1 A REPRESENTAÇÃO DA MULHER NOS - Assis

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1 A REPRESENTAÇÃO DA MULHER NOS - Assis
X SEL – Seminário de Estudos Literários
UNESP – Campus de Assis
ISSN: 2179-4871
www.assis.unesp.br/sel
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A REPRESENTAÇÃO DA MULHER NOS ENREDOS DE FOTONOVELAS DA DÉCADA DE 60
Daniela Maria Nazaré da Silva Cândido (Mestranda – UEL/PR)1
RESUMO: As produções de fotonovelas são voltadas especificamente para o público feminino. Mesmo
tendo como foco as mulheres, os editores deste material têm como tarefa atingir o maior número de
leitores possível. Devido a isso e pelo fato de oferecer aos seus espectadores uma leitura prazerosa, as
fotonovelas são consideradas “artes médias” e são excluídas do cânone literário. Mesmo suas diferentes
histórias tendo estruturas parecidas, ou seja, com heróis apaixonados pelas heroínas e estas,
enfrentando todos os obstáculos para se chegar ao final feliz se unindo ao seu grande amor, em seus
enredos são utilizados recursos literários que são emprestados da literatura erudita. Além disso,
encontram-se muitos padrões sociais e o perfil da mulher é bem representado no decorrer das narrativas.
Essa padronização não se centra somente no comportamento bem determinado entre o papel feminino e
o masculino, mas também, a beleza dos personagens é bem definida. Por isso, pode-se observar nas
fotografias que, geralmente, as mulheres são magras, têm cabelos e traços finos, têm pele clara e não
sofrem de nenhuma deficiência física. Estas características podem ser comprovadas na análise da
fotonovela escolhida neste trabalho que enfatiza uma heroína que se sente excluída do convívio social
por não ter olhos “perfeitos” e ser diferente das mulheres que são modelos de revista. Sua vida somente
é “resolvida” quando, quase no fim do enredo, consegue fazer uma cirurgia e passa a se enquadrar no
padrão de beleza exigido pela sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: fotonovelas; leitoras; revistas; mulheres; heroínas.
A arte voltada para um público médio
Pierre Bourdieu ao discorrer sobre a relação existente entre o “campo de produção
erudita” e o “campo da indústria cultural” denomina “arte média” os produtos que compõem o que
ele designa “sistema de indústria cultural”. Para ele, o público deste sistema, muitas vezes,
também pode ser qualificado como médio, além de esta arte ter condições de atingir a um
público socialmente heterogêneo. (2001, p. 136.).
1 Daniela Maria Nazaré da Silva Cândido é Mestranda em Letras pela UEL – Universidade Estadual de Londrina.
Bolsista Capes. [email protected]
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ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”
O estudioso julga lícito denominar “cultura média” ou “arte média” as produções que
atingem a uma categoria determinada de “não-produtores” pelo fato de elas serem produzidas
para o seu público e serem definidas por ele, além disso, são submetidas às sanções do
mercado, onde o campo de produção comanda suas escolhas técnicas e estéticas.
Desta forma, os produtores deste tipo de arte e cultura escolhem uma linguagem que
aborde diferentes classes sociais com o intuito de causar prazer ao consumidor tendo o objetivo
de atingir o maior número de leitores possível. Para exemplificar, Bourdieu comenta a declaração
de um escritor de roteiros de folhetins (na França) que afirma que sua única ambição é ser lido
com facilidade pelo maior público possível, deixando a tarefa de produzir obra prima para
intelectuais, para outros que tenham este interesse, pois o que define um bom livro, para este
escritor, é o poder de cativar o leitor logo no fim de três páginas. (2001, p. 137).
Para que a leitura seja interessante e prazerosa não necessariamente para um
determinado público especializado e intelectual, mas especificamente para uma variedade de
classes sociais, torna-se necessário quebrar alguns padrões impostos pelos produtores que
produzem para eles próprios e utilizar uma linguagem que seja capaz de atingir leitores de
diferentes níveis sociais e de conhecimento. Assim, Bourdieu caracteriza a “arte média” da
seguinte forma:
O recurso a procedimentos técnicos e a efeitos estéticos imediatamente acessíveis, a
exclusão sistemática de todos os temas capazes de provocar controvérsia ou chocar
alguma fração do público em favor de personagens e símbolos otimistas estereotipados,
“os lugares comuns” que possibilitam a projeção das mais diferentes categorias de público-,
resultam das condições sociais que presidem à produção desta espécie de bem simbólico.
(BOURDIEU, 2001, p, 137.).
Bourdieu afirma que estes produtores preocupam-se com a rentabilidade dos
investimentos de seus produtos e devido a isso não se permitem deter-se a uma determinada
classe social, mas se orientam para um crescimento da dispersão da composição social. Mesmo
que os produtos se voltem a um público específico como mulheres, crianças, colecionadores de
figurinhas, aficionados por futebol, entre outros, a busca por atender um maior denominador
social possível ainda continua.
Os produtores deste tipo de arte cultural, ainda de acordo com Bourdieu, encontram-se
presos a seus papéis de técnicos encarregados de executar uma “encomenda externa” e, desta
maneira, utilizam o poder que lhes confere para criar estratégias, “visando assegurar interesses
materiais e simbólicos muito divergentes e, ao mesmo tempo, reativar pela evocação do
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‘expectador médio’ a tendência para a autocensura engendrada pelas vastas organizações
industriais burocráticas”. (BOURDIEU, 2001, p. 138.).
Nas fotonovelas, objeto de estudo deste trabalho, estão presentes as características de
produção comercial discorridas por Bourdieu, pois, provavelmente muitos de seus produtores
estavam de acordo com a declaração do escritor francês de folhetim, citado pelo estudioso, de
que um bom livro é aquele que desperta o interesse no final de três páginas, afinal, embora
estas produções não se tratem de livros, mas de revistas, assemelham-se muito com aos
romances de folhetim em seus enredos, personagens, estereótipos, etc.
Apesar de as revistas de fotonovelas serem voltadas especificamente para um público
feminino, abordava uma grande diversidade social, pois, provavelmente, atingia mulheres de
diferentes classes, levando em conta que o índice de venda foi muito alto durante mais ou
menos duas décadas, ficando claro com isso também, o papel comercial de seus produtores que
têm como preocupação a rentabilidade dos investimentos.
Com este interesse, pode-se pressupor que produtores de fotonovelas atendiam a uma
demanda do público feminino, podendo enquadrar tanto um (os produtores) quanto o outro (as
fotonovelas) nas teorias discorridas por Bourdieu. As produções de fotonovelas podem ser
denominadas “arte média”, assim como suas leitoras de “espectadoras médias”, levando em
consideração que estas revistas são produzidas para satisfazer às expectativas de seus leitores.
Seus produtores, portanto, produzem de acordo com a “encomenda externa”, sendo esta,
encomendada pelo “grande público”, que no caso das fotonovelas eram as mulheres; leitoras,
porém, não-produtoras de obras culturais, cujas produções que tinham preferência por ler eram
definidas por elas e para elas.
Embora, a partir da teoria de Bourdieu sobre o campo artístico, as fotonovelas e suas
leitoras possam ser consideradas médias, são elas mesmas que garantem um padrão
comparativo que entre arte erudita e arte popular, uma não existe sem a outra, se há um campo
de produção erudita, este só existe porque há um campo de produção comercial. A consagração
interna de uma obra dentro de determinado campo só é possível porque os autores dele não
cedem às tentações de uma literatura mais comercial. No entanto, há por fora desse campo
erudito leitoras de fotonovelas que garantem a existência de um outro campo, menos
consagrado, mas com um forte poder de influenciar a vida cotidiana de milhares de leitoras que
exigem para si uma “arte média” com a qual se identificam e podem dialogar, negociando suas
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posturas frente ao que leem nas fotonovelas, repensando seus próprios papéis de mulher, mãe,
trabalhadora, enfim, de leitora.
A partir dos conceitos de Bourdieu, pode-se começar a compreender que o campo e
produção comercial também têm suas próprias leis, porém, suas técnicas são diferentes das que
formam o campo de produção erudita, pois, o primeiro se caracteriza por atender uma demanda
externa; produtor e consumidor são aproximados com o objetivo de incentivar o rendimento; a
cultura torna-se um ingrediente importante para as produções que passam a ser vistas como
“objetos” que são comprados por consumidores e vendidos por produtores; estes “objetos” não
são produzidos para um círculo fechado, mas o intuito, ao contrário, é atingir um número grande
de indivíduos abordando o maior denominador social possível.
Os padrões sociais nas fotonovelas
O perfil da mulher da época de sessenta está representado de forma explícita por meio
das heroínas de fotonovelas. O comportamento das mocinhas relaciona-se com os padrões
sociais de que trata Carla Bassanezi, em “Mulheres dos Anos Dourados”. Embora a década de
sessenta seja um período marcado por mudanças que foram conquistadas por grupos de
esquerdistas, estas ocorrem lentamente, pois, de um modo geral, há certa resistência às novas
ideias e, devido a essas divergências, nasce uma sociedade contraditória.
As fotonovelas, geralmente, centram-se em histórias baseadas no amor romântico,
representando, portanto, o fim do casamento arranjado (pelos pais) e o início de uma nova
etapa, momento em que homens e mulheres tinham autonomia para escolher seus parceiros.
Nos chamados Anos Dourados, de acordo com Carla Bassanezi, esse comportamento passou a
ser comum, pois, acreditava-se que um casamento somente deveria ser concretizado se
houvesse amor. (2002, p. 610)
Carla Bassanezi analisa a revista O Cruzeiro, publicada da década de cinquenta, e
comenta que em suas páginas era possível se verificar a predominância na sociedade de
diferenças sexuais. Além disso, Bassanezi afirma que as imagens das figuras masculinas e
femininas que se faziam presentes nas revistas seguiam um padrão que refletiam mais do que
um consenso social, pois na verdade transmitiam os valores de classe, raça e gênero dominante
da época:
As páginas das revistas que tratavam de ‘assuntos femininos’ nos levam ao encontro das
ideias sobre a diferença sexual predominantes nessa sociedade. Jornal das moças,
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Querida, Vida Doméstica, Você, as seções para mulher de O Cruzeiro traziam imagens
femininas e masculinas, o modelo de família – branca, de classe média, nuclear,
hierárquica, com papéis definidos -, regras de comportamento e opiniões sobre
sexualidade, casamento, juventude, trabalho feminino e felicidade conjugal. Essas
imagens, mais do que refletir um aparente consenso social sobre a moral e os bons
costumes, promoviam os valores de classe, raça e gênero dominantes em sua época.
Como conselheiras, fonte importante de informação e companheiras de lazer - a TV ainda
era incipiente no pais -, as revistas influenciaram a realidade das mulheres de classe média
de seu tempo assim como sofreram influências das mudanças sociais vividas - e algumas,
também promovidas – por essas mulheres. (BASSANEZI, 2002, p. 609)
Da mesma forma, estão presentes não somente nas histórias de fotonovelas, mas na
composição da revista por completo, mais do que um “aparente consenso social sobre a moral e
os bons costumes”, já que se torna evidente a presença de promoção de valores de classe, raça
e gênero que ainda na década de sessenta e setenta eram promovidos pelas leitoras. De acordo
com o valor de raça da época, encontram-se, nas revistas de fotonovelas alguns padrões que
Bassanezi observa na revista que analisa na década de cinquenta, pois, a partir da leitura visual
que se faz presente em suas histórias, assim como na montagem de toda a revista, percebe-se
não ser nada comum a exposição de imagens de homens e mulheres de raça negra.
A autora Anne Higonnet discorre sobre o surgimento de um mercado publicitário
voltado para mulheres em todo o Ocidente, que segundo ela, depois da eclosão da Primeira
Guerra Mundial, começa-se a gerar novas imagens de mulheres. (1997, p. 404) Porém, a autora
afirma que as considerações de classe e raça continuaram a influenciar as representações dos
sexos, estando estas, presentes inclusive nas artes:
Tanto a cultura de massas como a alta cultura procuravam estabelecer valores femininos
universais, mas também diferenciar as mulheres. Usando tácticas visuais [...] colocava
também as mulheres brancas em posição de controle sobre as mulheres de cor.
(HIGONNET, 1997, p. 409).
Nesta afirmação, Higonnet comenta sobre uma foto tirada pelo americano Man Ray,
(Paris, centro Georges Pompidou, Museu Nacional de Arte Moderna) cuja mulher branca segura
uma máscara negra, que para a autora, representa o controle das mulheres brancas sobre as de
cor, causando também um contraste. Assim, “o formalismo encobria a hegemonia da classe
branca [...]” (1997, p. 409).
A partir destas afirmações da autora, entende-se que alguns valores universais são
colocados nas revistas de maneira formal, com o intuito de evitar expô-los de forma muito aberta.
Este mesmo artifício encontra-se nas fotonovelas, pois não é comum a discussão de temas
sobre raças em seus enredos, porém, o elenco é composto somente por atores de pele clara.
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Os padrões de beleza
Pode-se observar também o padrão de beleza existente nas fotonovelas. De acordo
com Anne Higonnet em 1967, a magreza se tornou um ideal de beleza muito buscado pelas
mulheres ocidentais: [...] “a magreza tornou-se um ideal feminino moderno [...] uma imagem
corporal esbelta é a obsessão das mulheres em todo o mundo ocidental.” (HIGONNET, 1997,
p.419) A obsessão pela magreza começou oficialmente devido a uma foto da modelo Twiggy,
publicada pela revista Life em Nova Iork, em 14 de abril de 1967, onde a moça de dezessete
anos publicava sua imagem extremamente magra.
Geralmente, as revistas que além de outros atrativos, tinham também como destaque
as fotonovelas, eram voltadas para a “mulher moderna” sendo este estereótipo, muitas vezes,
colocado na capa (“Uma revista para a mulher moderna”) para chamar atenção do público
feminino. Ainda de acordo com Higonnet “no início do século XX as mulheres enfrentavam novas
oportunidades culturais num ambiente que favorecia seu aproveitamento.” (HIGONNET, 1997, p.
403).
Ainda de acordo com a autora, o século XX acrescentou o cinema à cultura visual,
tendo este um papel importante para a definição dos sexos na cultura de massas (1997, p. 415);
o cinema e a televisão fazem apelo à audiência feminina não somente por meio de seus padrões
normais, mas também através de cartazes e revistas; as revistas que visavam a audiência
feminina dirigiam-se à leitora solicitando sua participação. (1997, p. 417).
A partir de 1830, as produções voltadas para as mulheres começam a ter um aumento
significativo devido ao número crescente de leitoras. De acordo com Higonnet, na Inglaterra do
pós-guerra, cinco de cada seis mulheres liam regularmente revistas femininas, enquanto nos
Estados Unidos, em meados do século XX, este público chegava a 24 milhões. Anne Higgonet
afirma que as revistas incentivavam as mulheres a cuidar de sua aparência física. “Com imagens
e com palavras, defendem e louvam valores ligados ao aperfeiçoamento cosmético, à
heterossexualidade e à família.” (1997, p. 418).
A imagem publicitária começa a vender como mercadoria a figura de mulheres bonitas,
sendo estas, de acordo com Higonnet, modelos que reforçam e ao mesmo tempo servem aos
padrões de beleza. (1997, p. 418-419). Neste momento, o padrão de beleza passa a ser a
mulher magra, cuja inspiração nasceu da popularidade que a foto de Twiggy conquistou no
mundo ocidental.
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Devido a isso, encontram-se nas revistas, assim como nas fotos que compõem os
enredos de fotonovelas, mulheres que, embora não sejam exageradamente magras como Twigg,
seguem um padrão corporal. Este é facilmente notado pelas fotos, pois, as atrizes que faziam
parte do elenco, eram relativamente magras. Considerando que as fotonovelas de 60 já eram
compostas por mulheres que não vestiam o manequim das chamadas “gordas”, entende-se que
o conceito de beleza associado ao de mulher “magra” não começou a ser almejado de repente
somente com a foto de Twiggy, mas já era algo que há tempos já estava sendo padronizado.
Levando em conta que este padrão de mulher magra nasce de uma forma geral no
mundo ocidental, entende-se porque as atrizes escolhidas para interpretar as histórias de
fotonovelas eram geralmente brancas, magras, jovens, seguindo, portanto, sempre os padrões
de beleza pré-estabelecidos, pois, de acordo com Higonnet:
A marginalidade é difícil de desmentir. Como podem as mulheres de cor, pobres, idosas ou
deficientes ser representadas sem se cair em estereótipos negativos ou mesmo, o que é
ainda mais difícil, sem jogar com preconceitos do leitor ou do espectador? (HIGONNET,
1991, p. 419-420).
A partir da afirmação da autora, pode-se entender que os personagens que compõem
as fotonovelas são padronizados, as mulheres sempre bonitas, saudáveis (somente deixam de
sê-lo caso ocorra um fatalidade, um acidente, etc.), elegantes, jovens (pode ocorrer de haver a
mãe, a sogra de uma mocinha e/ou um mocinho) e brancas deixando à margem os negros,
deficientes, idosos entre outros. Este fato coincide até mesmo com as literaturas “consagradas”
que raramente colocam em evidência personagens com estas últimas características.
A heroína e a beleza
Estas afirmações podem ser bem representadas no enredo denominado “Um amor
impossível”, publicado pela Revista Capricho, no ano de 1960. A personagem principal desta
história sofre de um grande complexo de inferioridade por ser estrábica, isolando-se até mesmo
do convívio social que somente é recuperado quando faz uma cirurgia plástica para corrigir o que
é chamado de “defeito” pelos outros personagens da narrativa.
A mocinha é uma menina de dezesseis anos que mora somente com o pai porque a
mãe fugiu de casa quando ela tinha apenas seis anos. Uma figura muito importante na vida da
garota é um amigo de seu pai, que conquistou seu afeto, deu-lhe o apelido de Anika e é
chamado por ela carinhosamente de “tio Max”.
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A personagem aparece desde o primeiro quadrinho de óculos escuros dando a
impressão de que este é apenas um acessório utilizado para ir à praia e se proteger do sol.
Porém, as lentes são usadas como um objeto indispensável e isso o receptor descobre quando
um moço que tenta flertar com Anika convida-a para ir a uma festa. Impulsivamente, ele tira seus
óculos e ela esconde o rosto enquanto o outro observa que a moça é estrábica.
Os personagens secundários se lastimam por uma moça tão bonita ter um “defeito”
no rosto. Assim, quando Álvaro comenta não entender a atitude de Anika de esconder o rosto
como se detestasse luz, quando ele tirou seus óculos, Paulo com um olhar pensativo e sério
responde: “Você compreenderia se tivesse visto seus olhos, como eu... Coitada! É estrábica.
Que pena!” (1960, p. 2)
A partir das pistas, descobre-se o motivo que faz Anika ter esse tipo de
comportamento. A confirmação vem logo depois quando o narrador afirma: “Apenas em seu
quarto ela pode dar vazão às lágrimas: um choro amargurado, de garota solitária e infeliz”.
(1960, p. 2) Neste mesmo quadrinho, a mocinha já em seu quarto, deitada em sua cama, ainda
permanece de óculos escuros, o que possibilita se fazer a leitura de que mesmo quando esta só,
a heroína esconde o rosto.
Em momentos de reflexão da personagem, surgem dois quadrinhos que enfocam
Anika quando se dirige até o espelho, dando a impressão de movimento. No primeiro fotograma
sua sombra e seus gestos corporais dão a ideia de que a personagem está caminhando e no
segundo, este sentido é completado com sua figura refletida no espelho. Além disso, com a
intervenção do narrador afirmando que duas lágrimas ofuscam o olhar da moça, a imagem
refletida representa o olhar da heroína que enxerga seu reflexo embaçado por estar chorando.
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Fig. 1
Toda esta cena se passa no quarto da garota onde é seu lugar escolhido para refugiarse e ficar sozinha. Neste cenário ocorrem dois momentos de reflexão dos personagens que dão
informações importantes aos leitores. O primeiro é quando Anika se compara com seus pais ao
observar o retrato dos dois e não se conforma com seu “defeito” nos olhos, já que ninguém de
sua família o tinha. O segundo é quando o pai da moça, ao se deparar com as mesmas
fotografias, recorda-se da esposa e lamenta sua ausência por dez anos.
Porém, o mais interessante é a maneira como os retratos estão dispostos, pois, ao
lado da fotografia dos pais da heroína, encontra-se a de “tio Max”, e desta forma, a mãe da moça
fica entre os dois homens. A partir desta disposição, mesmo sem que Cláudio saiba o real motivo
da fuga de Lena, é possível se fazer a leitura de que a mulher fugitiva esteve entre os dois
homens. Com o pensamento do marido, sabe-se que o único frequentador da casa é Max. Este,
então, torna-se mais um elemento que sugere ser ele o responsável pelo sumiço da mãe de
Anika. Nos dois momentos em que pai e filha, encontram-se diante das fotografias, nenhum
deles sabe da verdadeira fuga de Lena. O primeiro que interpreta isso é o leitor que suspeita ser
este estranho um elemento importante na história da família.
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Fig. 2
A heroína tem de enfrentar alguns obstáculos para se encontrar finalmente com a
felicidade. Um deles é o “defeito” que a moça tem no rosto, ou seja, por ser estrábica, como já foi
explicitado, sente-se excluída da sociedade e se impede de manter contatos com outras
pessoas. E ainda tem o desejo de ser “perfeita” como as moças das revistas que costuma ler. A
partir do quadrinho em que a personagem se encontra sentada em sua cama com uma revista
no colo, pode-se entender que as modelos seguem um padrão de beleza. Nenhuma delas sofre
do mesmo “problema” de Anika que acredita somente serem bonitas as mulheres que têm os
olhos “perfeitos”: “Porque elas são tão bonitas e sem defeitos? Nenhuma delas tem os olhos
estrábicos... É injusto!” (1960, p. 3)
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Fig. 3
Desta forma, nessa fotonovela a heroína é leitora de revistas, cujas modelos estão
dentro de um padrão de beleza, assim como ocorrem com as próprias produções de fotonovelas.
A personagem Anika foge deste padrão por não ter olhos “perfeitos” e sofre durante grande parte
da trama, sendo esta diferença um dos grandes empecilhos para a realização de sua felicidade,
impedindo-a até mesmo de obter uma vida normal, já que vive isolada, sem amigos e nem
mesmo frequentou escola.
Durante toda a trama, seus olhos estrábicos são escondidos por óculos escuros e o
leitor somente fica sabendo por meio dos diálogos o motivo que leva a personagem não tirar o
acessório. Nos poucos instantes em que a moça se encontra sem ele, por meio dos quadrinhos,
vê-se a personagem principal de costa com o rosto virado, abaixado ou enfaixado, como no
momento em que decide fazer uma cirurgia para corrigir a “imperfeição”. Seu rosto somente é
mostrado sem “máscaras” quando seus olhos, após a cirurgia, passam a ser “perfeitos” como os
das modelos que ela observava nas revistas.
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Fig. 4
Com a visita do chamado “tio Max”, conclui-se que a moça sustenta uma grande
paixão por ele. Suspeita-se desse fato pela grande expectativa da heroína ao saber que o rapaz
vai chegar. Depois, a hipótese é confirmada pela intervenção do narrador: “Cláudio não pode
imaginar a paixão secreta da filha, pois ainda a vê como uma menininha” (1960, p. 3). A garota
também não consegue esconder o nervosismo quando o rapaz por quem é apaixonada dá a
notícia que se casará com a modelo de olhos “perfeitos”, que ela havia visto ao lado de Max,
numa revista francesa.
Desta forma, surge mais um empecilho para impedir a felicidade da heroína.
Margarida, a noiva de Max, interrompe os sonhos e a esperança de Anika em poder conquistar
seu amado. Por isso, lamenta: “Se não fosse ela... um dia Max me amaria... Ela o roubou de
mim... Não a suporto...” (1960, p.7) A rival de Anika é uma das modelos que a moça via nas
revistas e o slogan que escolheram para ela que foi eleita a rainha dos jornalistas de Paris é: “Os
olhos da cidade luz.”, sendo mais um motivo para a protagonista odiá-la.
Anika conhece Margarida pessoalmente porque Max a leva até a casa de Cláudio para
que a vissem. A partir da chegada da rival da mocinha, inicia-se o clímax da história. O casal
juntamente com Anika e seu pai, decidem caçar. Durante a caçada, ocorre um acidente, pois
como não se interessa por esta atividade, fica esperando no carro. Quando a modelo resolve
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retocar a maquiagem, pede para Anika recarregar a espingarda que estava usando. A
protagonista sem ter intenção dispara contra a garganta da moça que morre na hora.
Aqui, a sequência de quadrinhos dá a ideia de movimento quando Max escuta o tiro e
vê sua noiva estendida no chão. O leitor pode observar o desespero dos personagens
envolvidos por suas expressões faciais quando Anika, seu pai e Max se encontram em volta do
carro e assustados pelo desastre ocorrido com Margarida. O movimento de Max é acompanhado
pelo leitor por meio da sequência de quadros que sugerem que o noivo da vítima corre para
tentar socorrê-la, abaixa-se para levantá-la e a carrega até o carro, enquanto discute com
Cláudio que se diz autor do disparo, com a intenção de proteger a filha.
Fig. 5
Com a morte da rival de Anika, um empecilho é quebrado, porém surge, outro, pois
Max acusa Cláudio pelo assassinato de sua noiva não acreditando que fosse um acidente, mas
sim, uma vingança. A princípio, nem mesmo Cláudio entende a acusação do amigo, mas devido
a isso, a relação dos dois é rompida temporariamente impedindo a heroína de ter contato com
seu amor.
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No desenvolvimento da trama, o leitor confirma a hipótese que havia levantado a partir
da disposição dos retratos presentes no quarto da personagem principal. Sua mãe, realmente,
encontrava-se entre os dois homens, assim como estava entre os retratos. Isso é entendido pelo
relato de Max ao delegado. O personagem se arrependeu pela acusação contra o amigo, pois,
descobriu que Cláudio não sabia que sua esposa havia fugido por estar apaixonada pelo próprio
Max e não cair em tentação.
A heroína supera este obstáculo indo até o estúdio de Max para encontrá-lo, depois de
dois dias sem vê-lo. A partir daí, a esperança de Anika conquistar seu amado renasce. Sem a
presença de Margarida, a moça investe em suas conquistas e pela primeira vez, o herói sente-se
balançado pela heroína. Porém quando se aproxima do homem por quem é apaixonada, deparase com mais um empecilho: sua própria mãe.
Lena passa a ser sua nova rival por três motivos: o primeiro seria a suspeita de que
sua mãe se envolvera com Max no passado. O segundo seria o fato de sua mais nova
concorrente ter “olhos esplêndidos, luminosos e vivos.” (1960, p. 16) E o terceiro a resistência de
sua própria mãe em aceitar a união da filha com o homem por quem ela fora apaixonada na
juventude. Sendo assim, a presença de Lena traz um novo impedimento para a concretização do
amor da heroína, pois, ela tenta impedir a aproximação dos dois por julgar que Max fora
responsável pela destruição de seu casamento e que sua filha é muito jovem para ele.
Quando ocorre a chance de o amor do casal se concretizar, mais um impedimento
acontece. Por meio da primeira complicação da trama surge um segundo, pois a mãe da moça
utiliza como arma o fato de Max não saber que o verdadeiro autor do disparo da espingarda
contra sua noiva, é Anika e não seu pai. Assim, mais uma vez os apaixonados são separados. O
impedimento agora acontece por causa da chantagem de Lena contra a filha, obrigando-a
escrever uma carta para seu pretendente, na qual dizia que não o amava. A mais nova “rival” da
moça ameaça contar a verdade para Max, caso ela não escrevesse o que ela mandava.
Além dos diálogos, o leitor acompanha a situação de tensão e discussão da trama
pelos movimentos dos personagens dispostos nos quadrinhos. A expressão de Lena é séria e
por meio dos quadros se tem a ideia de movimento quando a personagem que se encontra
sentada se dirige até a filha com uma bofetada. Ao se levantar e depois de emitir palavras de
agressão, sente-se aumentar o clima de nervosismo, pois, com a junção dos movimentos
corporais da personagem e de suas palavras, pode-se sugerir que sua voz se altera quando
sente que a filha está tentando esconder seu romance com Max.
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Fig. 6
De forma paradoxal, a peça mais importante para fazer Anika se ver livre de seu
“defeito” e não mais sentir-se excluída é sua mãe que a incentiva a fazer uma cirurgia a fim de
corrigir seu estrabismo. Mas, o leitor entende que este não era o principal motivo de sua
infelicidade, já que, mesmo podendo sair e ir a uma festa depois de ter ficado com os olhos
iguais aos das mulheres das revistas, não se sentiu realmente feliz.
A partir dessas ideias, é possível observar algumas características de amor romântico
nas atitudes do casal apaixonado: a reação da moça após a cirurgia que, embora tenha ficado
satisfeita com sua aparência, sente-se infeliz por não estar próxima de Max; a atitude do moço
que não consegue se divertir numa festa e não se sente atraído pela mulher que tenta seduzi-lo.
Anika também não consegue se entregar ao amor de outro homem por não esquecer seu
verdadeiro amor e por último, o herói espera dois anos sua amada completar dezoito anos para
desposá-la.
De formas diferentes, mas por motivos parecidos, um sente-se atraído pelo outro pois,
Anika, considera-se excluída do padrão de beleza encontrado nas revistas que lia. Da mesma
maneira, Max, embora esteja apaixonado pela mocinha, considera-se velho para manter um
relacionamento com uma garota tão jovem. Assim, o complexo da moça é por não se achar
bonita, enquanto o do herói é de se julgar muito velho para sua amada. É o que fica explícito na
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fala dos personagens, uma vez que enquanto ela pede para ele dizer que a estima apesar de
sua feiúra, o moço afirma que é tremendamente velho e feio para ela.
Fig. 7
A solução encontrada para Anika foi a cirurgia, deixando-a tão bonita quanto as
modelos das revistas que tinham “olhos perfeitos e brilhantes”. Já para Max, coube esperar que
a moça completasse seus dezoito anos para poder desposá-la, respeitando-a perante a
sociedade e à família. E, finalmente, depois de superados todos os obstáculos, o casal
conseguiu concretizar o amor e, neste caso, a união eterna é feita por meio do casamento.
Durante todo o enredo, o mocinho, que nesta história, diferencia-se dos outros por ter
bem mais idade que a mocinha, prova em vários momentos que tem boas intenções e é dotado
de um bom caráter. O leitor pode identificar a bondade como característica da personalidade de
Max em três momentos: quando se arrepende de ter acusado o amigo da morte de sua noiva por
vingança e, por isso, vai até a delegacia para retirar a queixa; no momento em que declara seu
amor para Anika e confessa não ser culpado pela fuga de sua mãe, já que não teve nenhum
envolvimento com ela, portanto, não traiu o amigo e, por último, o fato de ter esperado sua
amada durante dois anos para, finalmente, casar-se com ela.
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A mocinha consegue superar os obstáculos aos poucos: primeiramente faz a cirurgia
para correção dos olhos após ter demorado dezesseis anos para decidir; conquista o amor de
Max e sua mãe consente, enfim, a união do casal. Os empecilhos são superados para que
ocorra um único objetivo: a realização do amor. Devido a isso, o fim da história acontece quando
nada mais pode separar o casal. Desta maneira, no último quadrinho desta fotonovela, o leitor
pode observar que apenas os personagens principais compõem o cenário. O vestido de noiva da
heroína representa sua pureza dando um ar de magia à cena. Max a chama de fada
completando o ambiente mágico. Ao se observar suas expressões faciais, o leitor interpreta que
encontraram a felicidade no amor, já que, os dois com semblantes alegres e emocionados,
trocam olhares apaixonados e declarações de amor.
Fig. 8
Neste sentido, pode-se afirmar que neste enredo muitos padrões são colocados em
evidência. A começar pela personagem principal que, a princípio, não se enquadra ao padrão de
beleza exigido pela sociedade e somente consegue ser feliz quando “corrige” sua “imperfeição. A
diferença de idade é bem retratada pelo casal protagonista, pois, o herói, apesar de amar a
heroína, sente-se constrangido por manter um relacionamento com uma moça tão nova. E,
finalmente, a realização do casamento é vista como sinônimo de felicidade.
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Referências Bibliográficas
REVISTA CAPRICHO. São Paulo: Editora Abril, número 99, Ano IX, maio de 1960.
BASSANEZI, Carla. Mulheres dos Anos Dourados. In: DEL PRIORE, Mary (org.); Carla
Bassanezi (coord. de textos). História das Mulheres no Brasil.6 ed. São Paulo: Contexto, 2002.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.
HIGONNET, Anne. Mulheres, Imagens e representações. In: DUBY, Georges e LAJOLO, Marisa.
Literatura: Leitores e Leitura. São Paulo: Moderna, 2001.
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