de Celia Novoa y otras).
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últimos veinte años. En: Jordi Gracia y Domingo Ródenas de Moya (eds.), Más es
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Zizek, Slavoj. David Lynch o el arte del ridículo sublime. En: Lacrimae rerum.
Ensayos sobre cine moderno y ciberespacio, Buenos Aires, Sudamericana, 2006.
Title
The ranges of violence in Rosa Montero’s La hija del caníbal
Abstract
The purpose of this work is to analyze Rosa Montero’s novel, published in 1997,
a moment in which the “new Spanish historic novel” was in its initial steps. Our
objective is to localize the ranges of violence in which the voice of the narrator and
main character, Lucía, is inscribed, and the different ways in which the development of
her discourse grows apart of the social, cultural and literary dominant forms, that are
described in the novel as oppressive and restrictive. In the first part of the article, we
analyze the utilization that La hija del cannibal does of the roman noir genre, a literary
system that has been traditionally used by masculine voices. In the second part, we
describe the representations of the relations between the public and private spheres,
that are seen as social and cultural constructions that have historically worked in an
oppressive way over the individuals. Finally, we mention different points of the
argument in which the novel shows aspects of life that have been little represented by
the literary discourse, aiming to prove that literature is also a space that has limited
the possibilities of representing minority individuals and their stories.
Keywords
La hija del cannibal. Spanish new historic novel. Gender. Roman noir. Violence.
Recebido em 12/12/2011. Aprovado em 28/06/2012.
81
Memória e Documento:
o diário de Gonzaga Duque*
Alexandra Filomena Espindola∗∗
Resumo
Este ensaio procura discutir como a biografia de Gonzaga Duque, disponível no
site oficial da Fundação Casa de Rui Barbosa, estrutura-se e, assim, assemelha-se à
lógica estrutural da narrativa da História Tradicional. Dessa maneira, a biografia
encontra um lugar de legitimidade como um discurso de “verdade”. Para atender ao
objetivo deste texto, procuramos compreender como procedem os gêneros história e
biografia e a relação que mantêm com “realidade” e ficção. Teóricos como Jacques
Rancière, Juan José Saer e Nietzsche nos ajudam a pensar a relação entre “verdade” e
aparência, ficção e não-ficção. Rancière entende que, para ser pensado, o real precisa
ser ficcionado; já Saer destaca um caráter duplo da ficção: o empírico e o imaginário;
e Nietzsche desfaz as fronteiras entre a “realidade” e a “aparência”. Assim, podemos
elaborar uma noção de biografia e história livre do velho ranço do discurso da
“verdade” e pensarmos os objetos de arte sem a preocupação com a oposição ficcional
e não-ficcional.
Palavras-chave
Gonzaga Duque. Memória. Documento. Biografia. Diário.
Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
Do que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.
Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo,
Reparem bem para mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
*
Essas ideias foram apresentadas no Simpósio Linguagem e Cultura: Homenagem aos 40 anos
da Pós-graduação em Linguística, Literatura e Inglês da UFSC, no GT Teoria da Modernidade,
coordenado pelo professor doutor Jorge Wolff.
∗∗
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul
de Santa Catarina (UNISUL), linha de pesquisa Linguagem e Cultura. Bolsista da Fundação de
Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (FAPESC).
Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v. 7, n. 1, p. 83-95, jan./jun. 2012
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Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés –
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma...
Alberto Caeiro
Como podemos conhecer a história de Gonzaga Duque? Qual o meio mais
seguro para entendermos sua trajetória? Através de seus escritos ou de escritos de
outros? Textos literários, ensaios, biografias ou autobiografias? Neste ensaio, optamos
por rever o diário de Gonzaga Duque com o intuito de compreender como suas
memórias constroem documentos de sua vida. Entendemos aqui a memória como
elemento fugidio, como aquilo que a linguagem permite parcialmente afastar o
fantasma do esquecimento; enquanto que o documento reafirma a memória e dela
cria “verdades”. Decidimos pelo diário por que, além de ser um gênero marginal, em
primeira análise, não tem a preocupação com o “dizer a verdade para o outro”.
O século XX retirou o diário da margem, deixou de ver esse gênero como
“menor” e passou a fazer dele objeto de estudo, ou seja, concebeu-o como uma
escrita autobiográfica que “revelava” seu autor e a leitura que este fazia de seu tempo
presente. É o que fez Vera Lins, no livro Gonzaga Duque – a estratégia do francoatirador (1991). A autora reúne algumas passagens do diário de Gonzaga Duque e
analisa como esse escritor concebe a modernidade, a República, a academia de artes,
a literatura, enfim, a visão de mundo desse literato e crítico. No diário, segundo Vera
Lins (1991, p. 45), “suas idéias sobre a arte, a cultura brasileira e o homem se
delineiam, em conflito com os valores de uma ordem que se estabilizava na virada do
século”. No capítulo “Gonzaga Duque como crítico de cultura”, subseção “O lugar do
diário”, Vera Lins define o gênero diário como:
Uma narrativa da modernidade, que privilegia a imanência, os fatos cotidianos,
construindo uma transcendência a partir deles. Nesse país que se urbanizava, a
introspecção agora podia se construir literariamente como diário íntimo e
autobiográfico espiritual, formas possíveis apenas dentro do quadro da nova
secularidade, em que o ego e a personalidade são valorizados. (LINS, 1991, p. 97).
Se a modernidade traz consigo a valorização do “eu”, como sugere Vera Lins,
podemos pensar esse valor não apenas voyerístico, mas como documento; isso porque
o interesse pela vida é intensificado na leitura da sociedade. Mesmo estando ligado
direta ou indiretamente à literatura, o diário, bem como a (auto)biografia, parece ter
mais um compromisso com a história, visto que documenta 1 passagens e impressões
da vida. Não nos é estranho o diário de Gonzaga Duque chamar-se “Meu Jornal”2, já
que a pretensão do jornalismo é registrar, divulgar os “fatos”, ou seja, informar e
mostrar a “verdade”. Como gênero incerto:
1
2
Entendemos que nem mesmo os ditos “documentos” são garantias de “verdades”, isso porque
são construções de linguagem.
É importante destacar que, em francês, jornal (journal) significa gazeta, jornal, diário. Em
inglês, diário (diary) significa diário, agenda.
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o texto do diário joga de uma forma singular com a história, a ficção e a memória,
possibilitando uma apreensão da história pela contramão, o que a narrativa oficial
não conta ou esquece é da literatura como documento da cultura e, ainda, uma
visão pelos bastidores, o texto se construindo, manuscrito, com artifícios à mostra,
espaços vazios, registro gaguejante da intimidade. (LINS, 1991, p. 44).
Antes de adentrarmos no diário de Gonzaga Duque, ainda presos na armadilha
do “discurso da verdade”, apontaremos algumas notas biográficas: Gonzaga Duque
nasceu em 1863 no Rio de Janeiro. Crítico de artes plásticas e crítico cultural, escreveu
também contos, crônicas, ensaios, traduções, um romance e uma biografia. Foi
também diretor da biblioteca nacional, onde trabalhou até sua morte em 1911. Em
vida, Gonzaga Duque publicou A arte brasileira (uma historiografia crítica sobre a
pintura no Brasil); Graves e frívolos (ensaios sobre crítica de arte e crítica social);
Mocidade
Morta
(romance);
Revoluções
brasileiras
(resumos
de
grandes
acontecimentos do país); e vários escritos publicados em periódicos de sua época,
como Kosmos, Gazetinha, Diário do Comércio, O Paíz entre outros. Participou da
primeira roda simbolista carioca, ao lado de Emiliano Perneta, B. Lopes, Cruz e Sousa.
Grande parte dos textos de Gonzaga Duque foi reunida postumamente nos livros:
Contemporâneos, Impressões de um amador, Outras impressões, Horto de Mágoas.
Sua maior estudiosa é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Vera Lins,
quem organizou a maioria dos livros de Gonzaga Duque. Em consequência desse
trabalho, hoje os escritos de Gonzaga Duque estão ganhando cada vez mais
visibilidade, tanto na área de Letras quanto na de Estudos Culturais.
Em 4 de janeiro de 1900, Gonzaga Duque começa a escrever seu diário falando
sobre seu romance Mocidade Morta3, que será seu tema central. No primeiro dia de
escrita, fala sobre o quanto ficou nervoso com os erros que saíram na 1ª edição e o
alento que recebeu de amigos, como Mario Pederneiras e Roberto Mendes. Em vista
desse problema com seu livro, escreve ao editor, Domingos de Magalhães, fazendo a
proposta de comprar os direitos da primeira edição ou de revisá-la. Daí advém outra
preocupação: Gonzaga Duque não tinha como pagar a quantia que ofereceu a
Magalhães. Sai a errata, mas também erros ainda aparecem. Outro ponto que deixou
irritado o autor foi que o editor quis utilizar o verso da página da errata para colocar
anúncios. Além dos problemas com a edição de seu livro, Gonzaga Duque escreve
também como seu romance foi recepcionado. José Veríssimo fez críticas ferrenhas, já
Nestor Victor o elogiou e o comparou a Flaubert.
O início do diário/jornal de Gonzaga Duque é datado (4 de janeiro de 1900) e
apresenta estas palavras inaugurais: “hoje começo o meu JORNAL”4. Em seguida,
declara: “Abro-o com a história da edição da Mocidade Morta. Para os raros que me
leram, esta história valerá por uma página de autobiografia”. Ou seja, aqui e no
romance, Gonzaga Duque registra-se, fala de si. Mesmo com todas as críticas a tipo de
3 O romance Mocidade Morta foi publicado pela primeira vez em 1900. O enredo trata de um
grupo de artistas (Os insubmissos) que, inconformados com a caturrice do ensino acadêmico,
procura fazer uma “arte nova”, sem as amarras da tradição.
4 Todos os fragmentos do diário de Gonzaga Duque foram retirados do livro de Vera Lins.
Gonzaga Duque – a estratégia do franco-atirador (1991).
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inscrição do sujeito, como se sua história pudesse ser linear, aditiva e diacrônica, a
auto(biografia), assim como qualquer registro de si, como o diário, apresenta verdades
criadas, ou melhor, verdades que a língua permite, que a língua obriga, diria Roland
Barthes (2004).
Vera Lins (1991, p. 44) assim entende esses escritos: “o diário de Gonzaga
Duque constrói um movimento de vaivém entre o meio da literatura e o das artes
plásticas, e suas implicações com a política, o jornalismo, a engenharia, o mundo
oficial e burocrático”.
Na escola dos Annales5, houve um movimento dos historiadores em resgatar
diários para remontar a história. De acordo com Peter Burke (1991), Philippe Ariès
rejeitou o caráter quantitativo da história e se preocupou com a relação entre natureza
e cultura, esta que classifica fenômenos naturais, como a infância e a morte. Baseado
em cartas e diários, viu que, na Idade Média, não existia o sentimento de infância, as
crianças eram vistas como miniatura de adultos; somente no século XVII, a infância foi
“descoberta” na França. A sociologia, como disciplina nova, rejeitava os registros sobre
a vida das personalidades, como diários, autobiografias e biografias; Augusto Comte
defendia uma história sem nomes, ou seja, desprezava os detalhes insignificantes da
vida dos personagens; assim como pensava Herbert Spencer, que acreditava que as
biografias dos monarcas, por exemplo, em nada esclareciam a respeito da ciência da
sociedade. Com Lucien Febvre, a biografia ganha nova importância. Febvre deixa a
geografia histórica e se dedica à psicologia histórica, ou melhor, ao estudo das atitudes
coletivas. Ao escrever a biografia de Lutero, Febvre esclarece que não se trata de uma
biografia com fim em si mesma, mas um texto que lhe serviu para questionar a
relação entre o indivíduo e o grupo. Assim, a dita Nova História estava ligada à
biografia histórica, como fizeram Jacques Le Goff e Georges Duby, interessados em
compreender a mentalidade dos grupos. De qualquer maneira, a biografia estava ao
lado da história, ou melhor, como registro de memórias que servem de documentos a
serviço dos historiadores. A escrita de si e a do outro tornaram-se necessária ao
conhecimento histórico.
Documentando-se, ainda no primeiro dia do diário, Gonzaga Duque registra suas
memórias sobre os erros que saíram na 1ª edição de seu romance. Incomodado,
transcreve as palavras que enviou ao editor de seu livro:
Aqui está o que escrevi:
30 de dezembro de 1899.
Ao Domingos de Magalhães.
Como amanhã é domingo e podes ter a necessária calma para meditar, envio à tua
ponderação as seguintes propostas:
5
A Revista Annales foi criada em 1929, na França, por um grupo de historiadores, entre os
principais estavam: Lucien Febvre, Marc Bloch, Fernand Braudel, Georges Duby, Jacques Le
Goff e Emmanuel Le Roy Ladarie. Segundo Peter Burke (1991), os objetivos dessa revista
giravam em torno de: promover uma nova espécie de história; substituir a tradicional narrativa
de acontecimentos por uma história-problema; destacar a história de todas as atividades
humanas e não apenas a história política; criar um vínculo e colaborar com outras disciplinas
86
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1º) Na terça-feira próxima, 4 de janeiro de 1900, eu entregarei ao editor
Magalhães a quantia de Rs. 2:000$000, ficando eu com o direito sobre a edição de
Mocidade Morta, comprometendo-me a inutilizá-la por completo, à vista do editor.
2º) No mesmo dia acima referido comprometo-me a entregar ao editor Magalhães a
quantia de Rs. 1:000$000 (a título de perdas), caso ele convenha em me deixar,
sem a menor despesa da sua parte, retocar a atual edição de Mocidade Morta,
aproveitando o que puder ser conservado e refazendo 22 páginas, cujas colagem
eu tomo sob a minha responsabilidade, assim como as despesas acima apontadas.
Se o editor concordar com este segundo termo da proposta, eu me comprometerei
a entregar-lhe em 15 dias a edição, conformando-me com a proposta que de sua
parte vier sobre os direitos à Mocidade Morta.
Essas propostas resultam da minha firme convicção de que a atual edição (como
está) da Mocidade Morta não pode absolutamente vir a público sob a minha
responsabilidade. E aguardando a sua resposta subscrevo-me etc.
Além disso, Gonzaga Duque também transcreve a resposta de Magalhães à sua
carta:
Ao amigo sr. Gonzaga Duque.
Rio, 31-12-99.
Aceito, ainda que constrangido, a 1ª cláusula da sua proposta:
2:000$000 pela edição de Mocidade Morta e só me convém aceitar a 1ª cláusula
porque não quero por forma alguma lembrar-me mais desta edição. De coração
desejo-lhe boas saídas e melhores entradas de 1900, não só ao amigo como a sua
exma. família.
Essas transcrições podem ser entendidas como uma busca por documentar
“verdade” da história de Gonzaga Duque com seu romance, como se ele, antes que a
memória o fizesse esquecer dados importantes, reunisse provas (documentos) de
como
foi
prejudicado
pelo
editor para, então, levar ao
tribunal
de justiça,
comprovando os problemas com os erros que saíram em seu livro. Talvez por isso
Gonzaga Duque escrevesse de modo a supor um leitor para seu diário, ou ainda, um
interlocutor:
Eis aí o que foi a revisão dessa obra. Naturalmente, dirá o leitor – Como vosmecê
explica, então, aquela bondosa solicitude do editor Magalhães que se lê no
cabeçalho da Errata, onde há um escoimada dos erros...? Eu lhe responderei: Foi
uma... fraqueza... Vexa-me dar-lhe outro nome. O editor opunha-se à Errata, só a
muito custo consegui dele, sob a condição de que não excederia a uma página, a
que ali figura. O verso da página ele queria aproveitar em anúncio!
Um diário íntimo, tradicionalmente, é confidencial, não requer um leitor, talvez
por isso esse diário recebesse o nome de jornal, ou seja, alguém o lerá e o utilizará,
como fez Vera Lins para ler a modernidade e como estamos fazendo para questionar a
“verdade”
das
memórias
documentos.
Gonzaga
Duque
assim
fala sobre
seu
diário/jornal: “lembro-me do que pensava ao dar começo a estas Notas, e este
pretendido e pretensioso Jornal: Eu o irei escrevendo... para alguma coisa há de
servir”. Serve ele de registro de memórias, esparsas, fragmentadas, de sua história
como ele conseguiu apreender e armar; serve, enfim, como documento de sua
história.
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O diário de Gonzaga Duque não é apenas um arquivo de documentos; dentre
um comentário e outro sobre Mocidade Morta, escreve sobre sua vida íntima, sobre
seu dia-a-dia, seus amigos, suas alegrias e angústias, como, por exemplo, a dor que
sentiu quando seu filho Haroldo morre em 10 de janeiro de 1902. Esse episódio o
deixa longe da pena por algum tempo, mas quando volta, assim escreve:
1902 – 21 de fevereiro – Depois da morte do meu Haroldo (10 de janeiro) é a
primeira vez que a minha pena escreve coisa diferente a agradecimento de
condolências. O meu desejo era o de contar essa morte, descrevê-la – em todas
suas minudências, de maneira a comunicar esta eterna agonia, em que vivo, a
quem, heroicamente, se aventurar à leitura destas notas. Mas, sempre que penso
nisso, sinto uma confusão de idéias, um aturdimento igual ao estado de
irracionalidade que caracteriza a convalescença de ferimentos graves. Mais tarde eu
direi o mal que ela me fez. Mais tarde eu escreverei esta tragédia íntima de 24
horas... De 24 horas... Nem sei quantos anos perdi nesse curto espaço de tempo!...
Esses escritos mostram a relação entre o público e o privado num mesmo
espaço, e ainda mais: assim como seu autor híbrido, esse diário faz ver um
entrelaçamento de gêneros, pois nele há escrita de sua intimidade; documentação do
processo da edição de seu romance; crítica à sociedade em que está vivendo; e
análise das artes no Brasil.
Esses registros nos ajudam a montar uma noção, ainda que fragmentada, não
segura, da história da vida de Gonzaga Duque. Ele mesmo concede uma importância
ao conhecimento da vida dos autores; a biografia, para ele, é fonte de conhecimento
seguro e necessário sobre uma personalidade. No dia 24 de dezembro de 1901,
escreve em seu diário sobre uma observação que fizera há meses:
Entre dez senhoras que tocavam composições de Chopin, nenhuma encontrei que
tivesse a menor curiosidade de conhecer a biografia desse delirante sonhador. Das
dez apenas uma sabia que ele era alemão de origem. A maioria nem sequer
cogitava sua naturalidade, nem mesmo tinha certeza de sua época. Uma delas
ainda o supunha vivo!...
Entendemos que a biografia esteja ao lado da história e da literatura, pois a
história tradicional a utiliza como “dados verídicos”, sem problematizar seu caráter de
ficção, visto que o sujeito biografado, mesmo o autobiografado, é um sujeito da
linguagem, em outras palavras, um ser de ficção porque linguagem, o que nos impede
de ter sobre ele certezas absolutas. Desse modo, a biografia, a autobiografia e o diário
podem ser considerados gêneros literários. Saer, em seu texto O conceito de ficção
(2009), afirma que não se pode saber como foi James Joyce, nem por seus biógrafos,
como Gorman e Elmann. Mesmo com a objetividade de Elmann e com a veemência de
Gorman, o que se tem é apenas estilística, pois as fontes de ambos são inseguras
(entrevistas e cartas). Elmann parece assumir o ponto de vista de Joyce, porque entra
na aura do biografado, diz Saer, que completa afirmando que, quando se trata de
acontecimentos exteriores, a biografia pode manter a objetividade, mas quando se
trata de questões interpretativas, o rigor vacila. Nesse ponto, diferentemente de Saer,
acreditamos que até mesmo os “acontecimentos exteriores” são subjetivos, visto que
também exigem interpretação. Sendo linguagem, narrativa, o diário também é um
pressuposto retórico de um gênero literário, assim como a biografia, para Saer.
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Por isso:
a recusa escrupulosa de qualquer elemento fictício não é um critério de verdade.
Uma vez que o próprio conceito de verdade é incerto e sua definição integra
elementos díspares e mesmo contraditórios, é a verdade como objetivo unívoco do
texto e não somente a presença de elementos fictícios o que merece, quando se
trata do gênero biográfico ou autobiográfico, uma discussão minuciosa. (SAER,
2009, p. 1)
Saer questiona o gênero biográfico entendido como não-ficção e a exclusão de
qualquer rastro fictício, porque essa exclusão não garante a veracidade. Mesmo que se
tenha o objetivo de afirmar a “verdade”, há “o obstáculo da autenticidade dos fatos,
dos critérios interpretativos e das turbulências de sentido próprias a toda construção
verbal”. (IDEM).
Nesse viés, pensando o gênero diário, Vera Lins afirma que o diário íntimo é
incerto, por ter “um estatuto ambíguo dentro da literatura, por ser zona de penumbra
– um texto fugidio, do qual não se pode provar a sinceridade e, tão inessencial que
deixa seus autores incertos sobre seu valor”. (LINS, 1991, p. 43). A história tradicional
não procurava o valor de verdade em gêneros como a biografia, tampouco no diário,
entendidos como inverdades ou ficções, mas Saer nos lembra que verdade não é o
contrário de ficção, e, quando se escolhe fazer ficção, não se está dando as costas à
verdade.
Ao dar o salto em direção ao inverificável, a ficção multiplica ao infinito as
possibilidades de tratamento. Não dá as costas a uma suposta realidade objetiva;
muito pelo contrário, mergulha em sua turbulência, desdenhando a atitude ingênua
que consiste em pretender saber de antemão como é essa realidade. Não é uma
claudicação ante tal ou qual ética da verdade, mas uma busca de uma um pouco
menos rudimentar. (SAER, 2009, p. 2).
Ficção não é a reivindicação do falso, segundo Saer. Não é para confundir o
leitor que se faz ficção, mas para assinalar o caráter duplo da ficção: mescla entre o
empírico e o imaginário. Diríamos diferente, tanto o empírico quanto o imaginário são
construções de linguagem. Se assim podemos pensar, observando a linguagem que
constrói os gêneros, aproximamos a estrutura e os elementos da (auto)biografia e do
diário com a literatura e com a história, visto que são narrativas. Vejamos, por
exemplo, a breve biografia de Gonzaga Duque disponível no site da Fundação Casa de
Rui Barbosa, Rio de Janeiro:
Uma das mais importantes figuras do simbolismo brasileiro, foi romancista, contista
e crítico de arte. Pode ser considerado o primeiro e verdadeiro crítico de arte
sistemático no Brasil, tendo deixado textos fundamentais nesse campo. Seu
interesse pelas artes plásticas levou-o também a realizar trabalhos como a
ilustração de um livro de B. Lopes, Dona Carmen. Foi retratado por vários artistas
de sua época, como Eliseu Visconti, Belmiro de Almeida, Rodolfo Amoedo,
Presciliano Silva, além de caricaturado, entre outros, por Raul Pederneiras e
Kalixto.
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Luís Gonzaga Duque Estrada nasceu em 21 de junho de 1863 no Rio de janeiro.
Iniciou-se cedo no jornalismo, fundando em 1880, com Olímpio Niemeyer, O
Guanabara. Em 1882 colaborou na Gazetinha, de Arthur Azevedo, e em 1883 na
Gazeta da Tarde, de José do Patrocínio. Em 1887, atuou como crítico de arte em A
Semana. Fundou, em 1895, com Lima Campos, a Rio-Revistas em 1897, também com
Lima Campos, a revista simbolista Galáxia; em 1901, Mercúrio; e em 1908, com Lima
Campos e Mário Pederneiras, Fon-Fon. Colaborou ainda em numerosos outros
periódicos, usando muitas vezes pseudônimos, como Alfredo Palheta, J. Meirinho,
Diabo Coxo, Amadeu, o Risonho e André de Resende. Casou-se em 1885 com Júlia
Torres Duque Estrada, com quem teve quatro filhos: Dinorá e Haroldo, que morreram
em criança, Osvaldo e Lígia Cristina que, de seu casamento com o poeta Murilo Araújo,
lhe daria a neta Maryssol Duque Araújo.
Foi 2º oficial da Diretoria do Patrimônio Municipal; 1º oficial da Fazenda da
Prefeitura, servindo neste posto como secretário do diretor-geral muito tempo. Em
1910, foi nomeado diretor da Biblioteca Municipal. Morreu no Rio de janeiro, em 8 de
março de 1911.
A estrutura e os elementos deste texto seguem o modelo da lógica da História
tradicional6, cujo trabalho consiste em recolher documentos e armar uma narrativa
que obedeça a alguns critérios, como: escolher uma grande personagem (já que o
homem comum não era considerado digno de estudo); apontar a importância desse
“grande homem”, utilizando palavras que engrandecem sua personalidade; justificar a
biografia destacando seus feitos; mostrar a vida honrosa desse personagem-herói;
respeitar as datas dos acontecimentos mais importantes de sua “vida e obra”; manter
a “imparcialidade” e “objetividade” na narração; escolher um vocabulário científico, ou
seja, não afetivo. Dessa maneira, pretende-se garantir a “verdade” a partir de
memórias dos documentos. Vejamos como isso funciona num texto de história.
Leo Huberman, no livro História da riqueza do homem (1959), capítulo 13,
intitulado “A velha ordem mudou...”, ao falar sobre a Revolução Francesa, destaca
como esta beneficiou as classes superiores, constatando isso a partir de um relato de
Marat, um porta-voz da classe trabalhadora. Huberman transcreve a descrição feita
por Marat e a comenta:
“No momento da insurreição o povo abriu caminho através de todos os obstáculos
pela força do número; mas, por muito poder que tenha conseguida inicialmente, foi
por fim derrotado pelos conspiradores de classe superior, cheios de astúcia,
artimanhas e habilidade. Os integrantes educados e sutis da classe superior a
princípio se opuseram aos déspotas; mas isso apenas para voltar-se contra o povo,
depois de se ter insinuado ma confiança e usado seu poder, para se colocarem na
posição privilegiada da qual os déspotas haviam sido expulsos. A revolução é feita e
realizada por intermédio das camadas mais baixas da sociedade, pelos
trabalhadores artesãos, pequenos comerciantes, camponeses, pela plebe, pelos
infelizes, a que os ricos desavergonhados chamam de canalha e a que os romanos
desavergonhadamente chamam de proletariado. Mas o que as classes superiores
ocultam constantemente é o fato de que a Revolução acabou beneficiando somente
os donos de terras, os advogados e os chicaneiros”.
6 Entendemos aqui História Tradicional no que se difere da chamada Nova História, fundada na
Escola dos Annales.
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É uma descrição exata do que ocorreu. Depois que a Revolução acabou, foi a
burguesia quem ficou com o poder político na França. O privilégio de nascimento foi
realmente derrubado, mas o privilégio do dinheiro tomou seu lugar. “Liberdade,
Igualdade, Fraternidade” foi uma frase popular gritada por todos os revolucionários,
mas que coube principalmente à burguesia desfrutar.
O exame do Código Napoleônico deixa isso bem claro. Destinava-se evidentemente
a proteger a propriedade – não feudal, mas a burguesa. O código tem cerca de
2.000 artigos, dos quais apenas 7 tratam do trabalho a cerca de 800 da
propriedade privada. (HUBERMAN, 1959, p. 151).
O que se diferencia da “velha” história em Huberman é que ele traz um tom
crítico em seus textos. Porém a estrutura narrativa atende a alguns requisitos da
narrativa literária clássica, bem como da história tradicional. Neste trecho, temos uma
“grande” personagem, Napoleão; um importante “fato”, a Revolução Francesa; um
relato documentado de uma testemunha, de Marat; uma narrativa linear, cronológica;
uns dados numéricos do código napoleônico; um vocabulário que “confirma” a
“veracidade” dos acontecimentos. Leo Huberman utiliza palavras determinantes, como,
por exemplo, esta por nós grifada: “É a descrição exata do que aconteceu”. Essa
exatidão teve credibilidade por muito tempo, isso por que a história, acreditava-se,
tinha as certezas em que podíamos nos apoiar. Tudo isso dá à narrativa o efeito de
estatuto do real, ou seja, toda essa narrativa se sustenta em elementos que têm a
função de reafirmar o que “realmente aconteceu”. A partir do momento em que a
história passou a utilizar imagens, por exemplo a fotografia, teve-se aí duas “garantias
de verdade”, pois se a história já tinha legitimidade como “discurso da verdade” com a
palavra, agora passa a reafirmar a veracidade com a ajuda de imagens que também
eram creditadas como cópias fiéis do real. Assim, história e fotografia podiam, ainda
mais, mostrar a “verdade” dos sujeitos e dos “fatos”. Hoje já temos historiadores que
contestam as certezas da história tradicional e problematizam os documento e os
“fatos”. Lilia Schwarcz, em As barbas do imperador (1998), nos conta sua versão
sobre a trajetória de D. Pedro II através das imagens e mostra que a fotografia pode
distorcer uma “realidade”. Para isso, traz o exemplo de uma fotografia de D. Pedro II
numa pose imponente e revela que o suporte, no qual o imperador apoiava seu corpo,
conseguiu dar ares de força e altivez a ele. Em seguida, Schwarcz expõe uma pintura
da mesma época que demonstrava D. Pedro II velho, fraco e desanimado, como ele se
encontrava, de acordo com a autora, no final de seu reinado. Assim, Schwarcz destrói
uma verdade e cria outra, pois retira da fotografia a confirmação do “real” e a entrega
à pintura.
André Bazin, no texto Ontologia da imagem fotográfica (1983), mostra como a
fotografia foi concebida, até por ele mesmo, como convicção de valor de “real” através
de seu caráter “automático”, a inocência de se acreditar na ausência da interferência
humana:
A fotografia se beneficia de uma transferência de realidade da coisa para a sua
reprodução. O desenho o mais fiel pode nos oferecer mais indícios acerca do
modelo; jamais ele possuirá, a despeito do nosso espírito crítico, o poder irracional
da fotografia, que nos arrebata a credulidade. (BAZIN, 1983, p. 6).
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Com a biografia não foi diferente. Como esse gênero tinha a estrutura e os
efeitos da história, as imagens só vinham reforçar o caráter de “real” dos sujeitos
biografados. Fotos de pessoas e ambientes faziam com que o leitor visse não o suporte
nem o que ali estava estruturado, mas a “verdade” daquelas palavras e imagens como
emanação direta do “real”. Não mais precisamos da rosa porque temos o nome da
rosa ou a imagem dela, ou seja, a palavra e a imagem pretendiam “mostrar a
verdade”, como procede a biografia: faz conhecer pessoas através de palavras, já que
biografia, pela etimologia, é a escrita da vida.
Pensemos agora na biografia de Gonzaga Duque. A frase “uma das mais
importantes figuras do simbolismo brasileiro” já justifica a importância dessa
personagem para a historiografia da crítica. Ainda em outro campo, Gonzaga Duque
“pode ser considerado o primeiro e verdadeiro crítico de arte sistemático no Brasil”,
sentença que reforça sua relevância como objeto de estudo. Após descrever outras
habilidades, o texto traz dados “fundamentais” para o gênero biografia, como: local e
data de nascimento, datas de seus trabalhos em periódicos, datas das publicações de
livros e ensaios, data da ocupação de cargos públicos, data do falecimento.
Esses
requisitos
geralmente
aparecem
no
gênero
biografia
tradicional,
semelhante ao proceder da história como ciência. Ambas, história e biografia,
procuram ser “fiéis” com a “verdade” da vida dos grandes personagens. Assim,
apóiam-se em “documentos oficiais”, já que acreditam ser estes garantia de “verdade”
incontestável. A linguagem se apresenta “imparcial/neutra”, que já tem legitimidade
em relatar a “realidade”, diferentemente da linguagem literária, que lida com o falso,
com o simulacro, com a aparência. Nessa lógica, a biografia estaria no âmbito da
“verdade” e não da aparência.
Neste ponto, lembremos de O nascimento da tragédia (1999), em que Nietzsche
se coloca contra a filosofia clássica, esta que destacava sua própria importância por
trabalhar e desvendar a “verdade”. Combatente, Nietzsche destaca o valor da arte e
faz apologia à aparência, até que esta se dilua; logo, não há mais fronteira entre o
“verdadeiro” e o “falso”.
Embora neguem o modo de operar da crítica tradicional, muitos pensadores
ainda hoje procedem na lógica da tradição crítica. No ensaio “Las desventuras del
pensamiento crítico”, do livro El espectador emancipado (2010), Jacques Rancière
mostra-nos não o que está escondido, mas o que está aí nos textos da crítica cultural:
a oposição entre “verdade” e aparência, a denúncia e a revelação daquilo que está
escondido, por exemplo, na questão das imagens. Trazendo acontecimentos como
Maio de 68 e 11 de setembro, Rancière argumenta que o que nos oferecem nas ruas
são espetáculos; sendo assim, a crítica (que o autor chama de pós-crítica) está
procedendo na lógica da tradição, “denunciando” o que está escondido por detrás do
espetáculo, mostrando ao ignorante o que este não é capaz de entender. Dessa
maneira, o espectador se emanciparia, porque sairia de um estado inferior, como diz a
etimologia da palavra emancipação, e passaria a conhecer a verdade.
No texto “Uma batalha secular”, do livro Os nomes da história (1994, p. 15),
Rancière destaca a ambivalência do nome história, afirmando que a revolução da
história, como queriam os estudos dos Annales, foi recusar a oposição entre ciência e
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literatura, mas somente “a língua das histórias estava apta a marcar a cientificidade
própria da ciência histórica [...]”. Ao afirmar que “o real precisa ser ficcionado para ser
pensado”, em A partilha do sensível (2005), texto “Se é preciso concluir que a história
é ficção. Dos modos de ficção”, Rancière explica que
não se trata de dizer que tudo é ficção. Trata-se de constatar que a ficção
da era estética definiu modelos de conexão entre apresentação dos fatos e
formas de inteligibilidade que tornam indefinida a fronteira entre razão
dos fatos e razão da ficção, e que esses modos de conexão foram
retomados pelos historiadores e analistas da realidade social. (RANCIÈRE,
2005, p. 58).
De acordo com Rancière (1994, p. 9), “o próprio de uma história é poder sempre
tanto ser quanto não ser uma história”. Se pensarmos em história como ficção, e se a
biografia segue a lógica estrutural da história, pelo menos a tradicional ou a velha
história,
podemos
questionar
não
o
locus
da
biografia,
mas
sua
forma
de
pensabilidade.
A ficção quer ser acreditada como ficção, segundo Saer, não como realidade:
Esse desejo não é um capricho de artista, mas a condição primeira de sua
existência, porque só sendo aceita enquanto tal, se compreenderá que a ficção não
é a exposição romanceada de tal ou qual ideologia, mas um tratamento específico
do mundo, inseparável do que trata. (SAER, 2009, p. 2).
Depois dessas ideias esparsas, voltamos a nossa pergunta inicial: como
conhecer Gonzaga Duque? Esses elementos diferentes na composição do diário de
Gonzaga Duque podem ser lidos como seu autor, visto que foi um simbolista que
escreve prosa realista de madeira moderna. Suas narrativas misturam crítica social e
crítica de arte com literatura, como podemos ver, por exemplo, no romance Mocidade
Morta e nos ensaios sobre arte. Nestes, o autor faz descrições, cria narrativas
tipicamente literárias; naquele, embute crítica à arte acadêmica como em seus
ensaios. Como narrativa, seu diário documenta suas memórias, função da ciência
história, cuja função era registrar acontecimentos para resguardar a memória coletiva.
Seu diário/jornal joga com aquilo que a história tradicional preservava (documentos) e
com histórias do cotidiano, interesse na Nova História.
Assim como a história tradicional, os gêneros biográfico e autobiográfico buscam
inscrever um eu coerente para que o leitor tenha “verdades” sobre vidas, tanto que
mantém a estrutura legitimada da literatura clássica e da história tradicional, as quais
fazem de verbum e de imago a apresentação “real” e direta da vida.
Pensamos nesses registros do eu e do outro como maneiras de fazer de cada
gênero. Acreditamos que a história pretende ter um compromisso com a “verdade”,
preocupação esta de que a literatura está isenta. Ainda mais: a história também é
uma ficção, não ao modo da literatura, mas ambas constroem verdades – deficientes,
provisórias; enfim, cada qual com suas pretensões.
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Como Rancière (2005) afirma que não é o caso de aceitarmos que tudo é ficção,
talvez possamos questionar as “verdades absolutas” das ciências e olhar para a arte
como possibilidades sempre líquidas de armarmos “verdades”.
Uma maneira de conhecer a história de Gonzaga Duque é conhecer seus
escritos, bem como os escritos de seus estudiosos, mas levar em conta que todos
esses textos fazem parte do grande gênero ficção, ou seja, construções de linguagem
não podem ser entendidas como “verdades absolutas”. Dessa maneira, o diário de
Gonzaga Duque não é mais “verdadeiro”, no que se refere à história desse crítico, do
que seus escritos ditos literários, como conto, crônica e romance. Quando se elege
verdades sobre um autor, opta-se por criar um mito; porém, na relação dialética entre
mito
e
esclarecimento,
segundo
Adorno
e
Horkheimer
(1985),
mito
já
é
esclarecimento, e o esclarecimento se converte em mitologia.
Afinal, conhecer Gonzaga Duque depende do olhar e da posição de quem olha
através do que lê de e sobre Gonzaga Duque. Nem mesmo sua escrita de si (seu
diário) pode definir seu eu, já que eu é sempre um outro, diria Rimbaud.
Referências
ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos
filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
BARTHES, Roland. O grau zero da escrita. Tradução de Mário Laranjeira. 2ª edição.
São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BAZIN, André. Ontologia da imagem fotográfica. In Xavier, Ismail. A experiência
do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embra filmes, 1983.
BURKE, Peter. A Escola dos Annales: 1929-1989. A Revolução Francesa da
Historiografia. Tradução e apresentação de Nilo Odália. 2ª edição. São Paulo: UNESO,
1991.
CAIERO, Alberto. Poesia. Edição Fernando Cabral Martins e Richard Zenith. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
DUQUE, Gonzaga. Revoluções Brasileiras: resumos históricos. Organização
Francisco Foot Hardman e Vera Lins. São Paulo: Editora UDUSP, 1998.
Fundação Casa de Rui Barbosa. Gonzaga Duque – biografia. Disponível em:
http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/literatura/gonzaga_duque/biografia.ht
m. Acesso em 8 de setembro de 2011.
HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. Tradução de Waltensir Dutra. 21ª
edição. Rio de Janeiro: Guanabara, 1959.
LINS, Vera. Gonzaga Duque – a estratégia do franco-atirador. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1991.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Tradução de Jaco Guinsburg. São
Paulo: Cia das Letras, 1999.
94
Volume 7 ▪ Número 1
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RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e política. Tradução de Mônica
Costa Netto. São Paulo, Editora 34, 2005.
_____. Las desventuras del pensamiento crítico. In: El espectador emancipado.
Tradução de Ariel Dilon. Pontevedra: Ellago Ediciones, 2010.
_____. Os nomes da história. Um ensaio de poética do saber. Tradução de
Eduardo Guimarães e Eni Puccinelli Orlandi. São Paulo: Pontes, 1994.
SAER, Juan José. O conceito de ficção. Tradução do espanhol de Joça Wolf. Sopro.
Panfleto político-cultural. Desterro, agosto de 2009. Disponível em:
http://www.culturaebarbarie.org/sopro/n15.pdf. Acesso em 4 de julho de 2011.
SCHWARCZ, Lilia. As barbas do imperador. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
Title
Memory and document: Gonzaga Duque’s diary
Abstract
This study aims to understand how the biography of Gozanga Duque, available
at his official site at the Fundação Casa de Rui Barbosa, is structured and how it is
similar to the narrative of the Traditional History. In this way biography meets a place
of legitimacy as a discourse of “truth”. This study seeks to understand how history and
biography maintain a relationship with “reality” and fiction. Theorists like Jacques
Rancière, Juan José Saer and Nietzsche help us on the issues on the relationship
between “truth” and “appearance”, fiction and no-fiction. Rancière understands that
the “real” needs to be fictionalized to be thought; Saer shows a dual character of
fiction: the empirical and the imaginary; and Nietzsche breaks the boundaries between
“reality” and “appearance. We can develop a notion of biography and history without
resorting to the old discourse of “truth” and we can think about art objects without the
opposition between the fictional and the no-fictional.
Keywords
Gonzaga Duque; Memory; Document; Biography; Diary
Recebido em 23/04/2012. Aprovado em 28/06/2012.
95
Teorias oníricas e o romance
onírico de inversão de
Nuruddin Farah
Divanize Carbonieri∗
Resumo
O objetivo deste trabalho é estabelecer uma conexão entre os estudos dos
sonhos e a literatura, analisando como diversas teorias oníricas influenciaram a leitura
e possivelmente a construção de três romances africanos contemporâneos. O objeto
de análise é a trilogia Blood in the sun, do escritor somali Nuruddin Farah, na qual o
autor propõe a combinação de duas camadas narrativas, uma dada pelo que os
personagens experimentam em sua vida de vigília e a outra configurada por seus
sonhos. A imobilidade experimentada por eles quando despertos, em virtude da
opressão política e social que enfrentam em suas comunidades, é compensada nos
espaços oníricos, que invertem o que vivenciam no mundo real. Para a compreensão
de obras desse tipo, em que os sonhos não são apenas apêndices narrativos, mas
elementos que alteram profundamente a estrutura romanesca, é necessário o
alargamento do repertório crítico a partir do diálogo com múltiplas teorias oníricas.
Palavras-chave
Sonhos. Literatura. Imobilidade. Compensação. Nuruddin Farah.
1. Introdução
A trilogia Blood in the sun, escrita por Nuruddin Farah e composta pelos
romances Maps (1986), Gifts (1992) e Secrets (1998), cujas ações se passam todas
em territórios somalis na África, apresenta-se, numa primeira leitura, como um grande
enigma para os leitores. Ao lado da narração mais corrente dos eventos ficcionais que
envolvem seus protagonistas, surgem narrativas de um tipo diferenciado, configuradas
pelas experiências oníricas desses heróis sonhadores. Como o autor não oferece
quaisquer explicações ou interpretações prévias ou posteriores para esses sonhos
narrados, temos a sensação de estar diante de algo semelhante ao que nos acontece
quando despertamos pela manhã e passamos a refletir sobre as visões noturnas que
nos assaltaram enquanto dormíamos. Estando a nossa mente já completamente
∗
Professora-adjunta do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da
Linguagem da Universidade Federal do Mato Grosso, Campus de Cuiabá. Doutora em Letras
pelo Programa de Estudos Linguísticos e Literários em Inglês da Universidade de São Paulo.
Coordenadora do grupo de pesquisa “Literaturas Africanas e Afro-descendentes de Língua
Inglesa na Diáspora”. Email: [email protected]
Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v. 7, n. 1, p. 97-115, jan./jun. 2012
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dominada pela consciência da vida de vigília, essas miragens oníricas nos parecem, na
maior parte das vezes, desconexas e sem sentido. Mas, ainda assim, algo nelas nos
impele a buscar uma interpretação, e quanto mais enigmáticas e impressivas forem
tais imagens, mais intensas serão nossas tentativas de atribuir a elas algum sentido. O
mesmo acontece com os romances de Farah, que parecem exigir de nós um esforço
interpretativo em relação a suas narrativas oníricas. Nesse processo, o que acaba
acontecendo é que verificamos que a inserção desses sonhos altera a estrutura dessas
obras, funcionando inclusive em dissonância com o restante do que é narrado.
Farah não parece desejar controlar nossa leitura, uma vez que não oferece para
ela nenhum sistema hermenêutico completo. Porém, é evidente para o leitor mais
avisado que suas construções oníricas se baseiam em princípios evidenciados por
famosos estudiosos do sonho e também em explicações populares existentes nos
contextos sociais nos quais transitam os seus personagens. Este trabalho é
principalmente o delineamento de minha leitura particular dessas narrativas oníricas
ficcionais em relação com as outras partes das tramas desses romances. No
procedimento de buscar conferir sentidos aos signos oníricos escolhidos pelo autor,
visitei autores e ideias que me auxiliaram a entender como o caráter de linguagem
simbólica dos sonhos se prestava à elucidação de importantes significados para a
compreensão geral das obras estudadas. Não tive, desde o início, a intenção de aplicar
teorias psicanalíticas aos conteúdos oníricos ficcionais para desvendar possíveis
complexos na constituição psíquica dos personagens nem muito menos do autor.
Tratei o sonho, ao contrário, como um elemento ficcional que abria as possibilidades
de leitura a respeito da organização espacial e temporal dos romances e que alterava a
percepção do enredo. Foi um esforço em duas frentes: a primeira constituída pelo
estudo de importantes teorias oníricas de fontes variadas e a segunda dada pela coleta
dos significados expressos no restante das narrativas capazes de lançar luz sobre os
seus sonhos narrados. Na próxima seção, explicitarei o caminho percorrido na primeira
delas.
2. Estudos e teorias oníricas
2.1. O sonho na Antiguidade Clássica
Na República, através de Sócrates, que é o principal personagem do diálogo que
compõe a sua obra, Platão se expressa da seguinte forma a respeito da Ilíada:
“embora louvando muito do que há em Homero, não endossaremos a passagem em
que se diz que Júpiter [Zeus] enviou um sonho a Agamenon” (PLATÃO, 1994, p. 87).
O referido episódio corresponde ao momento em que Zeus, para vingar Aquiles, que
se retirara dos combates em Tróia porque Agamenon lhe roubara a bela Briseida,
manda um sonho ao rei dos gregos em que Nestor, seu amado conselheiro, lhe
transmitia uma mensagem confiante de vitória na batalha do dia seguinte. Porém,
nessa peleja, os gregos foram vencidos pelos troianos, exatamente como queria Zeus,
fazendo
com que
percebessem que
as virtudes guerreiras de
Aquiles eram
imprescindíveis. Platão censura Homero principalmente por representar o maior dos
98
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deuses como capaz de enganar os homens, mas também transparece em seu repúdio
uma certa visão desconfiada a respeito dos sonhos. Ele parece entender o sonho como
algo que pode iludir os mortais e levá-los a executar ações desastrosas.
Platão se posiciona dessa forma porque uma confiança cega naquilo que, para
ele, era o caráter ilusório e enganador dos sonhos, ia contra o exercício da mais pura
racionalidade, que ele entendia que deveria ser o princípio fundamental a sustentar
sua polis perfeita, governada por reis-filósofos. Além disso, qualquer entrega aos
excessos, às paixões do corpo, deveria ser banida e substituída pelo equilíbrio
proporcionado pelo bom uso da razão. Platão considerava que o sonho, ao se
aproveitar do fato de que a razão está adormecida no sono, expunha o sonhador a
forças instintivas e a desejos violentos, tornando-se um elemento extremamente
perigoso. Caso esses instintos tomassem o controle do sonhador também em sua vida
de vigília, ameaçariam, com certeza, a ordem social que ele desejava alcançar em seu
projeto de uma cidade utópica. Um homem que se entregasse à satisfação desses
apetites desenfreados cometia um ato censurável no nível pessoal e político, mais
característico de um tirano do que do tipo de cidadão apropriado para o reino de
harmonia e equilíbrio que ele queria implantar.
Platão parece ter sido, assim, o primeiro a perceber uma relação entre o sonho e
a política. Mesmo interpretando isso sob uma ótica negativa, ele conseguiu vislumbrar
o potencial revolucionário do sonho na esfera da coletividade. O sonho teria assim um
aspecto duplo: como fenômeno individual, seria capaz de influenciar a vida pessoal do
sonhador e, em seu aspecto social, teria a capacidade de transformar a sociedade.
Essas ideias foram importantes para o estudo das obras de Farah porque, na trilogia
Blood in the sun, o sonho se realiza justamente na intersecção de aspectos psíquicos e
políticos. Farah também parece reconhecer o caráter transformador do sonho, mas ao
contrário de Platão, dá indícios de enxergar isso como algo positivo, como um
elemento de esperança num cenário marcado pela desolação e pela imobilidade social
e política. O que ele empreende, nessa trinca de romances, é, nada mais, nada menos,
do que a substituição de uma realidade política opressora e praticamente sem
possibilidade de mudança pela configuração de experiências oníricas mais plenas de
satisfação e mobilidade.
Ao contrário de seu mestre, que via o sonho como algo perigoso, Aristóteles o
considerou como um fenômeno sem grande importância na vida dos seres humanos.
Em seu tratado Dos sonhos, ele afirma que a atividade do sonhar não é um exercício
do intelecto e nem uma afecção de nossa faculdade perceptiva no sentido estrito, uma
vez que, durante o sono, nossa capacidade de perceber as coisas e de emitir opiniões
e pensamentos inteligentes também estaria adormecida. Contudo, para Aristóteles, os
sonhos, se não são causados pela percepção, são originados pela capacidade de
apresentação, ou seja, pela representação interna da percepção ou, em outras
palavras, pela imaginação. Segundo esse grande filósofo grego, são os vestígios do
que percebemos durante nossa vida de vigília que dariam forma ao que vemos à noite
enquanto dormimos. Um princípio fundamental do estudo aristotélico é que esses
resíduos
sensoriais
estariam
sempre
em
movimento
combinariam ao movimento interno do organismo:
99
e,
durante
o
sono,
se
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[e]ntão, como num líquido, se alguém veementemente o perturba, às vezes
nenhuma imagem refletida aparece, enquanto que, em outros momentos, aparece
uma imagem realmente, mas tão completamente distorcida que não se parece com
seu original; enquanto que, em outros ainda, quando um movimento cessa, as
imagens refletidas são claras e nítidas; da mesma forma, durante o sono, os
fantasmas ou movimentos residuais, que são baseados em impressões sensoriais,
tornam-se às vezes bastante obliterados pelo movimento acima descrito, quando
ele é violento demais; enquanto que, em outros momentos, as visões são
realmente vistas, mas confusas e estranhas, e os sonhos que então aparecem não
são saudáveis, como aqueles de pessoas coléricas ou febris ou embriagadas de
vinho (ARISTÓTELES, 1994a, p. 5, tradução minha, grifo do original).
Dessa forma, a agitação dos órgãos internos, causada por determinadas
condições como a ira, a febre e a embriaguez, por exemplo, geraria, por sua vez, uma
alteração na representação dos resíduos perceptivos, acarretando vários tipos de
imagens oníricas. O estado físico e emocional do sonhador teria, portanto, influência
na produção de seus sonhos, consideração que parece ter aberto caminho para
estudos posteriores a respeito da interpretação onírica, sobretudo para a psicanálise.
Outro elemento que parece ter influenciado as teorias psicanalíticas seria a
comparação que Aristóteles estabelece entre o sonho e as imagens refletidas pela
água, que também surge em seu segundo tratado, Da adivinhação pelo sonho, no qual
ele afirma que o intérprete mais bem-sucedido é aquele que tem a habilidade de
observar
e
interpretar
semelhanças,
uma
vez
que
as
imagens
oníricas
se
assemelhariam aos objetos reais, ainda que de maneira deformada, exatamente como
os reflexos da paisagem na superfície da água são distorcidos pelo movimento das
ondas. Ainda que Sigmund Freud tenha criticado a ênfase nos dons peculiares do
intérprete, ele parece ter aprofundado a ideia da deformação das imagens dos sonhos
com
a
explicitação
do
funcionamento
dos
mecanismos
de
deslocamento
e
condensação, que explicarei mais adiante.
O que me pareceu importante, no estudo de Aristóteles, foi o fato de ele ver o
sonho como fruto da imaginação, como algo representado, o que o ligaria, a meu ver,
à literatura e às outras artes da representação. O sonho seria tão representado quanto
as composições poéticas e as narrativas literárias, embora, evidentemente, de forma
não intencional ou voluntária. Isso é, sem dúvida, relevante quando se está estudando
um escritor como Farah, que, no procedimento de inserir sonhos em seus romances,
tem necessariamente que construir estratégias para representar, em sua escrita,
aquilo que já é, a princípio, uma representação. Descobrir quais seriam essas
estratégias foi o objetivo de nossos esforços.
Diferentemente de Platão e Aristóteles, Artemidoro de Daldis não era filósofo,
mas sim um intérprete profissional de sonhos. Em seu manual A interpretação dos
sonhos, ele divide inicialmente os sonhos em duas categorias, enhypnia e oneiroi,
sendo que a primeira se refere à realidade presente e a segunda ao que ainda vai
suceder. Enhypnion é, então, o sonho que apenas reflete o que já existe, e, como
exemplos dessa espécie, Artemidoro menciona o apaixonado que sonha com a amada,
o temeroso que sonha com seus temores, o faminto que sonha que come e o sedento
que sonha que bebe. Oneiros, por sua vez, é o sonho que prevê eventos futuros. Para
100
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o intérprete romano, é o único tipo capaz de realmente perdurar na mente do
sonhador após o seu despertar, chamando a sua atenção para o que vai ocorrer.
Artemidoro ainda realiza uma segunda distinção, dessa vez de caráter temático,
entre sonhos teoremáticos e sonhos alegóricos. Os sonhos teoremáticos seriam
“aqueles que guardam uma relação com sua própria visão”, sendo, em outras
palavras, claros ou diretos (DE DALDIS, 1999, p. 70, tradução minha). Como exemplo,
ele cita o caso de um marinheiro que sonhou com um naufrágio instantes antes de se
envolver realmente em um, escapando por pouco da morte. Já os alegóricos, ele os
define como “aqueles que expressam umas coisas por meio de outras, pois neles de
forma natural a alma nos indica uma mensagem codificada” (DE DALDIS, 1999, p. 70,
tradução minha). E os sonhos alegóricos seriam aqueles que demandariam um aparato
interpretativo mais complexo, justamente em virtude de sua obscuridade.
Acredito que o entendimento de Artemidoro do caráter profético e alegórico dos
sonhos é significativo para a análise dos romances de Farah porque esse escritor
parece partilhar dessa mesma visão na construção de suas narrativas oníricas
ficcionais. Porém, talvez a maior relevância de seu estudo se encontre na difusão que
suas ideias encontraram no mundo árabe-islâmico, influenciando inúmeros intérpretes
muçulmanos de sonhos. Esses autores posteriores apresentam desdobramentos dessa
classificação inicial encontrada no livro de Artemidoro, tendo sido capazes de moldar
as ideias presentes ali à realidade de sua fé. Como os personagens de Farah
pertencem a um contexto marcado pela religião e pelas tradições islâmicas – ao lado
de concepções africanas ancestrais –, é fundamental entender como os muçulmanos
entendem e entenderam o sonho ao longo da história. Em seguida, tratarei da
importância do sonho para as religiões que fazem parte do universo ficcional de Farah.
2.2 O sonho e as religiões
Marcia Hermansen (2001) afirma que houve, na trajetória espiritual do profeta
Maomé, uma intersecção entre informações transmitidas em sonhos e outras
adquiridas no processo revelatório. Porém, parece ter havido muita controvérsia, entre
os comentadores de sua vida que se sucederam na história, a respeito da primeira
revelação recebida por ele: teria sido a aparição do anjo Gabriel um sonho ou uma
visão externa? Para Hermansen, não se atingiu o consenso nem mesmo na atualidade,
embora ela afirme que “a ortodoxia oficial tendeu a ressaltar a exterioridade da
experiência como um meio de enfatizar a proveniência totalmente outra e divina da
revelação” (HERMANSEN, 2001, p. 74, tradução minha). Mas a maioria dos estudiosos
parece concordar que os sonhos ocupam ainda assim um lugar de destaque na religião
islâmica.
Kelly Bulkeley (2008), por exemplo, discorre sobre algumas suratas do Alcorão
nas quais os sonhos desempenham um papel significativo. 1 Uma delas é aquela que
apresenta a história de Abraão e seu filho Ismael. No texto do Alcorão, Abraão havia
recebido ordens de Alá para sacrificar Ismael através de um sonho, e aí haveria duas
1
Surata ou apenas sura é o nome que se dá a cada capítulo do Alcorão, que é composto, no
total, por 114 suratas.
101
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grandes diferenças entre esse episódio e aquele relatado no Gênesis da Bíblia cristã:
na história bíblica, o filho a ser sacrificado é Isaac e não há clareza a respeito de onde
teria vindo o comando divino. De acordo com Bulkeley, o ponto mais relevante nessa
narrativa é que tanto Abraão quanto Ismael encararam o sonho imediatamente como
uma mensagem enviada de Alá, embora não houvesse nada que pudesse garantir isso.
A obediência de ambos ao sonho e a sua interpretação, ou seja, à ideia de que
continha uma ordem de Deus que deveria ser seguida a qualquer custo, “é o cerne da
religião islâmica – a confiança absoluta em Deus, mesmo a ponto de sacrificar as
relações humanas mais caras para si” (BULKELEY, 2008, p. 196, tradução minha).
Bulkeley também discute a surata em que se conta que Maomé havia a princípio
sonhado que Alá reconhecia as três deusas do antigo panteão politeísta adorado na
época na região de Meca. Quando o profeta recitou os versos de aceitação dessas
divindades, as pessoas que acreditavam nelas se encheram de alívio porque pensaram
que haveria uma continuidade harmônica entre a nova religião que se instalava e as
práticas árabes de culto ancestrais. Contudo, Maomé teve ainda um segundo sonho,
no qual o anjo Gabriel lhe admoestava, justamente por ter se deixado levar por um
sonho enviado por Satã, e lhe ordenava que inserisse outros versos que rejeitassem
definitivamente as deusas. Para Bulkeley, esse novo sonho serviu principalmente para
reafirmar a incompatibilidade do monoteísmo do Islã com o politeísmo ancestral de
Meca.
Além das suratas corânicas e de inúmeros hadiths ou ditos atribuídos ao profeta
a respeito dos sonhos, houve uma grande tradição de intérpretes muçulmanos das
imagens oníricas. Bulkeley declara que Ibn Arabi (1164-1240), por exemplo,
estabeleceu, pela primeira vez, a tipologia onírica tripla, que forneceria a referência
básica para estudos posteriores durante toda a história do islamismo. 2 Nessa
classificação, os primeiros sonhos seriam os “comuns”, retirados da vida diária, ainda
que de forma distorcida, como as imagens na água de Aristóteles. O segundo tipo
abrangeria os sonhos que retiram seu conteúdo tanto dos acontecimentos cotidianos
quanto da “Alma Universal”, uma fonte elevada e abstrata de conhecimento, trazendo
revelações a respeito da realidade espiritual mais profunda do sonhador, de forma tão
distorcida e simbólica quanto os primeiros. Já a terceira categoria reuniria os sonhos
que trazem uma revelação direta da realidade, sem nenhuma distorção ou simbolismo,
endereçados apenas às pessoas de caráter e fé mais sólidos.
Ainda de acordo com Bulkeley, essa tipologia tripla seria aprimorada pelo
também filósofo Ibn Khaldun (1332-1402).3 Simplificando as ideias de Arabi, Khaldun
dividiu os sonhos em claros, alegóricos e confusos. Os sonhos claros seriam aqueles
que se apresentam ao sonhador já plenamente desvendados, sem a necessidade de
interpretação, sendo enviados por Alá para bem conduzir os seres humanos. Os
sonhos alegóricos seriam aqueles enviados por anjos, também com importantes
2
3
Ibn Arabi foi um filósofo muçulmano e escritor de textos voltados ao sufismo, entre os quais há
importantes relatos e comentários sobre os sonhos.
Ibn Khaldun foi um estudioso muçulmano que se dedicou a diversas disciplinas, como filosofia,
astronomia, direito islâmico, história, teologia, entre outras. Sua obra mais famosa é o
Muqaddimah (1377), que é um tratado sobre história universal. Assim como outros eruditos
islâmicos, Khaldun também versou sobre os sonhos em alguns de seus escritos.
102
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ensinamentos, mas de forma simbólica ou distorcida, que os sonhadores devem se
esforçar para interpretar. Por fim, os sonhos confusos seriam aqueles elaborados e
enviados pelo diabo, apenas para ludibriar os homens. Nessas tipologias, é evidente o
ajuste da antiga classificação proposta por Artemidoro e os conteúdos da religião
islâmica, um procedimento que iria se intensificar ainda mais por toda a Idade Média,
o que revela que, mesmo nos tempos em que o Ocidente medieval temia, repudiava
ou simplesmente desprezava os sonhos, os muçulmanos souberam enxergar neles
uma série de funções religiosas e cognitivas, entendendo-os como mensagens divinas
ou fontes elevadas de conhecimento. E sem dúvida não foi por acaso que Farah, um
escritor nascido num país islâmico como a Somália, escolheu dar aos sonhos um papel
tão importante em sua obra. Contudo, não é apenas a religião islâmica que é
importante no meio em que vivem seus personagens. O universo de crenças africanas
também imprimiu sua marca em suas narrativas ficcionais.
A maior dúvida que existe a respeito das crenças indígenas na região do Chifre
da África, exatamente onde se localiza a atual Somália, é se os antigos somalis
professavam uma religião politeísta antes da introdução do islamismo em seu território
ou se já adotavam alguma espécie de monoteísmo. De acordo com Mohammed Diriye
Abdullahi (2001), nenhum culto completo datando do período anterior à conversão ao
Islã sobreviveu na organização religiosa dos somalis atuais. Para ele, ainda seria
possível, contudo, traçar algumas hipóteses a respeito dessas tradições ancestrais a
partir de algumas palavras ainda existentes na língua desse grupo étnico. Por
exemplo, Waaq é uma palavra usada pelos somalis para se referir a Deus, juntamente
com Allah, que foi incorporada com a fé islâmica. Abdullahi afirma que Waaq, Waaqa
ou Waaqo é o deus único da religião cuxita, tal como é encontrada entre os oromos da
Etiópia, um povo vizinho e relacionado aos somalis. Para ele, a permanência desse
nome também entre os somalis é uma evidência da existência de um culto monoteísta
pré-islâmico, o que teria facilitado a absorção da religião de Maomé naquela região.
Embora nenhum culto completo pré-islâmico tenha chegado até nós, Abdullahi
declara que alguns ritos antigos parecem ter resistido, como é o caso das cerimônias
de possessão por espíritos, entre as quais um exemplo é o zaar, no qual é empregada
uma espécie de apaziguamento para libertar a pessoa dos efeitos maléficos da
influência do espírito que a está atormentando, em meio a danças e comunhão de
alimentos. Ainda que o zaar não seja uma prática autorizada pela ortodoxia islâmica
dominante, Abdullahi ressalta o seu papel social, já que a maioria dos indivíduos
atendidos nesses rituais compõe-se de mulheres que, estando normalmente limitadas
em suas ações por rígidos códigos de conduta, encontram nele uma excelente
oportunidade para dançar, comer na companhia de homens e até mesmo fumar. A
meu ver, é possível que, justamente por se configurar como uma “coisa de mulheres”,
o zaar seja ainda tolerado pelas autoridades religiosas e governamentais. Existem
algumas menções a cerimônias zaar na trilogia de Farah, e acredito que, ao lado dos
sonhos, elas também sinalizem contatos com o que, por falta de uma denominação
melhor, poderia se chamar o invisível.
Ao contrário de Abdullahi, Abukar Ali (2006) acredita que a antiga religião
somali era politeísta e não monoteísta. Ele chega até mesmo a identificar a atual
103
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Somália com o lendário Reino de Punt, conhecido como “a terra dos deuses”, região à
qual os faraós egípcios costumavam ir em peregrinação antes de assumirem o trono,
embora outros estudiosos nunca tenham chegado a um consenso a respeito de sua
exata localização. Ele também declara que os nomes dos dois mais antigos deuses
hamitas, Wad e Hobal, permanecem na língua somali, por exemplo, em palavras como
wadaad, que significa sacerdote (“atendente de Wad”), e hobal, que modernamente é
entendido como artista, provavelmente, ainda de acordo com Ali, em referência ao
fato de esse deus ser o antigo patrono das artes. Assim, Ali conclui, um tanto
arriscadamente, que esses poucos indícios linguísticos serviriam de evidência de que
houve um culto politeísta entre os somalis muito antes da chegada do islamismo.
Apesar de ser impossível chegar a qualquer conclusão definitiva a respeito do
passado a partir de dados tão escassos, parece não haver dúvida de que o presente da
cultura somali está embebido num profundo animismo. De acordo com Ion M. Lewis
(1998), por exemplo,
[o] reino do Deus Céu inclui uma multidão de espíritos subsidiários, os espíritos do
mato, certos animais, algumas cobras, escorpiões, cupins e outros insetos
frequentemente considerados pelos somalis como portadores de poderes malignos.
Em certas situações, os clãs são descritos como relacionados a árvores e animais
que são chamados por nomes de parentesco maternal, mas a ligação não parece
ser totêmica (LEWIS, 1998, p. 23, tradução minha).
Os somalis, então, consideram que os elementos da natureza, como as árvores,
os animais e até mesmo os insetos, são portadores de poderes mágicos. Mesmo que
essa crença não seja sancionada pelo Islã, é inegável que ela permanece no
imaginário popular. Isso demonstra que a situação religiosa na Somália, assim como
em outros países africanos islâmicos, apresenta uma mistura tensa entre a ortodoxia
oficial e as tradições indígenas ancestrais. E como será que a cosmovisão religiosa
mais popular encara o fenômeno dos sonhos? Ainda segundo Lewis,
[o]s mortos são lembrados em cerimônias periódicas (“de varrer o túmulo”) nas
quais animais são sacrificados e a comida é distribuída entre os pobres, escravos,
servos e idosos. Presentes de comida e roupas são oferecidos às vezes,
frequentemente em resposta a sonhos. “Sonhei que meu pai me mostrava roupas
rasgadas. Aqui estão algumas roupas, deixe que ele fique com elas”. Ou ainda “eu
dei a minha falecida mãe um boi, agora meu pai está magro, faminto e quer algo
que possa engordá-lo. Aqui está um outro boi, deixe que ele venha e o pegue”
(LEWIS, 1998, p. 24, tradução minha).
Assim, os sonhos parecem ser vistos, entre os somalis, como formas de
comunicação com os mortos. Também existe a crença de que é possível alterar de
alguma forma um estado de coisas, como a miséria ou fome de um pai já falecido, por
exemplo, obedecendo-se ao que foi solicitado num sonho. Essa ideia de que se pode
transformar a realidade, seja a do mundo dos vivos, seja a dos mortos, apenas
através de expedientes mágicos, também é um elemento que confirma a existência
numa concepção mágico-animista. Nos romances de Farah, não são incomuns os
sonhos com animais e insetos. Se encaradas apenas de um ponto de vista psicanalítico
ou meramente psicológico tradicional, essas visões noturnas não parecem ter um
104
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sentido significativo. Porém, quando são compreendidas como expedientes mágicos,
elas transformam o entendimento da situação dos protagonistas e, por extensão, da
obra literária como um todo. Mas, como Farah também parece ter sido influenciado
pela psicanálise ocidental na construção de seus sonhos ficcionais, é também
necessário discutir alguns elementos de sua teoria a respeito dos sonhos.
2.3 Teorias psicanalíticas do sonho
Como sabemos, Freud (2001) desenvolveu principalmente uma abordagem
causal a respeito dos sonhos. Para ele, as imagens oníricas são causadas por desejos
inconscientes que encontrariam nelas expressão e satisfação. Contudo, Freud faz uma
distinção entre o conteúdo manifesto dos sonhos, que seria o que eles efetivamente
mostram, e o conteúdo latente, que seria o que está por trás do que é mostrado.
Como o desejo que busca satisfação no sonho é normalmente um afeto que foi
reprimido à força, para que ele se expresse no sonho, passando pela censura da
mente consciente, que se encontra diminuída no sono, mas que está ainda em alguma
medida operante, é preciso que haja alguma distorção ou deformação de seu
conteúdo, que apareceria no sonho de forma disfarçada ou até mesmo irreconhecível.
Fazendo com que seus pacientes produzissem associações livres para as partes
fracionadas do conteúdo manifesto de seus sonhos, Freud intentava chegar ao seu
conteúdo latente, atingindo, assim, o desejo que os havia provocado.
Para realizar essa distorção, Freud reconhece e explicita dois trabalhos do
sonho: a condensação e o deslocamento. Segundo ele, a condensação é o que torna
possível que um mesmo fragmento de sonho reúna em si uma grande quantidade de
pensamentos de fundo, ao passo que o deslocamento se caracteriza pela mudança de
foco, que faz com que não haja uma semelhança aparente entre o conteúdo manifesto
do sonho e o núcleo dos pensamentos que lhe deram origem. Como um escritor que
vive no limiar entre a cultura ocidental e a cultura somali, Farah também foi
influenciado pelas teorias psicanalíticas na produção dos signos oníricos de seus
personagens.
Os
procedimentos
de
deslocamento
e
condensação
aparecem
principalmente no primeiro romance da trilogia, Maps. Mas foram as teorias oníricas de
um outro psicanalista que parecem ter influenciado mais as estratégias narrativas de
Farah.
Carl G. Jung (2006) estabelece seus estudos oníricos em marcado contraste com
a perspectiva de Freud. Enquanto a abordagem de Freud é caracterizada por um ponto
de vista causal, Jung se volta para um ponto de vista de finalidade. De acordo com a
sua visão, essa finalidade deve ser entendida como a tensão psicológica que está
presente nos sonhos e que se dirige a um objetivo futuro ou, em outras palavras, que
apresenta o sentido de um objetivo a alcançar. Jung ainda define o sonho como “uma
auto-representação, em forma espontânea e simbólica, da situação atual do
inconsciente” (JUNG, 2006, p. 202), entendendo o inconsciente como “aquilo que não
se conhece em determinado momento” (JUNG, 2006, p. 184). As imagens oníricas
são, assim, comparadas por Jung a parábolas que ensinam o sonhador algo que ele
precisa saber a respeito de si mesmo. O conhecimento dessas parábolas faz com que
105
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ele possa modificar uma determinada atitude em sua vida de vigília e atingir o objetivo
a que o sonho se dirige. Diferentemente da teoria freudiana, que se volta para o
passado do indivíduo (seus desejos mais antigos e recalcados), a visão de Jung enfoca
o futuro, vendo-o como uma instância que o sonhador pode transformar a partir do
entendimento do sonho.
Além disso, Jung reconhece diversas funções para o sonhar, sendo que, entre as
mais importantes, estariam a função prospectiva e a função compensadora. A função
prospectiva seria “uma antecipação, surgida no inconsciente, de futuras atividades
conscientes, uma espécie de exercício preparatório ou um esboço preliminar, um plano
traçado antecipadamente” (JUNG, 2006, p. 194). Assim, os sonhos poderiam
apresentar um prognóstico, um exame das principais probabilidades relacionadas à
resolução de um determinado problema. A função compensadora, por sua vez, existiria
porque, segundo Jung, todos os sonhos proporiam uma compensação para a situação
da consciência em determinado momento, obtendo, para o sonhador, um equilíbrio
psíquico. Tanto a função prospectiva quanto a função compensadora de Jung parecem
ter influenciado as estratégias de representação empregadas por Farah em suas
narrativas oníricas.
Apesar de ser verdade que a perspectiva de Jung é bem menos restrita do que a
de Freud, ambos os autores não parecem ter sido capazes de entender o sonho de
acordo
com os imperativos culturais de
cada sociedade
humana.
De
forma
semelhante, ambos tentaram propor uma visão universalizante do fenômeno onírico,
sem atentar para o fato de que diferentes culturas vão apresentar distintas
abordagens e interpretações para o sonho. Os dois conceberam o sonhador como uma
entidade abstrata separada de seu contexto social. Para o entendimento dos sonhos
ficcionais das obras de Farah, a compreensão do contexto social parece ser de suma
importância. Na próxima seção, irei me deter sobre a análise da construção onírica em
cada um dos romances da trilogia enfocada.
3. Uma trilogia de sonhos
3.1. As dreamscapes de Maps
A ação ficcional de Maps, justamente o primeiro volume de Blood in the sun, se
passa no final da década de 1970, quando a Somália, já governada pelo ditador Siad
Barre, disputa com a Etiópia a posse do Ogaden, um território de maioria Somali
dominado politicamente pelos etíopes. A crítica feroz à ditadura, que iria caracterizar
os romances posteriores de Farah, ainda não pode ser reconhecida nessa obra. Nela,
Farah enfoca principalmente o destino do povo do Ogaden e os ambivalentes
sentimentos dos somalis da República da Somália, que ora lutam por se unir a eles,
ora os esquecem e deixam à própria sorte. O protagonista desse primeiro romance,
Askar, nasceu no Ogaden, mas, ainda na infância, é enviado para Mogadíscio, capital
da Somália, onde tem a chance de ter uma outra vida, tendo acesso à educação
formal e à cultura ocidental. Seu afeto em relação à mulher que o adotou no Ogaden
é, então, testado, e, como ela é acusada num determinado momento de ter traído a
106
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causa somali, delatando seus guerrilheiros para os etíopes, Askar se vê também
dividido entre a lealdade à mãe pátria e à mãe adotiva. Ele será julgado por seus atos
entre uma e outra, e o que se descobre, ao fim da narrativa, é que o abismo que
parecia separá-las na verdade não existe, e elas são uma só.
O romance tem como marco zero narrativo uma cena em que Askar aparece
encerrado num compartimento escuro, totalmente imóvel e entregue à rememoração
de certas cenas de seu passado. Sua inação é reforçada pela voz narrativa, nesse
primeiro momento, caracterizada por um narrador que fala na segunda pessoa do
singular, dirigindo-se a Askar, embora sem jamais se referir a si mesmo na primeira
pessoa e sem se configurar como um outro personagem secundário a participar de
alguma forma da ação. Essa é, na verdade, uma voz narrativa desmaterializada, sem
identidade e corpo próprios, dotada de onisciência subjetiva, já que é capaz de
descrever as imagens que passam pela cabeça do protagonista, e que se comporta
como uma consciência que parece estar estranhamente acima dele, observando-o e
julgando-o. Seu tom é acintoso e acusatório, interrogando Askar sobretudo a respeito
de seu relacionamento com Misra, a mulher que o adotou. Esse narrador enfatiza o
comportamento altruísta de Misra em relação ao filho, ao mesmo tempo em que acusa
Askar de não ter sabido retribuir tanta dedicação na mesma medida, causando na mãe
adotiva apenas desgosto e um profundo mal-estar desde o início.
Contudo, essa não é a única voz narrativa a tomar conta da narração. Há
também um narrador de primeira pessoa, identificado como o próprio Askar, que, nos
segmentos posteriores, rebate as acusações que lhe foram feitas, ressaltando o
caráter agressivo de Misra, que, durante seu período menstrual, tornava-se irascível e
o surrava e rejeitava. A terceira e última voz narrativa, por sua vez, apresenta um tom
mais neutro, narrando os mesmos eventos ficcionais a princípio sem julgar ou
defender Askar. Dessa forma, estabelece-se, no romance, um verdadeiro julgamento
em que o narrador de segunda pessoa desempenha o papel de acusador, o de primeira
pessoa, de réu ou advogado de defesa, e o de terceira, de juiz ou público do tribunal.
Logo torna-se evidente para o leitor, porém, que esse julgamento ocorre na mente de
Askar e que todas as vozes narrativas são facetas de sua própria consciência. Além
disso, durante a leitura do romance, somos gradualmente esclarecidos de que Askar
foi colocado nessa posição depois de ter sido efetivamente preso, acusado pelo
assassinato de Misra, crime esse que jamais se desvenda pra o leitor. Em sua mente,
refletem-se, então, os processos de acusação e defesa que ele vivencia externamente,
embora o real julgamento, aquele que não é apenas mental, esteja obliterado da
narrativa, assim como o próprio homicídio.
Todo o romance não passa do seu exame mental desses acontecimentos, com
exceção daquela cena inicial a partir da qual as rememorações e análises de sua vida
são detonadas. Naquele momento, ele está sentado imóvel numa cela de cadeia,
posicionado, portanto, no que Foucault chama de heterotopo de desvio, um daqueles
lugares “em que são colocados indivíduos cujo comportamento é desviante em relação
ao meio ou norma exigida” (FOUCAULT, 1967, p. 3, tradução minha). Então, o único
espaço realmente externo do romance é, na verdade, um contralugar, um lugar que,
como quer Foucault, contesta ou inverte os outros possíveis espaços reais – que não
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aparecem no romance ou que só aparecem na forma de memórias, ou seja, já
transformados em espaços internos. Isso reforça obviamente a importância dos
espaços internos em detrimento dos externos.
As rememorações incluem os sonhos do protagonista, que são apresentados ao
leitor diretamente, como uma narrativa estilisticamente diferenciada do restante, e
sem explicações prévias ou posteriores. Na configuração espacial dessas narrativas
oníricas, dois conceitos parecem ser fundamentais: o de paisagem e o de território. Os
espaços dos sonhos de Askar são denominados, no corpo do próprio romance, como
dreamscapes, ou seja, paisagens oníricas. Como sabemos, paisagem é principalmente
uma certa extensão de terra que pode ser apreendida pelo olhar. E os espaços oníricos
que tomam as visões de Askar são exatamente assim: amplas extensões através das
quais o eu onírico se desloca. Assim, ele corre por uma floresta, é guiado por uma
mulher pela terra dos mortos, cobre grandes distâncias com um cavalo alado, voa
como um pássaro, nada em riachos, flutua nas águas de uma enchente, atravessa um
milharal e atinge o oceano. É muito mais do que pode realmente fazer, encerrado na
cela de prisão em que está. Os seus sonhos funcionam, então, como uma espécie de
contraponto para a imobilidade da vida de vigília. Eles substituem aquela inatividade
inclusive com uma ênfase no movimento. O espaço real, nesse caso, confinado,
restrito, é substituído pela extensa paisagem onírica. Sendo um somali, ou seja,
membro de um grupo desmembrado em diversos países e territórios desde a
colonização europeia, fraturado em clãs e oprimido pelo regime ditatorial, Askar
também tem como signos oníricos recorrentes imagens do desejo pela unificação de
todos os territórios somalis e da dor por sua desintegração. Mas no território dos
sonhos, ele é livre para se movimentar de várias formas, parecendo se libertar das
limitações de viver dentro de um território, subjugado política e militarmente por
outros. Os espaços oníricos surgem desbloqueados, livres de barreiras, fronteiras ou
limites administrativos.
Além disso, uma outra poderosa inversão ocorre nos sonhos, algo que contesta
o restante da narrativa. Misra aparecia como o personagem mais oprimido da trama,
perseguida inclusive por aqueles que um dia foram seus amigos e acusada
injustamente de trair a causa somali. O próprio Askar não foi capaz de perdoá-la ao
reencontrar-se com ela após dez anos de separação. Contudo, nos sonhos, Misra é um
dos personagens mais recorrentes e vai aos poucos assumindo o papel de soberana do
mundo
onírico,
aparecendo
como
um
grande
tubarão
num
dos
cronotopos
4
significativos do sonho, o oceano. A figura feminina deixa seu lugar de opressão e é
colocada no ponto mais alto da paisagem dos sonhos. Toda a arquitetônica onírica,
então, pode ser tomada como esse grande oceano em que ocorre uma inversão dos
4
De acordo com Mikhail Bakhtin (1998), “[o] cronotopo tem um significado fundamental para os
gêneros na literatura. Pode-se dizer francamente que o gênero e as variedades de gênero são
determinadas justamente pelo cronotopo, sendo que em literatura o princípio condutor do
cronotopo é o tempo. O cronotopo como categoria conteudístico-formal determina (em medida
significativa) também a imagem do indivíduo na literatura; essa imagem sempre é
fundamentalmente cronotópica” (BAKHTIN, 1998, p. 212). Nesse sentido, utilizo o conceito de
cronotopo onírico para me referir à experiência espacial e temporal que os personagens dos
romances de Farah experimentam em seus sonhos.
108
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poderes estabelecidos no restante da narrativa. E, no mundo dos sonhos, Askar é
capaz de reconciliar-se com ela, abraçando-a sinceramente, coisa que não havia sido
capaz de fazer em sua vida de vigília. Ele parece superar, assim, seu sentimento de
culpa em relação à morte da mãe, o que faz com que o conjunto das narrativas
oníricas apresente um desfecho bem menos sombrio do que aquele sinalizado pelo fim
do romance, no qual ele tem que permanecer preso para expiar seus crimes,
quaisquer que sejam eles.
Os sonhos possibilitam uma compensação da imobilidade da vida de vigília e
uma reparação da opressão. Ainda que, no restante da ação, Askar não consiga se
decidir entre tornar-se um guerreiro, defensor do Ogaden, ou um porta-voz letrado de
seu povo, nos campos oníricos ele resolve o seu impasse, e, na sua reconciliação com
a mãe, desenha-se também a restauração de seu relacionamento com a mãe-pátria,
fazendo-o compreender que só lhe valeria a pena solidarizar-se com os mais oprimidos
da nação, que são realmente algo digno de defender ou pelo que lutar. Dessa forma,
os sonhos de Askar reúnem aspectos pessoais e políticos, e, mesmo que o autor não
pareça ter conseguido propor soluções, nos outros momentos da narrativa, para as
forças que oprimem e imobilizam os somalis, as narrativas oníricas desempenham
essa função compensadora e acabam rompendo com o negativismo do restante do
romance, sinalizando um horizonte mais positivo que, ainda que por ora só possa ser
atingido no mundo dos sonhos, talvez um dia faça parte da vida dos somalis.
3.2. Gifts e os sonhos como presentes
Um outro romance que se passa quase que inteiramente na mente de seu
protagonista é Gifts, o segundo livro da trilogia enfocada. A ação se passa na segunda
metade de 1980, com o enfraquecimento sistemático do poder do general Barre,
agravado por sérias dificuldades econômicas, pela fome e pela falta de energia elétrica
e combustíveis que assolavam o país. Nesse momento, a Somália recebe controversas
doações de dinheiro e alimento das potências ocidentais. A personagem Duniya não
está como Askar confinada a uma cela, mas, ao caminhar sozinha pelas ruas escuras e
desertas de Mogadíscio, paralisa-se de terror diante de uma iminente ameaça de
ataque e, nesse momento inaugural, imagina toda a narrativa que dá forma ao
romance. O que ela concebe é uma história de amor, na qual pode pela primeira vez
em sua vida vivenciar um relacionamento mais igualitário com um homem. Num
romance que é também um tratado sobre os presentes trocados entre pessoas e
nações, essa é a dádiva mais valiosa que ela gostaria de receber. Mas muito
provavelmente se trata de um presente impossível, dada a opressão em que vivem as
mulheres somalis. A própria Duniya descreve a vida de uma mulher em sua sociedade
como uma transferência contínua entre estações sucessivas, cada uma das quais
dominada por um homem, seja um pai, irmão ou marido. Em sua opinião, essa é a
única mobilidade que desfrutam as mulheres somalis. E é um movimento apenas
aparente; na verdade, nada muda em sua situação. Elas permanecem essencialmente
imóveis, sendo deslocadas de uma posição a outra não por ação própria, mas pelos
desígnios dos homens.
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Além disso, o presente desejado por Duniya também parece ser impossível
porque uma felicidade doméstica, pessoal, não pode realmente se efetivar enquanto
todas as estruturas políticas e sociais da nação estão em franco colapso. A situação
política na época em que o romance se passa também não oferece possibilidades de
mobilidade ou agência. Em plenos anos oitenta, o general continua no poder,
perseguindo e eliminando todo e qualquer foco de oposição e resistência. Mas nesse
período a falência do regime e a desorganização social trazida por ele tornam-se cada
vez mais evidentes. É uma época de blecautes, falta de alimentos, inflação galopante,
carência de combustíveis e crise nos serviços médicos. Dessa forma, Duniya está tão
neutralizada e inativa quanto Askar, restando-lhe apenas imaginar.
No momento exato em que, paralisada de medo, ela começa a criar uma
narrativa mais agradável, criaturas que povoavam seus sonhos colocam-se também na
transição entre realidade e ficção. Signos que posteriormente o leitor reconhecerá
como oníricos também sinalizam a irrupção da história inventada por Duniya. Grande
parte da experiência onírica da protagonista se resume a uma mescla entre elementos
dos sonhos e de seu quarto de dormir. Enquanto Askar experimentava, em seus
sonhos, uma grande liberdade de ação e de movimentos, e seu mundo onírico era
apresentado como uma paisagem extensa, a experiência de Duniya reforça o espaço
encerrado da intimidade, e o sonho é vivenciado num nível microcósmico, cotidiano,
em que se enfatiza não o olhar que percorre uma grande distância, mas aquele que se
detém sobre um pequeno ponto. Isso se relaciona à luta da personagem para obter
domínio sobre o espaço interno, uma vez que mesmo o universo doméstico está
ameaçado pela dominação dos homens, únicos detentores da propriedade na
sociedade somali, pela violência urbana e pela repressão do regime.
Em seus sonhos, Duniya também passa por uma série de estações, mas dessa
vez há uma transformação pessoal envolvida. Através de suas imagens oníricas, ela
ganha insights a respeito da situação presente e futura de sua vida e também é
agraciada com a oportunidade de percorrer um conjunto de experiências que
permitem que ensaiem sua transição entre imobilidade e mobilidade. Os sonhos
contestam sua trajetória de mulher oprimida e triste, e a tornam mais capaz de
vivenciar o relacionamento pleno que ela deseja. Dessa forma, se comportam como os
únicos presentes realmente valiosos que ela recebe. Além disso, apresentam, em seu
conjunto, uma visão bem mais esperançosa do que aquela oferecida pela cena inicial
de terror e paralisia ocorrida na vida de vigília da personagem. Além da compensação
da imobilidade, os sonhos de Duniya introduzem principalmente animais e insetos,
como borboletas, gatos, águias e libélulas, introduzidos neles como criaturas mágicas,
capazes de lhe ofertar alguns dons. Farah consegue, assim, reunir a função
compensadora, influenciada pelas teorias psicanalíticas ocidentais, e elementos de
animismo, característicos do contexto social dos somalis, em suas narrativas oníricas
ficcionais.
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3.3. Segredos e memórias em Secrets
Kalaman, o protagonista de Secrets, último volume da trilogia, não parece a
princípio estar tão imobilizado quanto Askar e Duniya, já que afinal se movimenta
pelas ruas de Mogadíscio com seu carro. Mas a cidade que ele percorre está tomada
por bloqueios, pontos de revista, explosões, índices da guerra civil do início dos anos
noventa, cuja consequência será a queda do General e sua substituição por grupos
clanistas, talvez tão perniciosos quanto ele para o bem-estar da nação. Ainda assim,
Kalaman parece passar por tudo isso incólume, como se já estivesse anestesiado, e a
realidade exterior não mais o atingisse. Ele vive, na verdade, como um somali de
classe média, trabalhando como técnico de computadores e empresário, morando
sozinho num apartamento e se relacionando amorosa e sexualmente com mulheres
sem ser casado com elas. Seu maior desejo é amealhar uma quantidade suficiente de
dólares e deixar o país rumo a uma nação estrangeira. Em outras palavras, sua vida
está muito mais próxima dos padrões ocidentais de comportamento do que é previsto
pela organização tradicional de sua sociedade.
Apesar disso, os sonhos de Kalaman se concentram não no espaço urbano e
ocidentalizado pelo qual ele transita em sua vida de vigília, mas na configuração de
uma aldeia. Isso é o mesmo que dizer que eles funcionam como a encenação de uma
memória coletiva. A escolha da aldeia como principal cronotopo onírico oferece uma
espécie de compensação e lança luzes sobre a continuidade das formas tradicionais no
presente. O desligamento de Kalaman do que o cerca e do passado de sua
comunidade se baseia afinal numa artificialidade. O peso das tradições se faz sentir em
sua vida em todos os segredos que envolvem as circunstâncias de seu nascimento e o
casamento de seus pais, que a narrativa vai tratar de desvendar.
Essa é a parte negativa das tradições que posicionam alguns valores que a
Kalaman parecem já esvaziados acima das relações de afeto, que ele julga muito mais
importantes. Porém, existe também a parte positiva, aquela que vale a pena resgatar,
representada pelo eu onírico, que não assume a mesma conformação que Kalaman
apresenta na vida de vigília, mas que surge como um velho sábio, um juiz tradicional a
arbitrar os conflitos de sua aldeia. Esse Kalaman dos sonhos age com justeza e
generosidade, mitigando as mazelas de sua comunidade, sem recorrer a meios
violentos. Assim, ele é uma antítese dos líderes somalis na atualidade, encontrados
tanto na esfera do poder federal, cuja cúspide é ocupada pelo General quanto no
interior dos clãs, controlados por seus anciãos, também tomados pela ganância e
desejos egoístas de poder.
A mente racional de Kalaman quer apenas deixar a Somália o mais rápido
possível, mas a experiência do sonho lança-o de volta ao passado de sua cultura, as
suas tradições realmente valiosas, para que busque ali as respostas e os modelos de
conduta necessários. O excesso de ocidentalização e apatia é, assim, compensado pela
ênfase num passado mais cheio de agência e nobreza. A realidade paralisante da vida
de vigília e da esfera pública, política, é abandonada em prol das experiências oníricas.
O presente da nação está interditado ao mesmo tempo em que os sonhos se abrem
111
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como possibilidades de se vivenciar um potencial de ação ainda impossível de ser
alcançado no mundo dos sentidos físicos. A aldeia, esse cronotopo onírico tão
importante, também se transforma numa espécie de heterotopo porque é um espaço
que contesta a organização atual da sociedade somali, o comportamento de seus
líderes e a apatia de sua elite pensante, composta por homens como Kalaman, que
abandonaram a resistência política e se entregaram ao desejo de deixar o país rumo
às nações mais desenvolvidas.
4. Considerações finais
Os espaços da vida de vigília estão interditados, ameaçados, bloqueados para os
protagonistas da trilogia Blood in the sun. Em Maps e Gifts, a impossibilidade do
espaço externo é tão completa que ambos os romances se passam inteiramente na
mente de seus protagonistas. Em Secrets, ainda que não se efetue a mesma
radicalização, o protagonista também experimenta uma grande neutralização e
incapacidade de agência. É nos espaços oníricos que todos esses heróis inativos
encontram formas de acessar uma mobilidade e uma capacidade de transformação
que estão vedadas para eles na esfera externa. Nesse sentido, os sonhos e seus
cronotopos oferecem uma compensação para essa sua restrição e inação.
Jung soube enxergar nos sonhos uma função compensadora, uma espécie de
balança psíquica que regularizasse os excessos ou deficiências da mente consciente
até atingir um equilíbrio psicológico. Ao que tudo indica, Farah foi bastante
influenciado pelas teorias oníricas junguianas, e não é impossível pensar que foi dessa
fonte que ele retirou a ideia de representar os sonhos ficcionais de seus personagens
como experiências compensatórias para o que vivenciavam em suas vidas de vigília.
Contudo, Farah parece ter realizado algo que não estava previsto por essas
teorizações. Jung se interessara principalmente pelo efeito dos sonhos sobre a
consciência desperta e os entendia apenas como caudatários da vida de vigília,
interpretando seus conteúdos para lançar luzes somente sobre ela. De sua parte,
Farah parece ter conseguido forjar, em seus romances, uma inversão dessa situação.
Na trilogia que é o objeto de estudo deste trabalho, a ênfase parece recair sobre
as narrativas oníricas, e o restante das obras funciona como um manancial de
conteúdos e significados que ajudam a esclarecer os sentidos dos sonhos. Os sonhos
também auxiliam o entendimento do que é narrado nas outras partes dos livros, mas
eles se organizam principalmente em dissonância do que é tratado ali. A princípio, o
teor dessas narrações que correm paralelas aos sonhos ficcionais é bastante
pessimista,
desesperançado.
Isso
porque,
quando
o
leitor
percebe
que
os
protagonistas estão completamente imobilizados, ele entende que não há alternativa
possível na vida de vigília. Mas os sonhos são, por sua vez, muito mais positivos,
trazendo, por exemplo, a reconciliação entre Askar e Misra, a transformação pessoal
de Duniya e um exemplo de boa conduta para Kalaman e os somalis que ele
representa. As narrativas oníricas tornam viável ao autor narrar histórias que seriam
impossíveis no contexto de opressão, paralisia e terror em que os personagens vivem.
112
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Assim, nesses romances, o que parece existir como uma novidade é a
coexistência de duas camadas narrativas, uma dada pelos eventos que ocorrem aos
personagens quando eles estão despertos e outra possibilitada pela experiência
onírica. Num desses planos, o que impera é a interdição, a imobilidade, a
neutralização. No outro, acontece uma compensação para tudo isso. O resultado final
não é o equilíbrio atingido na vida de vigília, mas a valorização da experiência onírica.
Isso significa que se trata de um gênero de romance em que os sonhos contestam e
até mesmo invertem o restante do que é narrado. Se uma denominação se tornasse
necessária, talvez fosse possível chamá-lo de romance onírico de inversão.
Essa ideia geral da inversão me possibilitou entender os cronotopos oníricos
como heterotopias, como espaços que se colocam como contralugares em relação aos
demais. O próprio Foucault definiu alguns desses espaços como heterotopias de
compensação. Contudo, ele os considerou principalmente como espaços que se
organizam como uma ilusão de perfeição, contrapondo-se à desorganização dos outros
lugares reais. Não é isso que parece ocorrer nas narrativas oníricas de Blood in the
sun. Os espaços representados nelas não são perfeitos ou mais organizados do que os
espaços da vida de vigília dos personagens. Mas mesmo assim pensei em classificá-los
como
heterotopias
de
compensação
porque
neles
os
sonhadores
vivenciam
experiências compensatórias, que os libertam de alguma forma das restrições dos
espaços do plano externo. O conceito de compensação pressupõe o estabelecimento
de um equilíbrio, mas, como já afirmei, isso não é atingido na vida de vigília dos
personagens e sim na própria organização da obra literária.
É na experiência da leitura que se percebe esse equilíbrio. Se ignorasse as
narrativas oníricas e se detivesse apenas no restante das obras, o leitor não poderia
fazer outra coisa além de se contentar com romances extremamente sombrios cujos
heróis estão impossibilitados de qualquer agência e só podem imaginar ou rememorar
o passado sem esperança de transformar suas realidades. Se oferecesse apenas essa
camada narrativa em suas obras, Farah estaria talvez apenas reproduzindo uma visão
da África como um continente condenado, sem possibilidade de mudança. Mas, ao
inserir essa outra camada composta pelos sonhos, ele abre o horizonte ficcional para
novas alternativas. Pode inclusive apresentar histórias felizes de transformação
pessoal sem abandonar o exame concomitante da difícil situação de seu país. No seu
procedimento de conferir sentidos a essas narrativas oníricas, o leitor é recompensado,
encontrando ali um alívio, uma cessação da imobilidade e da desesperança.
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PLATÃO. A república. Trad.: Albertino Pinheiro. São Paulo: EDIPRO, 1994.
Title
Dream Theories and Nuruddin Farah’s Dream Novel of Inversion
Abstract
The aim of this paper is to establish a connection between dream studies and
literature, analyzing how different dream theories influenced the reading and possibly
the construction of three contemporary African novels. The object of analysis is the
trilogy Blood in the sun by Somali writer Nuruddin Farah, in which the author proposes
the combination of two narrative layers, one given by the characters’ experience in
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their vigil and another given by their dreams. The immobility experienced by them
when they are fully awake, caused by the political and social oppression they face in
their communities, is compensated in dream spaces, reversing what they experience in
the real world. For the understanding of such works, in which dreams are not only
appendages to narrative, but elements that intensely change the structure of the
novels, it is necessary to extend the critical repertoire with the dialogue with multiple
dream theories.
Keywords
Dreams. Literature. Immobility. Compensation. Nuruddin Farah
Recebido em 29/04/2012. Aprovado em 28/06/2012.
115
João Guimarães Rosa,
um filossemita? A questão judaica,
as cartas e o testemunho de
Israel Klabin
Jacques Fux*
Resumo
Este artigo tem como objetivo mostrar as relações que João Guimarães Rosa
travou com a família judaica de Israel Klabin. A partir das correspondências entre Rosa
e Klabin e de uma entrevista realizada por mim, intento demonstrar o filossemitismo
de Rosa. Além disso, com base em documentos, livros e pesquisas, discuto o
conhecimento e a atuação de Rosa na emissão de vistos para judeus durante seu
período na Embaixada Brasileira em Hamburgo.
Palavras-chave
Rosa. Nazismo. Testemunho. Filossemitismo. Antissemitismo.
Introdução
Uma das grandes questões que ainda não se tem resposta definitiva é a
participação ou não de João Guimarães Rosa na emissão de vistos a judeus durante
sua época na Embaixada Brasileira em Hamburgo. Muitos artigos, estudos e livros já
foram escritos, porém sem nenhuma resposta conclusiva. Este artigo pretende fazer
um apanhado de todos os estudos realizados nessa área, além de agregar mais um
fato inédito: o testemunho de Israel Klabin, empresário judeu brasileiro, que teve a
oportunidade de conviver e se corresponder com Guimarães Rosa.
Assim começa uma das correspondências entre Rosa e Klabin: “Meu caro Klabin
– queria dizer a Você que me alegrou a sua bela carta, estuante de inconformismo e
de vontade-de-ação, e que trouxe a êste seu amigo mais velho (e já sincero
admirador) muita generosidade, envolta em afetuosa confiança. Obrigado” (ROSA,
*
Pós-doutorando em Teoria Literária – Unicamp. Doutor em Literatura Comparada pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pela Université Charles-de-Gaulle- Lille 3.
Agradeço ao CNPq pela bolsa de pós-doutorado júnior e ao Márcio Seligmann-Silva pela
supervisão. E-mail: [email protected]. Agradeço também a colaboração e o carinho de Israel
Klabin, Nathan Klabin, Stela Klabin e Débora Wainstock.
Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v. 7, n. 1, p. 117-135, jan./jun. 2012
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1949a). “João Guimarães Rosa: [...] Sua presença em mim se prende essencialmente
aos seguintes fatos: [...] c) Sua presença ao meu lado, circunspecto e curioso, na
cadeira que era de meu pai na sinagoga. Era uma noite de Kol-Nidrei, véspera do dia
da expiação” (KLABIN, 1963). Essas correspondências atestam a próxima relação de
Guimarães Rosa com Israel Klabin. A primeira carta datada “Paris, 4.VI.49” mostra um
Rosa com seus 41 anos admirando um jovem e promissor escritor, Israel Klabin, então
com seus 23 anos, cheio de sonhos e vontade-de-ação. Já na carta endereçada à
Guimarães Rosa “Rio de Janeiro, 30 de agôsto de 1963”, Klabin lembra com saudade e
nostalgia a presença de Rosa, na noite mais importante do calendário judaico (Yom
1
Kipur), sentado na cadeira de seu pai , e o olhar atento de Rosa durante a primeira
noite do dia da expiação.
A partir dessa pouca, mas profunda relação com Rosa, de suas lembranças
pessoais e do seu testemunho que no dia 30 de Maio de 2011 Israel Klabin concedeume uma longa e saborosa entrevista. Nessa entrevista e neste artigo busco mostrar
indícios da íntima relação de Rosa com a família de Klabin (e de Haas). Mostrar o
carinho que Rosa sentia por uma família judia, e vice-versa, pode ajudar a preencher
algumas lacunas (ou agregar algumas pequenas e novas informações) acerca do seu
período em Hamburgo e sua vontade de agir em favor dos judeus. Muitos autores
sugerem, mas não confirmam, a participação efetiva de Rosa na emissão de vistos a
judeus para fugirem da perseguição nazista. Aqui apresento esses estudos permeados
pela entrevista com Israel Klabin.
Israel
2
Klabin ,
fundador
e
atual
presidente
da
Fundação
Brasileira
de
Desenvolvimento Sustentável, nasceu em 1926 no Rio de Janeiro. É um dos três filhos
de Wolf Klabin, patriarca da família, que foi casado com a filha de Arthur Haas. Até
seus 30 anos Israel Klabin foi um acadêmico (segundo ele próprio). Estudou
engenharia, fez mestrado em matemática e física e fez o curso de Maître de
Conférence na SciencesPo, em Paris. Escrevia suas poesias, viajava bastante, não se
envolvia em causas políticas e nem com o sionismo até que em 1957 seu pai faleceu,
tornando-o responsável pelos negócios da família. Ex-prefeito do Rio de Janeiro (19791980), deixou de lado a sua veia literária para se dedicar inteiramente à suas
empresas e ao desenvolvimento sustentável do país.
Oriundo de uma família mais conservadora judaica, Klabin, inicialmente, não se
interessava muito pela parte religiosa do judaísmo. Sua casa, entretanto, era
frequentada por personalidades sionistas muito importantes como Golda Meir, Ben
Gurion e Menachem Begin. Ao longo de sua vida, Klabin foi se aproximando mais da
religião judaica e sempre esteve próximo e ligado às questões sionistas e a fundação
do Estado de Israel como pode ser verificado nas passagens abaixo:
1
Os fundadores ou os grandes contribuintes têm uma cadeira cativa na sinagoga, muitas vezes
com o seu nome escrito, como é o caso de Wolf Klabin. É uma enorme honra sentar na cadeira de
outra pessoa, já que, mesmo que não estejam lá, ninguém pode ocupá-las.
2
Em 2011, a Editora Elsevier publicou uma biografia de Israel Klabin: Israel Klabin: a urgência do
presente. Com prefácio de Fernando Henrique Cardoso.
118
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O que eu me formei lá na SciencesPo foi Maître de Conférence, tinha o Maître de
Conférence e o Maître de Administration. O Maître de Conférence era humanismo.
[...] O meu envolvimento com o judaísmo, vamos chamar assim, o meu
envolvimento político, foi uma coisa que foi crescendo cada vez mais, depois da
morte do meu pai e depois que fui chamado pelo Ben Gurion para ir para Israel.
Enquanto isso eu era judeu porque fiz Bar-Mitzvá, minha família era muito judia
(KLABIN, 2011a).
A partir de 1952, cerca de 1500 famílias judias emigraram do Egito para o Brasil,
número que pode ser considerado ‘massivo’, no conjunto da população judaica
brasileira, pois nunca tão grande número de judeus, em curto espaço de tempo,
havia emigrado ao Brasil. No período, o chefe do Departamento de Imigração do
Ministério da Justiça brasileira, ao ser consultado sobre a admissão dos refugiados
judeus do Oriente Médio, de forma surpreendente, exigiu, para cada visto de
entrada, ‘valor em dólares, por cabeça’. Israel Klabin, industrial judeu no Rio de
Janeiro, quando soube do fato, aconselhado pelo intelectual Augusto Frederico
Schmidt, procurou o presidente Juscelino Kubitschek, que liberou a entrada dos
judeus-egípcios e substituiu o funcionário (MIZRAHI, 2003, p. 189).
A relação de Klabin com Guimarães Rosa se deu por intermédio de seu tio,
Edmundo Haas. Rosa, ao ingressar na Faculdade de Medicina, conheceu Edmundo,
então colega de classe, com quem travou grande amizade. Em sua carta de “Paris,
4.VI.49.” Rosa pergunta por Edmundo: “Como vai o Edmundo? Quando vem ele até
cá? Quando volta Você também à Europa? Que é que vocês querem, de Paris” (ROSA,
1949b). Assim Israel Klabin, ainda jovem estudante em Paris, foi ciceroneado por Rosa
como mostrado na entrevista e também nas memórias presentes na carta de 1963.
Guimarães foi colega de turma de medicina do meu Tio Edmundo. Ele veio de
Cordisburgo para estudar medicina e ficou praticamente morando na casa de meu
avô, Arthur, e estabeleceu uma relação muito profunda com toda família. Tanto que
quando eu fui para França a minha mãe e o Edmundo, que era o colega dele,
pediram para ele’overlook’, para ele me direcionar (KLABIN, 2011a).
Carinhosa recepção e acolhida quase injustificada a um jovem esganiçado e
sedento estudante, em Paris. Entre as memórias desta hospedagem revejo: lulas
num restaurante tunisiano e uma conversa quase descoberta sobre salvação e
anatomia (KLABIN, 1963).
O concurso de ingresso ao Itamaraty e a família Haas
Aos 26 anos de idade o então médico João Guimarães Rosa escreve a sua mãe
relatando a aprovação, em segundo lugar, no exame do Itamaraty. Rosa explica que
ficara “estonteado com o ambiente barulhento do Rio de Janeiro, e com o luxo
magnificente do Itamaraty” (RICUPERO, 2006, p. 66). Já numa carta datada do dia 6
de julho de 1934 relata a dificuldade da prova: “De 57 (candidatos), só 10 foram
habilitados [...] Desses 10, talvez seja eu o único que não esteve ainda na Europa;
além disso, posso garantir que esse Concurso é o mais difícil que se processa no Brasil
[...] Assim, estou satisfeitíssimo, adquiri mais confiança em mim mesmo, e espanei os
brasões” (RICUPERO, 2006, p. 67).
Rosa ainda não tinha morado na Europa. Não tinha vivido fora do país. Havia
nessa declaração (segundo Ricupero) talvez um ressentimento por ainda não ter vivido
em outros lugares, um viator ainda sem viagens ao exterior. Porém, seu saber e sua
cultura eram enormes. Em sua prova de Francês, foi lhe perguntado sobre o que
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conhecia de Literatura Clássica Francesa e sua resposta foi categórica: “Toda”. “O
examinador admirado de audácia tamanha, sorriu e quis saber: ‘Desde quando o
senhor lê Francês? ‘” (GUIMARAES, 2006, p. 97). Segundo o próprio Rosa, ele
começara a ler os clássicos com nove anos de idade. Outras provas foram realizadas e
o desempenho de Rosa foi brilhante.
Além do grande saber teórico sobre a França e sua Literatura, teria tido Rosa
alguma outra influência marcante e determinante? Segundo o relato de Israel Klabin,
sim, de acordo com a transcrição abaixo:
Meu avô era um francês. Era um enraizado na cultura francesa. E nessas conversas
o Guimarães aprendeu tudo sobre Paris. O meu avô tinha em cima da escrivaninha
dele duas coisas: o busto de Napoleão. Ele olhava para aquele busto e falava,
assim, tradição da família: que o Napoleão era judeu. [...] O meu avô sabia tudo de
Paris. Tanto que quando ele veio fazer o exame do Itamaraty caiu exatamente que
ele fizesse, que ele falasse sobre Paris, não sei direito, ou qualquer coisa ligada a
isso. Não sei exatamente o que foi. E ele fez uma descrição tanto em francês, ele
falava francês com meu avô, ele aprendeu francês na casa do meu avô. Tanto isso
quanto as ruas de Paris. Sabia tudo de Paris. Meu avô vivia em Belo Horizonte, mas
a alma dele estava em Paris. [...] A história da família era Paris. E aí ele (Rosa) fez
um sucesso. Até perguntaram a ele se ele tinha morado na França, aí ele disse não,
eu morei foi em Belo Horizonte. E foi lá que eu aprendi sobre a cultura francesa.
[...] O Arthur Haas era um nobre francês. Era um aristocrata francês. Rico que veio
para financiar a fundação de Belo Horizonte. E acabou se apaixonando e ficou lá.
Foi na França, pegou a família e voltou pra lá. Arthur Haas era um judeu confesso
(KLABIN, 2011a).
Wolf Klabin, pai e patriarca da família de Israel Klabin, foi casado com a filha de
Arthur Haas, empresário francês cuja casa era frequentada por Guimarães Rosa, como
mostrado na entrevista acima. O pai de Haas tinha sido intendente do exército francês
na revolução napoleônica. Francês de nascimento, com a anexação de sua cidade à
Alemanha, Haas tentou se radicar na Rússia. Acabou vindo para o Brasil onde ajudou
na construção de Belo Horizonte e sempre manteve relações com as lideranças
judaicas no mundo. Em Vidas que sangram história: a comunidade judaica de Belo
Horizonte, Renato Pfeffer, ao relatar a criação da comunidade judaica de Belo
Horizonte, escreve: “Até 1910, o único judeu com a presença constatada em Belo
Horizonte é Arthur Haas. Acredita-se que os demais judeus que aqui passaram não
fixaram residência. As primeiras famílias que aqui se fixaram o fizeram no início da
década de 1910” (PFEFFER, 2003, p. 62).
Na carta endereçada Guimarães Rosa, data de 30 de Agosto de 1963, Klabin
ainda rememora alguns fatos:
Sua presença em mim se prende essencialmente aos seguintes fatos: a) memórias
de ouvir falar, do avô aos tios e minha mãe – Ele quando rapaz sem sair de Belo
Horizonte conhecia todas ruas de Paris e falava alemão. Alemão, esse impossível
mar de palavras, verbos cachoeirentos e exdruxolozidades sintáticas - ... Que
gênio! (KLABIN, 2011a).
Rosa, de fato, conhecia muitas línguas. Em uma entrevista concedida à sua
prima do Curvelo, de acordo com Vicente Guimarães, assim se expressou:
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Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco
de russo; leio: sueco, holandês, latim, e grego (mas com dicionário agarrado);
entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do
sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do
finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo
mal. Eu acho que estudar o espírito e o mecanismo das outras línguas ajuda muito
a compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém,
estudando-se por divertimento, gosto e distração (GUIMARAES, 2006, p. 54)
Assim seria surpreendente, mais não impossível, que a afirmação de Klabin
fosse verdadeira em relação ao conhecimento de Rosa de “todas as ruas de Paris”.
Em relação à literatura de Klabin, Rosa, em suas cartas, cita bastante alguns
trechos do jovem e promissor poeta. Essas cartas escritas em Paris (Ambassade du
Brésil), em “4.VI.49” e em “11.VII.49” mostram um Guimarães Rosa muito
interessado pelas “letras” de Klabin. Assim escreve Rosa em sua primeira carta: “Mas,
e os escritos, que me prometeu mandar?! Os contos, poemas, estudos, as ‘miuçalhas’?
Estou esperando, interessadíssimo. Apesar de ter sido tão curto e apressado o nosso
contacto aqui em Paris, é com a mais rigorosa sinceridade que reafirmo esperar muito
de Você, nas letras brasileiras” (ROSA, 1949a). Já na segunda carta, Rosa cita
3
diversos versos de poemas de Klabin, do livro Poemata, que ‘publicado ‘ em 1950 pela
Editora Bloch. Assim escrever Rosa:
Agradeço muito a Você a remessa das poesias e do conto. Esperava-os com
impaciência, li-os com o maior prazer, e tenho-os relido com estima crescente.
Acho que valem ainda mais do que eu imaginava, e Você pode acreditar na
sinceridade limpa com que afirmo. Estou certo de que, mesmo se Você não
escrevesse nada mais, bastavam essas poesias para colocar seu nome entre os dos
nossos bons poetas. Entre as mais autênticas. Porque a verdade de sua expansão é
profunda, sob marca de fatalidade. Fico pensando que Você se expressa
poeticamente não apenas por uma necessidade de dar forma às fórmulas e forças
que indesejadamente capta ou produz, mas mesmo pela ânsia de libertar-se de tal
necessidade. Você, de cada vez, larga sua poesia, a ver se fica para sempre livre
desse íntimo incômodo, se, com esse esforço, a esse preço, consegue ‘secar a
fonte’. Seus poemas, sinto-os como ‘canais de drenagem’, não de ‘irrigação’. São,
na forma e no sentido, poesia legítima – densa que, por si mesma, se impõe ao
poeta, a partir do ponto em que a prosa não bastaria para dizer o que tem de ser
dito, como um avião não pode deixar de desligar-se do chão e subir no ar, uma vez
chegada à borda da esplanada (ROSA, 1949b).
Questionado sobre os seus versos, sua literatura e do apreço que Rosa atribui
aos seus poemas, Klabin se mostra modesto:
Fux: Aqui, nessas cartas, o Guimarães Rosa elogia muito suas poesias.
Klabin: Isso era sacanagem dele. Era a amizade que ele tinha pela família.
Fux: Porque aqui (nas cartas) têm coisas muito interessantes.
Klabin: Eu tenho autocrítica suficiente para saber que era de segunda ordem.
Aquela época era uma época muito hormonal. Ele era amicíssimo meu, ele gostava
muito de mim. Eu me lembro quando foi já mais tarde, eu já estava até separado
da Lina, mas eu ia visitá-lo quando estava aqui. Ele tinha o escritório dele no
3
Publicação particular.
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4
Palácio do Itamaraty, aquela entrada do lado, era o departamento de Geografia ,
era um buraco que jogaram ele lá, porque, sei lá, talvez o pessoal não gostava
dele, não sei, naquela época. Eu fui visitá-lo lá depois de 64. E ele estava lá
naquele buraco dele lá. E a gente assentava lá e ficava conversando, conversando
sobre um monte de coisas (KLABIN, 2011a).
Outras lembranças de Klabin ainda podem ser encontradas na carta de 1963: “o
seu escritório no Itamaraty. Mapas, alfarrábio, levantamentos aerofotogramétricos.
5
Alquimia ou geografia ?” (KLABIN, 1963). Já Rosa, em sua carta do dia “17.VII.49”,
cita e comenta vários trechos dos poemas de Klabin. Essas passagens podem ser
encontradas no livro Poemata. Mesmo com essa amizade e proximidade, as palavras
de Rosa são calorosas e os elogios são grandes, sinceros e apresenta um Klabin
verdadeiramente poeta.
Mas, dessa poesia, deixe-me brincar de achar a chave. O poeta K. é tentado, é
abrigado, inicialmente, não a apoderar-se do mundo, mas a descobrir, na agitação
do mundo, um qualquer ponto de apoio, se não um sistema de leis, dissimulado no
caótico. Assim, o poeta K. se angustia: I) por querer ser, ou ver-se obrigado a ser
um centro consciente (‘o monstro sapiens foge de casa’/ ‘olhamos medrosos o
interior das velhas questões’/ ‘e sem mais reis... e sem mais deuses’/ ‘entramos,
monstros em estranha estrada, ladeada...’. [...] Perdoe-me. Não estou cortando
aos pedacinhos seus belos poemas, para reconstruí-los, arbitrariamente, como uma
invenção de ‘puzzle’. (Vê bem que as constantes existem neles, e também que, no
fluxo da criação poética, não haja lógica de sucessão, mas simultaneidade,
transposições involuntárias, anteposição e instantâneos ‘anacronismos’). Não estou
analisando. Não estou fazendo ludismo. Obedeci, apenas, a uma sugestão, de
momento, que seus versos me transmitiram. Poder sugerir, com força, não será o
mais importante para o poema? (ROSA, 1949b).
Talvez o que tenha levado Rosa a apreciar tanto os versos do poeta K. tenha
sido, além da amizade, o grande o gosto pela literatura francesa:
Fux: E o que o Senhor lia?
Klabin: Sobretudo literatura francesa. [...] Minha vida era muito focada em
erudição literária, música, um viciado (KLABIN, 2011a).
A entrevista com Israel Klabin transcorreu bem. Além de suas relações com
Guimarães Rosa, que descreveu com detalhes, como mostrado nas partes transcritas,
Klabin falou sobre seus tempos de juventude, seu amor pela literatura (que ainda
preserva), suas andanças pelo mundo. Comentou, também, acerca de sua próxima
relação com o sionismo e a participação em algumas atividades em favor do Estado de
Israel. Nessa primeira parte tentei inserir pequenos pontos convergentes entre as
lembranças de Klabin e a vida, já bastante estudada, de Rosa.
4
5
Na verdade Rosa, promovido a embaixador, não chefiou embaixada nenhuma. Preferiu, apesar
de insistentes convites, a permanecer no cargo de Chefe do Serviço de Demarcação de
Fronteiras.
Na Revista de Estudos Avançados 58, há um artigo que mostra a paixão de Rosa pela Geografia.
“Guimarães Rosa e a Geografia”.
122
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Aracy, Rosa e a questão judaica
Muitos livros simplesmente dizem que Guimarães Rosa emitiu vistos para que
judeus não fossem mortos durante a 2ª Guerra Mundial, mas somente Aracy de
Carvalho Guimarães Rosa e Luis Martins Souza Dantas possuem o título de Justo entre
6
as Nações . Qual teria sido, de fato, a participação de Rosa? É muito perigoso ser
genérico ao relatar um acontecimento de tamanha grandeza como fez, por exemplo,
Vicente Guimarães ao dizer: “apoiado por sua mulher, Aracy, Rosa decidiu ajudar os
judeus que o procuraram a escapar do país, para não serem mortos pelo regime
nazista. Para isso, emitia passaportes sem a letra J que os identificaria, dando vistos
de entrada para o Brasil” (GUIMARAES, 2006, p. 176). Isso não está correto, já que foi
Aracy que comprovadamente ajudou os judeus (como será discutido). Rosa não tinha
autonomia para dar vistos e nem emitir passaportes, como mostraremos ao longo do
artigo. Moacyr Scliar também comete o mesmo preciosismo ao escrever, na introdução
do livro Joãozito: a infância de João Guimarães Rosa que o “cônsul-adjunto em
Hamburgo (Rosa) durante a época do nazismo, salvou muitos refugiados judeus,
concedendo-lhes vistos para o Brasil” (SCLIAR, 2006, p. 6). A Revista Bravo publicou
uma reportagem em 2008 com trechos do Diário de Guerra de Guimarães Rosa.
Acerca da concessão de vistos, Mariana Delfini escreve:
A sua consternação com a perseguição originou a história de que Rosa teria
ajudado judeus a fugir da Alemanha. Não há, contudo, documentos que
comprovem esses atos. A historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, especialista em
holocausto e professora da USP, procurou informações no Itamaraty e não
encontrou nada. “Tenho a impressão de que ele tomou muito cuidado para não
deixar rastros”, diz Maria Luiza (DELFINI, 2008, p. 36).
Em seu livro O Brasil e a Questão Judaica, Jeffrey Lesser apresenta as
controvertidas relações entre o governo brasileiro e os judeus. O que interessa aqui,
sobretudo, é o período em que Guimarães Rosa, cônsul-adjunto de Hamburgo (19381942), viu e ouviu os terríveis relatos acerca da perseguição de judeus na Europa. “Em
1937, o Ministério das Relações Exteriores emitiu um Circular Secreta 1.127,
autorizada pessoalmente por Getúlio Vargas. Essa circular proibia a emissão de vistos
para pessoas de origem ‘semítica’, causando uma queda de 75% na imigração judaica
durante o ano seguinte. A rigorosa aplicação das poucas cláusulas que permitiam a
entrada de judeus fez seu número diminuir ainda mais” (LESSER, 1995). Diante da
Circular
Secreta
1.127
e
da
troca
de
correspondência
antissemita
entre
as
embaixadas, como se portaram Rosa e Aracy?
Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa nasceu em Rio Negro, Paraná, em
1908 e faleceu em 2011. Poliglota, funcionária graduada do Consulado Brasileiro em
Hamburgo, onde conheceu Rosa em 1938, é considerada um Justo entre as Nações
pelo museu Yad Vashem (importante título recebido em 1982 para aqueles não judeus
que arriscaram a vida para salvar judeus da Shoah), por ter ajudado judeus durante a
perseguição nazista. Esse título só foi concedido, até hoje, a dois brasileiros: Aracy
Moebius e Luiz Martins de Souza Dantas, também por sua ajuda aos judeus
perseguidos na França, onde serviu como Embaixador do Brasil no início dos anos 40.
6
Disponível em: http://www.arqshoah.com.br/galeria_justos.aspx. Acesso em 13/06/2011.
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Luiz Martins de Souza Dantas ainda é um desconhecido, apesar de comprovada
sua participação efetiva na concessão de vistos a judeus. Justo entre as Nações ainda
não foi descoberto pelo público acadêmico como Aracy. Segundo Avraham Milgram
“Souza Dantas foi durante muito tempo ignorado pela literatura
e continua
desconhecido pelo público geral. [...] Suas atividades em favor dos judeus foram
diametralmente opostas à política e ao tom no Itamaraty durante esse período (1922
– 1943)” (MILGRAM, 2007, p. 402). A participação tanto de Souza Dantas como a de
Aracy é comprovada, já a participação de Rosa ainda resta um mistério. Assim
continua Milgram: “Não só no serviço consular brasileiro da Alemanha ocorreram
‘irregularidades’ em matéria de vistos, o mesmo ocorria nos consulados da França.
Com a diferença que na França era o embaixador quem fornecia os vistos aos judeus.
Souza Dantas [...] agiu de forma excepcional em relação aos refugiados judeus
concedendo-lhes centenas de vistos diplomáticos, em sua grande maioria na segunda
metade de 1940” (MILGRAM, 2007, p. 404). Um dado interessante e que podemos
aproximar com Rosa é o fato de que a primeira mulher de Souza Dantas era judia e
que ele tinha um grande amigo judeu, o que possivelmente influenciou sua ajuda
efetiva na emissão de vistos e o seu filossemitismo (no caso de Rosa, a estreita
ligação com a família Haas e Klabin). Assim escreve Milgram:
Souza Dantas estava perto dos 60 anos de idade quando se casou pela primeira vez
com Aliza Meyer, judia norte-americana. Considerando que membros do Itamaraty
casavam-se com mulheres que pertenciam por tradição, status e liames da classe
política à aristocracia, o casamento de Souza Dantas com uma judia nos anos 1930
foi sem dúvida algo excepcional e anticonvencional. Além de sua recente esposa,
havia na Embaixada que Souza Dantas depositava confiança, o veterano
funcionário Levy, judeu naturalizado brasileiro, competente e falando corretamente
o português. Segundo Luthero Vargas, a Embaixada ‘é feita somente pelo Levy’
(MILGRAM, 2007, p. 403).
O artigo de Milgram analisa bem a postura do Itamaraty frente a questão
judaica além de revistar os trabalhos de Lesser e Tucci Carneiro. Milgram exalta, com
razão, a participação de Souza Dantas, mas em nenhum momento fala da atuação de
Rosa ou de Aracy (apenas sugere: “não só no serviço consular brasileiro da Alemanha
ocorreram ‘irregularidades’ em matéria de vistos”).
Dona Aracy, o anjo de Hamburgo, “embora o cargo ocupado não permitisse
assinar documentos oficiais de concessão de visto, era responsável pelo contato com
os requerentes” (JACOBSEN e VILELA, 2006). De acordo com a Concise Encyclopedia
of the Holocaust, publicada pela International School for Holocaust Studies, Yad
Vashem, Aracy começou a ajudar os judeus depois do progrom conhecido como Noite
dos Cristais, ocorrido em 1938. Naquela fatídica noite, prenúncio da Shoah, nazistas
na Alemanha e Áustria destruíram sinagogas, atacaram residências judaicas e
mataram muitas pessoas. Sabendo da perseguição aos judeus e da necessidade de
fugirem da Europa, Aracy fez o que julgava ser justo e correto. Segundo o relato de
seu filho, Eduardo de Carvalho Tess: “minha mãe não achava aquilo justo, ignorou a
determinação e, com a maior discrição, continuou a preparar os processos de vistos
para judeus, à revelia de seus superiores” (TESS, 2008). Como não possuía o poder de
emitir vistos sozinha, possivelmente contou com a cumplicidade (ou enganou) um
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funcionário da polícia de Hamburgo, que passou a emitir passaportes para judeus sem
o “J” vermelho que os impedia de entrar no Brasil. “Depois, ela enfiava os vistos no
meio da papelada que despachava com o cônsul-geral, que os assinava sem ver”
(TESS, 2008).
Além de “enfiar os vistos no meio da papelada que despachava” Aracy ainda
arriscou sua vida usando clandestinamente o carro do consulado para transportar
judeus que se escondiam e, também, para distribuir alimentos aos judeus, desviando
da cota que o consulado recebia. “Muitas vezes, ela transportou judeus no porta-malas
do carro. Chegou a levar um deles no carro do consulado – me lembro que era um
Opel Olympia alemão – para a Dinamarca” (TESS, 2008). Mesmo interpelada pela
Gestapo, Aracy enfrentava os policiais: “minha mãe exibia muita segurança e
autoridade; os alemães respeitavam a autoridade” (TESS, 2008). Além disso, alguns
testemunhos de sobreviventes atestam a participação efetiva de Aracy como é o caso
de Margareth Bertel Levy, que em 2006, gravou um depoimento ao historiador René
Decol: “Aracy me levou pessoalmente ao navio, usando seu passaporte diplomático”.
No documentário Os nomes do Rosa de 1997, Margareth Levy aparece, também,
dando seu testemunho em favor de Dona Aracy, responsável pela sua vida. De acordo
com seu filho Eduardo Tess (que também aparece nesse mesmo documentário) “pelas
informações que tenho, minha mãe deve ter salvo, no total, cerca de cem pessoas”.
7
Em 1983, ao receber a homenagem do Yad Vashem, Aracy disse: “Nunca tive medo ,
quem tinha medo era o Joãozinho. Ele dizia que eu exagerava, mas não se metia
muito e me deixava ir fazendo” (Jornal do Tarde, 1968). Em Os nomes do Rosa Aracy,
com 89 anos e visivelmente enferma, perguntada por Pedro Bial se ela tinha medo de
fazer coisas ilegais para salvar judeus, responde com certa dificuldade -”não”. -”E o
Joãozinho”, pergunta novamente Bial, -”não”, responde Aracy. De acordo com o site
ArqShoah, a declaração dada por Aracy acerca da participação de Rosa ao Jornal da
Tarde é corroborada:
João Guimarães Rosa foi nomeado como cônsul-adjunto do Consulado em
Hamburgo em 1938. Também desquitado, acabou se relacionando com Aracy.
Segundo Aracy, em entrevista fornecida ao jornal Resenha Judaica em 1988, João
sempre lhe dizia que qualquer dia ela iria desaparecer, tamanho risco que ela
corria. Separados de antigos casamentos, viviam em casas diferentes, sendo ela
quem abrigava os judeus em sua casa8.
Apesar do medo, de seu cansaço de esperança, segundo alguns estudiosos,
Rosa estava era dando batalha. De acordo com a pesquisadora Ana Luiza Martins
Costa “Guimarães Rosa e dona Aracy ajudaram muitos judeus a fugirem da Alemanha
durante a guerra – pelo que foram, mais tarde homenageados” (COSTA, 2006, p. 18).
E conforme Adriana Guimarães Jacobsen e Sônia B. M. Vilela:
7
8
Segundo Hanna Arendt “Nas condições do terror total, nem mesmo o medo pode aconselhar a
conduta do cidadão, porque o terror escolhe as suas vítimas independentemente de ações ou
pensamentos individuais” (ARENDT, 1989, p. 519-520).
Disponível em: http://www.arqshoah.com.br/galeria_justos.aspx. Acesso 13/06/2011.
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Guimarães Rosa, na função de cônsul-adjunto, tampouco tinha, via de regra,
autonomia para assinar os vistos expedidos pelo consulado. O documentário (Outro
Sertão) procura detectar o papel exercido por ele nesse contexto através de uma
análise detalhada da correspondência diplomática do período, do relado de
historiadores e da comparação com dados de outras representações diplomáticas
brasileiras na Alemanha. E, acima de tudo, através dos testemunhos dos
sobreviventes ou de seus descendentes. Nas lembranças e no cotidiano dessas
pessoas, o filme encontra não apenas indícios sobre a vida de Guimarães Rosa, mas
revelações sobre a história da emigração para o Brasil naquele momento
(JACOBSEN e VILELA, 2006, p. 4).
O testemunho de Israel Klabin corrobora com as teorias de Costa, Jacobsen e
Vilela:
Fux: Os estudos mostram que a Aracy inseria os papéis para conseguir os vistos
para os judeus fugirem da Alemanha. E ela é considerada um justo.
Klabin: Sim, estou sabendo dessa história. Tinha até um número de vistos que ela
deu que eu não me lembro qual era.
Fux: A questão que gostaria de saber é se o Guimarães Rosa estava consciente
disso.
Klabin: Absolutamente consciente. Ele era um filossemita. [...]
Fux: E o Senhor acha que durante essa passagem do Guimarães por Hamburgo,
quando a Aracy estava fazendo isso com os vistos, você acha que ele... porque tem
uma corrente de estudiosos que querem mostrar que o Guimarães era um justo.
Klabin: Ele era um justo. Era ele que dava os vistos.
Fux: Não. Ele não tinha autonomia para isso.
Klabin: Sim, mas ele conseguia. A Aracy não conseguiria fazer isso sozinha. Quem
conseguia fazer isso era ele. Você já teve lá em Yad Vashem? Eu estive e vi lá a
árvore em homenagem a ela. Mas ele merecia também (KLABIN, 2011a).
Na entrevista concedida a Günter Lorenz, realizada em janeiro de 1965, Rosa,
perguntado sobre sua participação na emissão de vistos, não é muito claro nem muito
preciso nas suas respostas, apesar de insinuar seu conhecimento e sua luta como um
verdadeiro jagunço:
Lorenz: Gostaria de concluir que todos esses assuntos enumerados tiveram grande
importância em sua vida: a diplomacia, os cavalos, as religiões, os idiomas. Você
goza também de uma fama legendária: dizem que você domina muitos idiomas, e
que aprendeu alguns deles apenas para poder ler um determinado autor em sua
versão original. Sabe-se também que como diplomata e exercendo as funções de
cônsul geral do Brasil em Hamburgo, você provocou Hitler fora das normas da
diplomacia, e salvou a vida de muitos judeus...
Rosa: Tudo isso é verdade, mas não se esqueça de meus cavalos e de minhas
vacas. As vacas e os cavalos são seres maravilhosos. Minha casa é um museu de
quadros de vacas e cavalos. Quem lida com eles aprende muito para sua vida e a
vida dos outros. Isto pode surpreendê-lo, mas sou meio vaqueiro, e como você
também é algo parecido com isto, compreenderá certamente o que quero dizer.
Quando alguém me narra algum acontecimento trágico, digo-lhe apenas isto: “Se
olhares nos olhos de um cavalo, verás muito da tristeza do mundo!” Eu queria que
o mundo fosse habitado apenas por vaqueiros. Então tudo andaria melhor
(COUTINHO, 1983, p. 77).
126
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Nesse primeiro momento da entrevista, quando Lorenz toca no importante
assunto de sua suposta batalha contra Hitler, Rosa apenas responde que tudo o que
lhe foi perguntado era verdade, mas não entra em detalhes. Já no segundo momento
Rosa e Lorenz são mais categóricos:
Lorenz: Esta diferença não é resultado, digamos assim, de unidades de experiência
de diferentes graus? Atrás dessa definição também se oculta muito de política.
Rosa: E exatamente isso! A política é desumana, porque dá ao homem o mesmo
valor que uma vírgula em uma conta. Eu não sou um homem político, justamente
porque amo o homem. Deveríamos abolir a política.
Lorenz: Foi isto que em Hamburgo levou você a se arriscar perigosamente,
arrebatando judeus das mãos da Gestapo?
Rosa: Foi alguma coisa assim, mas havia também algo diferente: um diplomata é
um sonhador e por isso pude exercer bem essa profissão. O diplomata acredita que
pode remediar o que os políticos arruinaram. Por isso agi daquela forma e não de
outra. E também por isso mesmo gosto muito de ser diplomata. E agora o que
houve em Hamburgo é preciso acrescentar mais alguma coisa. Eu, o homem do
9
sertão, não posso presenciar injustiças . No sertão, num caso desses
imediatamente a gente saca o revólver, e lá isso não era possível. Precisamente por
isso idealizei um estratagema diplomático, e não foi assim tão perigoso. E agora me
ocupo de problemas de limites de fronteiras e por isso vivo muito mais limitado,
Lorenz: Não estou muito convencido de que seus colegas, neste caso seus colegas
diplomatas, aprovarão incondicionalmente esta definição.
Rosa: A maioria deles, que não são verdadeiros diplomatas mas apenas políticos
frustrados, vai me considerar louco. Espero que você também não me considere
assim. Mas eu jamais poderia ser político com toda essa constante charlatanice da
realidade. O curioso no caso é que os políticos estão sempre falando de lógica,
razão, realidade e outras coisas do gênero e ao mesmo tempo vão praticando os
atos mais irracionais que se possam imaginar. Talvez eu seja um político, mas
desses que só jogam xadrez, quando podem fazê-lo a favor do homem. Ao
contrário dos ‘legítimos’ políticos, acredito no homem e lhe desejo um futuro. Sou
escritor e penso em eternidades. O político pensa apenas em minutos. Eu penso na
ressurreição do homem (COUTINHO, 1983, p. 78).
Segundo Heloísa Vilhena de Araújo em seu livro Guimarães Rosa: Diplomata,
Rosa seria contrário ao totalitarismo nazista e esta seria sua luta. Uma luta
diplomática e não política já que “nessas condições, a atividade de Guimarães Rosa no
Consulado-Geral em Hamburgo, em favor dos judeus perseguidos, seria um exemplo,
não de ação política pois ação política era o Nazismo, mas sim de uma ação
diplomática” (ARAUJO, 1987, p. 36). Assim, mesmo sem apontar diretamente o que de
fato fez Rosa em favor dos judeus, Vilhena de Araújo recorre à entrevista de Rosa a
Lorenz e discorre sua argumentação com base na diplomacia, na justiça e numa ação
contrária ao Nazismo:
O próprio Guimarães Rosa descreve este domínio avassalador do político na
Alemanha nazista, em seu conto ‘O Mau Humor de Wotan’. Neste conto, fica claro o
totalitarismo, a tirania da política na vida da Alemanha, penetrando os rincões mais
escondidos da vida da população. É a esse totalitarismo que ele se refere quando
diz a Lorenz, que lhe perguntara sobre sua atividade em Hamburgo em favor dos
judeus perseguidos pelo Nazismo, ‘eu, o homem do sertão, não posso presenciar
injustiças’. A tirania do político é, para ele, injustiça (ARAUJO, 1987, p. 35-36)
9
Também citado por Felipe Fortuna em “Guimarães Rosa, viajante”.
127
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Infelizmente
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no
livro
Guimarães
Rosa:
diplomata,
apesar
dos
anexos
apresentarem algumas cartas de Rosa, não encontramos nenhuma outra referência a
esse caso, apenas o citado nas passagens acima.
Já o texto de Felipe Fortuna “Guimarães Rosa, viajante” presente no livro O
Itamaraty na cultura brasileira, mostra e tenta demonstrar a efetiva participação e
preocupação de Rosa com os judeus durante sua época de Hamburgo:
É evidente que a atuação de Guimarães Rosa em Hamburgo, no período dificílimo
de 1938 a 1942, não se reduz à rotina consular e à coleção de casos pitorescos. Ao
contrário, durante sua passagem pelo Consulado, não apenas a sua capacidade de
trabalho foi testada à exaustão, mas também o alto valor do seu humanismo. No
ainda debatido tópico das diretrizes governamentais brasileiras sobre a emissão de
vistos para judeus, Guimarães Rosa surge engrandecido por sua sensibilidade e
sentido de dever moral, que em alguns momentos estiveram mais elevados do que
algumas das instruções existentes, marcada pela ambiguidade e por visível
laxismo. Um historiador com Jeffrey Lesser considera o Cônsul em Hamburgo ‘an
extremely concerned and helpful diplomat’, que logrou sobrepor-se a uma
sequencia de contradições existentes em alguns documentos sobre a política de
imigração brasileira. [...] Lesser acerta ao informar que o diplomata costumava
ajudar as vítimas judaicas e emitia mais vistos do que a cota estipulada em lei
(FORTUNA, 2002, p. 372).
Nos “Diários de Guerra” de Rosa encontramos sutis passagens sobre esse
acontecimento, como mostrado no estudo de Ana Luiza Martins Costa:
23.II.940 – [...] em Budweis, cidade do sul da Bohemia [...] os judeus só poderão
andar de bonde nas plataformas. Primeira cidade a introduzir isso.
20-IX-941 – Ontem começou a obrigação do destinctivo na roupa dos judeus [faz o
desenho de duas estrelas-de-davi; numa delas, ao centro, está escrito “judeu”].
Hoje, à tarde, vi o primeiro [...]
22-X-941 – [...] judias chorando no Consulado, por terem recebido a ordem de
evacuação de Hamburgo, para o dia 24. Horrível (COSTA, 2006, p. 17).
Existem, ainda, outros estudos acerca desses diários de Guimarães Rosa, como
o ainda não publicado Diário de Guerra de Guimarães Rosa de Eneida Maria Souza,
Georg Otte e Reinaldo Marques. Jaime Ginzburg, em sua pesquisa de pós-doutorado
realizada na UFMG, trabalhou no Acervo dos Escritores Mineiros com os diários de
Rosa e publicou o artigo “Notas sobre o ‘Diário de Guerra de João Guimarães Rosa’”.
Nesse rigoroso estudo, Ginzburg mostra como as constantes ameaças de bombas, as
sirenes e o medo perturbaram Rosa e como ele registrou detalhadamente esses
acontecimentos. Algumas passagens são úteis para este estudo.
Na sua composição, o “diário alemão” de Guimarães Rosa engloba uma diversidade
de registros e escritas: [...] registro de fatos ligados ao desenrolar da guerra;
comentários de leitura de jornais, com críticas às medidas dos nazistas relativas
aos judeus, etc. (MARQUES, 2009, p. 329).
Não há aqui como ou por que especular, se o autor tivesse estendido seu “Diário”
mais longamente, por exemplo, até 1943, se não teria se convencido de que
deveria tomar partido contra o nazismo. Em vez de entrar nesse campo
especulativo arriscado, é melhor permanecer nos limites da delimitação do texto.
128
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Rosa não era simpatizante do autoritarismo alemão. Porém, um raciocínio político e
ideológico esquemático poderia pressupor que, como implicação segura de não
estar identificado com o nazismo, o escritor estaria comprometido com a causa de
sua eliminação, através do apoio às forças organizadas em torno dos Estados
Unidos. A leitura do ‘Diário’ não sugere nem um nacionalismo pró-americano, ou
anglófilo, nem um comprometimento geral com um dos lados da guerra. De fato, o
‘Diário de Guimarães Rosa’ aponta para uma crítica da violência de um modo mais
abrangente. Essa inclinação se articula com uma inconformidade com a violência da
guerra que ultrapassa uma expectativa de propor um debate das eventuais
justificações políticas para sua realização, e passa a uma posição avessa à
necessidade de atos de violência, independentemente de definições de quaisquer
justificativas (GINZBURG, 2010, p. 97).
Como já mostrado por Ana Luiza Martins Costa e reafirmado por Reinaldo
Marques na passagem acima, Rosa sentia-se incomodado com o tratamento e com as
medidas aplicadas aos judeus. Na argumentação de Ginzburg percebemos que Rosa
ainda não tinha tomado uma posição política. Entretanto, o fato mais importante, é
que nesses diários Rosa, homem do sertão, é avesso a qualquer ato de violência,
independentemente de definições de quaisquer justificativas. Também, em uma carta
de Rosa à Pedro Barbosa (20.05.1939), escreve: “Somos acossados de pedidos, rogos,
prantos, ameaças, o diabo! Tenho visto e ouvido coisas absurdas, impossíveis. E...
10
nem sempre a gente pode atender”
(CAMPOS apud COSTA, 2006, p. 16).
No documentário Os nomes do Rosa, Haroldo Campos (também referenciado por
Ana Luiza Martins Costa) fala sobre a atitude de Guimarães Rosa em prol dos
refugiados judeus:
[...] ele começou a dizer uma coisa que me espantou muito, porque as pessoas
diziam que Rosa era conservador, um embaixador do Itamaraty... Ele começou a
me falar do fascismo: ‘- Você não sabe, mas o fascismo é o Demo. Porque eu sei,
eu estive lá e eu sei que é o Demo. Eu tive que lidar com alemães para proteger
refugiados judeus... e não dou mais detalhes’. E eu fiquei espantado, porque não
sabia daquela história toda, e depois eu vim a conhecer o fato real, de
depoimentos, e, de fato, ele teve um papel de grande bravura pessoal e de grande
bravura ética – eu acho que ele era cônsul do Brasil em Hamburgo -, dando
respaldo a judeus que queriam fugir da Alemanha nazista. O que é muito bonito do
ponto de vista ético e desmente aquela imagem de um Rosa ausente, protocolar,
ligado mais àquelas pompas de embaixador. E, de fato, ele era um homem de
grande vivência humana (CAMPOS apud COSTA, 2006, p. 49).
Em “A imagem da Alemanha em Guimarães Rosa como retrato auto-irônico”,
Paulo Astor Soethe, conjecturando um teor testemunhal dos contos “O mau humor de
Wotan”, “A senhora dos segredos” e a “A velha” (como indica Jaime Guinzburg),
sugere uma culpa de Rosa, dada a sua impossibilidade de atuar diretamente na
emissão de vistos. O artigo começa mostrando a germanofilia e o profundo
conhecimento
do
alemão
que
Rosa
possuía.
Soethe
apresenta
exemplos
de
neologismos presentes em Rosa com base em palavras e estruturas dessa língua.
Inicialmente um admirador da cultura alemã, Rosa, de acordo com Georg Otte (2002),
mostra um desencantamento progressivo em virtude da realidade política que
encontrou na Alemanha durante sua estada (1938-1942). Segundo Soethe, esses
contos do Ave, palavra, sugerem certa ironia e descaso com a cultura alemã devido a
esse desencanto.
10
Fato também descrito ficcionalmente em seu conto “A velha”.
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A argumentação de Soethe, entretanto, caminha para outra constatação.
Partindo da hipótese de que a obra de Rosa tem um teor testemunhal, principalmente
nos contos “O mau humor de Wotan”, “A senhora dos segredos” e a “A velha”, o autor
sugere um vazio referencial na afirmação que Rosa fez a Lorenz (“Eu, o homem do
sertão, não posso presenciar injustiças”). Segundo Soethe, esses contos seriam uma
referência autobiográfica e escreve: “em ambos (“A velha” e “A senhora dos
segredos”) o diplomata nega-se a prestar ajuda para a emigração de uma mulher
alemã, apesar da situação ameaçadora em que ela se encontra” (SOETHE, 2005, p.
296). Mais a frente o autor discorda de outras fontes:
Guimarães Rosa, que mereceu diversas vezes elogio e consideração por seu
engajamento em favor dos judeus (cf. ARAUJO, 1987, p. 17; entre outros), parece
desvelar a ambivalência de suas atitudes com a máscara reveladora da ficção. A
meu ver, pode-se entrever sob a dicção literária a confissão indireta das omissões
cabíveis a um diplomata brasileiro na Alemanha. Amadurece assim a simpatia de
Rosa pela cultura alemã, antes idealizada. Precisa abdicar da identificação ingênua
com a terra de poetas e pensadores e, ao mesmo tempo, por via irônica, partilhar
com ela a tarefa de luta e arrependimento diante dos crimes cometidos nos anos 30
e 40, não apenas sob o Estado nazista (SOETHE, 2005, p. 296-297).
Georg Otte, em “O ‘Diário de Guerra’ de Guimarães Rosa” encontra passagens
que mostram o maniqueísmo vivenciado por Rosa em relação à cultura alemã.
Rosa não fecha os olhos ao nazismo e fica indignado diante da proibição que
impede crianças judias o acesso a uma praia pública. O choque entre passado com
conotações positivas e o presente que coincide com uma das fases mais nefastas
da história alemã certamente constitui mais um fator para o já mencionado
distanciamento de Rosa diante dos acontecimentos concretos. Cabe ressalta que,
em momento algum, Rosa manifesta qualquer simpatia, ou mesmo compreensão,
pelo regime nazista, fato este que parece ser óbvio diante do notório humanismo
do nosso autor, mas que não deixa de ser notável diante das simpatias que vários
integrantes do Estado Novo cultivavam pelos países do eixo (OTTE, 2006, p. 35).
Jaime Guinzburg, em “Guimarães Rosa e o terror total”, revisita o artigo de
Soethe, esclarecendo alguns pontos. Sobre os contos, escreve:
Os contos permitem formular a hipótese de que Guimarães Rosa tenha, em sua
trajetória como diplomata, enfrentado difíceis situações. A embaixada, como lugar
de mediação entre Alemanha e Brasil, pode ser um espaço em que afloram tensões,
conflitos ideológicos e problemas militares. Esse espaço deveria ser particularmente
difícil se Rosa era contrário ao antissemitismo e, como sugere Soethe, preferia o
pacifismo à violência nazista. Se encararmos os contos como dotados de teor
testemunhal, então o foco de interesse da leitura não consiste na confirmação dos
fatos biográficos como tais. Na combinação de elementos biográficos com
elaboração ficcional, Rosa pode obter um alcance político e ético importante para
sua produção (GUINZBURG, 2010, p. 23).
Assim, segundo Guinzburg, em seu texto ficcional, Rosa pôde mostrar a sua
completa limitação para intervir e modificar tal situação.
A atitude do Brasil em relação à entrada dos judeus é controversa. O estudo de
Jeffrey Lesser mostra que “a conjuntura das relações do Brasil com as potências
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aliadas de um lado e a gama de interesses econômicos advinda de dentro do país de
outro foi o que possibilitou a reformulação da imagem do judeu e a consequente
entrada de contingentes imigratórios, apesar das pressões ideológicas nacionalistas e
nativista em contrário. Segundo o autor, a imagem negativa do judeu foi reprocessada
a partir das necessidades da política externa brasileira que visava aproximar-se dos
EUA e da Inglaterra” (MILGRAM, 2007, p. 382). Já no estudo de Maria Luiza Tucci
Carneiro “a expressão ideológica nacionalista-antissemita do Estado Novo foi o fator
determinante na obstrução da entrada de judeus ao Brasil e a responsável pelo seu
balanço negativo” (MILGRAM, 2007, p. 382).
Lesser, em dois momentos, e com base nos documentos do Itamaraty, ressalva
a participação de Rosa na emissão de vistos a imigrantes: “O cônsul brasileiro em
Hamburgo, o poeta João Guimarães Rosa que foi preso pelos nazistas quando o Brasil
entrou na guerra ao lado dos Aliados, havia ajudado vítimas judias do nazismo no
passado e era conhecido por ultrapassar sua quota de emissão de vistos de
imigrantes” (LESSER, 1994, p. 269). Dessa forma, Rosa procurava agir dentro da lei
com o intuito de ajudar os judeus. Uma ressalva: Rosa foi retido (e não efetivamente
preso) em Baden-Baden durante quatro meses, já que em 1942, “com a ruptura das
relações diplomáticas entre o Brasil e os países do Eixo, o corpo diplomático e outros
funcionários brasileiros latino-americanos são internados num hotel em Baden-Baden
[...] permanecem confinados num hotel com suas famílias e sofrem racionamento de
comida e a proibição de sair à rua” (COSTA, 2006, p. 18).
Talvez o grande medo de Rosa fosse o de fazer concessões individuais para
obtenção de vistos, como fazia Aracy (apesar de que quem salva uma vida salva um
mundo inteiro). Lesser conjectura um possível plano ardiloso de Rosa para conseguir
legalmente muitos vistos a católicos não-arianos (aqueles que eram considerados
judeus pelos nazistas, devido a sua ascendência, mas que eram considerados católicos
pelo Vaticano, dada a sua conversão). No capítulo 5 do livro A questão judaica, é
narrado um episódio envolvendo a concessão ou não de vistos a católicos não-arianos
e as relações estabelecidas entre o governo de Getúlio Vargas e o Vaticano. O Vaticano
queria salvar os de fé cristã, mesmo com ascendência judaica, já que esses, para os
nazistas, eram judeus. Inúmeras negociações foram feitas, mas nenhum visto foi
fornecido. Vargas queria se promover como humanista para ser visto com bons olhos
pelos americanos, mas ao mesmo tempo não queria aceitar judeus no Brasil (dada a
vigência da Lei 1.127). Já o Vaticano queria salvar aqueles que praticavam e seguiam
a sua fé, mostrando assim sua ‘benevolência’. Acerca do esquema Vaticano-Vargas,
Rosa, de acordo com Lesser, diz que o “ignorava completamente”:
O cônsul declarou estar chocado com o fato de os refugiados estarem solicitando
vistos e comentou que eles ‘dizem ter recebido autorização do governo brasileiro,
em consideração especial ao Papa, para entrar em território nacional com vistos
permanentes’. Guimarães Rosa era um diplomata extremamente preocupado e
prestativo, mas, como praticamente todos os membros do regime Vargas, ele
considerava os católicos não-arianos como racialmente e imutavelmente ‘semitas
de religião católica’ ou ‘católicos judeus’. O que surpreendeu particularmente o
cônsul era que, entre os que se candidatavam a vistos para católicos não-arianos,
havia um número considerável de católicos alemães do alto clero que estavam
fugindo dos nazistas. Guimarães Rosa não era tolo, mesmo quando demonstrava
131
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saber como se fingir de bobo. A despeito da alegação do diplomata, ele de fato
sabia que haviam sido encaminhadas negociações para a concessão de três mil
vistos para católicos não-arianos. Ao perguntar inocentemente a Aranha a respeito
do plano, Guimarães Rosa anexou um a cópia de um telegrama do Cardeal
Maglione para o Cardeal Faulhaber sobre os católicos não-arianos, que ‘veio parar
em minhas mãos por acaso’. Fingindo supor, em benefício próprio, que Aranha
também desconhecia o plano (e sabendo que o ministro havia deixado de informar
a ele e a outros diplomatas a esse respeito), Guimarães Rosa propôs que o CIC
(Conselho de Imigração e Colonização) lhe concedesse uma quota especial
de mil visto, para que ele tratasse das solicitações novas e inesperadas dos
refugiados católicos. Aparentemente, esse pedido ficou sem resposta (LESSER,
1995, p. 278-279).
Estaria Rosa planejando um grande esquema para conseguir mil vistos e fazer
com eles o que desejasse? Rosa teria ou não participado efetivamente da emissão de
vistos e com isso salvado vidas? Conjecturas e mistérios que nunca serão respondidos.
Considerações finais
Não devemos esquecer de lembrar. O mandamento judaico da memória, o
Zakhor deve ser praticado, sobretudo para enaltecer os verdadeiros e revelados justos
e para tentar narrar, mesmo os acontecimentos indizíveis. “A memória só existe ao
lado do esquecimento: um complementa e alimenta o outro, um é o fundo sobre o
qual o outro se inscreve” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 53). Israel Klabin deu seu
depoimento, seu testemunho (no sentido testis) em favor da memória de Rosa. O seu
lembrar é a afirmação da sua vida e da sua existência. “Qualquer fato histórico mais
intenso permite – e exige! – o registro testemunhal tanto no sentido jurídico como
também no sentido de ‘sobrevivente’” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 9). A Shoah
tentou apagar a memória da História. Os lager foram instrumentos da eliminação física
e memorial da existência de muitos. O testemunho de Israel Klabin e os dos
sobreviventes da Shoah são inexatos e incompletos mas, como salientou Derrida: “o
testemunho tem sempre parte com a possibilidade ao menos da ficção, do perjúrio e
da mentira. Eliminada essa possibilidade, nenhum testemunho será possível e, de todo
modo, não terá o sentido de testemunho” (DERRIDA, 1998, p. 28).
Aqui percebemos a falta de informação, ainda, acerca do período em que Rosa
trabalhou na Embaixada Brasileira de Hamburgo. Os artigos, livros, documentários,
entrevistas, diários e pesquisas discutidos apresentam uma certa circularidade, já que
acabam citando e comentando as mesmas passagens sobre esse fato. Soethe e Otte
mostraram a proximidade de Rosa com as Letras e a cultura germânica. Neste estudo,
tento aproximar Rosa dos valores e da cultura judaica em virtude de sua convivência
calorosa com a família Klabin acrescentado, assim, uma nova e importante informação
em relação a esses estudos.
Este artigo teve, portanto, o intuito de agregar um pouco mais no mistério da
participação de Rosa durante seu período em Hamburgo. Com base nos documentos
históricos, relatos, livros e artigos confeccionou-se uma fundamentação teórica que foi
corroborada com o inédito testemunho de Israel Klabin. Ainda restam muitas dúvidas,
muitas questões, apesar de mais um passo ter sido dado para a lembrança positiva do
homem do sertão.
132
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Title
João Guimarães Rosa: a philo-semite? The Jewish issue, the letters and the
testimony of Israel Klabin
Abstract
This article aims to show the relationship between João Guimarães Rosa
and Israel Klabin’s jewish family. From the correspondence between Rosa and Klabin
and also from an interview granted to the author of this study, the philo-semitism of
Rosa is demonstrated. Furthermore, based on documents, books and deep research,
this article discusses the familiarity and proceedings of Rosa with regards to the issue
of conceding visas to Jews during his time in the Brazilian Embassy in Hamburg.
Keywords
Rosa. Nazism. Philo-Semitism. Anti-Semitism. Testimony.
Recebido em 17/02/2012. Aprovado em 28/06/2012.
135
Adorno e o jazz
Elder Kôei Itikawa Tanaka∗
Resumo
Este artigo pretende, a partir de algumas das formulações de Theodor Adorno
sobre o jazz, apresentar o diálogo estabelecido entre Adorno e seus críticos. Nosso
objetivo é procurar compreender as afirmações do crítico cultural alemão sobre esse
gênero musical, além de entender as especificidades do jazz como forma musical
norte-americana do início do século XX.
Palavras-chave
Theodor Adorno. Jazz. Estudos Culturais. Música.
O surgimento e evolução do jazz são descritos pelos seus historiadores como
momentos singulares dentro da história da música norte-americana. Os motivos para
essa relevância histórica residem em dois fatores principais: primeiro, no grau de
evolução técnica alcançado pelos músicos em um curto espaço de tempo; e segundo, a
importância do jazz na esfera social, uma vez que suas origens estão diretamente
ligadas à história dos negros norte-americanos no fim do século XIX e início do século
XX – período em que, mesmo em meio à segregação racial, os músicos negros foram
capazes de criar e desenvolver um gênero musical inovador que rapidamente ganhou
adeptos no mundo todo.
Tal reconhecimento da relevância histórica do jazz como forma de arte, no
entanto, não é uma unanimidade. Um dos exemplos mais famosos dessa discussão no
campo da teoria crítica musical se encontra no debate proposto por Theodor Adorno
em seus ensaios sobre música. Apresentaremos a seguir algumas das opiniões de
Adorno sobre o jazz e a música popular em geral, e o diálogo que estudiosos como J.
Bradford Robinson e Peter Townsend estabeleceram com o crítico cultural alemão.
Em “O fetichismo na música e a regressão da audição” (ADORNO, 1999, p. 65108), Adorno faz uma crítica à situação da música ocidental como um todo. Segundo o
crítico, houve uma inversão de valores da Grécia clássica para os tempos modernos.
Se na Grécia Antiga a função disciplinadora da música era uma qualidade, hoje todos
tendem a “obedecer cegamente à moda musical, aliás, como acontece igualmente em
outros setores” Tal processo teve duas consequências: a fetichização da música e a
regressão da audição. Na primeira, a música é transformada em mercadoria
consumida, e aqueles que a consomem “fabricam” o sucesso, coisificam-no e o
∗
Doutorando em Letras na FFLCH-USP.
Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v. 7, n. 1, p. 137-148, jan./jun. 2012
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aceitam como critério objetivo sem se reconhecer nele. Na segunda, a audição
moderna permanece num estado infantil, conservador, pois rejeita toda e qualquer
música que saia da ordem pré-estabelecida. Neste mesmo ensaio, Adorno cita Walter
Benjamin acerca do cinema em comparação com a música:
A observação de Walter Benjamin sobre a percepção de um filme em estado de
distração também vale para a música ligeira. O costumeiro jazz comercial só pode
exercer a sua função quando é ouvido sem grande atenção, durante um bate-papo
e, sobretudo, como acompanhamento de baile. [...] Contudo, se o filme como
totalidade parece ser adequado para a apreensão desconcentrada, é certo que a
audição desconcentrada torna impossível a apreensão de uma totalidade (ADORNO,
1999, p. 93).
Adorno afirma que o jazz é somente mais um braço da indústria cultural, um
“fenômeno de massa” sujeito a todas as limitações como obra de arte dentro do
capitalismo quanto o cinema ou a fotografia, e desvaloriza as improvisações
características do gênero. Afetadas pela “estandardização, a exploração comercial e o
enrijecimento do meio”, as improvisações do jazz são consideradas por Adorno meros
embustes:
as chamadas improvisações nada mais são que paráfrases de fórmulas básicas, sob
as quais o esquema, embora encoberto, aparece a todo instante. Até mesmo as
improvisações são em certo grau normatizadas, e sempre voltam a se repetir. [...]
Diante das enormes possibilidades de invenção e tratamento do material musical –
até mesmo, quando absolutamente necessário, na esfera do entretenimento –, o
jazz apresenta-se em um estado de completa indigência. O que ele utiliza das
técnicas musicais disponíveis é inteiramente arbitrário (ADORNO, 2001, p. 119).
Seguindo esse raciocínio, para Adorno o jazz é ruim porque desfruta dos
vestígios do que foi imposto aos negros, ou seja, a falta de liberdade e a sua condição
submissa ao mercado.
A vida no capitalismo tardio é um rito permanente de iniciação. Todos devem
mostrar que se identificam sem a mínima resistência com os poderes aos quais
estão submetidos. Isso se encontra na base da síncope do jazz que escarnece dos
tropeços e, ao mesmo tempo, os eleva à condição de norma (ADORNO, 2002, p.
54).
Peter Townsend, em Adorno on Jazz: Vienna versus the vernacular (1988, p. 6988), responde ao ensaio “Moda intemporal – sobre o jazz” (ADORNO, 2001, p. 117130), de Adorno, ao afirmar que o raciocínio do crítico alemão “pode ser resumido
como uma tentativa de identificar o jazz como um típico fenômeno de massa”
(TOWNSEND, 1988, p. 69 – tradução nossa). Além disso, “o perigo do jazz, na visão
de Adorno, é que ele possibilita aos seus adeptos imitar as atitudes da dissidência e da
rebeldia enquanto completa sua escravização às ordens do mercado” (TOWNSEND,
1988, p. 70 – tradução nossa).
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Townsend divide suas críticas em três partes: na primeira, afirma que o crítico
alemão simplesmente não conhece o jazz. Argumenta que sua falta de conhecimento
sobre o assunto é tamanha que é surpreendente o fato de ele se sentir preparado para
discorrer sobre o jazz e justapor esse ensaio aos seus textos sobre Schoenberg e J. S.
Bach, nos quais demonstra conhecimento técnico detalhado. A segunda crítica é em
relação aos artifícios retóricos utilizados por Adorno para desqualificar opiniões
contrárias à dele. A última crítica de Townsend é em relação à ausência de meio-termo
entre arte elevada e aquela absorvida pela indústria cultural.
“Existe ou a
intransigência criativa (que tem como arquétipos as versões de Adorno de Schoenberg
e Bach) ou a completa absorção [pelo mercado] [...]. Nenhuma outra relação entre
arte e sociedade é prevista ou, como parece, permitida” (TOWNSEND, 1988, p. 69-70
– tradução nossa).
Sobre a falta de conhecimento de Adorno em relação ao jazz, Townsend cita a
seguinte passagem de “Moda intemporal”:
O jazz é uma música que combina a mais simples estrutura formal, melódica,
harmônica, e métrica com um decurso musical constituído basicamente por
síncopas de certo modo perturbadoras, sem que isso afete jamais a obstinada
uniformidade do ritmo quaternário básico, que se mantém sempre idêntico
(ADORNO, 2001, p. 117).
Townsend afirma que a uniformidade do ritmo do jazz não exclui a variedade
(na verdade, os melhores músicos são julgados em parte pela sutileza e flexibilidade
com que lidam com esse ritmo básico). A falha de Adorno na avaliação estética desse
recurso é ainda mais evidente ao afirmar que o ritmo do jazz sustenta-se de maneira
“idêntica” no ritmo quaternário. De acordo com Townsend, isso deixa claro que, para o
ouvido de Adorno, o ritmo do jazz “consiste em uma sucessão inviolável e invariável
de compassos de quatro tempos, tão estéreis e monótonos quanto os tiques de um
relógio” (TOWNSEND, 1988, p. 72 – tradução nossa).
Uma das causas desse equívoco de Adorno com relação à natureza rítmica do
jazz vem de sua interpretação simplista do termo “síncope”. Townsend explica que,
para Adorno, a síncope do jazz se dá unicamente na ênfase das batidas normalmente
fracas do compasso, produzindo tensão entre essa acentuação e o padrão esperado.
Adorno restringe-se ao modelo abstrato e não busca em nenhum momento uma
experiência de como tal princípio se realiza. “Síncope”, no sentido restrito de que
Adorno se utiliza, é apenas um recurso entre uma infinidade de recuos, suspensões,
cruzamentos
e
multiplicações
de
frases
rítmicas.
Esse
amplo
repertório
de
possibilidades faz parte de uma experiência consistente e bem documentada de
milhões de ouvintes durante 70 anos de história do jazz. Para Townsend, Adorno
mostra uma inaptidão para escrever de maneira séria sobre o assunto que seria
escandalosa se fosse aplicada a uma das artes “elevadas” (TOWNSEND, 1988, p. 73).
Sobre os artifícios retóricos de Adorno, Townsend retira um exemplo, dentre
outros, do que ele chama de “figuração não-acidental”, ou seja, “uma maneira de
estabelecer um paralelo, sugerir um vínculo, até mesmo uma ligação causal, sem a
obrigação de fornecer qualquer tipo de comprovação” (TOWNSEND, 1988, p. 75 –
tradução nossa):
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Enquanto nas ditaduras europeias os líderes das duas tendências totalitárias
bradavam contra o aspecto decadente do jazz, a juventude de outros países já se
deixava eletrizar pelas danças sincopadas, cujas bandas se originaram, não por
acaso, de bandas militares (ADORNO, 2001, p. 126).
Analisando a estrutura sintática da oração e as pressuposições de Adorno,
Townsend estabelece o seguinte diagrama, que constitui uma relação entre música (à
esquerda) e política (à direita):
O jazz está para uma forma de ditadura assim como as marchas estão para outra.
[...] Nos é dito que as bandas de jazz, “não por acaso têm origem na música
militar”. Em outras palavras, há uma conexão genética entre ambas, cujo
significado mais amplo é sugerido pela frase “não por acaso”. O significado exato
dessa descendência genética não é explicitado por Adorno, mas sua sugestão
ambígua dá sinais de que há mais nela do que circunstâncias históricas. [...]
Certamente não foi por acaso, mas por força das circunstâncias econômicas que as
bandas militares foram uma das influências no desenvolvimento dos grupos de
jazz. Mas o que Adorno dá a entender não é nada mais do que um mero vínculo
histórico: a frase “não por acaso”, nesse contexto, pode ser tomada como “por
causa de uma profunda similaridade na sua natureza e função” (TOWNSEND, 1988,
p. 76 – tradução nossa).
Um dado importante sobre a história do jazz, fundamental para a melhor
compreensão do raciocínio de Townsend, é o fato de que o primeiro contato que os exescravos tiveram com instrumentos industrializados se deu por meio das sobras das
bandas militares da Guerra Civil (PERETTI, 1994, p. 13). A marcha produzida por tais
bandas é um gênero musical que reproduz, em termos marxistas, o trabalho alienado,
estabelecendo uma distinção entre criação e execução no processo produtivo. Sendo
assim, o músico não tem liberdade individual para exercer sua capacidade criativa
perante a partitura escrita pelo compositor ou os comandos do regente. Uma das
maiores contribuições do jazz à música ocidental foi justamente a ruptura desse modo
de produção na música, posto que os improvisos simultâneos dos músicos de jazz
nada mais são do que criação simultânea à execução.
Em outro trecho de “Moda intemporal”, Adorno afirma que
é possível que os Negro Spirituals, forma precursora do Blues, tenham unido,
enquanto música de escravos, o lamento sobre a falta de liberdade à sua
confirmação submissa. Aliás, é muito difícil isolar os elementos autenticamente
negros no jazz. É certo que o lumpemproletariado branco tomou parte na préhistória do jazz antes de este ter sido iluminado pelos holofotes de uma sociedade
que parecia estar à sua espera, já familiarizada pelo Cake-walk e pelo sapateado,
com os seus impulsos (ADORNO, 2001, p. 119),
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Na sua terceira e última crítica, Townsend faz comentários sobre o trecho acima.
Segundo ele, as
“Canções de escravos” em geral, ao que parece, confirmam a escravidão e, por
isso, são desprovidas de valor. Também não poderíamos esperar a contribuição
correta do “lumpemproletariado branco”, que não só divide a opressão
desvalorizante do negro, mas também atrapalha o processo de isolamento dos
“elementos autenticamente negros”.
Essa passagem revela dois importantes aspectos do campo no qual a teoria de
Adorno está situada. Primeiro, se estamos buscando contribuições válidas a uma
cultura corrompida, não deveríamos procurá-las em nenhuma das classes baixas.
Segundo, podemos observar no uso da palavra “autêntica” uma orientação
subjacente à pureza dos elementos que também é manifestada em outros de seus
ensaios. [...] [De acordo com Adorno], produtos culturais de valor não se originarão
nas classes oprimidas da sociedade, cuja escravidão projeta-se sobre suas criações,
as quais, deste modo, voluntariamente colocam-se à mercê da exploração pela
sociedade do consumo. A cultura também é um tanto retilínea: é importante
distinguir, por exemplo, música de salão da música séria, dado que o
desenvolvimento significativo ocorre somente na última. (TOWNSEND, 1988, p. 8182 – tradução nossa)
De acordo com J. Bradford Robinson (1994, p. 1-25), os ensaios de Adorno
sobre jazz, embora escritos entre 1933 e 1953, após a queda da República de Weimar,
estão intimamente conectados com a música produzida na Alemanha dos anos 1920, e
devem ser tratados levando-se esse fato em consideração. Mesmo seus últimos
ensaios sobre o gênero, em vez de reconsiderarem sua opinião sobre o assunto, têm o
objetivo de atualizar suas ideias sobre a música comercial da década de 1920, ou
corrigir algumas de suas deficiências. “Moda intemporal – sobre o jazz”, de 1953, por
exemplo, é escrito no momento em que Adorno já havia retornado dos Estados
Unidos, e resume vinte anos de reflexões sobre o gênero, corrigindo alguns equívocos
conceituais cometidos anteriormente. No entanto, as conclusões gerais a que chegou
sobre o jazz nas duas primeiras décadas do século XX são aplicadas anacronicamente
e ele é reestabelecido como “a música do fascismo”. Embora essa visão seja
perfeitamente aplicável à música comercial alemã dos anos 1920, no caso do jazz
norte-americano ela foi contestada por vários críticos da época (ROBINSON, 1994, p.
3). Adorno respondeu a um deles, Joachim-Ernst Berendt, em um ensaio intitulado
“Réplica a uma crítica a ‘Moda intemporal’” (ADORNO, 2001, p. 281-285):
Não acuso o jazz por sua selvageria ou anarquia, mas por sua docilidade e seu
caráter convencional. As dissonâncias e efeitos como as dirty notes não possuem
em nenhum lugar uma função harmônica constitutiva, são sempre meros
ingredientes estimulantes adicionados à harmonia tradicional. Por isso os “sons
falsos” que não existem em Schoenberg (ADORNO, 2001, p. 283).
Em “Introdução à sociologia da música” (1962), Adorno revê o uso do termo
“jazz” e o substitui por leichte Musik (música popular), mas suas conclusões são
praticamente as mesmas: o jazz não pode ter status de arte por ser cooptado
constantemente pela indústria cultural. Nesse último texto, Adorno denuncia sua
insistência na primazia da composição escrita em
detrimento à performance
improvisada. De acordo com Adorno, as conquistas dos músicos de jazz dentro das
restrições impostas pelo gênero não são mais importantes do que a existência de tais
restrições (ROBINSON, 1994, p. 3).
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Robinson enumera alguns motivos que justificam a opinião de Adorno em
relação ao jazz. O primeiro deles diz respeito à recepção do gênero na Alemanha nas
primeiras décadas do século XX. Enquanto Londres e Paris recebiam músicos como
Sidney Bechet e discos da Original Dixieland Jazz Band eram vendidos livremente na
Europa Ocidental, a Alemanha ainda se encontrava isolada cultural e economicamente
pelo bloqueio imposto pelos países Aliados. Não havia importação de gramofones e
nenhum artista norte-americano visitava o país. Como a demanda da classe médiaalta urbana por música para dançar crescia cada vez mais, esse isolamento fez com
que os artistas alemães produzissem uma música (denominada genericamente como
“jazz”) a partir de suas próprias tradições de música comercial, às quais foram
aplicadas as vagas noções do jazz norte-americano que eles possuíam até aquele
momento. Dessa maneira, o jazz alemão surgiu da união de “síncopes corrompidas do
ragtime” e um estilo de performance desinibida a três gêneros de música comercial
herdadas do período da Alemanha Imperial: a banda militar, a orquestra de salão e a
Radaukapelle – música vienense de salão tocada de maneira deliberadamente
distorcida por músicos-palhaços. Desses três gêneros, no entanto, foi o segundo que
obteve maior destaque nas origens do jazz alemão. A orquestra de salão, liderada por
um violinista solo (Stehgeiger), é originária dos cafés vienenses e já carregava
tradicionalmente a improvisação, que poderia ser adaptada ao jazz. Bastava uma
pequena alteração no som que essas orquestras produziam para que fossem
viabilizadas comercialmente e rebatizadas como “bandas de jazz”. Aos olhos do público
alemão do início do século XX, um violinista de origem húngara ou eslava era
considerado um músico típico de jazz (ROBINSON, 1994, p. 4-5). Do ponto de vista
adorniano, assim como para outros críticos de sua época, dos quais muitos não tinham
sequer pisado em solo americano, o jazz era considerado um fenômeno da Europa
Central, e podia ser perfeitamente entendido sob categorias centro-europeias
(ROBINSON, 1994, p. 14).
A partir desse momento, diversos subgêneros do jazz alemão surgiram, mas
todos eles tinham uma relação muito tênue com a música popular norte-americana e
nenhuma relação com a música produzida por Louis Armstrong ou Sidney Bechet.
Quando finalmente houve um desenvolvimento do aparato técnico no mercado
fonográfico e a exportação de discos frágeis de goma-laca foi substituída pela de
matrizes metálicas, os álbuns de jazz gravados pelas race records foram praticamente
ignorados pelo mercado alemão. A maioria das importações era composta por discos
gravados por artistas brancos, principalmente Paul Whiteman, cujo conceito de “jazz
sinfônico” influenciou o jazz alemão produzido a partir de sua turnê pela Europa em
1926 (ROBINSON, 1994, p. 5-7).
De acordo com Robinson, Adorno teve contato com todos esses subgêneros
musicais na Alemanha. Embora todos fossem reconhecidos popularmente sob a
mesma alcunha de “jazz”, o crítico cultural alemão foi capaz de identificar as
diferenças entre cada um deles, usando uma terminologia própria e adotando-a sem
alterações até seus últimos ensaios sobre o gênero, apesar de vários outros estilos de
jazz terem surgido nesse período nos Estados Unidos (swing, bebop, cool jazz). A
música produzida pelos negros norte-americanos, por exemplo, com o qual Adorno
teve contato em meados da década de 1930, foi denominado Jazz-Excentric – as
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características próprias desse jazz (timbre vocalizado, influências do blues, efeitos
instrumentais
expressivos)
eram
excentricidades
pessoais,
que
mantinham
a
substância intacta. Dessa maneira, o jazz de solistas como Louis Armstrong era
considerado por Adorno como um fenômeno marginal dentro da música comercial
como um todo. Para ele, o termo “jazz” representava as mais variadas formas de
música popular: da música dançante sincopada dos anos 1920 ao som das big bands
dos anos 1930 e 1940 (ROBINSON, 1994, p. 7-9). Segundo Robinson, Adorno aplicou
ao jazz produzido ao longo de cinco décadas o mesmo vocabulário técnico que ele
utilizou para avaliar a música comercial alemã dos anos 1920. Suas conclusões se
mantiveram as mesmas tanto quanto a sua terminologia analítica (ROBINSON, 1994,
p. 13). Nunca ocorreu a ele, por exemplo, que a estrutura rígida sobre a qual o jazz é
desenvolvido pudesse ser, na verdade, um pré-requisito à improvisação, que precisa
manter alguns parâmetros intactos para que outros sejam explorados (ROBINSON,
1994, p. 10). Os limites do jazz, de acordo com Adorno, são resultado de sua função
como música para dançar, ou seja, como mercadoria. Devido à sua natureza
específica, de acordo com Robinson, é necessária, na avaliação do jazz, outro tipo de
abordagem crítica, distinta daquela em relação à “música de arte” (ROBINSON, 1994,
p. 13).
Para Adorno, o jazz é conservador porque o improviso não é um espaço aberto.
A tendência do senso comum é entender o improviso como uma espécie de liberdade
ensaística, como a que fora definida pelo próprio Adorno em seu “O ensaio como
forma” (2003, p. 15-46), ou seja, uma forma aberta. Para ele, o improviso do jazz é
uma fuga controlada. Mesmo quando esse controle é rompido, a música acaba
voltando à estrutura da qual havia escapado momentaneamente. Desse modo, do
ponto de vista adorniano, o jazz sempre acaba retornando ao conformismo. Tal fato,
no entanto, não é suficiente para que ele diga que o jazz é uma música regressiva –
sua opinião está provavelmente ligada à falta de um entendimento das origens do jazz
nos EUA, de acordo com o que Robinson aponta em seu ensaio.
Assim como seus contemporâneos alemães, Adorno nega que o gênero tenha
nascido entre os negros norte-americanos. Para ele, o jazz é uma música de brancos
que suplantou algumas tradições negras norte-americanas, como os spirituals e o
ragtime – Adorno não faz menção à música gospel ou ao blues rural. O crítico alemão
chega a afirmar que “a cor da pele dos negros, assim como o prateado dos saxofones,
é um efeito cromático” (ADORNO apud ROBINSON, 1994, p. 13 – tradução nossa) útil
como função propagandística. Mesmo em seus últimos textos, Adorno ateve-se à ideia
de que os negros não adicionaram nada ao jazz além da cor de sua pele: “Não tenho
nenhum preconceito contra os negros, exceto que nada, a não ser a cor, os distingue
dos brancos” (ADORNO, 2001, p. 285). Tal opinião pode ser entendida se relacionada
à música comercial produzida na República de Weimar, conforme descrevemos
anteriormente. Naquele contexto, o “jazz” passou por um desenvolvimento totalmente
distinto ao seu correspondente norte-americano, pois na Alemanha ele era executado,
ouvido, comercializado, consumido, dançado e produzido em larga escala por brancos.
Não é de se espantar, portanto, que Adorno conclua que qualquer característica da
música dos negros norte-americanos tenha sido erradicada no decurso da evolução
social do gênero (ROBINSON, 1994, p. 14).
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Robinson também ressalta o conceito de canção popular para Adorno. Segundo
o crítico alemão, não era um gênero separado da música comercial, mas uma parte
central do jazz em si. Nas primeiras décadas do século XX na Alemanha, as partituras
de canções populares eram amplamente publicadas e vendidas em formato impresso,
ao contrário dos discos, cujo acesso era bem mais restrito. As partituras impressas
constituíam, dessa maneira, o núcleo da música comercial na República de Weimar, e
podiam ser estudadas e analisadas com uma facilidade muito maior do que as
gravações ou as performances propriamente ditas. Foi a partir dessas partituras que
Adorno, um defensor da primazia da escrita musical, pôde identificar estilos e
subcategorias do jazz. Também foi por meio da comparação dessas partituras com a
performance de algumas bandas que ele chegou à conclusão de que havia mais
músicos qualificados entre os arranjadores do que entre os compositores de jazz.
Porém, como a inventividade dos arranjos do jazz é limitada pelas melodias de 32
compassos e pelos padrões harmônicos do substrato composicional, a inventividade
também está fadada à banalidade (ROBINSON, 1994, p. 16).
Também podemos destacar o trecho de Über Jazz (ADORNO, 1982, p. 70-100)
que Robinson nos traz. Nele, Adorno disserta sobre a decadência do jazz conforme
alcança os níveis mais baixos da sociedade:
Quanto mais o jazz desce os degraus da sociedade, mais traços reacionários ele
adota, mais completa é a sua subserviência à banalidade, menor é a paciência em
relação à liberdade e às manifestações da imaginação, até que, finalmente, como
acompanhamento musical da moda coletiva, ele pouco faça além de glorificar a
supressão em si mesma. Quanto mais democrático é o jazz, pior ele se torna
(ADORNO apud ROBINSON, 1994, p. 19).
Nesse excerto do texto de Adorno de 1937, Robinson nos chama a atenção para
a descrição às avessas do processo de disseminação social do jazz nos EUA, mas que
faz todo sentido no contexto alemão do início do século XX. Enquanto o jazz norteamericano surgiu em meio a uma minoria negra oprimida e alcançou a classe média
branca por um processo de assimilação, o jazz alemão trilhou um caminho
diametralmente oposto, pois foi introduzido pela minoria branca das classes sociais
mais altas e então “imposto, em um processo dialético de imitação e marketing
agressivo, nas camadas mais baixas da sociedade”. Como os salões de dança alemães
mais modestos não tinham recursos para contratar grandes bandas virtuosas de jazz,
eles se contentavam com as transmissões radiofônicas, que traziam uma versão
diluída do som das bandas ao vivo. A tendência das emissoras de rádio era contar com
as próprias bandas em vez de procurar grupos musicais especializados (ROBINSON,
1994, p. 20).
De acordo com Adorno, o processo de decadência na música comercial alemã se
deu por completo com a ascensão de Hitler em 1933, quando o jazz foi proibido, por
meio de um decreto do governo alemão, de ser executado. Todos os músicos foram
obrigados a tocar, daquele momento em diante, somente marchas militares. Do ponto
de vista adorniano,
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as técnicas do jazz como o improviso, síncope, timbre vocalizado e as quebras
instrumentais são somente ornamentos que mantém a essência da música
inalterada: o pulso único, a métrica 4/4, o período de oito compassos, a
instrumentação restrita de sopros e percussão. Com esses ornamentos agora
descartados, somente a substância subjacente do jazz permanece, uma substância
idêntica à marcha militar (ADORNO apud ROBINSON, 1994, p. 20-21 – tradução
nossa).
Não é surpresa alguma para Adorno que o jazz produzido na Alemanha tenha se
curvado com tamanha rapidez aos usos do fascismo. De acordo com Robinson, “o jazz,
em sua transformação final, provou ser a música do reacionarismo político. A história
do jazz alemão, sociologicamente decifrada, equipara-se à queda da própria República
de Weimar” (ROBINSON, 1994, p. 21). Ao levar esse paralelismo em consideração,
Robinson reconhece Adorno não só como um teórico sociocultural, mas também como
um observador astuto da música popular de sua época, capaz de analisar
esteticamente a música popular de Weimar e entender, “mais do que qualquer um à
sua época, as origens peculiares, a estrutura musical, os pré-requisitos institucionais e
a predestinada queda dessa singular forma musical alemã” (ROBINSON, 1994, p. 22 –
tradução nossa).
Dois pontos nas observações de Robinson sobre Adorno e sua relação com o jazz
nos chamam a atenção. Em primeiro lugar, a precipitação do crítico alemão ao querer
universalizar suas conclusões sobre o jazz a partir de um contexto musical muito
específico. Em segundo lugar, a insistência de Adorno em aplicar pressupostos da
escrita musical europeia para avaliar um gênero cujas origens se encontram em uma
tradição oral aparada por uma matriz africana e que é baseado na performance. Para
Adorno,
as grandes obras de musicais que ainda hoje têm algo a dizer – a música “viva” –
formaram-se a partir do momento em que o recuo da improvisação deu lugar à
obra de arte fixada e com texto unívoco. Sem uma notação precisa e unívoca nada
teria sido possível, não apenas o conceito que se limita ao desamparado
“romantismo”, mas também a música que vai de Haydn e Mozart a Schoenberg e
Webern, incluindo a parte propriamente polifônica da obra de Bach (ADORNO,
2001, p. 282).
A defesa da primazia da escrita musical é reflexo de sua proposta de crítica
negativa e seu conceito de autonomia da obra de arte. Para Adorno, ao negar o horror,
a barbárie e a sociedade de massas, a música consegue estabelecer um poder de
crítica, caracterizando um investimento na linguagem como reação à barbárie.
As grandes obras de arte e as construções filosóficas permaneceram
incompreendidas não por sua distância grande demais do âmago da experiência
humana, mas pela razão contrária, e a própria incompreensão poderia ser
facilmente reduzida a uma compreensão demasiado grande: a vergonha de
participar da injustiça universal, que se tornaria insuportável a partir do momento
em que as pessoas se permitissem compreender (ADORNO, 1993, p. 129).
No âmago da crítica adorniana existe a defesa de que essas obras de arte, que
aparentemente se afastam da sociedade, guardam aquilo que é mais humano: a
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lucidez em relação à barbárie. Essa incompreensão vem da tentativa de se proteger
desse horror de participar da barbárie. Wisley Francisco Aguiar nos ajuda a
compreender esse conceito ao afirmar que
[Adorno] contrapõe os produtos da indústria cultural com o sentido de obra de arte
autêntica e autônoma. A arte autônoma possui um valor de verdade, pois se
mostrava muito distante da precária condição material humana e, ao mesmo
tempo, se manifestava como protesto à ordem vigente. Quando a arte protesta
negando o âmbito das relações socioeconômicas, ela atrai para si uma “promessa
de felicidade”, que significa afirmar no contexto da obra uma possibilidade para o
futuro. Mas a arte autônoma não era tão acessível às massas, justamente pelo
esforço cognitivo que exigia de quem a apreciasse. Contudo, isso não significa um
pretexto para torná-la fácil. É em sua difícil compreensão que a arte resiste à falsa
universalidade da integração, e seu valor de verdade se mostra preservado, além
de sua seriedade designar um aspecto de denúncia contra a falsa organização
social. As massas estavam mais ligadas a uma arte de entretenimento, que servia
de “descanso”. Assim, arte séria e arte ligeira se mostravam irreconciliáveis, mas a
indústria cultural fez uma forçosa união entre essas duas esferas, cujo resultado se
vê na banalização da obra autêntica (AGUIAR, 2008).
Em um ponto diametralmente oposto ao de Adorno, David Stowe relata um
movimento liderado por jornalistas e críticos culturais de esquerda contemporâneos ao
swing1, que viam no jazz um conteúdo político diretamente relacionado à ideologia da
Frente Popular. “Para esses simpatizantes, o jazz era, acima de tudo, uma música
democrática, um produto ‘do povo’, acessível a todas as classes e tipos de cultura,
marcada tanto pelo espírito de cooperação coletiva como pela espontaneidade
individual” (STOWE, 1996, p. 53 – tradução nossa).
Em oposição a Adorno, esses críticos exaltavam a relação dos negros com a
música, ao ponto de afirmar que o jazz é “a música do proletariado americano. Se os
negros se sobressaem no seu desenvolvimento, é porque mais negros são proletários”
(STOWE, 1996, p. 66). Contudo, Michael Denning nos explica que o swing
não era uma cultura “proletária” da mesma forma que o teatro radical; pelo
contrário, o swing, assim como Tin Pan Alley, o cinema de Hollywood e as
transmissões de rádio, era uma cultura comercial de massa que forjou um estilo
“americano” a partir dos estilos urbanos das classes trabalhadoras negras e étnicas
(DENNING, 1996, p. 330 – tradução nossa).
O fato é que poucos músicos se tornaram ativistas de esquerda e pensavam em
si mesmos como artistas politizados, dado que seus interesses voltavam-se aos seus
ofícios e suas preocupações políticas se limitavam a problemas como as injustiças com
1
Estilo de jazz surgido em meados da década de 1930 e cuja denominação praticamente
substituiu o termo jazz na época, que passou a ser usado quase exclusivamente para descrever
a música produzida em Nova Orleans na década anterior. O swing é caracterizado por uma
nova virtuosidade por parte dos músicos – que avançaram no que diz respeito às bases
harmônicas e melódicas do jazz; uma evolução no uso da guitarra com o surgimento do
amplificador e a inclusão do saxofone como instrumento da seção melódica; surgimento das big
bands, compostas por 12 a 18 músicos; e o desenvolvimento das composições de jazz para
essas bandas. “Se o jazz da década de 1920, criado numa época de afluência, iluminava um
individualismo desafiador, a Era do Swing respondeu aos anos de adversidade e de guerra com
um espírito coletivo que expressava um despreocupado otimismo” (GIDDINS, G., DEVEAUX, S.,
2009, p. 171-172 – tradução nossa).
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os músicos, discriminação racial e explorações trabalhistas. No entanto, segundo
Michael Denning, eles reconheciam a crise social decorrente da Depressão e do
fascismo, e simpatizavam com os ideais da Frente Popular, pois participaram de
concertos beneficentes do movimento (DENNING, 1996, p. 333).
De acordo com Stowe, todavia, esse alinhamento do jazz com a esquerda da
época é suspeito justamente por causa da inserção do jazz no mundo do consumo.
Mesmo não sendo radical como Adorno, Stowe nos alerta que
as contradições de classe embutidas na produção e no consumo do swing tornaram
difícil para a música manter a força simbólica que os seus entusiastas de esquerda
gostariam que ela tivesse. [...] [Ao mesmo tempo que] para alguns críticos o swing
aderia de maneira incompleta à política marxista, para outros ele se tornou símbolo
de uma ideologia mais ampla dos anos 1930 – uma versão do excepcionalismo
norte-americano, o qual defendia que os Estados Unidos eram o país das
oportunidades econômicas e sociais, do pluralismo étnico, da liberdade de
expressão, da ilimitada energia criativa. E enquanto esses ideais eram
contemplados de maneira imperfeita na sociedade como um todo, eles atingiam sua
maior expressão, de acordo com aqueles que os propunham, no reino musical do
swing (STOWE, 1996, p. 72 – tradução nossa).
Não há como negar que na sociedade capitalista os bens de cultura sofram
mudanças constitutivas. Na música isso se dá com o processo de padronização, a
repetição de fórmulas, a absorção da “pornografia musical que é fabricada para
satisfazer às supostas ou reais necessidades das massas” (ADORNO, 1999, p. 85). O
jazz, como música popular, não escapa desse processo. Benny Goodman e Glenn
Miller, por exemplo, produziam um jazz com um verniz de mercadoria muito evidente.
Nossa crítica com relação à posição de Adorno é justamente o fato de sua visão estar
restrita ao conceito de indústria cultural, que equipara os níveis de expressão estética
popular num único patamar. Para Adorno, em nenhum desses níveis é possível
enxergar um mapeamento progressivo. Tudo é degradação. Essa abordagem impede-o
de perceber no jazz do início do século XX um horizonte de possibilidades. Nesse
momento da História, o músico negro já havia saído do sul escravista e, por meio da
posse dos meios de produção e do domínio das forças produtivas, conquistou seu
espaço nas cidades do norte do país. É notável a evolução em relação à situação
anterior dos negros norte-americanos. O fato desse horizonte de possibilidades ter
sido solapado logo em seguida pelo próprio funcionamento da indústria cultural não
tira o mérito do jazz, o qual, naquele momento específico, configurava uma forma de
expressão cultural concreta capaz de descrever uma superação social realizada de
fato.
Referências
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massas. In: Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
_____. Minima Moralia: Reflexões a partir da vida danificada. Tradução de Luiz
Eduardo Bicca. 2ª ed. São Paulo: Editora Ática, 1993.
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_____. Moda intemporal - sobre o jazz. In: Prismas – crítica cultural e sociedade.
São Paulo: Ed. Ática, 2001.
_____. O ensaio como forma. In: Notas de Literatura I. São Paulo: Editora 34,
2003, p. 15-46.
_____. O fetichismo na música e a regressão da audição. In: Theodor W. Adorno
– Textos Escolhidos. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda., 1999.
_____. Réplica a uma crítica a “Moda intemporal”. In: Prismas - crítica cultural e
sociedade. São Paulo: Ed. Ática, 2001.
_____. Über Jazz [pseud. Hektor Rottweiler] In: Zeitschrift für Sozialforschung, 1937,
nº 5. Reimpresso em Gesammelte Scrhiften, XII (1982), p. 70-100.
AGUIAR, Wisley Francisco. Adorno e a dimensão social da arte. In: Revista
Urutágua – revista acadêmica multidisciplinar. Nº 15 – abr./mai./jun./jul. Paraná:
Universidade Estadual de Maringá (UEM), 2008 –
http://www.urutagua.uem.br/015/15aguiar.htm – acessado em 10/10/2009.
DENNING, Michael. Cabaret Blues. In: The Cultural Front: The Laboring of American
Culture in the Twentieth Century. New York: Verso, 1996.
GIDDINS, Gary., DeVEAUX, Scott. Jazz. New York: W. W. Norton & Company, 2009.
PERETTI, Burton. The Creation of Jazz – Music, Race, and Culture in Urban
America. Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 1994.
ROBINSON, J. Bradford. The jazz essays of Theodor Adorno: some thoughts on
jazz reception in Weimar Germany. In: Popular Music. Cambridge: Cambridge
University Press, Vol. 13, nº 1, Jan. 1994.
STOWE, David. Between Conjure and Kapital. In: Swing Changes: Big-Band Jazz in
New Deal America. Boston: Harvard University Press, 1996.
TOWNSEND, Peter. Adorno on Jazz: Vienna versus the Vernacular. In: Prose
Studies. Vol. II, n. 1, May 1988.
Title
Adorno and jazz
Abstract
This article aims at presenting the dialogue between Theodor Adorno and his
critics concerning the former’s opinions on jazz. Our objectve is to comprehend the
german critic’s assertions on this musical genre and understand the specificities of jazz
as a north-american musical form in the beginning of the twentieth century.
Keywords:
Theodor Adorno. Jazz. Cultural Studies. Music.
Recebido em 21/03/2012. Aprovado em 28/06/2012.
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Rios, pontes e overdrives: trânsito
e a (de)composição do espaço
em Amarelo Manga
Ramayana Lira*
Resumo
O filme Amarelo Manga, de Cláudio Assis, é visto como obra de um cinema que
quebra com centralidade da figura humana e apresenta uma composição peculiar do
espaço, em especial em relação à representação da decadência urbana do terceiro
mundo. Procura-se investigar as manobras da narrativa e das imagens para, em
última análise, apontar o filme de Assis como um exame do declínio da cidade que, ao
mesmo tempo, instiga a crítica à vontade humana e a valores liberais.
Palavras-chave
Cinema brasileiro. Espaço urbano. Mangue beat.
O amarelo do carro, do cabelo, dos pêlos, da manga. O amarelo do pus, do
bolor, do atraso. Há muitas existências assim matizadas dentro de um certo cinema.
São amarelas da febre, do desejo, da falta. São amarelos o excesso, a barbárie, os
dentes. O que fazer com esse tom menor de cor-fruta? Com o universo imaginado de
pessoas de alpargatas e liquidificadores cobertos de saias de plástico, da rádio AM e de
amores insatisfeitos? O que fazer da cidade gasta pelo uso, e o quê das pessoas? A
presente discussão tem como objetivo ler o filme Amarelo Manga, de Cláudio Assis,
utilizando a noção de um cinema que quebra com centralidade da figura humana e
apresenta
uma
composição
peculiar
do
espaço,
em
especial
em
relação
à
representação da decadência urbana do terceiro mundo. Investigar, ainda que de
forma breve, as manobras da narrativa e das imagens para, em última análise,
apontar o filme de Assis como um exame do declínio da cidade que, ao mesmo tempo,
cria produtivos paradoxos.
A noção de ‘fluxo’ (de capitais transnacionais, de informação, de pessoas) ganha
cada vez mais força no mundo contemporâneo, delineando cada vez mais as
experiências que temos, de forma que ‘lugares’ como nações, cidades, ruas tendem a
perder seu status de entidades fixas. O fluxo constante das imagens cinematográficas
desempenha papel cada vez mais relevante para o entendimento dos modos como
*
Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul
de Santa Catarina.
Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v. 7, n. 1, p. 149-157, jan./jun. 2012
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essas experiências se transformam com o tempo. Pois como coloca Giuliana Bruno, “O
cinema surge de uma arena de mudança perceptual e das configurações arquitetônicas
modernas. Cinema - a imagem em ‘movimento’ - habita a cultura urbana móvel da
modernidade”1 (p. 11). Com o processo de urbanização marcando a passagem para a
modernidade, a cidade torna-se um importante elemento para o entendimento de uma
sociedade e de sua cultura. É aqui que queremos flagrar Amarelo Manga, na sua
produção de espaços urbanos e marginais, projetando linhas de fuga das leituras
cristalizadas em torno da apropriação antropofágica.
O filme narra a intersecção, algo fortuita, ocorrida durante um único dia, das
trajetórias de personagens díspares: um açougueiro psicopata, sua esposa evangélica,
a dona de um bar, e uma plêiade de personalidades desajustadas, residentes de um
hotel: um necrófilo, um gay efeminado, um padre sem rebanho. A trama tecida pela
narrativa sugere uma forte relação entre os personagens e o meio – gentes de uma
cidade que habitam e que os habita–, uma identificação que pode nos levar a uma
tradição brasileira da literatura encarnada especialmente n’O Cortiço de Aluízio de
Azevedo. O livro de Azevedo é paradigma do Naturalismo brasileiro, recriando o que
poderia ser chamada de “a realidade” dos agrupamentos humanos sujeitos à influência
da raça, do meio e da história. O comando dos instintos, os impulsos sexuais e uma
versão de determinismo social estão presentes na obra, que, pela ênfase dada ao
papel da cidade na narrativa, acaba por conferir ao cortiço feições de personagem.
Com a sua negação do subjetivismo romântico, a obra de Azevedo desafia o
individualismo de trabalhos anteriores e traz à tona um materialismo que refuta o
sentimentalismo e a metafísica. Logo no início do romance temos a seguinte descrição
do surgimento do cortiço:
O que aliás não impediu que as casinhas continuassem a surgir, uma após
outra, e fossem logo se enchendo, a estenderem-se unidas por ali a fora, desde a
venda até quase ao morro, e depois dobrassem para o lado do Miranda e avançassem
sobre o quintal deste, que parecia ameaçado por aquela serpente de pedra e cal. [...]
E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou
a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que
parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas
no esterco.
Esse espaço criado pela linguagem de Azevedo remete a uma animalidade
(“serpente de pedra e cal”, “minhocar”, “larvas no esterco”), a uma “coisa viva” que
não significa, necessariamente, o “rebaixamento” do humano ao animal, mas, antes a
uma indistinção, uma indiferença, um estado próprio vaporoso (“naquela terra
encharcada e fumegante”). Assim como fogo-fátuo, a vida que é gerada nesse meio é
acidente que cria luz, fenômeno da decomposição. A vida é o que se eleva do que foi
ex-cretado, o que se forma a partir do informe. É o que resta apesar da ruína.
1
No original: “Film emerges out a shifting perceptual arena and the architectural configurations
of modern life. Cinema – the ‘motion’ picture –inhabits modernity’s moving urban culture”
(tradução nossa).
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Ainda nesse trecho podemos ver o engajamento da linguagem literária na
construção de um espaço urbano que deve ser lido, também, à luz da epígrafe que
abre a obra: “A verdade, toda a verdade, nada além da verdade”. Para Flora Süssekind
(1984), romances como O Cortiço parecem buscar por um sentido fora, no contexto
extra-literário, reforçando sua natureza como “documento”. Ela nota que não é por
acaso que a obra inicia com um brocardo do Direito Penal, pois “quando um romance
tenta ocultar sua própria ficcionalidade em prol de uma maior referencialidade, talvez
os seus grandes modelos estejam efetivamente na ciência e na informação jornalística,
via de regra consideradas paradigmas da objetividade e da veracidade” (p. 37). Tal
estratégia legitima uma abordagem que traça um paralelo direto com o mudo
extratextual e que constitui uma continuidade na literatura brasileira produzida nas
décadas de 1880, 1930 e 1970. Tal continuidade vejo se estender à parte da produção
no cinema brasileiro contemporâneo, nos termos de um paradoxo que se instaura
entre o que é informe, ex-cretado das ruínas, e a busca por um regime de
transparência, que ergue um edifício sólido de inteligibilidade.
O recurso à estética Naturalista reforça tópicos familiares, não apenas porque
faz reverberar obras literárias anteriores mas porque promove a apaziguadora noção
de uma realidade já conhecida. A lógica do senso comum está profundamente
enraizada no que é discursivamente familiar e, como afirma Cathereine Belsey, “o
mundo evocado na ficção, seus padrões de causa e efeito, de relações sociais e valores
morais, confirma amplamente os padrões do mundo que parecemos conhecer”2 (p.
51).
Ismail Xavier (2005) fala do Naturalismo em um sentido amplo, em interseção
com a noção de Naturalismo literário, mas indo além. Ele define Naturalismo como o
esforço de reproduzir o mundo físico e o comportamento humano, uma tentativa de
fazer o espectador se sentir em contado direto com o mundo. É dessa forma que o
discurso cinematográfico seria “natural”, um meio transparente que revela a realidade.
E é o renovado interesse nesse discurso “imediato” que se materializa do que
Leonardo Mecchi chama de Cinema Popular Brasileiro do século 21. Mecchi faz um
levantamento das maiores bilheterias da primeira década dos anos 2000 e percebe
uma tendência em direção ao que chama de filme-verismo, ou seja, a afirmação da
legitimidade cultural da obra através do apelo à representação de um aspecto da
realidade. Em narrativas fílmicas desde a década de 90, a pobreza e a violência são
consumidas como algo “típico”, ou “natural”, sobre as quais nada pode ser feito. Ivana
Bentes argumenta que “Filmes que quase nunca se pretendem ‘explicativos’ de
qualquer contexto, não se arriscam a julgar, narrativas perplexas, e se apresentam
como ‘espelho’ e ‘constatação’ de um estado de coisas.” (p. 249) O impulso em
direção à realidade descrita por Süssekind contribui para a pacificação de contradições
e fraturas. Tal como os romances naturalistas, filmes como Cidade de Deus, Cidade
Baixa e Amarelo Manga tendem a apelar para um real construído como imediato, como
se os personagens estivessem “denunciando” a realidade brasileira. Essa busca pelo
“real” encontra-se metaforizada nos usos de grande angulares em Amarelo Manga,
dispositivo que abre a imagem, estendendo os limites do quadro e incluindo mais
informação. Um desejo de mostrar tudo, de ver tudo, um olho-mágico.
2
No original: the world evoked in the fiction, its patterns of cause and effect, of social
relationships and moral values, largely confirms the patterns of the world we seem to know.
(tradução nossa).
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Nesse entendimento, os realizadores encontrariam legitimação na voz delegada
do subalterno. A diretora Tata Amaral explicita a ansiedade para alcançar a “verdade”
e a “realidade” das personagens em seu filme Antônia, em um texto intitulado, de
forma reveladora, “Em busca do naturalismo no cinema”:
O que eu buscava era a verdade das situações e das emoções e estas nem sempre
correspondiam ao que imaginávamos. Mais do que impor uma história, eu queria
que eles contassem as deles [...] Que funcionasse como uma “espiada” na vida
daquelas personagens que estão lá independentes da câmera.
Amaral diz “imaginávamos”, primeira pessoa do plural que pode ser lida como
referência a a) a equipe e à diretora, b) o grupo de cineastas brasileiros do qual
Amaral faz parte, c) a plateia do filme, na qual a diretora se incluiria. “Nós”
imaginamos, mas é ainda mais importante que vejamos as “situações e emoções”
como elas realmente são. A realizadora se torna um meio invisível através do qual as
personagens falariam “independentes da câmera”. Ademais, a vontade de “dar uma
espiada” nas vidas dos personagens indica um desejo de observar à distância, sem se
implicar.
Em sua discussão sobre o Naturalismo literário também Süssekind reforça o fato
de que os escritores foram motivados por um impulso para ver. Daí a metáfora que
constrói com o cinema:
É preciso que do escritor se faça película virgem em busca de impressões reais,
assim como da opacidade da literatura simples transparência para que o público
possa ver o acontecido sem nenhuma barreira e sem as ambigüidades próprias ao
ficcional. [...] Uma obra fica valorizada desde que análoga ao real. Um escritor,
desde que semelhante a uma câmera. (101)
Há uma série de elementos em comum entre Amarelo Manga e O Cortiço. Assim
como no livro de Azevedo, os espaços são fundamentais na caracterização dos
personagens. Estes estão enclausurados em um mundo de corrupção e indignidade
que coloca a sua própria ‘humanidade’ em risco. Tomando emprestado de Antonio
Candido a leitura da contaminação ideológica presente na ideia corrente no século XIX
de que “para português, negro e burro, três pês: pão para comer, pano para vestir e
pau para trabalhar” (1991, p. 114) – contaminação que aproxima o humano do animal
–, podemos colocar o filme de Assis em um quarto pê: pour épater le bourgeois, uma
construção que se distancia da leitura proposta por Candido d’O Cortiço. Para Candido,
os três termos da anedota se desdobram, em uma análise mais profunda, na figura do
explorador capitalista (português), do trabalhador reduzido a escravo (negro) e do
homem rebaixado a animal (burro). Se for possível traçar alguma analogia com
Amarelo Manga, é necessário observar que as duas primeiras figuras estão
esmaecidas, já não apresentam uma força interpretativa tão grande quanto no livro,
uma vez que a cidade do filme, até mais do que o cortiço, evoca um papel definidor
para as pessoas que a habitam: faz aflorar a animalidade do desejo e dos instintos,
trancando os personagens em uma rede de relações mórbidas e fechadas que não
remetem às posições de classe, mas, antes, nivelam as existências nas suas formas
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mais bárbaras. Aqui, uma leitura intertextual que inclui Amarelo Manga pode servir
para reforçar essa ideia, passando pela sua ligação com os textos (canções, fotos,
entrevistas, vídeos) do movimento Mangue Beat na capital pernambucana.
Também como o filme de Assis, o Mangue Beat coloca a representação do
espaço urbano no centro de suas atenções. A canção “Rios, Pontes e Overdrives”, de
Chico Science e Nação Zumbi é paradigmática neste sentido, apresentando Recife
como um ambiente urbano que “engole” seu a habitantes na lama do mangue. A
canção diz:
Porque no rio tem pato comendo lama Rios pontes e overdrives -impressionantes
esculturas de lama Mangue, mangue, mangue, mangue, mangue, mangue,
mangue!!!! E a lama come no mocambo e no mocambo tem molambo E o molambo
já voou, caiu lá no calçamento bem no sol do meio-dia O carro passou por cima e o
molambo ficou lá Molambo eu, molambo tu É macaxeira, Imbiribeira, Bom pastor É
o Ibura, Ipseb, Torreão,Casa Amarela Boa Viagem, Genipapo, Bonifácio, Santo
Amaro, Madalena, BoaVista Dois Irmãos, é o Cais do porto, é Caxangá, é Brasilit,
Beberibe,CDU Capibaribe, é o Centrão Rios pontes e overdrives -impressionantes
esculturas de lama Molambo boa peça de pano pra se costurar mentira Molambo
boa peça pra se costurar miséria, miséria...
As pessoas, reduzidas à miserabilidade, são identificadas com patos (lembre-se
da conotação de estúpido, imbecil que acompanha essa palavra) e descritas comendo
lama. Lama, aliás, é uma ideia central na canção, a substância que transforma as
pessoas em coisas (“impressionantes esculturas de lama”) e que corrói o “mocambo”.
A identificação das palafitas e casas com mocambos remete não apenas às condições
de vida paupérrimas dos moradores da cidade, mas também enfatiza a linhagem
africana, expressando um tema familiar à sociologia brasileira: a racialização da
pobreza.
Aqueles que moram nos mocambos são “molambos”, farrapos, cuja morte no
asfalto da cidade não é notada. Tais molambos, na canção, são ubíquos, aparecendo
desde os lugares mais renomados (Boa Viagem) aos mais carentes (Brasilit, CDU). De
fato, Recife em “Rios, Pontes e Overdrives” promove a despersonalização e a reificação
das pessoas, de tal forma que a presença dos molambos em diferentes partes da
cidade implica na transformação do espaço urbano em um grande mocambo. A
sensação de movimento, de trânsito de um bairro para o outro está em constante
tensão com a imobilidade das estátuas de lama, sugerindo que a circulação horizontal
é possível, mas não permitindo que as estátuas de lama deixem a condição de “coisa”,
acarretando a impossibilidade de movimento vertical, de mobilidade social.
O papel do espaço urbano é de grande relevância tanto no livro de Azevedo,
quanto na música de Chico Science e no filme de Assis. Fredric Jameson oferece uma
possibilidade de entendimento da questão espacial sob o regime da pós-modernidade.
Sua tese central, de que em circunstâncias pós-modernas os sujeitos perdem muito da
capacidade de mapeamento dos espaços, toma como ponto de partida uma análise do
Hotel Westin Bonaventure; tal exemplificação, como tentarei mostrar mais adiante,
pode ser lida comparativamente a Amarelo Manga na sua apresentação do Hotel
Texas.
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Em Jameson, podemos encontrar uma análise da mudança da vista da cidade. A
leitura do espaço urbano, ou doe espaço social comum, não está mais inevitavelmente
associada ao espaço físico de concreto, vidro e asfalto, uma vez que o meio urbano se
torna uma intricada teia semiótica multimídia e de consumo, onde a distinção entre
espaço material e linhas de comunicação está cada vez mais tênue. Jameson nota a
correlação entre a desorientação especial e a emergência de uma cultura global
multinacional, descentrada e de difícil visualização, onde se torna cada vez mais difícil
de se reivindicar uma posição própria. A estratégia que Jameson propõe como forma
de lidar com essa condição é a noção de mapa cognitivo, emprestada do urbanista
Kevin Lynch, que demanda a construção de modelos espaciais onde as concepções de
poder social
são transformadas em figuras espaciais, permitindo
um melhor
entendimento da sociedade.
Amarelo Manga oferece vários momentos de relativa perda do sentido de espaço
e de desterritorilizações e reterritorializações. Se espaços são nomeados, fixados,
controlados e reconhecidos por seres humanos, o filme de Assis desafia a centralidade
do corpo e produz uma representação de espaços interiores e exteriores que perturba
e provoca.
Há quatro principais interiores no filme: o hotel, o matadouro, o bar e a igreja.
O
hotel
é
chamado
Texas
Hotel,
uma
irônica
reterritorialização
do
estado
estadunidense em um contexto de terceiro mundo. A sua decadência está presente em
todos os lugares, da fachada corroída aos corredores imundos. Os vários cômodos são
mostrados no mesmo estágio de deterioração, sem uma hierarquia ou marca distintiva
entre eles. A câmera viaja com os personagens pelas suas entranhas, o trânsito
constante pelos corredores favorecendo uma comparação com uma cidade. E,
realmente, o hotel se configura como um microcosmo para os moradores destituídos,
onde os quartos substituem as casas, ainda que um hotel, por definição, seja um lugar
de passagem e não de morada. É problemática a relação de ‘enraizamento’ dos
personagens com esse ambiente, que se torna um híbrido, uma espécie paradoxal de
“passagem definitiva”, ao mesmo tempo desterritorializando e reterritorializando.
Existe uma marcante diferença entre esse espaço do Texas Hotel e o espaço dos
sistemas de comunicação em Los Angeles descritos por Fredric Jameson. A marca
irônica de uma forma periférica de pertencimento espacial delimita as possibilidades
dessa comparação. Não por acaso, salta aos olhos a presença, no filme, de um grupo
de índios mesmerizados diante da televisão ligada. A perda dos vínculos com a cultura
nativa é revelada pelo deslocamento dessas pessoas de suas origens. No Hotel, eles se
tornam parte da mobília, sem reação aos eventos. São absorvidos pela sala onde estão
sentados, como camaleões indistintos do ambiente.
Ao longo do filme há uma série de tomadas de cima, que verticalizam o eixo
visual, produzindo um mapa dos interiores. Esta verticalização promove uma sensação
de promiscuidade, pois nos é revelado o que ocorre nos cômodos adjacentes. As
barreiras entre público e privado tornam-se menos explícitas uma vez que o trânsito
do olhar não encontra barreiras físicas. Em um momento paradigmático, em uma
sequência que acontece nos banheiros do Hotel, um homem é revelado espiando, por
cima da parede, uma mulher que se banha. O enquadramento partindo de cima reduz
o tamanho da figura humana e maximiza o espaço; cria uma cartografia cujas
fronteiras são elastecidas pelos movimentos (algumas vezes ilícito) das pessoas.
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No abatedouro, o enquadramento funciona de forma similar. Vistos de cima, os
corpos dos trabalhadores se misturam aos pedaços de carne, fazendo da presença
humana uma presença-ausência. Em outro momento, o uso dessa visão vertical
mostra-nos, no início do filme, o bar, e mais uma vez desafia a distinção públicoprivado quando a câmera acompanha a figura da mulher que se levanta de sua cama e
vai trabalhar no bar, que, vemos, é contíguo ao seu espaço individual. Também o bar
é um lugar de trânsito. Personagens vêm e vão, mas para os fregueses, ele é uma
“segunda casa”. A proximidade das mesas permite que as conversas sejam ouvidas
por todos, de tal forma que os personagens (algumas vezes a contragosto) acabam
por interagir de maneira que assuntos privados se tornam públicos.
Outro interior importante em Amarelo Manga é a igreja. A primeira vez que ela é
mostrada é imediatamente após a apresentação do matadouro, a edição pode sugerir
uma comparação entre as duas locações, um comentário irônico sobre a desintegração
dos valores religiosos. A igreja mostra-se vazia e em ruínas e, o cotejo com os cultos
da Igreja Universal mostrados no filme resulta na representação de uma igreja
alienada das massas, apesar da sua localização em uma favela, um ambiente
patentemente necessitado de assistência. Sua utilidade como templo está acabada,
transformando-se
um lembrete da fragilidade das promessas de
redenção
e
ressurreição.
As cenas que ocorrem em externas exploram um eixo horizontal que remonta,
em certo aspecto, à leitura de Gilles Deleuze sobre a relação com a cidade iniciada no
Neo-realismo, regime de transição entre a imagem-tempo e a imagem movimento. Os
personagens perambulam pela cidade são apresentadas através de cortes das favelas
para as pontes, de casebres para altos edifícios, enfatizando a ideia de aproximação
entre os espaços urbanos. Em vários momentos, as caminhadas e passeios de carro
não têm destino certo, como se os lugares pudessem substituir uns aos outros
indiferentemente. Na verdade, são poucos os marcadores topográficos explícitos: no
filme apenas dois lugares têm um nome, o bar e o hotel.
As ruas são mostradas de forma documental e os personagens se tornam
‘observadores’ e ‘observados’, e não ‘agentes’ ao errar pela cidade. O anonimato das
faces das pessoas torna-se objeto de um olhar impiedoso, que as usa como marcador
de tempo: a justaposição de diferentes lugares e situações que acontecem ao mesmo
tempo implica um pertencimento à mesma comunidade (imaginada, certamente). Esta
comunidade é a dos despossuídos e subalternos, como no curta de Camilo Cavalcante
(também de Recife), Ave Maria, ou a Mãe dos Oprimidos. Este filme explora a tradição
das rádios populares de tocar a Ave Maria de Gounod às seis da tarde, hora do ângelus
e utiliza a edição paralela para revelar situações ocorrendo àquela hora na cidade.
Tem-se em ambas obras um painel da vida na cidade, apoiado, contudo, em uma
generalização da perversão que acaba por incluir as faces anônimas no mundo sórdido
da ficção.
O espaço em Amarelo Manga apresenta uma série de desafios para a
espectadora. É possível ouvir a ressonância de um certo Naturalismo em sua
abordagem, ainda que as questões que o filme propõe sejam de uma outra ordem.
Aqui, o espaço é mais fluido, as ambientações mais permeáveis. A organização
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espacial do filme nos leva a perguntar sobre a relevância de análises sobre o excesso
pós-moderno para obras que mergulham nas promessas inconclusas da modernidade.
Parece haver, no filme de Assis, uma leitura sardônica das relações entre seres
humanos e espaço urbano que leva a uma conclusão semelhante à de Fredric
Jameson, ainda que por outras vias. O mapeamento cognitivo dos espaços continua a
ser cada vez mais problemático, mas aqui, pela ruína dos signos, pela falência dos
sistemas de comunicação, não pelos seus excessos.
Paradigmaticamente, na sequência em que o padre vaga pelas ruas estreitas da
favela, a narração em off declara que “estamos todos eternamente condenados a ser
livres”. A tensão que se cria entre essa obrigação de ser livre repercute no espaço
labiríntico em que ele se encontra. Assim como os outros personagens, o padre está
condenado a ser livre, mas o espaço à sua volta restringe-lhe esse livre arbítrio. Assim
como grande parte da produção cinematográfica nacional se encontra nesse estado
paradoxal dentre movimento e imobilidade. Por um lado, presa a princípios
explicadores e até mesmo à má-consciência da denúncia, por outro lado, frestas
abertas na imagem que permitem vislumbrar passagens onde tudo antes parecia
encarcerado em um discurso de verdade. Talvez seja este o grande paradoxo que
Amarelo Manga nos apresenta.
Referências
AMARAL, Tata. Em Busca do Naturalismo no Cinema. Pressbook do filme Antônia.
Disponível em:
<http://antoniaofilme.globo.com/dowld/PRESSBOOK_PORTUGUES_2007.pdf>
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XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 3.
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156
Volume 7 ▪ Número 1
jan./jun. 2012
Title
“Rivers, Bridges and Overdrives”: transit and the (de)composition of space in
Amarelo Manga
Abstract
Amarelo Manga, directed by Claudio Assis, is here analysed as a film that breaks
with the centrality of human figure and presents a peculiar composition of space,
mainly in relation to the representation of urban decay in the third world. This article
aims at investigating the narrative and imagetic maneuvers undertaken by the film
and at pointing out how Assis’ work examines the decline of a city at the same time
that it constructs a strong critique of human will and liberal values.
Keywords
Brazilian cinema. Urban space. Mangue beat
Recebido em 12/04/2012. Aprovado em 28/06/2012.
157
Crimes e pecados:
Woody Allen, Hollywood e o
cinema independente
Marcos Soares
Ana Paula B. Anjos
Marcos Fabris*
Resumo
Este ensaio traz uma análise do filme Crimes e Pecados (1989) do cineasta
Woody Allen que enfatiza suas reflexões tanto sobre a situação do cinema
independente no final dos anos 80 nos Estados Unidos quanto sobre as condições de
possibilidade de sua própria carreira.
Palavras-chave
Woody Allen. Cinema independente. Renascença americana.
Praticamente a totalidade da crítica levou a sério os problemas existenciais de
Judah Rosenthal, o protagonista do filme Crimes and Misdemeanors (1989), um dos
mais celebrados do cineasta Woody Allen. A partir da cena do jantar em que o pai e a
tia de Judah debatem a existência de Deus e o sentido da existência, entre outros
temas de envergadura semelhante, grande parte dos críticos concentrou-se nas
60
reflexões sobre os conteúdos “filosóficos” do filme , em geral ignorando que o registro
da cena não é naturalista, mas faz parte de um acerto de contas que um assassino e
estelionatário faz consigo mesmo para justificar o salve-se quem puder que garante
sua vida de riqueza e privilégios. Entretanto, o engano é, pelo menos em parte,
compreensível, pois o filme de fato faz um aproveitamento, cujo alcance crítico é
preciso determinar, da tendência de parte da dramaturgia moderna e de certo tipo de
*
Marcos Soares é professor de literatura Norte-Americana da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo; Ana Paula B. Anjos é doutoranda na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo; Marcos Fabris
é professor de História da Fotografia e História da Arte e doutor pela Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
60
Ver, por exemplo, Sander H. Lee, Woody Allen’s Angst: Philosophical Commentaries on his
Serious Films. Jefferson & London: McFarland, 1997; Foster Hirsch, Love, Sex, Death and the
Meaning of Life – The Films of Woody Allen. Cambridge (MA): Da Capo Press, 2001; Peter J.
Bailey. The Reluctant Film Art of Woody Allen. Kentucky: The University Press of Kentucky,
2001; Sam B. Girgus. The Films of Woody Allen. Cambridge: Cambridge University Press,
2002; Mark T. Conard & Aeon J. Skoble (eds.). Woody Allen and Philosophy. Chicago: Open
Court, 2004; Charles L. P. Silet (ed.). The Films of Woody Allen – Critical Essays. Toronto &
Oxford: The Scarecrow Press, 2006.
Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v. 7, n. 1, p. 159-167, jan./jun. 2012
Volume 7 ▪ Número 1
jan./jun. 2012
61
cinema de alçar a dimensões trágicas os problemas de gente ilustre e endinheirada .
Some-se a isso a discussão (necessariamente séria) sobre os traumas causados pelo
holocausto nazista, um dos temas da conversa entre o pai e a tia, e temos delineada
uma situação que, se não percebida como armadilha, pode levar a uma identificação
perigosa com as justificativas que Judah enuncia e incorpora.
Além disso, o filme apresenta outro problema interpretativo, ainda relacionado
ao anterior, mas desta vez de caráter mais propriamente estrutural: se a ênfase da
narrativa está nas crises que pontuam a trajetória de Judah, como explicar a inserção
da linha “cômica” que caracteriza a história de Clifford? Como, afinal, conciliar o
elemento auto-reflexivo que marca as atribulações de um cineasta “sério”, forçado a
fazer um filme sobre o cunhado medíocre e bem sucedido, com as reflexões filosóficas
62
do primeiro enredo? Naturalmente, insistir, como fez o próprio cineasta , que a
intenção era fazer um experimento a partir das interações entre a tragédia e a
comédia não resolve a questão, mas apenas cria outro problema interpretativo. De
outro lado, a saída de grande parte da crítica de apontar que o segundo núcleo
narrativo funciona como mero interlúdio cômico que amplia e confirma as dimensões
metafísicas do primeiro ao enfatizar a questão da traição amorosa e profissional não
apenas repõe a divisão (frequentemente ideológica) entre tragédia (séria) e comédia
(leve), mas também resvala para um nível de generalização que ignora boa parte do
material mobilizado pelo filme, principalmente no que tange sua radiografia mordaz
dos mecanismos da indústria cultural.
Já a centralidade deste último assunto para os dois núcleos dramáticos pode ser
verificada através da observação de pelo menos dois procedimentos formais
importantes: de um lado, a passagem de um núcleo para outro é frequentemente feita
através da inserção do trecho de um filme, cujo papel é duplo, pois é assistido pelos
personagens em torno de Clifford (sua face diegética, visível para parte das
personagens), mas comentam a ação do núcleo ao redor de Judah (sua face mais
propriamente épica, visível apenas para o espectador); de outro, a união dos dois
enredos, na última sequência do filme, quando Judah e Clifford finalmente se
encontram, tem como tema explícito as reflexões de ambos a respeito das convenções
dos filmes hollywoodianos e sua relação com a “vida real”.
Entretanto, não é preciso esperar tanto para ser introduzido pelo filme no
universo da representação dramática: já a primeira cena, quando Judah recebe um
prêmio por suas ações filantrópicas, tem natureza claramente “teatral”. A filmagem em
profundidade de campo e a trilha sonora enfatizam a presença do público e seus
aplausos, enquanto o nervosismo do protagonista é descrito por sua esposa como
“stage-fright” (ou seja, o receio ou fobia de atuar perante uma determinada plateia). A
atuação em curso no “palco” é denunciada pelo flashback do personagem, que situado
fora do campo visível da cena para os espectadores do discurso filantrópico, funciona
como “bastidor”, revelando sem rodeios o verdadeiro motivo do nervosismo (a carta
da amante Dolores endereçada à esposa e interceptada por Judah horas antes da
61
Ver, sobre essa questão, a reflexão mais ampla de Raymond Williams em Tragédia Moderna
(1966), São Paulo: Cosac Naify, 2002.
62
Ver Stig Björkman. Woody Allen on Woody Allen. New York: Grove Press, 1993.
160
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cerimônia). Mais tarde descobriremos (através da mesma Dolores) que a ação
filantrópica, objeto dos aplausos entusiasmados da plateia e dos elogios rasgados
tanto ao businessman quanto ao esmerado pai de família, é apenas pretexto para
encobrir as perdas financeiras de Judah no mercado de investimentos. Assim, o filme
introduz dois tipos de público estruturalmente equivalentes, mas, ao mesmo tempo,
insiste em sua disjunção: enquanto o primeiro, interno ao filme, tem acesso apenas
aos dados imediatamente apreensíveis da encenação, o segundo, composto pelos
espectadores, tem acesso à totalidade das informações através do recurso ao
flashback e à montagem. Constrói-se, assim, um mecanismo narrativo que opõe
verdade e obscurantismo, aparência e essência, presente e rememoração e que será
uma das chaves interpretativas do filme, dando nova densidade à metáfora
desgastada da visibilidade/cegueira. Digamos, para adiantar a discussão, que Crimes e
Pecados vai justamente desmascarar a ideologia do estilo “invisível” do filme
hollywoodiano, ao demonstrar que a relação entre esse tipo de filme e a vida social é
uma relação de seleção, transformação, apagamento e falsificação de materiais.
A partir dessa sequência inicial, o filme insistirá, como apontado acima, na
comparação entre diversas sequências de filmes hollywoodianos e a história de Judah,
revelando na trajetória do protagonista parte do material que geralmente fica de fora
nos filmes cujos temas são as intrigas amorosas (como em Mr and Mrs Smith de Alfred
Hitchcock, 1941) ou os assassinatos das pessoas que atrapalham a trajetória
triunfante do herói dramático (como em This Gun for Hire, clássico noir de Frank Tuttle
de 1942). Assim como a fala de Judah que abre o filme “reprime” a carta de Dolores e
coloca em seu lugar o falso discurso filantrópico e religioso, cada uma das sequências
desse primeiro núcleo narrativo se estruturará a partir da dicotomia entre o ritual
social sem sentido (as festas, o jantar com os amigos, a comemoração do aniversário,
a vida familiar e profissional, os esforços filantrópicos) e seu pressuposto escondido (a
violência, a mentira, o autoengano, o roubo, o assassinato), construindo uma oposição
não entre o espaço da liberdade e o espaço da restrição, mas entre dois tipos de
claustrofobia: a repetição insuportável da vida cotidiana (cujo símbolo mais eloquente
é a esteira dada pela família a Judah como presente de aniversário, que combina
reiteração e narcisismo) e o retorno do reprimido na forma da memória indesejável,
que transforma a possibilidade de libertação sexual em transgressão moral, o
arejamento da rua e da praia no espaço claustrofóbico do apartamento e do carro de
Dolores, a beleza da música de Schubert em presente ameaçador, o irmão em
gangster, o filantropo em estelionatário, a contravenção (“misdemeanor”, parte do
título original do filme) em crime. Esse remanejamento radical é figurado através de
uma
homogeneidade
de
estilo
que
marca
esse
núcleo
narrativo,
presente
principalmente no uso peculiar da fotografia, cujos tons em vermelho e amarelo
reforçam a clausura dos ambientes fechados, dando a ver o correspondente visual da
fantasmagoria e do caráter artificial e asfixiante da consciência de Judah.
Ao
mesmo
tempo
essa
consciência
realiza
uma
auto-análise
de
seus
pressupostos, num processo que se aproxima da prática psicanalítica (a mesma que
Judah recomenda a Dolores num momento de desespero) em que hipóteses são
levantadas e testadas, rejeitadas ou aceitas. As cenas centrais neste caso são
justamente aquelas em que se mesclam flashes capturados do fluxo da memória (os
161
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rituais religiosos da infância, os encontros mais felizes com Dolores), confissões (na
conversa com o rabino Ben) e visões noturnas, reelaboradas em seguida nos
momentos em que essa consciência recupera, pelo menos em parte, personagens e
eventos da “vida real” e as transforma, conforme seus desideratos, numa expressão
perversa do fluxo de consciência que havia caracterizado a “riqueza psíquica” das
personagens modernistas. Assim, duas conversas, uma com Ben no consultório, outra
com Jack, o irmão gangster, na beira da piscina, são retomadas na sala de Judah
durante uma tempestade, antes do telefonema que selará o destino de Dolores: aqui
os diálogos originais são “reescritos” e misturados na imaginação para demonstrar a
superioridade da visão de Jack (mais próximo da “vida real”) em relação à inevitável
ingenuidade do rabino (um cego que realmente não vê), com sua crença na existência
de uma estrutura moral que garanta a justiça das decisões humanas. Do mesmo
modo, a cena do jantar-ritual familiar é composta pelo trabalho de rememoração de
momentos da infância a serviço da justificativa do presente: as duas posições
contrárias – a do pai, que “prefere Deus à verdade” e a da tia, que acredita que aquilo
que chamamos de padrão moral é formado pela visão dos vencedores da História –
são encenadas para serem “superadas” por uma nova combinação, inusitada e
explosiva: são negados o poder regulador da religião (pai) e o desejo de contraposição
à visão hegemônica da História (tia) e são aceitos a negação da verdade, o eterno
relativismo e o darwinismo social (Judah).
Mas não são esses valores que, em sua ênfase no elogio à trajetória do
vencedor, constituem o centro do cinema dramático e hegemônico? Saem de cena os
filmes que no final dos anos 60 e início dos 70 (momento da chamada Renascença
Americana, quando Woody Allen inicia sua carreira) haviam feito uma radiografia da
vida dos “losers” americanos e entram os representantes da “ética do sucesso” que
marcaria a vida ideológica da década de 80 e grande parte do cinema americano
produzido na era Reagan. Entram aqui, então, as figuras de Lester, realização desse
princípio no mundo do espetáculo, e de Clifford, sua contraposição. É na figura deste
último, interpretado pelo próprio Woody Allen, que se adensam os problemas
interpretativos do filme. Pois seu gosto pelos filmes antigos tem feição francamente
escapista, enquanto seu trabalho como cineasta pode aparentar um ânimo raro, cuja
face mais eloquente estaria no filme que faz sobre Lester, que não deixa pedra sobre
pedra no tratamento de seu assunto. A investigação sobre o que parece ser uma
contradição deve começar com uma análise detida do emaranhado de fatores que
compõem essa questão.
De um lado, temos o gosto pelo glamour da Hollywood dos anos 40-50: é
Clifford que assiste com ardor de cinéfilo aos filmes que fazem a transição entre os
núcleos narrativos, em geral na companhia da sobrinha ou de Hallie, a produtora
independente, que participam de seu processo de “educação sentimental”. A saída da
sala de projeção o lança de volta a um mundo hostil, distante da Nova York antiga,
que só pode ser vislumbrada no livro de fotos da cidade dado de presente à sobrinha.
Já de volta ao apartamento da irmã, Clifford, cujos filmes abordam temas pouco
festivos como a radiação tóxica e a leucemia, mostra que na vida real a situação é de
outra ordem: ao ouvir a história de uma aventura sexual grotescamente mal sucedida,
tem contorções incontroláveis de repúdio. É de uma perspectiva nostálgica e escapista
162
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que se monta sua insatisfação com o mundo: o embate contra a figura de Lester se
dá, assim, em nome de um ideal de beleza perdido e contra a imbecilidade da vida e
da indústria cultural modernas. O erro do diagnóstico é evidente: não apenas na
valorização do glamour do passado (resultado do apagamento sistemático que
Hollywood fez das agruras dos anos da Depressão, da guerra e do macarthismo nas
décadas de 40 e 50), mas principalmente na criação de uma oposição imaginária como
antídoto contra a “nova vulgaridade” da vida e do cinema atuais. Não é acaso,
portanto, que um dos filmes favoritos de Clifford seja Cantando na Chuva (Singing in
the Rain, Stanley Donen & Gene Kelly, 1952): pois de todos os gêneros clássicos da
indústria norte-americana, o musical é aquele que mais radicalmente marca
convenções internas próprias (a passagem do diálogo para o canto e a dança), que
perdem a validade no embate com a vida real. Entretanto, será que lhe passará
despercebido o conteúdo mais crítico do filme, ou seja, sua exposição das
maquinações falsas de Hollywood a partir da encenação da desonestidade de uma atriz
do cinema mudo, que só pode manter seu falso glamour ao posar de cantora enquanto
é dublada por alguém nos bastidores?
Na verdade, até certo ponto, o filme registra a produtividade da posição de
Clifford: Lester é, de fato, uma figura nefasta que merece o tratamento dispensado no
documentário; por outro lado, o filme parece pedir nossa aprovação do outro projeto
em curso, o filme sobre o filósofo Louis Levy, cujas entrevistas pontuam a história.
Porém, os esforços de Clifford rapidamente alcançam limites específicos, a saber,
aqueles impostos tanto pelo circuito da produção independente quanto da televisão
pública nos Estados Unidos dos anos 80.
Para entender este ponto, vale aqui uma curta digressão: para a totalidade dos
cineastas trabalhando no final dos anos 80 os momentos que marcavam a ascensão da
“Nova Hollywood” já estavam perfeitamente claros. Para encurtar a história: a função
histórica de grande parte dos cineastas que surgiram na “Renascença Americana” do
final dos anos 60 e início dos 70 já havia sido devidamente cumprida, isto é, salvar a
indústria de sua pior crise a partir do desmonte e da disponibilização das conquistas do
cinema europeu de arte para os interessados em enriquecer o cinema narrativo
hegemônico através da adoção das formas da moda da arte rebelde da década
63
anterior . Agora essa mesma indústria podia passar para a fase de aniquilamento
desses mesmos cineastas, muitos dos quais viram suas carreiras exterminadas no
64
período . Assim chegava ao fim boa parte da experimentação que marcara as duas
décadas anteriores, tanto do ponto de vista das novas formas estéticas quanto das
novas formas de produção independente, para ressurgir revigorada uma nova fase do
sistema
de
estúdio
em
sua
fase
blockbuster,
reforçado
pelas
políticas
de
desregulamentação de Reagan. Já a produção dita independente, que contava com os
cinemas de arte e repertório das grandes cidades para ser exibida, viu esse circuito
63
Alguns dos filmes mais representativos do período são Bonnie e Clyde – Uma Rajada de Balas
(Bonnie and Clyde, 1967, Arthur Penn); A Primeira Noite de um Homem (The Graduate, 1967,
Mike Nichols); Sem Destino (Easy Rider, 1969, Dennis Hopper); Perdidos na Noite (Midnight
Cowboy, 1969, John Schlesinger); Meu Ódio Será Sua Herança (The Wild Bunch 1969, Sam
Peckinpah), entre outros. O primeiro filme importante de Woody Allen é Um Assaltante Bem
Trapalhão (Take the Money and Run, 1969).
64
Para mais informações ver David Cook. Lost Illusions, New York: Scribner, 2000.
163
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praticamente desaparecer com o surgimento dos cinemas multiplexes (o cinema da
Bleecker Street, onde Clifford passa parte de suas tardes, foi uma das vítimas desse
processo em 1990) e se viu confinada aos festivais de cinema (os mesmos em que
Clifford exibe seus filmes). Esses, por outro lado, em grande parte tomaram o Festival
de Sundance (aberto em 1989) como modelo e se transformaram em vitrines para a
exibição do trabalho de jovens cineastas cujo objetivo era trabalhar em Hollywood.
65
Se nos circuitos cinematográficos, a carreira de Clifford tem, portanto, pouca
chance de decolar, já as trajetórias de Lester e Hallie demonstram de modo inequívoco
os critérios mercadológicos da produção independente na televisão pública nos Estados
Unidos (o programa sobre Lester é feito para a PBS, a rede de televisão pública). Em
ambos os casos a formação política e estética é, em teoria, de “esquerda”: uma das
novas séries de Lester sobre um casal de advogados tentará abordar “assuntos sérios”
de modo “equilibrado”, mas, como a atriz-modelo que o acompanha a uma das festas
afirma, o programa provavelmente “terá uma tendência de esquerda”. Entretanto,
suas “teorias” sobre a comédia, ensinadas até em Harvard, se aproximam mais de um
supermercado
pós-moderno,
que
através
de
“distanciamento
histórico”
pode
transformar tudo (de Édipo ao assassinato de Lincoln) em lixo cultural palatável.
Hallie, por sua vez, quer que Lester produza uma série com uma história de Chekhov
por semana. Por outro lado, seus planos de filmar Gabriel Garcia Marquez são
abandonados em favor de Lester, um “grande herói americano”, enquanto o projeto
com Levy deve “afirmar o lado positivo de sua visão de mundo” para ter alguma
chance de ser produzido. O filme aponta, assim, para a convergência entre as
ideologias do filme hollywoodiano e dos chamados circuitos alternativos. É por essa
razão que o suicídio do filósofo, ao instaurar uma “contradição” entre teoria e prática,
produz um problema insuperável e deve ser descartado: digamos que, diante da
truculência dos processos sociais modernos, a visão otimista do filósofo, assim como a
do rabino, é mercadoria ultrapassada. Já a trajetória pessoal de Hallie deixa pouca
dúvida sobre seus supostos princípios artísticos: como ela mesma afirma, ela nunca
diz “não” para champanhe e caviar, é ambiciosa e dormir com o “inimigo” pode
significar financiamento para seus futuros projetos pessoais.
Apenas o filme de Clifford sobre Lester tem ainda alguma aparência de
enfrentamento. Com sua estética agressivamente militante, baseada em cortes
abruptos, comparações inusitadas, descompassos entre som e imagem, sobreposições
e descontinuidades, remete aos paradigmas do filme político europeu, mais próximo
do agit-prop do que do estilo “invisível” e inócuo que marca a produção comercial. Por
outro lado, sua investigação dos bastidores do trabalho de Lester (no momento do
assédio à aspirante a atriz ou do surto de violência contra seu time de escritores)
entra em consonância com um dos temas centrais do filme, produzindo um momento
de visibilidade dos pressupostos que marcam o regime de trabalho da indústria
cultural. Embora vejamos apenas um pequeno trecho do filme, ele mostra com
eloquência o poder de fogo de Clifford (e, por extensão, de Woody Allen).
65
Para uma reflexão sobre o impacto dos festivais de cinema e especialmente do festival de
Sundance sobre a produção independente americana nos anos 80-90 ver Jake Horsley, Dogville
vs Hollywood – The war between independent film and mainstream movies. London: Marion
Boyars Publishers, 2005 e Peter Biskind, Down and Dirty Pictures – Miramax, Sundance and the
Rise of Independent Film. New York: Simon & Schuster, 2004.
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Entretanto, a estratégia é desastrada e produz seu próprio aniquilamento: como
era de se esperar, o filme é vetado e o diretor demitido (como a própria Hallie afirma,
ela mesma poderia ter avisado Clifford sobre o perigo: afinal, além de produtora, ela
também é advogada). No universo das avaliações “inocentes” que tantos personagens
do filme emitem devemos adicionar a de Clifford, que reconhece de modo imperfeito
seu lugar como trabalhador. É nesse momento que a confluência, mas também a
diferença, entre Clifford e Woody Allen revela seu lado mais produtivo e nada
inocente: pois no personagem, Woody Allen mostra aquilo que ele mesmo deve evitar
se desejar sobreviver na indústria.
Curiosamente, Woody Allen praticamente não aparece nos estudos críticos da
“Renascença Americana”, de quem ele é contemporâneo. Num desses estudos, o autor
resume a atitude geral de modo exemplar:
Há um cineasta “mainstream” que conseguiu manter sua independência e
autonomia dentro do sistema e que aparenta indiferença tanto em relação ao sucesso
comercial quanto ao gosto do público. Durante toda sua carreira, ele fez filmes
exatamente do modo que quis. Sempre teve poder de decisão sobre a forma final de
seus filmes (a expressão “final cut” é um termo mítico em Hollywood) e não apenas
tem evitado, mas tem permanecido indiferente aos tipos de batalhas que destruíram
cineastas como Peckinpah e Welles. É um verdadeiro autor de seus filmes e,
entretanto, sempre fez filmes para estúdios e nunca (pelo que eu saiba) sofreu
intervenção em seus filmes ou em sua visão de mundo. Como conseguiu isso? Sendo
Woody Allen. [...] Desde o início, seu carisma e talento foram considerados tão
claramente idiossincráticos e únicos que [os produtores] acabaram por intuir que o
melhor seria não procurar restringir ou moldar seus filmes, mas simplesmente deixá-lo
66
fazer o que quisesse e lucrar com isso .
Na verdade, a carreira de Woody Allen desmente ponto a ponto essa sentença
sobre sua suposta liberdade criativa, particularmente depois do desastre comercial de
Melinda e Melinda (2004) e sua busca de financiamento na Europa. Se há algo único
nessa trajetória, não se trata da liberdade das pressões comerciais, mas da adoção de
estratégias inéditas e criativas (tanto no campo da produção dos filmes quanto das
escolhas estéticas) que marcam sua carreira e que merecem estudo detalhado. Crimes
e Pecados pode ser um bom ponto de início desse estudo, pois é uma demonstração
prática de um conjunto de estratégias empregadas por Woody Allen para negociar
entre as demandas do mercado e da indústria e as reivindicações de uma arte mais
exigente e crítica. Essas estratégias pressupõem, dentre outras medidas, a simultânea
manutenção e análise crítica de pelo menos dois procedimentos caros ao cinema
hegemônico: o protagonismo e o final feliz. No primeiro caso, trata-se de manter como
centro da linha dramática a questão do empreendedorismo (neste caso, de Judah), a
máquina que move o enredo desde a ascensão do drama burguês, mas partir para
uma exposição de seus pressupostos e resultados violentos. No segundo, trata-se de
manter a aparência de certo fechamento dramático ou teleologia ao mesmo tempo em
que dá ênfase aos mesmos pressupostos, mostrando a vitória do protagonista como
desastre social generalizado.
66
Jake Horsley, op. cit. p. 133.
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Em Crimes e Pecados há um fechamento duplo. No primeiro, Judah e Clifford se
encontram pela primeira vez, enquanto no segundo realiza-se a festa de casamento da
filha de Ben. Novamente, como no início do filme, estabelece-se uma relação entre
“cena” e “bastidor”, o espaço do ritual social e aquele de seu pressuposto escondido.
Nos bastidores da festa Judah conta a Clifford/Woody Allen o “enredo” da história de
um crime perfeito. O diretor, alinhando-se, mesmo sem saber, com Ben, mas também
com as demandas do cinema comercial, exige um fechamento trágico, talvez
esperando que algum tipo de justiça divina o vingasse pela dupla traição de que fora
vítima. De outro lado, Judah, mais “realista”, enfatiza que “isso só acontece nos
filmes” e reafirma a lógica do crime e seus laços com uma vida social bem-sucedida. A
evidente “superioridade” da visão de Judah, que encara com simplicidade e realismo
os dados da “vida real”, sugere a naturalização de uma ordem social perversa, que
permanece de pé através da execução de atos violentos que se esfumaçam no palco
da vida social e cuja reiteração futura é sugerida no anúncio do casamento da filha de
Judah. Já Clifford, o artista, busca refúgio em idealizações cuja face social mais visível
é o filme hollywoodiano.
O “final feliz” fica por conta do retorno à festa de casamento e à dança da filha
com o rabino. O tom afirmativo está presente na fala de Levy, em voz-over, que
reafirma a ordem do universo e a esperança de que as futuras gerações possam
aprender com os desastres do presente. Entretanto, a montagem final, que reconta
em parte a história do filme, faz uma seleção nada inocente, privilegiando momentos
chave da trajetória que levou ao assassinato, dentre eles os encontros com Dolores e a
conversa com o irmão. Se há chance de aprendizado futuro, pelo menos no campo da
arte, ela parece estar na habilidade – que o cinema exigente deve ajudar a
desenvolver – de ler nas entrelinhas de todas as narrativas que afirmem a visão da
história dos vencedores.
Realizado no ano da queda do muro de Berlim e no primeiro ano da era Bush,
Crimes e Pecados está situado no fim da “era ideológica”, na qual as elites ainda se
preocupavam em manter a pose de dignidade enquanto a direita realizava nos
bastidores os desmonte do Estado de bem-social em nome do grande capital. Quando
até essa necessidade começou a desaparecer, Woody Allen se viu na obrigação de
reatualizar seu “herói” – o Chris Wilton de Match Point será um retrato ainda mais
aterrador do empreendedorismo moderno.
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WILLIAMS, Raymond. Tragédia moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
Title
Crimes and sins: Wood Allen, Hollywood and the independent cinema
Abstract
In this essay we propose an analysis of the film Crimes and Misdemeanors
(1989) by Woody Allen in an attempt to focus on its reflections both on the American
independent movie production in the 80’s as well as on the conditions of possibility of
Allen’s career.
Keywords
Woody Allen. Independent cinema. American renaissance.
Recebido em 15/01/2012. Aprovado em 28/06/2012.
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O uso do melodrama na forma
cinematográfica de Ken Loach
Cristiane Toledo Maria*
Resumo
Este artigo discute o projeto estético-político do cineasta inglês Ken Loach
dentro da história da arte política, e como fruto de um processo histórico de crise da
esquerda e fragmentação da classe trabalhadora, intensificado durante a segunda
metade do século XX, especialmente em países como a Inglaterra. Observamos de que
maneira a obra de Ken Loach cria uma forma que realiza um resgate de materiais
melodramáticos, e as consequências de tal escolha formal para o conteúdo político de
seus filmes. O filme usado como base para a análise é Terra e Liberdade (Land and
Freedom, 1995), cuja forma e conteúdo, além de discutirem a guerra civil espanhola e
sua relação com o contexto britânico do final do século XX, trazem à tona a discussão
sobre o papel do cinema político e suas possibilidades e limites dentro da indústria
cultural.
Palavras-chave
Ken Loach. Cinema político. Melodrama. Cultura e sociedade
Ken Loach é um cineasta inglês famoso por seus filmes de cunho político e por
sua posição esquerdista, nos quais os protagonistas são quase sempre pertencentes à
classe trabalhadora inglesa ou de países do Reino Unido. Considerado pela crítica uma
voz dissidente em meio a uma vasta quantidade de filmes meramente comerciais (que
apenas reproduziriam o sistema e seriam incapazes de contestá-lo), seus filmes são
também conhecidos por carregarem em si uma contradição forma-conteúdo, ou seja,
por serem progressistas em seus conteúdos e regressivos em sua forma, que, segundo
os críticos, poderia ser considerada melodramática.
Jacob Leigh (2002), ao estabelecer comparações entre a estética do cineasta e a
melodramática, considera a obra de Ken Loach como uma espécie de “melodrama de
protesto”, por expor a injustiça, estimular a conscientização e instigar o público a
ativar um senso de indignação em relação às injustiças e atrocidades das autoridades
contra um protagonista inocente (a típica vítima melodramática). Segundo o crítico,
Loach fez melodramas de protesto ao longo de sua carreira, de Cathy Come Home
(1966) a Pão e Rosas (2000), usando uma variedade de estratégias que trazem um
protesto político e social ao circuito comercial do cinema de ficção. O grau em que
nós experenciamos seus filmes como propaganda política depende da intensidade
*
Doutoranda na Área de Estudos Línguísticos e Literários em Inglês da FFLCH – USP.
Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v. 7, n. 1, p. 169-179, jan./jun. 2012
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com a qual o diretor e seus colaboradores têm conseguido integrar os recursos do
melodrama de protesto com personagens e histórias que contêm convicção e
plausibilidade. (LEIGH, 2002, p. 22)
Em geral, os críticos mencionam que existem algumas diferenças fundamentais
entre a estética tradicional do melodrama e a empregada por Ken Loach. Apesar de
partirem de ambientes domésticos e focarem num protagonista enquanto indivíduo,
além de possuírem um forte apelo às emoções do espectador, as histórias de Loach
seriam, segundo George McKnight, “parábolas sem moral”67 (MCKNIGHT, 1997, p. 97).
O autor defende que “Loach cria um tipo específico de parábola que dialoga
politicamente com as inquietudes sociais e econômicas da estrutura social. É
geralmente admitido que, para Loach, a moral deve ser encontrada no político”
(MCKNIGHT, 1997, p. 97).
Para entendermos essa contradição entre forma e conteúdo – e sua relação com
o projeto estético-político de Ken Loach – é importante introduzir antes uma breve
explicação sobre seu percurso na indústria cinematográfica. A carreira de Loach se
iniciou nos anos 1960, quando trabalhava para a emissora de televisão BBC,
produzindo filmes que eram classificados como docudramas, devido às proximidades
técnicas com a linguagem documental, e principalmente aos temas sociais que eram
retratados. Na década de 1960 e 1970 muitos de seus filmes foram censurados pela
própria emissora, com o argumento de que não era ético misturar documentário e
ficção. No entanto, muito provavelmente o motivo maior para a censura era o
conteúdo radical dos filmes, que criticava as instituições, o governo britânico, e o
sistema capitalista que gerava os problemas que seus protagonistas enfrentavam.
Curiosamente, no inicio dos anos 1960 Loach flertava com técnicas anti-naturalistas
inspirado nas técnicas do teatro épico de Bertolt Brecht, mas ele logo abandonou este
estilo e adotou o que será dali pra frente sua estética ‘contraditória’.
Cansado do controle ideológico feito pela televisão, na década de 1980 sai por
completo da BBC e parte para o cinema em si, também sofrendo complicações. Ao
observar a situação de graves problemas sócio-econômicos que a Era Thatcher trouxe
ao seu país, Loach abandona o terreno da ficção e decide fazer documentários que
fizessem uma crítica ácida e direta ao sistema, atitude que teve como resultado
críticas negativas e até mesmo censura à sua obra. Houve também pouca distribuição
e interesse pela sua obra neste período. Somente a partir da década de 1990 – a
chamada ‘fase madura’ de Ken Loach, que inclui basicamente filmes de ficção que
saem muitas vezes do terreno britânico (como é o caso de Terra e Liberdade, Uma
canção para Carla e Pão e Rosas) – seus filmes ganharam maior respeito da crítica e
do público, além de prêmios e exibições internacionais.
De toda sua filmografia, Terra e Liberdade talvez tenha sido a produção que
mais gerou polêmica quanto a essa suposta contradição forma-conteúdo, e por esse
motivo foi escolhido como nosso objeto de análise neste texto. Produzido por Ken
Loach em 1995, o filme conta a história de David (Ian Hart), um inglês desempregado
67
Tradução nossa do termo usado pelo autor ‘morality tales without morals’. Por ‘parábola’ é
importante ter como definição a idéia de uma narrativa que possui um ensinamento moral que
pode ser tanto explícito como implícito.
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membro do Partido Comunista, que decide ir para a Guerra Civil Espanhola lutar contra
o fascismo que se instaurava no país para conter a revolução dos trabalhadores. Por
acaso, une-se ao POUM (Partido Obrero de Unificación Marxista), e participa das
discussões teóricas e práticas do movimento. Nesse meio tempo, apaixona-se por
Blanca (Rosana Pastor), uma das militantes do partido. Devido a algumas opiniões
conflitantes, decide abandonar o grupo e unir-se ao exército do Partido Comunista. É
através dessa experiência que David testemunha a verdadeira face do Stalinismo e sua
repressão aos membros de grupos de esquerda que não obedeciam às ordens do
Partido, além de compreender os interesses de Stalin em impedir que uma revolução
genuinamente popular ocorresse na Espanha, influenciando assim outros países dentro
e fora da Europa.
A história nos é contada através de cartas de David encontradas pela sua neta
Kim após sua morte, no final do século XX. Kim tem contato com a história pessoal do
avô ao mesmo tempo em que aprende sobre o passado de sua classe, e, no final do
filme, enterra seu avô lendo um poema de William Morris68 e joga em seu caixão um
punhado da terra trazida da experiência de David com a breve revolução espanhola.
Logo no início do filme, temos uma cena que mostra o momento inicial de
contato da neta de David com a experiência da Espanha. Nela, vemos Kim, a neta de
David, já nos anos 1990, organizando os pertences do avô logo após sua morte. O
primeiro quadro que vemos são duas mãos folheando jornais e revistas de esquerda
com temas como ‘trabalho’ e ‘imperialismo’. Logo, porém, as mãos descartam o
material, sem sequer deixar tempo para o espectador observá-lo. O próximo passo de
Kim é ir até um guarda-roupa e pegar uma mala, onde estão os outros pertences do
avô.
Na continuação há um close na mala sendo aberta, e o ponto-de-vista coincide
com o olhar de Kim. Vemos que há um pano vermelho com um punhado de terra, mas
nada daquilo possui qualquer significado para nós, nem para ela (que revela um certo
estranhamento através de sua expressão facial).
Em seguida, a câmera volta a focar a mala, e dentro dela vemos alguns outros
recortes de jornal, que Kim ignora e por isso nós também não conseguimos ler,
preferindo pegar uma fotografia de Blanca. Curiosamente, ao observar a fotografia, a
reação de Kim é de compreensão e identificação (ao contrário dos textos políticos e do
pano vermelho com a terra). Ela sorri, como se conseguisse finalmente estabelecer
alguma relação entre aqueles objetos e a vida do avô.
O último movimento desta cena é quando, finalmente, Kim decide retirar da
mala um recorte de jornal e nós lemos junto com ela: “Revolta das Tropas Espanholas”
e “Todos em ação para defender a República Espanhola”. Embaixo do recorte, vemos a
foto de Blanca. Uma nova cena se inicia, e somos transportados para os anos 1930.
Essa cena possui o que podemos chamar de manifesto estético-político de Ken
Loach. Poderíamos fazer uma leitura dessa cena seguindo os argumentos da maioria
dos críticos, que defendem que na obra de Ken Loach existe uma “contradição formaconteúdo”, ou seja, que os filmes são progressistas em seus conteúdos e regressivos
68
William Morris (1834-1896) foi um artista militante inglês e um dos fundadores do movimento
socialista na Inglaterra.
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em sua forma. Essa contradição mencionada pela crítica estaria ligada ao fato de os
filmes de Loach utilizarem técnicas dramáticas na estrutura de suas narrativas como,
por exemplo, as influências da estética melodramática em seus filmes.
A leitura que faríamos dessa cena, então, seria a de que existe nela um jogo de
movimento entre o público e o privado. Seguindo essa lógica, afirmaríamos que Loach
quer falar de algo coletivo, mas talvez sinta a necessidade de partir de algo individual
para despertar a atenção de espectadores que formariam uma geração de ‘netos de
David’. O interesse de Kim na fotografia de Blanca dá indícios de que sua
compreensão, obviamente, se dá primeiramente no nível dramático, e é isso o que a
estética de Terra e Liberdade daria ao espectador ao explorar, por exemplo, o romance
entre Blanca e David. Esse raciocínio indicaria que o cineasta estaria fazendo uma
espécie de retrocesso planejado para comunicar-se com seu público num momento
histórico específico.
O argumento central desse texto parte da constatação de que os filmes de Ken
Loach não são simplesmente dramas que tratam de temas políticos, ou dramas que
têm como protagonista a classe operária. A obra do cineasta parece ir muito além
dessa questão da contradição, e apesar de ter características relacionadas ao estilo
dramático, não acreditamos ser o drama sua base estruturante.
Mas, afinal, se Loach não faz dramas, o que ele faz? Mais especificamente, no
que sua estética difere da tradição clássica cinematográfica? Para respondermos esta
pergunta, é de fundamental importância analisarmos o contexto de produção de sua
obra, pois ele condicionará a crítica que Ken Loach, enquanto artista militante, deverá
fazer a respeito da história da luta de classes.
Dentre os obstáculos e impasses políticos e estéticos encontrados pelo artista,
temos as condições políticas do final do século XX. A crise política na qual sua obra
está inserida é de enorme proporção. Especialmente do ponto de vista da esquerda, as
últimas décadas do século XX sofreram diversas crises que tiveram como última
consequência o surgimento do discurso do “fim da História” e da vitória final do
Capitalismo sobre seu rival, o Comunismo, assim como qualquer outra alternativa ao
sistema. É importante ressaltar, todavia, que a vitória do Thatcherismo, e sua
permanência por muitos anos na Inglaterra, foi consequência de diversos problemas
mal resolvidos pela esquerda, desde a experiência do Stalinismo até a concepção
estadista fortemente presente nos partidos e sindicatos ingleses.
Além da crise de ordem política, Ken Loach está inserido numa batalha de
ordem estética. De um lado, há o cinema hollywoodiano, cujo valor muitas vezes não
consegue extrapolar o da mercadoria; de outro, o cinema de arte europeu, com sua
pretensão artística que parece cada vez menos dialogar com a classe trabalhadora.
Nas últimas décadas do século XX, temos ainda o pós-modernismo, cujas produções
em grande parte absorvem técnicas de todos os tipos ao mesmo tempo em que
parecem neutralizar as discussões políticas.
Se a estética pós-modernista surge juntamente com as teorias que pregam o
fim da história, a crise estética é, portanto, uma crise também política. Diante disso,
talvez possamos indagar que, da perspectiva de um artista militante que pretende
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desenvolver uma estética progressista69, não seria possível ser pós-moderno para
tratar de conteúdos históricos. Ken Loach precisaria buscar outra forma, que não fosse
igual à de seus contemporâneos, e que fosse capaz de lidar com todas as tensões
levantadas até agora, e refletir sobre os limites políticos e estéticos da esquerda,
numa tentativa de superá-los e avançar a discussão do que é fazer arte política.
Mais do que uma concessão ou retrocesso planejado, vemos que existe na cena
da neta de David um mapeamento de uma crise política e estética enfrentada pela
esquerda ao longo do século XX. Fruto da fragmentação da classe trabalhadora,
intensificada pela experiência do Stalinismo, da social-democracia, e finalmente do
thatcherismo, Kim se encontra numa condição política qualitativamente distinta da
vivida por seu avô. Relacionado a isso, temos a própria experiência cultural dessa
geração, que viu no cinema – para citar apenas a arte mais especificamente
relacionada à fala de hoje – um potencial de engajamento e militância cooptado pela
indústria cultural, o que reflete na maneira como nós dessa geração nos relacionamos
com o mundo.
O manifesto estético de Ken Loach, então, seria o de interligar as esferas
públicas e privadas, provavelmente por acreditar que “a estrutura de sentimento”
(Williams, 2007) dos anos 1990 perdeu a chave alegórica que faça com que nos
interessemos e compreendamos a história da luta de classes, e que seria preciso,
portanto, partir de uma narrativa individual para encontrar este elo perdido. É através
das lembranças experenciadas por David, e indiretamente por Kim e os espectadores,
que somos capazes de nos tornar testemunhas desta memória e carregarmos conosco
resquícios desta experiência.
A nova abordagem que propomos aqui, mais próxima de nos fazer entender
como funciona a obra de Ken Loach, é de que existe um projeto estético-político
presente na carreira cinematográfica do diretor, de tentativa de criação de uma nova
forma que seja suficiente para mimetizar e lidar com esses conteúdos e formas em
crise. E a novidade não é o fato de estar num meio-termo entre Drama e Épico, e sim
por usar diversas tendências estéticas dentre as que formaram a tradição do teatro e
do cinema nos últimos dois séculos, dentre elas, o melodrama.
Em Terra e Liberdade, o momento que melhor revela o uso que Ken Loach faz
do melodrama é a cena em que o casal David e Blanca tem uma noite romântica,
seguida de uma discussão de relacionamento. Na primeira parte da cena, David chega
à pensão onde se hospedará, e encontra Blanca o esperando, para fazer uma visita
surpresa a ele. Eles iniciam uma conversa sobre os últimos acontecimentos da guerra,
mas Blanca interrompe David e diz: “Hoje quero esquecer de tudo, balas, trincheiras,
política. Quero me sentir humana, para variar”. Os dois se acariciam, se beijam,
insinua-se que haverá uma cena de sexo, e isso é seguido de um fade out (um clichê
do melodrama). Porém, na segunda parte da cena, no dia seguinte, quando Blanca
encontra o uniforme do Partido Comunista em meio aos pertences de David, ela se
sente traída, e os dois iniciam uma briga. O movimento da cena é um clichê
69
Por ‘estética progressista’, entendemos o uso de materiais artísticos que possibilitem
representar os conteúdos políticos e históricos de uma perspectiva contra-hegemônica alinhada
ao ideário de esquerda.
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totalmente dramático hollywoodiano: após o sexo, a mulher descobre algo que faz com
que se decepcione com o namorado, causando uma discussão de relacionamento, e o
acusado se defende dizendo que iria contar tudo, mas que não teve oportunidade.
Aqui, no entanto, a forma dramática entra em choque com o conteúdo, que é político.
Se num ‘dramalhão’ a mocinha encontraria uma aliança, ou uma carta de outra
namorada, Blanca encontra o uniforme que desperta não uma discussão de
relacionamento, e sim uma discussão ideológica.
Porém, Loach não apenas parodia os clichês do melodrama enquanto conteúdo,
mas problematiza seus limites estéticos também. É importante observarmos que,
nessa cena, Dave chega da rua (espaço externo) e, ao entrar na pensão, fecha a porta
na frente da câmera, marcando para nós espectadores que entramos agora no mundo
privado. Os dois personagens iniciam uma conversa sobre a situação do POUM, sobre
a guerra. Quando Blanca insere uma troca de perspectiva, ao dizer que quer ignorar
tais assuntos, o próprio movimento de câmera acompanha tal perspectiva, saindo de
planos abertos para planos médios, até chegar ao close.
Após o fade out, há um ponto de virada na narrativa: Dave acorda com um
barulho vindo do lado de fora, se aproxima da janela, abre-a, e sai até a sacada para
enxergar melhor. De sua perspectiva, vemos que são policiais tentando entrar numa
loja de vinho para capturar alguém. O vinho aqui curiosamente estabelece uma
referência ao que o casal bebia na noite anterior, quando tentava esquecer os
problemas do mundo lá fora.
Esse movimento de abertura da janela entra em contraste com a porta que se
fecha no início da cena, o que revela a impossibilidade de se contar essa narrativa
somente de um plano individual (dramático), já que o barulho de fora vem até eles, e
é preciso sair, ver o que está acontecendo além das quatro paredes. Na continuação,
vemos Blanca acordar, ir até a janela, e decidir que fará um café (uma volta ao mundo
privado). Porém, ao procurar fósforos na bolsa de Dave, ela encontra um uniforme do
Partido Comunista, e há, como descrevemos, uma paródia dos clichês melodramáticos,
na qual Loach esvazia o conteúdo individual e o preenche com um dialogo de cunho
político. Durante essa discussão ideológica, a câmera aos poucos os estabelece
distantes um do outro, saindo dos closes, indo para os planos médios, e finalmente
terminando em ambientes diferentes (pensão e rua). Ken Loach, nessa cena, utiliza-se
de técnicas do melodrama, ao mesmo tempo em que põe em questão os limites dessa
estética.
Mas afinal por que utilizar o melodrama? Ao pensarmos nas origens do
melodrama, vemos que ele surge como filho da Revolução Francesa. Desde seu
aparecimento, o melodrama vem ligado à ideia do ‘popular’, e em alguns casos teve
conteúdo radicalmente político. O que se pode observar de mais radical nos conteúdos
do melodrama ao longo de sua história é o fato de, em muitos dos casos, o enredo ser
centrado num herói ou heroína pobre, e este protagonista ser geralmente vitimizado
por alguém rico ou poderoso, que seria o típico vilão melodramático.
No entanto, mesmo possuindo esta dose de radicalismo e dando voz a uma
classe que até então não era sequer representada (muito menos no papel de
protagonista), havia muitas vezes um deslocamento das tensões da luta de classes
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para outras questões, geralmente de nível moral, e não político. “O melodrama, de
maneira geral, relata uma luta universal entre bem e mal, através de uma perspectiva
moralizante e um enredo imutável, no qual o bem sempre vence o mal, e é possível
ter um “otimismo e uma confiança inabalável na Providência: a Providência que
ajudará sempre aquele que souber ajudar-se a si mesmo” (THOMASSEAU, 2005, p.
48).
Assim, seguindo a teoria do ‘cada um por si e Deus por todos’, a narrativa
melodramática não deixa espaço para ações coletivas, já que basta ser moralmente
correto para ser ajudado pelas forças do destino e ter seu final feliz particular. Há uma
tentativa de restauração de uma ordem e harmonia perdidas, de forma que fatores
sociais e políticos sejam deixados de lado, e reduz o problema apenas ao nível
individual.
O melodrama privilegia primeiramente a emoção e a sensação. Desta forma, o
espectador se deixa arrastar pelas emoções dos personagens e não consegue adquirir
o distanciamento crítico, em geral considerado pela tradição brechtiana como
necessário para ter uma postura mais crítica diante da obra. As peças melodramáticas
“ensinam que o sentimento purifica o homem e que a platéia se acha melhor à saída
de um melodrama” (THOMASSEAU, 2005, p. 48). Não é coincidência que, com esta
relação estabelecida com a platéia, o melodrama tenha se tornado uma fórmula usada
pela indústria cultural, devido a esta eficácia na tentativa de apaziguar os conflitos de
classe e evitar qualquer tipo de estranhamento. O melodrama agrada a todas as
classes sociais, desde as camadas mais populares até a aristocracia.
Se o melodrama reconcilia as diferenças ideológicas, apaga o conflito de classes
e tem como objetivo reconstruir valores morais, seria uma grande contradição adotar
esta forma para tratar dos assuntos de Terra e Liberdade. Porém, como comenta
Thomasseu, ao observar a evolução do gênero, a partir do século XX surgem duas
correntes: uma que apenas copia as receitas do melodrama tradicional e o perpetua; e
outra que, apoiando-se nesta estética, tenta inová-la70. Ken Loach seria o segundo
caso.
Uma evidência disso é que, se no melodrama tradicional o vilão tem extrema
importância dramática, sendo o motor da ação, no caso de Ken Loach os vilões quase
nunca estão marcados. Em muitos casos eles não aparecem ou nós realmente não
sabemos quem são. Em Terra e Liberdade, o Stalinismo é o mais próximo que se pode
chamar de inimigo, mas não há uma personificação dele num personagem específico.
Geralmente, quando os ‘vilões’ são figurados nos filmes de Loach, eles serão as
instituições, o governo, ou, mais diretamente, o capital. Isto é um avanço em relação
ao melodrama, uma vez que não se psicologiza um processo que é histórico.
O tão esperado final feliz do melodrama também nunca ocorre na obra de Ken
Loach, apesar de haver uma tensão entre esta expectativa trazida pela fórmula
melodramática e a realidade sócio-histórica que nos é exposta. Talvez isso tenha como
resultado um efeito de estranhamento e incômodo no espectador que apostou suas
fichas na possibilidade de uma solução harmônica e providencial.
70
A inovação que Ken Loach traz à estética melodramática é, conforme desenvolvemos nesse
artigo, a apropriação dialética deste material, utilizando-o de maneira a refuncionalizá-lo para
os fins políticos do cineasta. Tal processo se dá através da criação de uma outra forma,e não de
apenas uma cópia idêntica do melodrama.
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O que ele irá encontrar, todavia, será a conclusão de que qualquer solução será
possível somente através de uma ação política que tenha como princípio uma
transformação radical (revolucionária) nas relações sociais. Não há, então, uma
tentativa de apagar a luta de classes – num intuito de ser reconfortante – e sim de
evidenciá-la.
Se o melodrama é a forma da Revolução Francesa, a obra de Ken Loach é a
forma de um momento histórico no qual vivemos a crise dos valores da classe
emergente desta mesma revolução, que prometeu liberdade, igualdade e fraternidade,
mas que enriqueceu às custas dos mesmos que a ajudaram a conquistar sua posição
de poder. Os filmes de Ken Loach nos mostram que, principalmente no final do século
XX, é impossível seguir a receita melodramática ao pé da letra quando se quer criticar
o sistema. Afinal, como seria possível haver um final feliz numa narrativa que descreve
uma sociedade baseada num projeto fracassado?
Dessa maneira, defendemos que Ken Loach não faz melodramas, assim como
não faz um cinema naturalista ou neo-realista. Nenhuma dessas classificações é
suficiente porque elas existem em sua obra não como formas propriamente ditas, mas
como materiais constitutivos.
Essa diferença entre forma e material foi teorizada por Adorno em sua Teoria
Estética, publicada em 1968. Segundo o autor, a forma seria o resultado final, o todo –
constituído de tensões das quais o artista não tem consciência. Em outras palavras,
esse processo é determinado historicamente, e escapa ao controle e às intenções do
artista. Já o material é aquilo que está à disposição do artista, as ferramentas que ele
utiliza para constituir a sua forma; cabe ao artista selecionar e optar por esta ou
aquela maneira de expressão. Diversos materiais são utilizados na criação de uma
obra artística, e o conjunto desses materiais (muitas vezes desarmônicos) é o que
resultará
na
forma
do
objeto.
Então,
apesar
de
eles
não
condicionarem
individualmente a totalidade formal da obra, “a escolha do material, a utilização e a
limitação em sua aplicação, são um aspecto essencial da produção” (ADORNO apud
FREITAS, 1996, p. 39).
Para começarmos a entender a forma de Ken Loach, portanto, precisamos partir
antes dos materiais que a constituem. O melodrama, por exemplo, foi uma forma
durante o século XIX, por ser uma produção artística que surgiu como expressão de
um determinado momento histórico. Hoje, já não mais conectado diretamente ao seu
contexto histórico de origem, ele já não funciona como uma forma, e sim como um
material, escolhido pelo artista juntamente com outros, para constituir outra forma,
essa ligada a seu próprio contexto histórico. Porém, mesmo quando utilizado como
material, o melodrama – assim como outras formas transformadas ao longo da história
em materiais – não deixa de ser historicamente constituído e carregar consigo essa
relação com sua origem. São essas origens das antigas formas usadas por Ken Loach
agora como materiais que nos interessam aqui.
Se observarmos a origem dos materiais utilizados por Ken Loach, veremos que
eles possuem relações políticas com seus respectivos momentos históricos, que
fizeram com que eles tivessem um potencial revolucionário, infelizmente perdido ao
longo dos anos por serem, em muitos casos, cooptados pela indústria cultural, ou
176
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mesmo por carregarem dentro de si limitações de ordem estética e/ou ideológica.
Assim, ao recuperar dialeticamente o conteúdo político desses materiais, que foi
neutralizado pela indústria cultural, Loach cria um processo que seria uma oposição ao
pastiche, o que torna sua estética muito mais produtiva politicamente, um avanço em
relação à produção de seus contemporâneos pós-modernistas.
Cremos, portanto, que o projeto de Ken Loach é o de resgatar e refuncionalizar
essas formas que, apesar de derrotadas, carregam consigo um potencial utópico,
colocando-as dentro de um novo contexto e trazendo-as como materiais constitutivos
da batalha pela conquista de um novo modo de produção. Nesse ponto seu projeto é
muito semelhante à teoria da história de Walter Benjamin, e ao papel do intelectual de
“redescobrir os momentos utópicos ou subversivos escondidos na ‘herança’ cultural”
(LÖWY, 2005, p. 79).
Assim, o momento utópico subversivo pode ser observado na temática do filme,
quando testemunhamos o processo de revolução vivido na Espanha dos anos 30, e
também na estética do filme, através do uso de formas que, em sua origem, tiveram
algum potencial utópico. O filme nos convida a rememorar a história das batalhas de
representação
da
classe
trabalhadora
em
termos
estéticos
e
políticos,
simultaneamente.
Se as diferentes formas mencionadas foram neutralizadas pelo capitalismo, o
projeto de Ken Loach visa resgatar o potencial delas através de um processo dialético
de apropriação, oposição e síntese dos materiais constitutivos de sua nova forma.
Além disso, podemos encarar a releitura crítica que o cineasta faz do melodrama
nesse filme como uma menção à própria forma do discurso thatcherista, que possui
um forte apelo melodramático, por ser ao mesmo tempo populista e moralista. No
entanto, como Stuart Hall menciona, é exatamente por possuir essa forma que o
Thatcherismo conseguiu seu apoio popular, uma vez que ela “toca direta e
imediatamente na experiência de classe, e tem o poder de mapear o mundo da
problemática realidade social em polaridades morais claras e não-ambíguas” (HALL,
1988, p. 143). Portanto, o passo que Ken Loach precisa dar não é o de simplesmente
negar essa relação com uma linguagem melodramática de maneira abrupta; é preciso
partir desse contato com o “popular”, mas utilizando o melodrama como um material a
ser desconstruído em seu caráter “populista” e em seu pensamento binário, tentando
refuncionalizá-lo para que, em sua combinação com outros materiais, ele faça parte de
uma construção formal dialética, capaz de dar conta de uma representação verdadeira
das relações sociais de seu tempo. Assim, sem desconectar-se de seu público, Loach
avança por conseguir estabelecer uma relação inicial que os artistas e intelectuais de
esquerda, em sua grande maioria, insistem em ignorar, ao considerarem certas formas
como completamente inválidas para representar a luta de classes.
Se pensarmos na relação que o filme estabelece entre os anos 1930 e 1990,
revelando que o thatcherismo nada mais foi do que o resultado da crise da esquerda,
simbolizada pelo Stalinismo, podemos continuar nossa análise pensando também a
estética stalinista.
A arte defendida pelo stalinismo, conhecida como o realismo socialista, possui
características muito semelhantes ao melodrama tradicional. Para os ideólogos de
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Stalin, as narrativas deveriam obedecer à teoria da falta de conflito, na qual heróis
positivos devem, ao menos moralmente, triunfar sobre personagens negativos. Além
disso, o realismo socialista defendia a “linearidade espacial e temporal, com ações
dirigidas pela motivação do personagem – uma rede de intenções, causas e efeitos.
[...] Os personagens representam seus sistemas de valores claramente, e os conflitos
são vistos em termos não-ambíguos” (EAGLE apud HAMES, 2005, p. 30).
Fica evidente que a relação entre o realismo socialista e o melodrama não é
acidental, na medida em que ambas as estéticas possuem como objetivo principal o
apagamento da dialética da luta de classes, e com isso a afirmação de valores morais
impostos com o intuito de apaziguar o pensamento e a revolta social. Se o melodrama
estava ligado à ascensão da burguesia, que viu num primeiro momento os pobres
como cúmplices, e logo em seguida como adversários a serem controlados, o mesmo
se deu com o stalinismo, que teve os trabalhadores como aliados da revolução, e em
seguida, com a ascensão de Stalin, instaurou um modelo autoritário e burocrático que
não permitiu um avanço nas relações sociais. Era preciso, então, haver um esforço de
controle hegemônico, e a imposição de uma representação cultural foi uma das
maneiras que Stalin encontrou para manter o status quo e seus privilégios.
Assim, melodrama e realismo socialista colocam respectivamente os pobres e os
proletários no centro da cena, mas, limitados pela estrutura social que suas formas
mimetizam, não conseguem avançar em relação à forma dramática. Suas estéticas
refletem, cada uma em seu momento histórico e em sua particularidade, os problemas
de uma concepção burguesa de sociedade, e por isso não conseguem superar essa
limitação ideológica.
A diferença de Ken Loach – e seu avanço em relação a outras tentativas de
crítica ao melodrama – está no fato de sua obra aceitar os pressupostos dessa
aparência
dramática
(presente
no
thatcherismo,
no
realismo
socialista
e
no
melodrama) e, ao admitir sua existência, penetrar em sua essência e de lá extrair o
que é mais importante: seu conteúdo de contradição social, até então apagado por
essas estéticas com as quais Loach se relaciona dialeticamente. Se a aparência dessas
representações dramáticas se mostra como uma unidade harmônica, os filmes de Ken
Loach revelam um processo dialético no qual assumem essas estéticas ao mesmo
tempo em que as viram do avesso para expor suas contradições.
O projeto de Loach é, em outras palavras, uma espécie de mímese das derrotas
da classe trabalhadora, tanto na política quanto na estética. Ele é uma representação
da maneira como essas esferas foram neutralizadas pela hegemonia em seu processo
histórico, ao mesmo tempo em que há uma tentativa de recuperá-las como
instrumento de luta, através da refuncionalização das formas e conteúdos em crise, e
do resgate de elementos do passado que carregariam esse potencial utópico de
superação. Assim, acreditamos que Ken Loach não seja progressista por apresentar
conteúdos revolucionários apesar de usar uma forma tradicional, como muitos da
crítica o vêem; ele é militante exatamente por conseguir explicitar esses conteúdos
através da construção de uma nova forma, que expressa dialeticamente a tensão da
luta pelos meios de produção.
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Volume 7 ▪ Número 1
jan./jun. 2012
Referências
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Title
The use of melodrama in the cinematographic form of Ken Loach
Abstract
This research discusses the aesthetical-political project of the English filmmaker
Ken Loach in the course of the history of political art, and as a result of the historical
process of crisis of the Left and fragmentation of the working class, intensified
throughout the second half of the 20 th century, especially in countries such as England.
We observe the ways in which the work of Ken Loach creates of a form which
possesses a rescue of melodramatic materials, and the consequences of such formal
choice for the political content of his movies. The movie used as basis for the analysis
is Land and Freedom (1995), whose form and content, besides discussing the Spanish
Civil War and its relation to the British context of the late 20 th century, bring about the
discussion over the role of political cinema and its possibilities and limitations inside
the cultural industry.
Keywords
Ken Loach. Political Cinema. Melodrama. Culture and society
Recebido em 01/04/2012. Aprovado em 28/06/2012.
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