Trabalhos completos
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Trabalhos completos ISBN 9788583590033 UNESP – UNIVERSIDADE Faculdade de Ciências e ESTADUAL PAULISTA Letras – Araraquara - Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários XIV Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UNESP/Araraquara Seminário Internacional de Estudos Literários: Narrativa e Representação TRABALHOS COMPLETOS 29 a 31 de outubro de 2013 Juliana Santini Brunno V. G. Vieira (Orgs.) ISBN 9788583590033 XIV Seminário Araraquara pp. 864 2013 XIV SEMINÁRIO DE PESQUISA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS /SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS LITERÁRIOS: NARRATIVA E REPRESENTAÇÃO Realização Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, GT Teoria da Narrativa (ANPOLL), Grupo de pesquisa GEN – Grupo de Estudos da Narrativa Comissão Organizadora Juliana Santini, Brunno Vinicius Gonçalves Vieira, Aline Maria Magalhães de Oliveira Ávila (discente), Aparecido Donizete Rossi, Claudia Fernanda de Campos Mauro, Cristiane Passafaro Guzzi (discente), José Lucas Zaffani dos Santos (discente), Karin Volobuef, Luiz Gonzaga Marchezan, Maria Célia de Moraes Leonel, Mariana Bravo de Oliveira, Marco Aurélio Rodrigues (discente), Maria Celeste Consolin Dezotti, Maria das Graças Gomes Villa da Silva, Sylvia Helena Telarolli de Almeida Leite, Wilma Patricia Marzari Dinardo Maas Comitê Científico Elisabeth Brait (PUC-SP), Diana Luz Pessoa de Barros (MACKENZIE), Lucia Teixeira de Siqueira e Oliveira (UFRJ), José Luiz Fiorin (USP), Karin Volobuef (UNESP), Maria Célia de Moares Leonel (UNESP), Maria das Graças Gomes Villa da Silva (UNESP), Marilene Weinhardt (UFPR), Regina Dalcastagnè (UnB), Sérgio Vicente Motta (UNESP), Tânia Pellegrini (UFSCAR) Comissão de Trabalho Juliana Santini, Brunno Vinicius Gonçalves Vieira, Karin Volobuef, Maria Celeste Consolin Dezotti, Aline Maria Magalhães de Oliveira Ávila (discente), José Lucas Zaffani dos Santos (discente), Mariana Bravo de Oliveira (discente) Comissão Editorial Juliana Santini Brunno V. G. Vieira Editoração* Juliana Santini Brunno V. G. Vieira José Lucas Zaffani dos Santos (discente) Diagramação Brunno V. G. Vieira José Lucas Zaffani dos Santos (discente) Assessoria Técnica Maria Clara Bombarda de Brito Rita Enedina Benatti Torres * A revisão gramatical e os conteúdos veiculados pelos textos destes Trabalhos completos são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores. Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (14. : 2013: Araraquara, SP) Trabalhos completos / XIV Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários ; Seminário Internacional de Estudos Literários: narrativa e representação ; organizado por Brunno V. G. Vieira e Juliana Santini. Araraquara : FCL - UNESP, 2013. ISBN 978-85-8359-003-3 1. Estudos literários. 2. Literatura. I. Título. II. Seminário Internacional de Estudos Literários: narrativa e representação. III. Brunno Vinicius Gonçalves Vieira. IV. Juliana Santini. Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da FCLAr – UNESP. SUMÁRIO Apresentação................................................................................................4 Descrição das Pesquisas ..............................................................................7 Comuicações............................................................................................529 Índice de autores.......................................................................................861 APRESENTAÇÃO Ao longo de três dias e com 30 horas de duração, o XIV Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários/Seminário Internacional de Estudos Literários reuniu docentes, pesquisadores e alunos do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UNESP, campus de Araraquara, de outros PPGs de diferentes estados e do Curso de Graduação em Letras da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara e da região. Tendo em vista que o principal objetivo do seminário – aquele que moveu sua criação há catorze anos – é o de fomentar o debate em torno dos projetos de pesquisa desenvolvidos pelos mestrandos e doutorandos do PPGEL, é necessário que se destaque que, nesta edição, o evento contemplou quase 100% desses trabalhos, uma vez que todos os discentes que estavam no país à época da realização do evento se inscreveram e apresentaram seus trabalhos. As sessões de debates se revelaram importantes na medida em que representam a criação de um espaço de discussão dedicado exclusivamente ao diálogo sobre o tema que orienta a composição de cada sessão. Neste ano, buscando privilegiar o aprofundamento dos debates, a Comissão Organizadora propôs sessões que agregaram entre dois e quatro trabalhos (com apenas duas exceções abertas para mesas com cinco trabalhos), o que se mostrou muito produtivo, dada a possibilidade que debatedores e alunos tiveram para se estender na conversa sobre cada trabalho. Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Ainda no que diz respeito a essa oportunidade para o diálogo criada pelas sessões de debates, é necessário que se destaque o fato de que, sendo abertas ao público, as sessões contaram com a presença de muitos alunos de graduação, especialmente daqueles que desenvolvem projetos de iniciação científica – com bolsas PIBIC/CNPq, FAPESP e sem bolsa – sob orientação de docentes que atuam no PPGEL. A participação dos alunos de graduação nas atividades do Seminário de Pesquisa mostrouse grande, também, na apresentação de comunicações orais que, neste ano, agregaram trabalhos relacionados ao tema “Narrativa e representação”. É preciso destacar, ainda, que o evento contou com vinte e cinco monitores do Curso de Letras da UNESP, o que reafirma a positiva integração entre Graduação e Pós-Graduação alcançada pelo Seminário em 2013. Essa integração pode ser vista, na verdade, já como um resultado de um esforço do PPGEL em estabelecer um diálogo com os alunos do Curso de Letras, considerando, especialmente, o fato de que o trabalho de pesquisa inicia-se, em grande parte dos casos, em etapas da formação anteriores ao curso de Mestrado. Além de alunos de graduação e de seu corpo discente, o PPGEL reuniu, no público do Seminário de Pesquisa, grande parte do seu corpo docente, além de professores e alunos de outras instituições que realizaram a apresentação de trabalhos durante as sessões de comunicação oral e que acompanharam as atividades desenvolvidas ao longo dos três dias de duração do evento. Com mais de duzentos participantes – entre convidados, apresentadores de trabalhos e ouvintes –, o seminário contou, em cada uma de suas mesas-redondas, com público de cerca de cento e trinta pessoas. Esse número se manteve, também, ao longo das sessões de comunicação e de debates de projetos, considerando, evidentemente, que foram atividades realizadas simultaneamente. A qualidade do diálogo fomentado ao longo dos dias 29, 30 e 31 de outubro de 2013 sustentou a tradição de um evento já consolidado como o Seminário de Pesquisa, para o que foi fundamental a participação do público que se dedicou à apresentação de trabalhos nas duas modalidades abertas pela Comissão Organizadora, especialmente, de alunos de Pós-Graduação e de Graduação de diferentes instituições. O presente livro com os trabalhos completos enviados à comissão editorial documenta o alto nível das discussões oralmente apresentadas. São ao todo 87 trabalhos contendo a descrição do estágio atual das pesquisas em andamento do PPGEL e 36 textos resultantes das comunicações individuais de que tomaram parte alunos e pesquisadores de inúmeras instituições universitárias do Brasil. Esta publicação cumpre 5 Apresentação também a função social de divulgação do saber que deve ser inseparável de todo exercício crítico e teórico produzido pela universidade. Diante desses resultados alcançados, considera-se que os objetivos apresentados no momento da proposição da décima quarta edição do Seminário foram plenamente cumpridos e que o sucesso das atividades deve servir de incentivo para a manutenção da estrutura do evento e de seu perfil em futuras realizações. Agradecemos a CAPES, FAPESP, PROPG o apoio financeiro e à Faculdade de Ciências e Letras e à Faculdade de Ciências Farmacêuticas do Câmpus de Araraquara da UNESP a cessão do espaço físico e o suporte técnico. Juliana Santini Brunno V. G. Vieira 6 DESCRIÇÃO DOS PROJETOS DE PESQUISA EM ANDAMENTO Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa ENTRE O PASSAGEIRO E O ETERNO: SOLIDÃO E MELANCOLINA NA POESIA FEMININA LATINO-AMERICANA Adrienne Kátia Savazoni Morelato Doutoranda - Bolsista Cnpq Profa. Dra. Guacira Marcondes Machado Leite (Or.) Solidão e melancolia são dois termos que circundam a figura dos grandes gênios da humanidade, principalmente àquelas ligadas à literatura. Principalmente ao poeta, na qual sua gênese criadora sempre esteve associada a uma certa imagem de tristeza e exclusão de mundo. É claro que essa associação do poeta com a melancolia e com a solidão se acentuou após o Romantismo que fez questão de ressaltar essa ligação e de fazer dela sua mote de inspiração poética. O poeta se viu como um ser à margem do Capital, já que, a sua produção não se transformava nem em mercadoria, nem em lucro. Dessa maneira, a rejeição que o poeta sofria foi projetada por ele com superioridade, olhar crítico e desapreço pela produção em série. Ele transforma a escrita em espaço contra a mercantilização da vida, enquanto a poesia oferece um espaço único para a originalidade e o talento individual. Pois “o individualismo dessa poesia é uma reivindicação do ser contra o formalismo” (MONTEIRO, 1965 p. 23). Já a solidão é inerente ao estado melancólico, pois quem se angustia e olha a vida com os olhos da morte naturalmente precisa se afastar da sociedade e da realidade. Essa solidão é crítica e não alienada como muitas vezes se pensou, é uma maneira do melancólico, aqui o poeta, dizer que não quer fazer parte desse mundo. Porque “no mundo da falsificação, como se poderia realmente pedir ao poeta uma atitude que não seja de alheamento dele”?” (MONTEIRO, 1965 p. 31) Para o poeta, a solidão passa a ser uma condição para o surgimento da criação, um método de trabalho no qual “a poesia só ocorre na morte ou na consciência solitária. Poesia de solitário e, portanto, para solitário” (LINHARES, 1965 p. 57). Na verdade, a melancolia e a solidão vão estar associadas, e pode se dizer que não existe melancolia que não seja solitária, assim como não existe solidão que não seja melancólica. Quando lidamos com a poesia escrita por mulheres, essa relação parece aumentar, já que, a melancolia foi associada à histeria, uma doença que a psicanálise acreditou, por um bom tempo, que era exclusiva do sexo feminino. Principalmente no início do século XX, o auge das teorias freudianas, momento em que se inserem as 8 Descrição das pesquisas poetas que se pretende estudar nessa pesquisa. formalismo” (MONTEIRO, 1965 p. 23). Em relação ao feminino, sabe-se que a mulher sempre foi um ser exatamente localizado à margem do Direito Social, colocada como um não ser e sem nenhum acesso à voz, o que a levaria como poeta a um olhar duplamente triste, enquanto psicologicamente ela se veria como um ser em falta quando comparada ao homem, considerado parâmetro social (falocentrismo). Sua solidão seria ainda mais contundente, porque ela não se incluiria na sociedade nem como poeta e nem como sujeito. O uso dessa tristeza, ou a influência dessa postura aquém da sociedade na poesia feminina serão o objeto deste trabalho. Em que medida as representações da solidão e da melancolia vão ser características do feminino e da poesia da Modernidade? Aqui vamos continuar a estudar e pesquisar sobre o feminino, já que se tratam de poetas mulheres, prosseguindo com a linha de pesquisa desenvolvida no Mestrado onde foi trabalhada a escrita feminina, mas agora do ponto de vista dessa melancolia e da solidão. Seria a melancolia e a solidão características tipicamente femininas? Inicialmente, este estudo estava concentrado em três poetas brasileiras: Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa e Adalgisa Nery. A escolha foi realizada por ser, as três poetas pertencentes ao mesmo período, décadas de 30, 40 e 50, pelas três terem tido contado e convivido com integrantes do movimento modernista da década de 20, 30 e 40, incluindo poetas e escritores, mas que, preferencialmente se mantiveram à parte com o intuito de preservar a unidade e a individualidade de suas obras. Para além das semelhanças externas, as três poetas mantiveram uma obra poética semelhante no tocante às várias metáforas que elas utilizavam como: o mar, os olhos, o tempo, o vento, as nuvens, a lua, a flor, a água, noite, o frio, o pasto, os cavalos, as mãos etc. Para além das semelhanças na utilização dos campos semânticos, está na associação dessas palavras, que preservaram uma relação de igualdade muito forte. Contudo, os estudos realizados através das disciplinas cursadas no primeiro semestre, deram uma nova configuração para pesquisa e um novo rumo difícil de não abordar e seguir. Ao invés de Adalgisa Nery, o nome que surge para compor essa tríade será o de Gabriela Mistral, isso porque descobriu com o prosseguimento nos estudos relacionando-os às disciplinas, que; Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa e Gabriela Mistral mantiveram contato entre si que foi além de uma simples correspondência ou amizade, mas que, criou uma certa relação estética e literária, a qual fez Ana Pizarro definir como o invisible college latino-americano. Para Ana Pizarro, surgiu na América 9 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa – Latina, na primeira metade do século XX, uma rede de confluências na literatura entre escritoras e poetas mulheres de diversos países tanto em língua espanhola, quanto em língua portuguesa. Dessa rede, fariam parte Cecília, Henriqueta e Gabriela. Esse invisível colégio tinha por finalidade discutir o que era literatura para elas, como também a afirmação de uma poesia e literatura latino-americana feita por mulheres. As três, além das correspondências que trocavam sobre os mais variados temas, inclusive política e educação, trocaram ensaios sobre a obra uma da outra, o que requer estudo conjunto e mútuo, e enseja uma política literária de presença e afirmação muito maior do que se poderia supor. Uma política que se pode nomear feminista e de catalisador cultural. E sabido que as três tiveram atuação na divulgação da cultura local e do folclore latino-americano. Neste inicio de pesquisa, outra descoberta importante sobre as poetas em questão, Cecilia Meireles, Henriqueta Lisboa e Gabriela Mistral, é de que, as três trabalharam seus conceitos de poesia em seus próprios poemas, ou seja, praticaram o metapoema e, no caso especifico analisado para uma disciplina, deparou-se com o metapoema de Cecília Meireles Trabalhos da Terra à Gabriela Mistral, poeta chilena e contemporânea à Cecília. Só a dedicatória e o título, já nos leva para uma reflexão metalinguística apoiada na crítica feminista. Por que motivo Cecília Meireles dedica esse poema à Gabriela? Por que à poeta chilena e não para outro poeta, homem e brasileiro? A escolha da dedicatória não foi aleatória, tem uma intenção notadamente política, mas que ficou subjacente e passou desapercebida da crítica tradicional (crítica dominada pelas ideologias do patriarcado) porque talvez escrever poema de uma mulher para outra mulher soasse como quase uma correspondência intima, privada e não é por acaso que o gênero epistolar demorou para se avaliado como gênero literário, justamente porque esse era associado com o espaço privado feminino, ou com aquilo que a mulher gostava ou pudesse escrever. “Trabalhos da Terra” não é apenas um poema de Cecília para Gabriela, é um poema sobre poema, sobre o fazer poético, mas agora sob o ponto de vista das “Lavradeiras de ternuras”, as lavradeiras aqui são as poetisas (embora utilizaremos o termo poeta para se referir as duas, por poetisa vir carregado de significação de inferioridade e o termo poeta se destacar cada vez mais como um termo permitido aos dois gêneros por terminar com a vogal temática [a]). A palavra ternuras no plural pode ser subtendida como poemas, e é claro aqui mais uma vez a referência à Gabriela, pois Ternura no singular, como já se disse, é um livro de poemas da autora chilena. Neste 10 Descrição das pesquisas sentido, o primeiro verso “Lavradeira de Ternuras” fala de Gabriela Mistral, a lavradeira/poeta de Ternura, mas também fala de Cecília, quando se olha o segundo verso em primeira pessoa “trago o peito atormentado”, a poeta/poetisa em busca dos poemas/ lavrando a poesia. O campo semântico da terra é associado com o campo semântico da escrita e o ato de escrever com o ato de lavrar, sem esquecer que a agricultura foi por muito tempo uma atividade típica de mulheres, em contraposição com a caça e a criação de animais designada como atividade de homens num binarismo difícil de romper: sociedade e mundo público- homens x natureza e mundo privadomulheres. Contudo, terra em letra minúscula é terra chão, terra solo, terra lugar, mas Terra em letra maiúscula como aparece pode ser Terra planeta como pode reforçar a idéia de lugar, de território. Mais uma questão de identidade e de metalinguagem: a busca por confluência estética não é com nenhuma grande poeta do velho mundo, e sim com uma poeta representativa da América Latina, chilena e que procurava agregar em suas poesias: o folclore, a linguagem indígena, a tradição do campo, isto é, coisas da terra–lugar em que vivia e que, de alguma forma, também agrega nossa realidade, nossa identidade regional. Essa busca por uma identidade regional que trouxesse para a literatura nossas linguagens folclóricas e indígenas formaram, para os modernistas brasileiros; uma bandeira de luta que se proclamou em manifestos como o Pau Brasil e Antropofágico, um movimento para o qual a crítica sempre considerou Cecília como alheia e não adepta ( embora procurasse junto com Gabriela Mistral construir essa identidade, não a nível somente brasileiro, mas de toda a América Latina. Vamos ver como isso ocorre no poema e o contexto em que isso se manifesta: metapoema do livro Vaga Música para livro Ternura de Gabriela Mistral, um livro feito de poemas infantis para professoras de escolas rurais. Visto de primeira, parece que os dois livros não teriam nenhuma relação, Vaga Música não teria um público definido, Ternura tem, mas a intertextualidade aqui está inserida na própria estrutura dos poemas, pois Ternura foi escrito tendo como base as cantigas de ninar e as cantigas de roda, cantigas populares e infantis, enquanto no livro de Cecília, também composto por cantigas, a base são as cantigas medievais. Mas em que o metapoema tem relação com a solidão e com a melancolia? O metapoema representa uma situação linguística em que se constrói um certo tipo de conhecimento epistemológico sobre poesia dentro da estrutura do próprio poema. Funde-se a linguagem investigativa com a linguagem objeto; “ el objeto representado renuncia a la mimesis convencional y se convierte a la vez em signo y objeto al no 11 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa existir referencialidad fuera del texto” Parejo, 2002 p. 121. Neste sentido, o metapoema para existir requer que se crie uma realidade apenas de palavras e que se proclame a capacidade criadora das mesmas. Nesse abandono à realidade palpável, é inegável que não se encontre a melancolia e a solidão. Melancolia e solidão que se relacionam de dentro do poema como uma forma de ver o mundo feito de coisas, um modo de ver o mundo do ponto de vista da mulher, o discurso do outro, e um abandono a este mundo para a criação de um outro, feito de poesia e música. Bibliografia ADORNO, Theodor. Notas de Literatura. São Paulo: Livraria Duas Cidades, ed. 34. 2003. BALAKIAN, Anna. O Simbolismo. São Paulo: ed. Perspectiva, 2000. BARBOSA, João Alexandre. As ilusões da modernidade. São Paulo: Perspectiva, 2005. COELHO, Nelly Novaes. Literatura Feminina no Contemporâneo. São Paulo: Siciliano, 1993. COELHO, Nelly Novaes. Tempo, Solidão e Morte. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1964. LOBO, Blanca. A poesia de Henriqueta Lisboa. Trad. Oscar Mendes. 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O presente trabalho tem um caráter bibliográfico e está realizando-se por meio de leitura e resenha de livros, artigos, comunicações; impõem-se a pesquisa e a resenha crítica de matéria pertinente ao assunto, que ainda é pouco disponível na mídia impressa, também via recursos da internet e bibliotecas virtuais. O corpus da pesquisa é constituído pela obra de Petrônio, o Satíricon. Da obra, o que se tem é, na verdade, parte de um texto maior – fragmentos dos capítulos XV e XVI - ainda assim, esse texto possui consistência de uma obra completa. Nossas análises serão baseadas em leituras da tradução do Satíricon elaborada pelo professor Claudio Aquati, cotejadas com o texto em latim. Primeiramente, foi feita uma análise estrutural do corpus escolhido. Em seguida, a contextualização histórica, com vistas a levantar como o momento refletiu na narrativa e como isso aparece na composição da figura do anti-herói, do clássico à modernidade. Assim, o trabalho está desenvolvendo-se dentro das seguintes etapas: 1) Contextualizar o Clássico à luz das modernas teorias, ressaltando, assim, a modernidade do romance inaugural de Petrônio; 2) Analisar de que maneira a figura do herói é construída, perscrutando desde a sua gênese até sua primeira manifestação na literatura (poema épico), a fim de compreender suas características prototípicas e modelares, legadas pela literatura através dos tempos; sobrevivendo, em sua essência, ainda que em meio a transformações histórico-sociais; 3) Identificar as motivações para as mudanças que ocasionaram a desmistificação e a consequente humanização do herói, acarretando, paulatinamente, o advento do anti-herói; 14 Descrição das pesquisas 4) Leitura analítica do Satíricon, ressaltando, sobretudo, o estudo do anti- herói já identificado nesse romance, bem como as características, ações e valores presentes na representação do protagonista Encólpio; 5) A partir desse arcabouço teórico, identificar no romance de Petrônio os aspectos que tornam a obra prototípica no processo de mudanças ocorridas no modo de representação do herói; possibilitando identificar, na figura de Encólpio, um modelo anti-heroico, em uma época, em que a literatura ainda louvava as ações dos ilustres heróis épicos. No momento, a pesquisa encontra-se no estágio de construção dos capítulos da tese, seguindo a ordem que descrevemos acima. Nessa ordem, já foram elaborados os itens 1, 2 e 3. Teorizar sobre o herói, do ponto de vista literário, pressupõe deslindá-lo em meio a questões referentes ao contexto sociocultural e literário. A Literatura Ocidental herdou o modelo de composição do caráter heroico da literatura grega; sua representação teve início em Homero, nas epopeias, Ilíada e Odisseia. Esse herói modelar era o retrato das classes dominantes; sua essência, aristocrática. Assim, uma das características legadas pelos heróis épicos é a natureza, essencialmente, nobre (em origem e riquezas), que o elevava a uma categoria de excelência. Em princípio, o herói, na literatura, é oriundo das elites, que refletiam o contexto social do qual emergiam. Entende-se, desse modo, que mudanças decorrentes de fatores externos refletem no modo de representação heroica. Ao passar do tempo, observam-se, na literatura, modos heroicos que se distinguem e se afastam ideologicamente. Esse processo de transformação do herói é possível identificar na narrativa de todas as épocas. De fato, sua representação na literatura não mudou repentinamente, mas passou por um processo que refletiu a transformação do próprio homem na sociedade. Os heróis tradicionais, aos poucos, passaram a não corresponder aos anseios do homem. Era inconcebível um herói com a essência épica, pronto e acabado (LUKÁCS), em uma sociedade em constantes transformações; tornando-se propícia a representação de um herói-personagem, que não se encaixava no estereotipado modelo clássico. O modelo heroico, paulatinamente, é substituído pelo anti-herói, Sua aparição representa o reverso, a subversão de valores que não eram então questionados. Convém lembrar que estas questões ainda são pouco exploradas pela crítica literária, como a origem do romance, do herói e, principalmente, do anti-herói; ainda mais tendo como objeto de estudo um romance antigo como o petroniano (sec. I). Foi 15 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa possível constatar que são escassos os estudos sobre o tema, assim já o afirmava Bakthin (1988, p. 413) ao referir-se à origem do romance e ao próprio Satíricon: “[...] incluindo o Satíricon de Petrônio, cujo papel foi enorme na história do romance e que está longe de ser devidamente apreciado pela ciência”. Durante os estudos realizados no desenvolvimento dessa pesquisa, foram notadas peculiaridades sobre o tratamento dispensado ao herói clássico e mudanças relevantes na sua representação que foram, aparentemente, deixadas de lado. Quando se buscam fontes de pesquisa para estudar a origem do anti-herói, a maioria do arcabouço teórico concentra-se na modernidade, tratando dos romances picarescos e, mais significativamente, do Dom Quixote de Cervantes. Através dos estudos realizados, foi possível constatar que as características descritas no anti-herói moderno, já se encontravam no herói que começava a configurar-se com o gênero romance, ainda na antiguidade clássica. Expurgando-se de toda a temática clássica, Petrônio não escolheu como tema os assuntos mitológicos, as façanhas de algum glorioso herói greco-troiano, nem mesmo celebrar as virtudes de Roma (como Virgílio). Esse é outro aspecto peculiar de sua obra que retrata temas relacionados ao cotidiano, escrevendo um romance popularista (inspirado no romance grego e de aventuras que sempre relatava a história de um par de namorados) e, portanto, sem maior prestígio. Petrônio perscruta o que há de mais dissoluto na sociedade romana - seus personagens são desprovidos de pudor ou qualquer comprometimento com a moral. Aquati (1997) revela, citando Campuzano, que Petrônio não se sentia atraído pelo estilo literário contemporâneo, aquele “gosto novo” adotado por Sêneca e Lucano. Na verdade, Petrônio parece sentir eminente necessidade de criar uma nova obra, que atendesse, efetivamente, aos novos anseios de uma época em efervescência. O Satíricon ainda é inovador à medida que se insurge em um tempo em que não havia lugar para obras que apresentassem um presente, em constante mutação, e não o passado acabado – característico nos poemas épicos e inerentes aos outros gêneros elevados da Antigüidade clássica. Logo, entende-se que a paródia se efetiva, principalmente, a partir de especificidades que caracterizam o gênero épico – o conteúdo, foco narrativo, representação da mitologia, caracterização das personagens, o tempo. Petrônio labora com um processo de inversão de toda a matéria consagrada e canonizada pela tradição homérica e, sobretudo, revela o principal elemento subvertido: o herói épico. Desse 16 Descrição das pesquisas modo, observa-se que o poema épico projeta-se no “romance ideal”; enquanto o “romance cômico”, que burla a ação do romance ideal, “molda sua personagem central dentro de uma contraversão de um herói épico” (Aquati, 1997, p. 35). Nesse contexto, evidencia-se que a base da elaboração do romance petroniano consiste na paródia de outros gêneros, bem como, da própria sociedade a ele contemporânea. Convém lembrar que, na literatura ocidental, a primeira manifestação do anti-herói – o pícaro, considerado protótipo - se constrói através da paródia. Assim, já é notável que o conteúdo parodístico que torna propícia e inevitável a representação do anti-herói é um elemento presente no Satíricon. O ponto de crítica na construção da picaresca também se relaciona a outro gênero literário (as novelas de cavalaria) e ao modus vivendi da sociedade. Em princípio, tem-se, aqui um aspecto através do qual dialogam proficuamente o Satíricon e a teoria moderna do modo anti-heroico de representação. Observou-se que um dos traços característicos do modelo anti-heroico é a subversão do modelo heroico que foi inaugurado em Homero. Assim, seguindo a tradição homérica, a representação do herói ficou condicionada a alguns traços constitutivos como: pertencer à nobreza (herói, do grego, nobre, semideus); figura exemplar, coragem implacável, guerreiro que sempre luta por um objetivo que resultará em um bem coletivo. No entanto, no Satíricon, não se observa apenas uma sátira das figuras heróicas; mas há sempre a intenção de subverter o gênero épico, rebaixando seus temas, peripécias, personagens, ações, sentimentos. No tempo de Petrônio, eram amplamente conhecidas (pela elite, principalmente) as epopeias de Homero: Ilíada e Odisséia; e a de Virgílio: A Eneida. Dentre essas, Petrônio parece devotar particular atenção, em sua sátira, a Odisséia. É possível reconhecer na trajetória de Encólpio um dialogismo parodístico com a do próprio Ulisses. No romance, a representação de temas do cotidiano só pode se realizar por meio da ação e da expressão dos personagens que o representam e que dele fazem parte, inclusive, o herói-personagem. Vamo-nos guiar, primeiramente, por essas premissas e investigaremos os aspectos propostos nesta pesquisa, sempre atentos a outras pistas que, provavelmente, surgirão com o desenvolvimento do trabalho. Nesse ínterim, acredita-se ter elucidado questões relativas à natureza prototípica do anti-herói, bem como da formação do gênero romance. Consciente, porém, de que a questão não foi esgotada, nem de longe, não podemos nos furtar de verificar até a que 17 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa ponto chegou a influência da obra de Petrônio na formação do gênero romance e, principalmente, na construção do universo anti-heroico. Bibliografia ABBOTT, Frank Frost. The Use of Language as a Means of Characterization in Petronius. In: Classical Philology, Vol. 2, No. 1, 1907. p. 43-50. ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura. São Paulo: Duas Cidades, 2003. ALFOLDY, G. A história social de Roma. Lisboa: Ed. Presença, 1989. AQUATI, Cláudio. O Grotesco no Satíricon. Tese de Doutoramento: Letras Clássicas e Vernáculas, FLCH, USP, 1997. __________. Linguagem e caracterização na ‘Cena Trimalchionis’: Hemerote. Glotta. UNESP/ São José do Rio Preto, 1994-1995. __________. O narrador na ‘Cena Trimalchionis’: ironia e omissão. SBEC. UNESP/ São José do Rio Preto, 1995, 10 p. __________. Cena Trimalchionis: estudo e tradução. 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O objetivo da minha pesquisa é analisar a reconstrução metaficcional do corpo de Evita Perón no romance Santa Evita (1997), do escritor argentino Tomás Eloy Martínez, onde este se converte no personagem principal do enredo. Assim, Martínez reconstrói, com ajuda de diferentes elementos metaficcionais, um corpo que em vida adquiriu poder, e depois de morto esse poder se tornou ainda maior. A obra mostra uma Evita cheia de vida, intrépida, ágil, ativa e, acima de tudo, muito querida pelas classes menos favorecidas do povo argentino. Sendo a Primeira Dama da Argentina, ela costuma mostrar-se em público sempre mostrando um corpo formoso, com o cabelo arrumado vestido com roupas de Cristian Dior, jóias brilhantes; uma atitude que demonstrava um propósito muito claro: expressar aos descamisados, que eles também podem realizar seus sonhos, escapar da miséria e ter êxito, como ela. Mas, por outro lado, Tomás Eloy durante o desenvolvimento da trama, apresenta o corpo embalsamado dela, que recobra a voz através da leitura, expõe uma série de sentimentos contraditórios. Além disso, Evita mesmo morta, desperta medo nos oligarcas e militares, uma vez que eles acreditavam que se em vida ela tinha sido uma poderosa inimiga, com sua morte ela se tornaria ainda mais forte. No entanto, para os pobres, Evita se converteu em um símbolo de esperança: a ponto de eles a considerarem uma mulher santa, capaz de realizar atos milagrosos. É a partir desses eventos que o autor faz uma reconstrução metaficcional apoiando-se nos testemunhos de pessoas, de diversas camadas sociais e que conviveram com Evita. Cada qual, de alguma maneira, manifesta seu direito de propriedade sobre o cadáver embalsamado da ex Primeira Dama. Além disso, Evita usa sua feminilidade para expressar-se através do corpo, para ascender ao poder e penetrar em um mundo controlado pelos homens. Casar-se com Perón foi à oportunidade de sua vida, que garantiu o exercício do poder por vontade própria. 20 Descrição das pesquisas É importante enfatizar que ela também exerceu o poder de maneira radical nas pessoas ou instituições que a criticam. Com o apoio do povo argentino, Evita sonha com um país igualitário, justo e sem pobres. Mas, para conseguir alcançar esse objetivo, ela tem que eliminar aos seus adversários: os oligarcas. O cadáver embalsamado de Evita é o desejo de ser lembrada, de nunca ser esquecida, expressando a insistência de um espírito que resiste em abandonar a matéria humana. Permanecendo assim, imortal e purificada em um corpo espiritual, que o povo acreditava ser capaz de convertê-la em uma santa que regressará como a “mãe guiadora e protetora de seus filhos”. O objetivo desta pesquisa é analisar a reconstrução do corpo de Evita no romance Santa Evita de Tomás Eloy Martinez. Assim, se torna necessário primeiro definir claramente o conceito de corpo utilizando diferentes abordagens teóricas que nos ajudarão a ampliar a visão sobre esse tema. Também pretendo demonstrar o processo de construção metaficcional do discurso narrativo do romance. A construção do corpo de Evita. O trabalho de Tomás Eloy Martínez no romance Santa Evita está orientado para reconstruir o corpo de Evita em duas etapas: um corpo vivo que adquiriu poder junto com o general Perón, mas, quando ficou embalsamada, adquiriu um poder ainda maior. A reconstrução do corpo de Evita é apresentada no romance de diferentes maneiras, como por exemplo, as testemunhas das pessoas que conviveram com ela ou a conheceram em diferentes momentos de sua vida. Mas também, as testemunhas das pessoas que ficaram com ela depois de embalsamada pelos vente anos seguintes. Essa reconstrução não tem um caráter unitário, mas sim se fraciona em lembranças de sujeitos que pertencem as diferentes classes sociais, cada um, descrevendo-a de forma diferente, de modo a criar uma personalidade multifacetada. Para seus fiéis seguidores, as massas e os descamisados, o corpo de Evita se torna um símbolo da luta armada nos anos 70; uma luta que também se expressa no slogan “Perón ou morte”, variação de “A vida por Perón” e que aparece nas margens do peronismo dissidente ansioso por ocupar o centro político. É aqui onde o corpo de Evita recupera sua voz, seu desejo de poder, justiça, igualdade e seu grito de guerra. 21 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Portanto, a reconstrução do corpo apresentada no romance, delimita as diferentes fases da vida de Evita: de menina pobre e filha bastarda a Primeira Dama da Argentina, que mesmo depois de morta se transformou em um ícone cultural e político. No presente momento, o trabalho de pesquisa encontra-se em sua fase inicial. Até agora foram realizadas leituras e fichamentos de alguns livros que integram a bibliografia e analisam alguns tópicos concernentes à reconstrução do corpo de Evita desde diferentes tópicos como são desde a memória, a história, a ficção, a metaficção entre outros. São eles: Tempo passado de Beatriz Sarlo, História e Memória de James Le Goff, Ficção de Catherine Gallagher, A ficção de Karlheinz Stierle. É possível comprovar que os principais temas inseridos nos textos escritos por esses autores são: o relato testemunhal, diferentes tipos de memória, e os recursos narrativos usados na metaficção. Todos eles pertinentes ao objeto de estudo deste trabalho de pesquisa. Conclui-se nesta fase inicial da pesquisa que o romance de Martínez propõe a reconstrução do corpo de Evita Perón desde diferentes locais, como estratégia para recuperar um pensamento nacional e reafirmar o papel da mulher na memória coletiva do povo argentino. Bibliografia básica sobre o corpo BENNETT, Richard. Carne e Pedra. O corpo e a cidade na civilização ocidental. Trad. de Marcos Aarão Reis. Rio de Janeiro, Editora Record, 2da Edição, 2001. CORBIN, Alain. Courtine, Jean-Jaques. Georges Vigarello. História do Corpo. Tradução de Lúcia M. E. Orth. Revisão da tradução Ephraim Ferreira Alves. Rio de Janeiro. Editora Vozes, 3ra Edição, 2009. SENNETT, Apud Richard. Carne e Pedra. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1994. TUCHERMAN, Ieda. Breve história do corpo e deus seus monstros. Lisboa, Vega Passagens, Segunda Edição, 2004. Bibliografia básica 22 Descrição das pesquisas ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: ____. Notas de literatura 1. Trad. 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Nessa primeira fase, com o propósito de se verificar como ocorre o diálogo intertextual entre a literatura gótica e o movimento romântico, foi iniciada a leitura de obras (poemas e dramas em prosa) dos seguintes poetas ingleses: Samuel Colerigde, William Wordsworth, Percy Shelley, John Keats e Lord Byron, esse último muito admirado por Emile Brontë. Ainda sobre Byron é possível constatar que os personagens de seus escritos e, até mesmo o próprio poeta, que era conhecido por seu comportamento instável e rebelde, teriam servido de inspiração para a criação do protagonista do romance de Emile Brontë: Heatchcliff, que se destaca mais pelos seus defeitos que por suas qualidades e também se assemelha a outros vilões que aparecem em outras narrativas góticas publicadas na metade do século XVIII. Também é possível comprovar que os principais temas inseridos nos textos escritos por esses autores românticos, tais como: o isolamento, a alienação da realidade, o sublime como experiência estética, a rebeldia, a solidão e a morte estão presentes no discurso narrativo de Wuthering Heights. Conclui-se nesta fase inicial da pesquisa que esse romance de Emile Brontë, além de estabelecer pontos de intersecção com Frankenstein, outra obra considerada gótico-romântica, também pode ter mantido uma relação intertextual com outras obras 24 Descrição das pesquisas que apresentam elementos românticos, ou góticos em sua composição e foram escritas anteriormente à sua publicação. Assim, é provável que Wuthering Heights tenha sua origem na combinação da configuração gótica, que remonta a metade do século XVIII, com o romantismo inglês do século XIX, em sua vertente “Byroniana”, onde se destacam diversas relações de oposição, mas que de algum modo se tornam ambivalentes dentro de seu discurso narrativo. Bibliografia BRAVO, NICOLE. Duplo. In: BRUNEL, Pierre. Dicionário de mitos literários. Tradução Carlos Sussekind e outros. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997. BOTTING, Fred. Gothic. London: Routledge, 1996. BRONTË, Charlote. Jane Eyre. Oxford: Oxford University Press, 1998 [1847]. BRONTË, Emile. O morro dos ventos Uivantes. Introdução, tradução, notas e dossiê: Renata Maria Parreira Cordeiro e Eliana Gurjão Silveira Alambert. São Paulo: Landy, 2005. _____. O morro dos ventos uivantes. Tradução Raquel de Queiroz. Nova Cultural: São Paulo, 1995. _____. Whutering Heigths. New York: Oxford University Press, 1950 [1847]. BRUNEL, Pierre. Dicionário de mitos literários. 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Ao ingressar no Programa de Pós-Graduação neste ano, nosso intuito era dar continuidade à tarefa de demonstrar a importância do estrangeiro na obra de Guimarães Rosa, apontando como o tema é recorrente em sua obra e fundamental para diversas narrativas. Acreditamos que, ao explorar esse viés pouco abordado pela crítica rosiana, podemos obter uma compreensão renovada de sua obra, e isso pode ser comprovado em nossa dissertação de mestrado que mostrou a relevância da temática do estrangeiro em determinados contos do autor. Pretendemos expor como Rosa parece estabelecer pontes entre culturas distantes, seja através de uma aproximação cultural ou mesmo linguística, e como essa aproximação e valorização da heterogeneidade que fundamenta e motiva cada sistema cultural e a pluralidade que rege a relação entre eles, permitiu ao escritor atuar como um transculturador, que se situa entre dois polos contraditórios e aparentemente inconciliáveis, como o centro e periferia, o arcaico e o moderno, o oral e o escrito. Para tanto, escolhemos como corpus duas narrativas emblemáticas do escritor mineiro: Grande sertão: veredas (1956) e “Recado do morro” (1956) de Corpo de baile do mesmo ano. Nossa intenção era analisar os personagens alemães, presentes na novela e no romance, e os chamados – pejorativamente- de “turcos” que aparecem no romance que são estrangeiros da região da Síria. Tal projeto de pesquisa passou por uma reestruturação há apenas alguns meses. Essa reestruturação foi necessária primeiramente pela necessidade de ampliar o corpus que se afigurou restrito para uma tese de doutorado que deve apresentar certa complexidade e extensão. Com isso, optou-se por estender o tema para a representação do imigrante na literatura brasileira. Com o tema dilatado, naturalmente, o corpus teve 27 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa que ser também aumentado e, com esse novo olhar, podemos não só completar a análise do tema na obra de Guimarães Rosa como um todo – o que, a princípio, era nossa intenção – comparando a visão transcultural nas relações entre estrangeiros e as técnicas utilizadas pelo autor mineiro com obras de escritores de período posterior e anterior a ele:Canaã de Graça Aranha de 1922, Lavoura arcaica de Raduan Nassar de 1975e Relato de um certo oriente de 1979 de Milton Hatoum. Tal abordagem possibilitará, em tese, um panorama da representação dos imigrantes alemães e libaneses nesses autores da literatura brasileira. Diante dessa situação, uma nova pesquisa bibliográfica fez-se necessária para abranger o novo corpus bem mais extenso que o anteriormente proposto. Realizamos novas leituras e fichamentos bem como foi feita uma releitura das obras mencionadas de Graça Aranha, Raduan Nassar e Milton Hatoum. No presente momento, ainda estamos realizando levantamento bibliográfico, e começando a leitura - ou releitura - e fichamento de ensaios críticos relativos às obras a serem estudadas. A tese, portanto, está em fase inicial de execução. Embasamento teórico A escolha do tema da representação do imigrante na literatura brasileira colocanos diante da necessidade de pensar os personagens estrangeiros nos limites da crítica sócio-histórica da literatura, dos estudos de literatura e cultura, e até mesmo a visão psicanalítica referente ao estrangeiro. Para tanto, teremos o suporte dos estudos culturais, como os de Homi Bhabha que reflete sobre conceitos como diferença cultural, pós-colonialismo, estereotipia. De acordo com Bhabha (1998), o estereótipo é uma forma limitada de alteridade e é importante questionar as maneiras de representação dessa alteridade, que, em geral, é um discurso preconcebido, é repetido até se fixar como verdade.Edward Said(2007), dentre outras considerações,ensina-nos que o intelectual deve falar a partir de uma margem, evitar pensamentos centralizados e conceitos cristalizados sobre culturas, levando sempre em conta os marginalizados do conjunto social, os “fora de lugar”, os “ex-óticos” onde se encaixam os estrangeiros.Também teremos como baliza, Nestor Garcia Canclinique ocupa um importante lugar na crítica latino-americana nas questões sobre hibridismo e aos processos de tradução cultural: “a hibridez tem um longo trajeto nas culturas latino-americanas”, diz ele (2000, p.326). Ainda nessa linha de pensamento, 28 Descrição das pesquisas Stuart Hall (2000) assume grande importância no campo dos estudos culturais, devido aos esforços para difundir a ideia de que a construção da identidade na chamada pósmodernidade é um processo ainda em andamento, impuro e híbrido. Conceito-chave para falar da posição de Guimarães Rosa diante das questões culturais em seus escritos é o conceito de transculturação que Ángel Rama (2001) transpõe para as obras literárias a partir do conceito antropológico e cultural elaborado Fernando Ortiz. De acordo com Rama, a literatura de transculturação utiliza a plasticidade cultural para transitar por culturas diferentes, estabelecendo um diálogo entre culturas em conflito, livre de hierarquias entre ambas, discriminações ou xenofobias. Octavio Ianni (2000) também servirá de apoio para discutir a questão da transculturação, assim como aquelas sobre fronteiras, viagens e viajantes. O conceito de hospitalidade, desenvolvido por Derrida (2003), enquanto relação à alteridade ou singularidade do outro, liga-se diretamente às questões sobre o estrangeiro; dentre outras questões, ele indaga: “O que é um estrangeiro? O que seria uma estrangeira?” (2003, p.65). Abordar o conceito de estrangeiro coloca-nos ainda no entre o universo psicanalítico e o político, conforme afirma Caterina Koltai (2000). Assim, também pensaremos o conceito a partir da perspectiva psicanalítica, pois esses estudos nos ajudam a pensar o estrangeiro não como o Outro distante, mas impele-nos a reconhecêlo em nós mesmos. Para Julia Kristeva (1994, p.190), é só quando nos reconhecemos estrangeiros a nós mesmos que a compreensão do Outro é possível: “Se sou estrangeiro, não existem estrangeiros” (KRISTEVA, 1994, p.201). Para compreender o estrangeiro como o estranho familiar - aquele que incomoda não pela sua aparente estranheza, mas porque vemos nessa diversidade algo comum ao Eu - conto com o importante estudo de Freud de 1919 “Das Unheimliche”, traduzido para o português como “O estranho” (1996, p.238): “[...] o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar”. Para o estudo do corpus escolhido, vamos nos ater mais à crítica voltada para os aspectos sócio-históricosdos textos selecionados. A crítica da obra de Guimarães Rosa é vasta e, em parte, de excelente qualidade, nas diversas linhas de estudo e diferentes interpretações. Na seleção dos trabalhos que nos auxiliarão a fomentar a leitura da obra voltada para o tema do imigrante, tomaremos como critério principal a crítica mais voltada para os aspectos sociais da ficção rosiana, que a situa na História do Brasil, caminho aberto por Antonio Candido, seguido por 29 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Walnice Nogueira Galvão, e que tem recebido importantes contribuições da crítica mais recente. Assim, levaremos em conta trabalhos de estudiosos que consideram Guimarães Rosa como um “pensador da formação do Brasil”, tais como Luiz Roncari (2004) e Willi Bolle (2004). Também está na base deste trabalho o estudo de Marli Fantini Guimarães Rosa: fronteiras, margens, passagens (2003), que interpreta a obra de Rosa como uma poética de fronteiras e destaca a atuação do escritor como transculturador. Para o estudo de Canaã, de Graça Aranha, nos basearemos em críticos como Alfredo Bosi e obras como O Pré-Modernismo (1966) e História concisa da literatura brasileira (1994); Lúcia Miguel Pereira e sua obra História da Literatura Brasileira: prosa de ficção (1870-1920), dentre outros. Encontraremos apoio para o estudo da obra de Raduan Nassar em alguns ensaios publicados nosCadernos de literatura brasileira: Raduan Nassar(1996), do Instituto Moreira Salles, tais como o de Leyla Perrone-Moisés:“Raduan Nassar. Da cólera ao silêncio” e de Milton Hatoum: “Raduan Nassar. Os companheiros”. Também nos valeremos de algumas dissertações e teses sobre o autor, sobretudo a dissertação de Francine Iegelski:Tempo e memória, literatura e história. Alguns apontamentos sobre Lavoura arcaica, de Raduan Nassar e Relatos de um certo oriente, de Milton Hatoum, de 2007, que nos interessa pela comparação que a autora faz entre os dois autores e obras com que iremos trabalhar. Sobre a obra de Milton Hatoum encontraremos suporte em estudos como o de Luiz Costa Lima “O romance de Milton Hatoum” (2002); de Tânia Pellegrini: “Milton Hatoum e o regionalismo revisitado” (2004); de Stefania Chiarelli:Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum(2007); de Maria Zilda Cury: “Topografias da ficção de Milton Hatoum” (2009) dentre outros que constam na bibliografia. Levaremos em conta, ainda, os apontamentos do próprio autor sobre sua obra: Literatura e Memória. Notas sobre Relato de um certo Oriente, de 1996. Para analisar a construção do tema do estrangeiro nas narrativas que serão estudadas, adotaremos o exame das categorias narrativas. Daremos destaque aos estudos da narrativa que tratam da categoria da personagem, como o texto teórico de Antonio Candido “A personagem do romance” (2000), dentre outros. Buscaremos, ainda, recursos nos teóricos da narrativa como Gérard Genette em Discurso da narrativa (1976). Bibliografia 30 Descrição das pesquisas 1. Referente ao corpus: ARANHA, Graça. Canaã. In: _____. Obra completa. Org. de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1968. p. 45-226. HATOUM, Milton. Relato de um certo oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ______. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. 3.ed. São Paulo: Companhia das letras, 1989. ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 12. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968. _____. O recado do morro. In: ROSA, João Guimarães. No Urubuquaquá, no Pinhém. 6.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978. p. 5-72. ______. Correspondência com seu tradutor alemão Curt Mayer-Clason. Org. Maria Aparecida F. M. Bussolotti; Tradução de Erlon José Paschoal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/ABL; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. 2. Referente a questões de literatura e cultura: CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas. 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No que diz respeito ao levantamento bibliográfico, constatou-se que embora haja um grande arcabouço crítico a respeito da obra do autor, pouca coisa foi traduziada para o português. Sintomático do lugar que este ocupa na recepção brasileira é o fato da maioria de suas obras não possuírem novas edições no mercado. Exceção a isso são as novas edições da trilogia U.S.A. (2012) e da obra O Brasil em movimento (2013), relato de caráter documentário proveniente de suas visitas ao país, que podem indicar um futuro reconhecimento da importância do autor para a literatura do século XX. A crítica de língua inglesa ainda não foi revisada. A crítica traduzida para o português encontra-se desatualizada. Em sua maioria, consiste em manuais gerais da literatura estadunidense1, produzidos na década de 1960, que apresentam uma visão superficial, a qual peca por julgar inadequadamente a postura política em vida do autor prejudicando, assim, a análise literária. Exemplo de uma crítica superficial e pouco fundamentada, a respeito de sua principal obra, a trilogia U.S.A, encontra-se em Breve história da literatura americana: Trata-se, na verdade, da maior galeria ficcionista de autômatos humanos. O leitor encontra dificuldade, senão impossibilidade, em interessar-se por tais tipos; aliás, já foi dito que Dos Passos não criou personagens. As bizarras pessoas que povoam U.S.A. exibem o comportamento mecânico, a inconsciência e a irresponsabilidade 1 Embora, usualmente, o termo utilizado para se referir a esta literatura seja “norte-americana”, ou mesmo somente “americana”, optou-se pela escolha do termo “estadunidense” por ela referir-se somente a autores do país. 34 Descrição das pesquisas moral de robôs, como se tivessem sido arremessadas sôbre (sic) os continentes por uma força irracional. (BLAIR et al., 1967, p.211) Ao abordar a obra de tal maneira, o comentador negligencia o potencial crítico da mesma. Um julgamento político que prejudica o entendimento da obra de Dos Passos pode ser encontrado em A literatura americana (1955) de Jacques-Fernand Cahen, que afirma que “Passos evoluiu. Profundamente revoltado com os comunistas que conheceu na Espanha [...] e com o fascismo, êste [sic] individualista, retornou à fé no patriotismo e na democracia de origem” (p.115). Embora a posição política de Dos Passos tenha sido motivo de várias controvérsias ao longo dos anos, trabalhos como o livro de John H. Wrenn, John dos Passos (1966), que aborda toda a produção literária do autor e a tese de doutorado de Fernanda Luísa S. Feneja A reinvenção do paradigma épico na ficção inicial de John Dos Passos : uma leitura de One Man’s initiation, Three Soldiers e Manhattan Transfer (2007)2 têm apontado para as continuidades do pensamento do autor, possibilitando uma maior compreensão de sua postura política e de sua produção literária. Sinclair Lewis, Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, William Faulkner e John dos Passos são os escritores mais citados do período pelos comentadores. Normalmente, são descritos como uma geração pessimista que só soube elencar críticas contra os Estados Unidos, negligenciando suas qualidades. E aqui, novamente, tal juízo prejudica a avaliação das contribuições literárias dos escritores. Numa breve avaliação do contexto social e histórico do período, a Primeira Guerra Mundial é tida como fundamental na constituição de uma mentalidade descrente nos valores democráticos norte-americanos, mas, principalmente, questionadora de toda moralidade defendida pela tradição vigente até então. Kathryn VanSpanckeren, exemplo de crítica mais atual, introduz seu capítulo ao modernismo norte-americano, em Literatura Americana (1994), da seguinte maneira: Muitos historiadores caracterizam os anos entre as duas grande guerras como o período ‘traumático’ em que os Estados Unidos atingiram a maioridade, apesar do envolvimento relativamente breve (1917-1918) e baixas muito menores que a dos aliados e inimigos europeus. John Dos Passos expressou a desilusão pós-guerra da América no romance Three Soldiers [Três Soldados] (1921), em que 2 Há ainda a necessidade de verificar a contribuição da análise realizada sobre o Manhattan Transfer da tese para o projeto. 35 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa dizia que a civilização era ‘vasto edifício de hipocrisia e a guerra, em vez de sua ruína, era sua expressão mais plena e definitiva’. Chocados e mudados para sempre, os americanos voltaram para casa, sem jamais recuperar a inocência. (p.60) Marcados pela guerra e pelo rápido avanço tecnológico do início do século XX, os escritores se viram obrigados a encontrar novas formas de narrar. Muitas experiências e possibilidades se desenvolveram. A escrita cinematográfica de John dos Passos é uma delas. Outro aspecto destacado pela maioria dos comentadores diz respeito ao surgimento, sobretudo nas décadas de 1920 e 30, de uma literatura de classe, fortemente vinculada à preocupações sociais, engajada na denúncia da precariedade da situação dos trabalhadores. O dramaturgo Eugene O’Neill pode ser considerado seu principal representante. Deve-se considerar que grande parte dos experimentos formais empregados por Dos Passos estão relacionados com tais preocupações, como se pretende evidenciar ao longo do projeto. A obra mais significativa da crítica encontrada até o momento é o ensaio de Sartre Sobre John dos Passos e 19193 publicado em Situações I (2005). Embora as reflexões aludam a uma obra em específico, elas podem auxiliar na compreensão de outras obras do mesmo período, assim como o restante da trilogia de 1919 e o próprio Manhattan Transfer. Bem aponta Sartre que “Dos Passos inventou apenas uma coisa: uma arte de contar. Mas é o que basta para criar um universo” (p.38). Sua arte de contar estaria pautada numa concepção de tempo histórica, em que os dados já estariam lançados, os destinos dos personagens traçados. A isto estaria somado um narrador semelhante a um coro, elemento trágico, ao qual daria voz o próprio leitor que, confrontando com sua própria realidade em termos históricos, se revoltaria contra seus absurdos. Pelas palavras do próprio autor, É esse sufocamento sem socorro que Dos Passos quis exprimir. Na sociedade capitalista os homens não têm vidas: têm apenas destinos. Isso ele não diz em momento nenhum, mas sempre nos faz sentir; ele insiste, discretamente, prudentemente, até nos dar vontade de romper com nossos destinos. Eis-nos revoltados: seu objetivo foi alcançado. [...] Contar o presente no passado é usar de um artifício, criar um mundo estranho e belo congelado como uma daquelas máscaras de carnaval que se tornam assustadoras quando homens de verdade as vestem. (p.41) 3 Segundo volume da trilogia U.S.A.. 36 Descrição das pesquisas Apontar exatamente em que medida a análise de Sartre pode ser transposta ao romance aqui estudado é uma questão que permanece em aberto, dependendo de um maior aprofundamento seja na obra, seja no ensaio do filósofo, que deve ser considerado como uma das maiores heranças críticas sobre o autor. Com relação ao tema da metropóle moderna e à presença do elemento trágico na obra a análise ainda não foi iniciada. Até o momento apenas uma parte da bibliografia sobre o tema foi levantada. Por outro lado, a análise dos elementos cinematográficos na obra já foi iniciada, ainda que se apresente incipiente. Cabe aqui realizar algumas considerações a respeito da estrutura da obra. Esta é constituída de três partes divididas por capítulos. Cada capítulo inicia-se com uma epígrafe geralmente associada ao tema da grande metrópole e é composto pela narrativa de várias cenas, nas quais predominam os diálogos, e que dizem respeito a vida de vários sujeitos que podem ou não se relacionarem. Duas referências básicas ao cinema podem ser apontadas na obra em questão. São elas: a organização estrutural da obra que aponta para a noção de montagem cinematográfica; e a idéia de uma objetividade na descrição dos fatos que esconde por trás de si uma manifestação subjetiva. Como o próprio autor afirma em entrevista concedida à Paris Review é muito provável que diretores como Eisenstein e Griffith o tenham influenciado na época em que compôs Manhattan: Na época em que escrevi Manhattan Transfer não tenho certeza se já tinha visto os filmes de Eisenstein. A idéia de montagem teve influência no desenvolvimento da forma. Talvez eu tivesse visto O encouraçado Potemkin. Claro que já devia ter visto O nascimento de uma nação, que foi a primeira tentativa de montagem. Eisenstein considerava-o como a origem de seu método. (1988, p.187) É a partir da noção de montagem cinematográfica que é possível estabelecer relações entre as diversas narrativas do romance que, num primeiro momento, podem parecer desconexas, visto que relatam vidas independentes e que, em sua maioria, não se cruzam. Cabe ao leitor realizar as associações possíveis. No segundo capítulo, chamado Metrópole (DOS PASSOS, 19--, p.21 e seg.), por exemplo, é possível associar a epígrafe, que compara Nova York com outras cidades históricas colossais, com a precariedade da vida de vários personagens e a especulação imobiliária de modo a constituir um retrato crítico a respeito da cidade. Fica aí evidente que a questão da 37 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa montagem aponta para a ação do diretor, no caso narrador, contido por detrás dela e que a seleção e agregação de cenas nunca é gratuita. Bibliografia BLAIR, Walter; HORNBERGER, Theodore; STEWART, Randall. Estados Unidos: de 1914 aos dias de hoje. In: Breve história da literatura americana. Tradução: Marcio Cotrim. Rio de Janeiro: Lidador, 1967. BRADBURY, Malcolm. Estilo de arte e estilo de vida: a década de 1920. In: O romance americano moderno. Tradução: Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, c1991. CAHEN, Jacques-Fernand. A literatura negra. In: A literatura americana. 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Aceita-se, portanto, nesse período, que a poesia pode ser desprovida de verso, o que aumentou significativamente o leque de opções dos autores em relação ao fazer poético. A poesia sem o verso assume a forma das linhas corridas da prosa e dessa inovação surge o que chamamos de poema em prosa, primeiramente na França com Aloysius Bertrand (Gaspard de la nuit) e depois com Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé. O movimento Simbolista tinha como uma das propostas mais importantes a expressão da musicalidade da poesia. Desprezando aquilo que era visível nas coisas, procuravam sugerir ao invés de mostrar. Ferramentas abstratas como a música e os símbolos seriam mais propícias para isso. “Para os simbolistas, portanto, fazer poesia implica a tentativa de expressar fugidia, que merece necessariamente uma forma de expressão condizente com ela, também vaga, indecisa” (BALAKIAN, 1985, p.28). A estrutura do poema em prosa permitia uma maior liberdade rítmica, sendo propício para experimentações no campo da linguagem e da forma, posteriormente no Modernismo isso se desenvolveria para outras experimentações poéticas mais ousadas, como o uso do verso branco e livre, o concretismo etc. Portanto, os estudos literários sobre o Simbolismo, contribuem para a compreensão das bases fundadoras da literatura moderna e contemporânea, auxiliando na compreensão de todo o processo de mudança da poesia até a modernidade. 39 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Em nosso projeto de pesquisa buscamos analisar e comparar os poemas em prosa do autor brasileiro João da Cruz e Sousa e do nicaraguense Ruben Darío, fazendo sempre um paralelo com a teoria já publicada acerca desse gênero. Ambos os autores representam a mais qualidade poética em seus respectivos países, bem como se destacam por serem pioneiros na utilização do poema em prosa como forma de expressão poética e por suas obras em prosa ainda não suscitarem tanto prestígio quanto as obras em verso. O foco do nosso estudo recai na obra “Missal” (1893) de João da Cruz e Sousa, composta de 45 poemas em prosa voltados para o lado estético e impressionista que se assemelham mais aos poemas em prosa de Ruben Darío. Já os poemas em prosa do autor nicaraguense estão distribuídos por várias de suas obras, dentre elas: Azul (1888), Cantos de vida y de esperanza (1895), El canto errante (1907), Prosa dispersa (1919) e alguns sobre o nome de Cuentos y crônicas no volume XIV de suas Obras Completas, dificultando a restrição do corpus em relação a datas de publicação. Por isso optamos por utilizar um livro argentino, que sob o título Poemas en prosa (1948) apresenta uma compilação de 25 poemas em prosa retirados de diversas obras de Darío. Aliada ao estudo do poema em prosa propomos uma reflexão acerca dos gêneros literários, desde os textos primordiais da Poética de Aristóteles, passando pelas ideias de Genette, Todorov e Bakhtin, sempre refletindo qual a importância do estudo dos gêneros ainda hoje e de que forma isso pode contribuir para a compreensão dos textos modernos que se valem da hibridização. Especificamente sobre o poema em prosa, utilizamos a obra principal sobre o assunto “Le poème en prose de Baudelaire jusqu’à nos jours” de Suzanne Bernard, uma obra importante e pioneira que procura abranger a teoria sobre o gênero e ainda enumera vários autores que se dedicaram a escrita do poema em prosa, demonstrando as características inerentes a cada um. Outras obras relevantes para a pesquisa são “Lire le poème en prose” de Michel Sandras e “Configurações do poema em prosa” de Ângela Varela, ambos também apresentando uma parte teórica e discussões sobre o poema em prosa desde a origem até os dias de hoje, passando pelas diferenciações entre poesia e prosa e finalizando com o estudo individual de alguns autores demonstrando as várias formas que o poema em prosa pode assumir dependendo do autor e da época. Em alguns pontos discordamos das teorias propostas, principalmente em relação ao status de “gênero independente” concedido ao poema em prosa e em relação à diferenciação, sempre relevante, de poema em prosa e prosa poética. Apesar de tão enraizada na 40 Descrição das pesquisas Literatura Francesa, a questão do poema em prosa continua, ainda hoje, em aberto, suscitada pela controversa delimitação dos modos literários (VARELA, 2011, p.66). E sobre essa discussão dos limites entre poesia e prosa é que escolhemos adotar um conceito derridiano de “participação sem pertencimento”, retirado de um ensaio de Jacques Derrida em que discute a questão dos gêneros, por ser mais abrangente sem que limite demais a teoria do poema em prosa. Sobre a obra “Missal”, de Cruz e Sousa, entramos em uma outra discussão que reavalia a crítica feita sobre essa obra desde o seu lançamento. Seguindo a linha de pensamento do professor Doutor Antonio Donizeti Pires em sua tese de doutoramento, procuramos demonstrar a importância dessa obra no contexto literário brasileiro e o papel fundamental de Cruz e Sousa nas bases da poesia moderna, principalmente por causa de suas obras em prosa, e como a crítica tem negado isso. Para tanto o ensaio de Haroldo de Campos, “Ruptura dos gêneros na literatura latino-americana” incita-nos essa discussão no âmbito brasileiro. Paralelo a isso temos a tão aclamada fama de Ruben Darío como ‘pai da modernidade’ em todos os países de língua espanhola. Esse paralelo com a literatura hispânica nos permite entender melhor o porquê dessas diferenças em relação à aceitação do simbolismo como precursor da modernidade. Como o número de poemas contidos em cada obra é grande e nos impossibilita a análise integral de todos os poemas, tentamos portanto, além de analisar os aspectos dos poemas em prosa como um todo em cada poeta, partirmos de uma análise de contraponto destacando principalmente a diferença em detrimento da semelhança. O que notamos com as análises comparadas de alguns poemas é que a linguagem de Cruz e Sousa diferencia-se da linguagem de Ruben Darío, pois traz mais elementos sonoros e palavras raras, fazendo com que a musicalidade seja mais elaborada. Apesar de Darío também utilizar elementos sonoros, a construção do ritmo é mais parecida com a linearidade da prosa, talvez por isso muito dos seus poemas em prosa se pareçam com pequenos contos. Além disso as imagens poéticas são voltadas ao pictórico e muitas delas embasadas nas referências intertextuais e culturais, ou seja, ele constrói as imagens através de elementos culturais, de forma mais exacerbada que o poeta brasileiro. Parece-nos que Ruben Darío preocupa-se mais em demonstrar a sua erudição. Nesses trechos podemos ter uma ideia da construção dos poemas: 41 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Es un mar de pizarra, con una multitud de florecimientos de nieve, es un mar gris oscuro, con mil puntos en donde estallan copos de espuma. Chente Quirós me llamó poeta niño. ¡Pornógrafo! No me subleva el adjetivo. Víctor Hugo da ese nombre al formidable anciano Homero. Pero en el Océano me siento niño. Siento siempre aquella primera impresión de las potentes aguas inmensas; siento lo que tan admirablemente expresó Pierre Loti (…). (Trecho do poema “En el mar” de Ruben Darío) Ó mar! Estranho Leviatã verde! Formidável pássaro selvagem, que levas nas tuas asas imensas, através do mundo, turbilhões de pérolas e turbilhões de músicas! Órgão maravilhoso de todos os nostalgismos, de todas as plangências e dolências… Mar! Mar azul! Mar de ouro! Mar glacial! (Trecho do poema “Oração ao mar” de Cruz e Sousa) A partir desses pequenos trechos tirados de dois poemas que tem como temática o mar, já podemos notar que a escrita de Darío utiliza bem mais elementos intertextuais, pois somente nesse trecho há quatro citações extratextuais (Chente Quirós, Victor Hugo, Homero e Pierre Loti). O eu lírico não nos diz claramente aquilo que sente em relação ao mar, diz sentir aquilo que Pierre Loti expressou em seus poemas, ou seja, o sentimento do eu lírico é criado através das suas referências culturais e não somente pelo seu sentimento frente ao objeto poético. As referências intertextuais são bastante abundantes nos poemas em prosa de Darío, enquanto que Cruz e Sousa usa poucas intertextualidades em “Missal”, sendo que em “Evocações” (1898), segundo livro de poemas em prosa de Cruz e Sousa, o uso das intertextualidades são maiores, embora não nos detenhamos nessa obra. Note-se também que o ritmo dos dois poemas são diferentes, no primeiro o tom prosaico é mais notável “No me subleva el adjetivo. Víctor Hugo da ese nombre al formidable anciano Homero”, a construção da frase é mais linear e direta, enquanto que no segundo a evocação ao sol e os ritmos binários dão um tom mais poético ao texto como em “Órgão maravilhoso de todos os nostalgismos, de todas as plangências e dolências” Enfim, nossa pesquisa, que se encontra em estágio de escrita e preparação para qualificação, segue nessas frentes anteriormente comentadas em que se insere a discussão sobre os gêneros literários, a importância do Simbolismo na trajetória da poesia brasileira e suas relações com a literatura hispânica, as análises dos poetas 42 Descrição das pesquisas seguindo os pressupostos do poema em prosa e a tentativa de traçar aspectos dessa expressão poética a partir das particularidades de cada poeta. Bibliografia ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A poética clássica. 12ª Ed. São Paulo, Cultrix: 2005. BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso In: Estética da criação verbal. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. 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Assim, cria-se, por parte dos artistas, um ideal a respeito da sociedade, que passa, portanto, a figurar como uma utopia na mente de cada indivíduo, levando-o à negação (evasão) da realidade ou à rebeldia diante dela. Para Otto Maria Carpeaux é possível fazer uma divisão entre o romantismo conservador ou de evasão e o romantismo liberal e revolucionário. (CARPEAUX, 1987, v. 5 p. 1153) No romantismo liberal e revolucionário aparecem as obras com uma tendência social, que, na França é muito bem representada por Victor Hugo. Na vertente ligada à evasão aparece um “eu” romântico que se vê incapaz de resolver sozinho os problemas em relação à sociedade e que, portanto, se lança à evasão. A evasão romântica apresentava-se de diversas maneiras: através do retorno para o passado, a fuga por meio das manifestações do inconsciente, o sentimentalismo exagerado e o fantástico. Escolhendo evadir-se através do fantástico, Théophile Gautier vê em E.T.A. Hoffmann um grande mestre desse tipo de literatura, pertencente a uma geração romântica alemã que apoiava a construção de suas obras em sonhos, fantasia, imaginação, logo na fuga para o mundo não material. Já na segunda metade do século XIX, há na Europa um descontentamento com a ordem social semelhante ao do romantismo, mas acrescido de um sentimento decadente de que o mundo se desfaz. Estamos diante do Simbolismo. 45 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Enquanto os românticos procuravam se opor à sociedade por meio dos sentimentos e da revolta, os simbolistas só queriam refugiar-se no mundo da imaginação, em sua torre de marfim, protestando assim contra a sociedade corrompida pelo materialismo. O simbolista acredita que o ser humano é determinado pelo meio e condições de vida. Portanto, eles não permanecem no meio social, mas recolhem-se a um mundo subjetivo que garante seu afastamento da sociedade e da realidade, já que, para o poeta simbolista, é impossível opor-se a ela. O poeta simbolista é aquele que, sabendo-se condenado a um destino terreno sobre o qual não tem controle, procura um conforto niilista na maior forma de libertação: a morte. Ele se refugia na crença da imortalidade como forma de salvação de sua alma. Assim era também Villiers de l’Isle-Adam, que não se encaixava na ordem capitalista vigente e procurava sempre uma existência superior, longe da realidade de sua época. Encontrava essa existência superior na criação literária. Suas obras, portanto, demonstravam essa procura em seus temas míticos, fantásticos. As obras villierianas são, assim, uma espécie de refúgio do mundo real para que se alcance a existência Ideal, que, para ele, os homens conseguiam atingir através da imaginação, da literatura. Villiers procura, portanto, uma poética em que cada palavra é escolhida de forma a levar os leitores a alcançar essa realidade Ideal, resultando em uma obra repleta de sonoridade e sinestesia; características muito importantes no movimento simbolista. O autor demonstra uma preocupação metafísica principalmente em suas obras fantásticas, que têm como temas comuns a loucura, a morte e o amor ligado à morte. 2. O conto fantástico na França O conto fantástico é uma das produções mais características da narrativa no século XIX. Ele nasce como modalidade literária no início do século no Romantismo alemão, com a intenção de representar o mundo interior e subjetivo da mente, da imaginação humana, conferindo a ela uma importância maior do que a da razão e realidade. Porém, antes disso, já na segunda metade do século XVIII, o romance gótico na Inglaterra havia explorado temas e ambientes que serviriam de base ao fantástico. Na França, a literatura fantástica está muito ligada aos períodos do Romantismo e do Simbolismo. Segundo Pierre-Georges Castex (1962), a literatura fantástica francesa 46 Descrição das pesquisas se divide justamente nestes dois períodos: o primeiro, em meados do século XIX, é o do Romantismo, o gosto pelo sobrenatural, pelo mistério e a procura pelo absoluto deram abertura a grande produção de contos fantásticos que teve uma grande influência de E.T.A. Hoffmann, influência essa que pode ser verificada em Théophile Gautier. Já o segundo período compreende o movimento simbolista, já no fim do século XIX, ligado ao interesse pelas forças ocultas, pelo sonho e pela imaginação. Claro que também nesse período foi vasta a produção fantástica tendo em vista os temas que lhe são caros. Aqui, Edgar Allan Poe aparece como principal mestre, já que atraiu os franceses pela sua preocupação estética. Ainda conforme Castex (1962), a literatura fantástica, desde sua origem, se interessa muito pelo sonho e seus derivados, (pesadelos, delírios, alucinações e estados provocados pelo uso das drogas). Esses motivos povoam numerosos contos fantásticos, mas podem conferir aos textos tanto um final explicado pela razão científica ou, em histórias mais ambíguas, podem confundir ainda mais o leitor a respeito da realidade. A literatura fantástica aparece então como um refúgio à realidade palpável. Théophile Gautier e Villiers de l’Isle-Adam procuram esse refúgio em seus contos fantásticos, que são permeados por elementos do sobrenatural, sonhos, delírios e alucinações. Esses recursos aparecem de diversas maneiras nas narrativas fantásticas. Em alguns casos eles são uma “segunda vida” (citando Gérard de Nerval), como é o caso do sonho de Romuald em “La morte amoureuse”, narrativa de Théophile Gautier. Já em L’intersigne, de Villiers de l’Isle-Adam, o sonho aparece como uma premonição. Em outros casos ele aparece para tentar dar uma explicação “plausível” para o fato sobrenatural ocorrido. Enfim, ele pode ter várias funções na narrativa fantástica. Partindo dessa colocação, esta pesquisa pretende mostrar, nos textos narrativos “La morte amoureuse” e “Le pied de momie”, de autoria de Théophile Gautier e “Véra” e “L’intersigne”, de Villiers de l’Isle-Adam, como os sonhos e todas as suas derivações contribuem para a atmosfera fantástica da narrativa. 3. A literatura fantástica A proposta deste trabalho é, partindo da leitura dos textos ficcionais, a interpretação e análise dos contos selecionados, verificando e buscando compreender 47 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa como se dá a presença do fantástico nesses autores. Serão verificados mais detalhadamente os aspectos do sonho e do delírio. Os contos serão analisados à luz de teorias relacionadas à literatura fantástica. Ao estudar a literatura fantástica, encontram-se diversas definições. É comum alguns autores discordarem na conceituação dessa modalidade literária, por isso, escolheu-se mostrar aqui algumas definições importantes. Tzvetan Todorov é um dos autores mais lembrados quando se fala em literatura fantástica. Em seu livro Introdução à literatura fantástica ele discorre sobre os limites entre o estranho, o fantástico e o maravilhoso. Sobre isso, ele diz: Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhecidas para nós. Ou o diabo é uma ilusão, um ser imaginário; ou então existe realmente, exatamente como os outros seres vivos: com a ressalva de que raramente o encontramos. (TODOROV, 1992, P. 30). Assim, o fantástico, segundo Todorov, ocorre na incerteza. Ao escolher uma ou outra solução, não estamos mais no fantástico, e sim em um de seus gêneros vizinhos: o estranho e o maravilhoso. O estranho aparece quando se encontra uma explicação real para o acontecimento. Já o maravilhoso ocorre quando não há explicação real, quando o sobrenatural pertence realmente à realidade da narrativa. David Roas (2001) observa que a maioria dos críticos concorda que a condição indispensável para o fantástico é o sobrenatural. E esse sobrenatural é entendido como um fenômeno que transgride o mundo real, é aquele que não pode ser explicado pelas leis deste mundo. Dessa forma, a literatura fantástica é definida por essa característica de transgressão ao real. Para isso é preciso que o ambiente da narrativa seja parecido com àquele em que mora o leitor. É nesse ambiente conhecido pelo leitor que aparece o sobrenatural, fazendo com que o leitor duvide de sua própria realidade. Se o sobrenatural não entrar em choque com o contexto, com o ambiente da narrativa, não estamos mais no fantástico. Passa-se então ao maravilhoso, onde os acontecimentos sobrenaturais são perfeitamente aceitáveis. A diferença então é que no maravilhoso, o estranho é mostrado como natural. No mundo maravilhoso tudo é 48 Descrição das pesquisas possível: fadas, espíritos, demônios, vampiros, enfim, tudo que não poderia pertencer ao nosso mundo, no maravilhoso tem seu lugar. (ROAS, 2001, p. 12) Castex segue essa mesma linha assinalando que o fantástico “se caracteriza pela intromissão brutal do mistério no quadro da vida real e está ligado, geralmente, aos estados mórbidos da consciência que, durantes pesadelos e delírios projetam nela imagens de suas angústias e terrores.” (CASTEX, 1962, p. 8). 4. Estágio atual da pesquisa Tendo em vista as teorias sobre o fantástico explicitadas acima, essa pesquisa procederá à análise dos contos já mencionados de Théophile Gautier e de Villiers de l’Isle-Adam. Seguindo cronograma previsto no Projeto de Pesquisa apresentado ao Programa de Pós-graduação em estudos Literários, no primeiro semestre de 2013 houve a participação em disciplinas do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da FCLAr e levantamento bibliográfico e expansão da bibliografia. Uma leitura mais aprofundada do corpus foi realizada, assim como um exame da fortuna crítica referente à obra de Théophile Gautier e Villiers de l’Isle-Adam e referente à teoria da literatura fantástica. Os resultados atingidos foram discutidos em reuniões com a orientadora. As disciplinas cursadas foram “Mulher e Literatura”, ministrada pela Professora Doutora Lola Aybar, que foi muito útil para fornecer conhecimento apropriado para uma análise mais aprofundada das personagens femininas Clarimonde e Véra dos contos “La morte amoureuse” e “Véra”, de Théophile Gautier e Villiers de l’Isle-Adam respectivamente. A disciplina “Mito e Poesia”, ministrada pelo Professor Doutor João Batista Toledo Prado forneceu uma visão mais aprofundada dos aspectos mitológicos presentes em toda a literatura, inclusive em textos fantásticos. Os trabalhos finais das disciplinas cursadas estão sendo escritos a partir das teorias vistas em aulas e as teorias sobre o fantástico já explicitadas anteriormente. Além disso, esse período foi dedicado à preparação de resumo e trabalho completo que será apresentado no II Simpósio Internacional de Literatura, Cultura e Sociedade organizado pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais. Bibliografia 49 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa BALAKIAN, A. O Simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 2000. BESSIÈRE, Irène. Le récit fantastique: la poétique de l’incertain. Paris: Larousse, 1974. (Thèmes et textes). CAILLOIS, Roger. Anthologie de la littérature fantastique. Paris: Gallimard, 1966. CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental. V. 5. Rio de Janeiro : Alhambra, 1987. CASTEX, Pierre-Georges. Le conte fantastique en France de Nodier à Maupassant. Paris: Corti, 1962. MICHAUD, G. Message Poétique du Symbolisme. Paris: Librarie Nizet, 1966. ROAS, D. Introducción, compilación de textos y bibliografia. In: ALAZRAKI, J. Teorías de lo fantástico. Madrid : Arco/Libros, 2001 TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. M. Clara C. Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975. 50 Descrição das pesquisas “CAMPO GERAL”: UM JOGO DE POSSIBILIDADES NARRATIVAS NA PELE DA ESCRITURA Amauri Faria de Oliveira Filho Mestrando Profa. Dra. Maria Célia Moraes Leonel (Or.) O presente estudo centra-se no jogo de alternância de vozes entre narrador e protagonista de “Campo geral”, a partir do levantamento e análise dos recursos narrativo-poéticos da prosa rosiana. A hipótese do trabalho é a de que componentes estruturais veiculados por diferentes categorias narrativas e as escolhas linguísticas do escritor compõem os traços de intuição, sensibilidade e criatividade do protagonista, fundamentais para o seu processo de amadurecimento/crescimento que pode ser considerado como um dos temas principais da novela em pauta. Ao lado dessa análise, o trabalho pretende arrolar elementos do texto que permitem vincular alguns traços biográficos da infância de Guimarães Rosa à personagem Miguilim, com o intuito de estabelecer um elo entre o trabalho da linguagem, a transfiguração do real e a visão lírica da personagem com o trabalho de criação da literatura, comprovando a hipótese de que o protagonista é, também, um poeta. A novela narra a infância de “um certo Miguilim” que morava no remoto sertão “no meio dos Campos Gerais” em “um lugar bonito, entre morro e morro”, chamado Mutum. Por meio do olhar marcado pela sensibilidade do protagonista, o narrador conduz o leitor às vivências da criança de oito anos em um mundo rico de cores, animais e lirismo e, ao mesmo tempo, repleto de violência, brutalidade, conflito, vida e morte. A narrativa conjuga um narrador heterodiegético e a focalização interna fixa, permitindo, dessa forma, que a criatividade e a sensibilidade poética da linguagem infantil venham à tona. A cumplicidade entre o narrador, aquele que fala, e o protagonista, aquele que vê pelo prisma da infância, é responsável pela formação do discurso lírico, da prosa-poética de “Campo geral”. Assim, faz-se necessário o estudo, com base nas proposições de Genette ([197-]), das duas categorias narrativas, a narração 51 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa e a focalização, a fim de desvendar, a partir das marcas linguísticas, os mecanismos de construção da poeticidade do discurso rosiano. As escolhas estruturais quanto à narração, à focalização, (e também ao tempo) entrelaçam-se aos diferentes recursos poéticos usados na prosa rosiana na construção da história de Miguilim e seus poderosos efeitos emocionais. A narrativa rosiana em questão, misto de conto, novela, romance e poesia, promovendo o encontro fluido, amalgamação entre a prosa e a poesia, que origina um adensamento lírico, faz emergir do texto uma imagem profundamente emocional e sensível do protagonista e, por esse mesmo motivo, comunicativa ao leitor. Tal característica de “Campo geral” cruza-se com os aspectos macronarrativos apontados. O momento atual da pesquisa é justamente o de levantamento e a análise desses recursos e sua relação com as categorias narrativas mencionadas. Nessa composição de uma prosa poética singular repleta de possibilidades de leitura, o escritor mineiro desenvolve uma narrativa em prosa que não tem marcas de pausa abrupta para inserção de modelos e ferramentas tradicionais da poesia. Pelo contrário, no texto rosiano, do começo ao fim, existe um caráter poético feito da combinação de ritmo, aliterações, assonâncias, neologismos, arcaísmos, eruditismos, regionalismos, entre outros recursos fundamentais para a construção da sensibilidade, da criatividade e do amadurecimento do protagonista. Em Guimarães Rosa, o encontro entre prosa e poesia revela, a partir da introdução de elementos líricos na narrativa, novas maneiras de traduzir o homem, sua mente e suas paixões. Esse gênero híbrido que combina elementos aparentemente díspares (ações, ideias e escolhas morais do lado da prosa, com sentimentos e temas, da poesia), transcende o simples encadeamento de ações da narrativa tradicional e aproxima-se de imagens que representam, de modo atemporal, o ser humano e o mundo, a velha nova história, sempre única quando se trata de Guimarães Rosa, mineiro/universal. O embasamento teórico da pesquisa é constituído de estudos que podemos reunir em dois grupos. Em primeiro lugar estão os ensaios críticos sobre a obra de Guimarães Rosa em geral e sobre a novela em pauta, como: O dorso do tigre (2009) e Crivo de papel (1999) de Benedito Nunes que tecem considerações a respeito da linguagem, regionalismo, poesia, entre outros temas sobre o conjunto da obra rosiana; O roteiro de Deus (1996) de Heloísa Vilhena de Araújo que apresenta análise místico-religiosa; O homem dos avessos (1994) de Antonio Candido que coteja terra, homem e luta na 52 Descrição das pesquisas análise de “Grande sertão: veredas”; Guimarães Rosa: um alquimista da palavra (1994), de Eduardo F. Coutinho e Guimarães Rosa de Franklin de Oliveira que busca traduzir o que foi a “revolução guimarosiana”. Além de textos como O menino na literatura brasileira (1988) de Vânia Maria Resende, Um enfoque fora de foco: reflexões sobre o ponto de vista em “Campo geral” (2004) de Cláudia Campos Soares e O narrador epilírico de “Campo geral” (2006) de Ronaldes de Melo e Souza. Em segundo lugar, enfeixam-se os estudos sobre categorias da narrativa, em que se sobressai o estudo de Gérard Genette ([197-]) Discurso da narrativa, na qual o teórico francês aponta a voz, o modo e o tempo como os aspectos constitutivos e geradores do sentido na narrativa literária, mas que conta também com o estudo de Antonio Candido A personagem do romance (1970) e com o de Benedito Nunes O tempo na narrativa (1995). Na área da poesia, os estudos teóricos estão centrados na busca das origens da poesia rosiana em: Magma e gênese da obra (2000) de Maria Célia Leonel, Octavio Paz em O arco e a lira (1982), Tzvetan Todorov em Os gêneros do discurso (1980) e Linguística e poética (1970) de Roman Jakobson. Como consequência das disciplinas frequentadas na pós-graduação, o estudo original estendeu-se também para as relações familiares por meio da ótica psicanalista em “Campo geral”, mais precisamente sob o viés do complexo de Édipo. A travessia de Miguilim em “Campo geral” é marcada por constantes tensões transfiguradas metonimicamente nas personagens e no sertão que o cerca. Assim, se por um lado ele encontra sensibilidade e carinho na mãe e no tio Terêz, há aspereza e desavenças com o pai; enquanto Vó Izidra representa uma religião autoritária cujas regras morais e dogmas são inapeláveis, único caminho para a salvação, Mãitina é a negra feiticeira, pertencente a fé proibida, mas que também atende as necessidades espirituais do menino; outro contraste existe entre Seo Deográcias e Seo Aristeu, os dois personagens que receitam remédios, o primeiro traz agouros nefastos, da chegada de doenças e fome, mas o segundo anuncia a saúde e a alegria, não só com sua fala e cantoria, mas com a própria presença física e personalidade. Da mesma maneira, a realidade que cerca Miguilim é marcada pela pobreza, pelo excesso de trabalho, pela falta de educação e oportunidades. No entanto, em meio a tanto cinza, o protagonista é capaz de enxergar uma profusão de cores e sons e cheiros e texturas, um sertão rico de sentidos que os convida para a decifração. 53 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Nesse aspecto, pretende-se ainda, ao longo do trabalho, explorar essas forças contrárias que, de forma barroca, dão densidade e movimento ao texto, com intuito de expandir ainda mais suas possibilidades de leitura. Ao final de “Campo geral”, com a revelação da miopia, não se chega a saber qual a situação real do mundo exterior a Miguilim – o que não tem importância para a leitura do texto – mas é possível conhecer sua intimidade, seu crescimento e amadurecimento, a significação de sua travessia sem chegar à fase conclusiva. A cidade o espera para novos desafios. Semelhante a Miguilim e a sua trajetória, busco, progressivamente, transcender a matriz que sustenta a pesquisa, pois novos estudos promovem a diluição do traço negro das linhas no branco do papel e, cada vez mais, deparo-me com os mistérios de um tom acinzentado, vago, mas riquíssimo e repleto de potencialidade. Bibliografia ABRANCHES, S. Vovô Juca e Miguilim. Folha de São Paulo, São Paulo, 17 de junho de 2012. Ilustríssima, p. 9. ANDRADE, C. D. de A rosa do povo. 32ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006. ARAÚJO, H. V. de A raiz da alma (Corpo de Baile). Editora da Universidade de São Paulo, 1992. AUERBACH, E. Mimesis. 4ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2002. p. 471-498. BERARDINELLI, A. Da poesia à prosa. Trad. M. S. Dias. São Paulo: Cosac Naify, 2007. BOSI, A. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977. BRENNER, C. Noções básicas de psicanálise. Rio de Janeiro: Imago; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975. CANDIDO, A. A personagem de ficção. 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Márcia Valéria Zamboni Gobbi (Or.) Iniciada em março deste ano, esta pesquisa ainda se encontra em fase de adaptações e reformulações. O primeiro e o segundo semestre estão sendo dedicados ao cumprimento das disciplinas oferecidas pelo programa, além da escrita dos trabalhos de conclusão. Tendo em vista o aproveitamento destes trabalhos para a composição da tese futuramente, procuraremos elaborá-los em consonância com nossa pesquisa (um deles já está pronto, e outro em construção). As disciplinas cursadas, até o momento, foram: “História e Ficção”, ministrada pela Profa. Dra. Márcia Valéria Zamboni Gobbi, e “Poesia e Metalinguagem”, pela Profa. Dra. Fabiane Borsato. No primeiro semestre, participamos dos seguintes eventos: V Workshop de Pós-Graduação em Letras, realizado na Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, e do I Congresso Nacional de Literatura e Gênero, no Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas de São José do Rio Preto. Na ausência de mais atividades realizadas, dado o ingresso recente no programa, a seguir ressaltaremos algumas questões importantes relativas ao nosso projeto. Muito se tem discutido atualmente a respeito da pluralidade dos aspectos formais do texto literário, mais especificamente da narrativa. Os elementos estruturais que sempre fizeram parte de sua composição não são mais passíveis de serem definidos e delimitados com clareza e segurança, como é o caso das categorias de tempo, espaço, personagem, narrador, que não permitem ser enquadradas dentro de teorias fixas e limitadoras. Desse modo, até mesmo a classificação dos gêneros, bem como suas delimitações, é algo impensável nos dias de hoje, já que o que ocorre é uma verdadeira fragmentação nas marcas caracterizadoras de cada um, provocando a intersecção entre vários deles, o que faz com que se apresentem no limiar entre um e outro. Patricia Waugh (1984, p.5) alude às dificuldades existentes na tentativa de definição de textos cuja instabilidade é parte da definição. O resultado dessa “instabilidade”, dessas “dissoluções”, surge em forma de textos fragmentados, que se distanciam dos parâmetros convencionais e se voltam para o seu interior, havendo, 56 Descrição das pesquisas portanto, uma ênfase na questão da linguagem. Trata-se de um texto auto-reflexivo, que traz à tona o seu próprio processo de construção literária. E é nessa instância da linguagem que se autoquestiona que o processo metalingüístico é instaurado. O termo metalinguagem foi desenvolvido por Hjelmslev, que o definiu basicamente como a linguagem que funciona como um significante para uma outra linguagem, que torna-se o significado, conforme colocado por Waugh (1984, p.4). Já o termo metaficção, ainda segundo a autora, originou-se em um ensaio sobre o crítico e novelista norte-americano William H. Gass, por conta de suas narrativas autoconscientes. Mas Waugh nos recorda que “termos como ‘metapolítica’, ‘meta-retórica’ e ‘metateatro’ são um lembrete de que, desde 1960, tem havido um maior interesse cultural no problema de como o ser humano reflete, constrói e media suas experiências no mundo” (1984, p.2). Surge, portanto, como um paradigma do pós-modernismo.A autora também atenta para o fato de que narrativas metaficcionais tendem a ser constituídas por uma oposição fundamental, na qual uma ilusão ficcional é construída e revelada ao mesmo tempo. Linda Hutcheon, em seu Narcissisticnarrative: themetafictionalparadox, diz que “a característica da metaficção é que ela constitui seu próprio primeiro comentário crítico” (1984, p.6), e, portanto, “nenhuma teoria será capaz de lidar com isso sem nenhuma distorção”. A obra da escritora portuguesa contemporânea Teolinda Gersão serve-nos como objeto de estudo primeiramente por apresentar vários rompimentos com a fixidez das categorias narrativas tradicionais. Em toda ela é possível notarmos as indefinições formais, sendo que, muitas vezes, vem da própria autora a impossibilidade de classificação. De acordo com Lilian Cristina Brandi da Silva (2003), as narrativas de Gersão rompem com padrões convencionais e paradigmas estabelecidos, além de transgredirem formas autoritárias e repressivas. Para Maria Heloísa Martins Dias (1992, p.25), “qualquer tentativa de reconstituir o universo ficcional criado por Teolinda Gersão deve enfrentar um desafio: a ausência de uma ordenação previsível das categorias narrativas nos moldes tradicionais”, o que significa que sua escrita se apresenta como “um sistema fragmentado e pluriforme”. A narrativa de Gersão pode ser vista, portanto, como portadora de algumas das características mais fundamentais dos textos contemporâneos, que são a impossibilidade de classificações e a metalinguagem. A riqueza de efeitos estéticos na obra, viabilizados por meio da confluência de diferentes formas de expressões artísticas, nos encaminha a 57 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa uma análise não só estrutural, mas também, e principalmente, dos sentidos aflorados no texto. Ao longo de nossos estudos acerca da metaficção, percebemos que uma das maiores dúvidas que surgem com relação ao tema tem um cunho terminológico. Devemos chamar metaliteratura ou metaficção as obras que se voltam a si mesmas? No caso de textos narrativos, em prosa, parece mais confortável chamá-los metaficção. Mas, quando se trata de poemas ou outro tipo de manifestação artística, surgem diversas outras denominações, como metapoema, metadrama. Em trabalhos por nós realizados anteriormente, observamos que, por vezes, a obra de Teolinda Gersão apresenta sua metaficção versando sobre outras artes, como por exemplo a música e a pintura. Desse modo, a escritora estaria realizando uma espécie de meta-arte, uma vez que a reflexão sobre uma determinada linguagem artística se estende a várias outras. Este é um meio engenhoso de que se serve a autora para colocar em pauta questionamentos e reflexões muito mais amplas sobre a literatura, delineando-se um aspecto ensaístico que sugere a confecção de uma “teoria” singular. Falando-se a respeito de música e pintura, fala-se também sobre literatura. Considerando que tanto o termo metaficção quanto metaliteratura ou meta-arte seriam passíveis de serem empregados em nosso trabalho, optamos, por ora, por utilizar o termo metaficção, tendo em vista que o vocábulo ficção, com sua origem no latim fictione, proveniente de fingere, é um sinônimo de imaginação, fingimento e invenção, conforme designado por Massaud Moisés, no Dicionário de termos literários (1974). Krause (2009), emprega o termo metaficção como um fenômeno estético presente na obra do pintor belga René Magritte, o que serve para reiterar nossa ideia de que o termo é propício tanto às obras narrativas quanto aos demais tipos artísticos. Um dos objetivos deste trabalho é também, portanto, refletir acerca das terminologias oriundas do campo maior denominado metalinguagem. Nos textos de Gersão, a inserção do discurso metaficcional está em favor de fomentar a investigação dos processos de criação, do espaço do trabalho artístico na sociedade e dos suportes para sua produção, dentre outros aspectos relacionados ao universo artístico. A maioria de suas obras pode ser caracterizada por um contínuo processo de reflexão sobre o fazer literário, estejam elas tratando de literatura ou não. Os textos sugerem que, no fundo, todas as manifestações surgem de processos de criação muitas vezes semelhantes, com as inquietações do artista, as relações destes com suas obras e a autonomia que estas adquirem depois de prontas. 58 Descrição das pesquisas Como corpus para este estudo, selecionamos os textos O silêncio (1981), Os guarda-chuvas cintilantes (1984) e o mais recente A cidade de Ulisses (2011). Em cada um deles, de diferentes formas, verificamos a presença da metaficção permeando a narrativa. Ora estamos diante de um texto cujos efeitos linguísticos são parte do processo metaficcional, ora nos encontramos frente a um texto que lança mão da metaficção por meio dos aspectos temáticos, das discussões /reflexões que tematiza na obra. Ambos são, de qualquer forma, portadores da dimensão metaficcional. O silêncio é talvez a narrativa de Gersão que mais tenha estudos dedicados a si, por conta de ser a obra inaugural da produção romanesca da autora. É a história de Lídia e seu par Afonso, suas tentativas de integrá-lo à realidade da relação, já que ele quase sempre opta pelo silêncio. A metaficção é observada uma vez que a escrita acaba por assimilar aspectos relacionados ao tema, e o silêncio é, de um modo bem singular, instaurado também no processo criativo. Os “blocos” textuais por meio dos quais é composta a narrativa parecem, em um primeiro momento, não obedecer a uma estrutura lógica, mas o próprio texto dá-nos a impressão de solucionar esta questão: “As palavras arrumadas num pequeno espaço, um quadrado para cada letra, numa rede diminuta prendendo a desordem aparente, apenas aparente” (GERSÃO, 1981, p.36). O trecho sugere que a narrativa mesma já indica ao leitor um modo de encará-la, como uma pista colocada em um jogo. Os guarda-chuvas cintilantes carrega como subtítulo a palavra diário, e apresenta seus textos separados por dias da semana (como em um diário mesmo), mas sem uma sequência lógico-temporal entre os dias. No lugar do relato das atividades e dos pensamentos cotidianos comuns aos diários, há narrativas com aspectos oníricos. São textos que nos são apresentados conforme o abrir e o fechar de guarda-chuvas, que cintilam como vaga-lumes a mostrar o acender e o apagar de seu brilho. No trecho “Não é um diário, disse o crítico, porque não é um registro do que se sucedeu em cada dia. Carecendo portanto da característica determinante de um gênero ou subgênero em que uma obra pretende situar-se, a referida obra está à partida excluída da forma específica em que declara incluir-se. Dixi” (1984, p.20), temos já uma espécie de afirmação de que não se deve encarar a obra como um diário, ou simplesmente querer enquadrá-la em determinado gênero, além de já ser um exemplo claro do discurso metaficcional. A mais recente obra de Gersão, A cidade de Ulisses, traz a história de amor entre um homem e uma mulher, Paulo Vaz e Cecília, ambientada na cidade de Lisboa. Ambos são artistas plásticos, e o romance que há entre eles torna-se também uma história de 59 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa amor à cidade, com seus lugares, sua História, sua mitologia. Mais uma vez, Teolinda Gersão vale-se de uma expressão artística outra para discorrer sobre aspectos comuns à arte em geral, inclusive a literária.Passagens como: “Havia por exemplo esta pergunta: até que ponto a arte contemporânea conseguia impor-se por si mesma, como objecto plástico, ou precisava de palavras como suporte?” (2011, p.21) colocam-nos frente à ideias relacionadas ao universo da arte pictórica (que é praticada pelas personagens), mas também direcionam nossa leitura a todos os contextos artísticos. São questões que perpassam a pintura, a escultura, e ecoam nas demais manifestações de arte. Estes trechos acima mostram, mesmo que minimamente, exemplos do discurso metaficcional engendrado na obra de Teolinda Gersão. O contato com os textos da autora fez-nos perceber a existência do que ousamos chamar de uma “poética metaficcional”, dada a constância com a qual esse fenômeno literário aparece nas narrativas. Os textos com características metaficcionais são considerados por muitos críticos como uma reação ao realismo de outrora. Os escritores, desse modo, não carregam consigo a preocupação de que suas obras sejam vistas como irreais, surreais, ou simplesmente fora da realidade. A ideia de ficção como fingimento ganha força à medida que o ideal burguês de verdade, pautado na ciência, vem sendo desarmado por diversos acontecimentos históricos. Por conseguinte, a ausência de realismo dos textos repousa seus efeitos também na figura do leitor, que é provocado a ter uma postura ativa em face ao texto. A metaficção, ao mesmo tempo em que demonstra a autoconsciência quanto à produção artística, também o faz quanto ao papel do leitor, compartilhando com ele o processo do fazer. Este passa a desempenhar uma função de co-criador do texto e a operar mais diretamente na construção do(s) sentido(s). Sabemos que o texto moderno, pela singular natureza de seu funcionamento, imprime ao leitor certo desconforto; a leitura, como nos lembraHutcheon (1991, p. 2526), deixa de ser uma tarefa fácil, confortável e harmoniosa, pois o leitor, “atacado” pelo texto, é levado a controlá-lo e organizá-lo; é, ainda, impulsionado a assumir sua responsabilidade, seja implícita ou explicitamente, uma vez que a criação do universo literário passa a ser tanto sua quanto do próprio escritor. Torna-se, portanto, “coparticipante e co-sofredor” da experiência do romancista. Nas obras de Gersão relacionadas para análise neste trabalho, verificamos sua presença de diversos modos, e seguramente dedicaremos um capítulo ao estudo do leitor 60 Descrição das pesquisas enquanto receptor das obras literárias, pactuando e atuando com seu senso crítico na constituição de sentido do texto, que terá sempre uma significação plural. Partindo, pois, da consciência dos diferentes modos de manifestação da metaficção no percurso da escrita de Teolinda Gersão, este trabalho propõe o estudo de tais manifestações e dos recursos que possibilitam a visualização das distinções, além das conseqüências de sentidos que são impulsionadas por elas. Entendendo o discurso metaficcional como parte integrante da produção de Gersão, pretendemos analisar os modos de instauração da metaficção e a maneira como, conforme defendido por nós, ela se transforma em uma meta-arte. Desse modo, acreditamos que esta pesquisa poderá contribuir não somente para o enriquecimento da compreensão acerca da obra de uma importante escritora de língua portuguesa – Teolinda Gersão –, mas também sobre o estudo da escrita e da metaficção na literatura contemporânea. Bibliografia De Teolinda Gersão: GERSÃO, T. A cidade de Ulisses. Porto: Sextante, 2011 _____. O silêncio. 4.ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1995. _____. Os guarda-chuvas cintilantes. Lisboa: O Jornal, 1984. Sobre Teolinda Gersão: ALVES, C. F. Não Gosto dessa Conversa de Escrita de Mulheres. Entrevista com Teolinda Gersão. In: Jornal de Letras, nº34, 1982. BRANCO, L. C. Encontro com escritoras portuguesas. Boletim do Centro de Estudos Portugueses, Belo Horizonte, v.13, n.16, p.108, jul./dez. 1993. ______. Teolinda Gersão: a cintilância da imagem: encontros com escritoras portuguesas).Boletim do Centro de Estudos Portugueses, Belo Horizonte, v. 14, n. 16, jul/dez 1993. BUESCU, H. 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No desenvolvimento deste texto, pretendemos expor as mudanças feitas no projeto inicial de doutorado em andamento, cujo objetivo é investigar de que maneira a aridez, tema recorrente na produção artística brasileira, tem sido retomada em narrativas contemporâneas, a fim de apontar as mudanças efetuadas na construção do tema. Apesar de nossos objetivos permanecerem os mesmos, modificamos o corpus, agora composto pelo livro Galileia (2009), de Ronaldo Correia de Brito, e pelo filme Cinema, aspirina e urubus (2005), de Marcelo Gomes. Em ambas as obras percebemos que a aridez exerce papel fundamental, na medida em que não é apenas tema, mas elemento estrutural que reitera – e amplia – a aridez temática. Partimos do pressuposto de que a aridez é um leimotiv recorrente nas artes nacionais, tendo em vista a grande quantidade de obras em que este tema é presente, não sendo, portanto, uma característica exclusiva de obras da contemporaneidade. Contudo, a seca, como elemento estruturador da forma, aparece, principalmente, a partir da década de 30 na literatura e da década de 60 no cinema, períodos que correspondem, respectivamente, à geração literária de 1930 (ou prosa regionalista) e ao Cinema Novo. E é, sobretudo, com estes dois movimentos – e sua abordagem da seca – que as obras da contemporaneidade mantem relações intertextuais e interdiscursivas. As obras da contemporaneidade, longe de tentarem definir uma brasilidade, como acontece na fase heroíca do modernismo, ou denunciar uma realidade social, como acontece em 30 e 60, pensam a seca e o sertão sob o viés do discurso. Assim, acrescentando novas nuanças à produção literária e cinematográfica de cunho regional, as obras do corpus se destacam, sobretudo, pela metalinguagem e pela retomada crítica da tradição. Isso significa que uma das características dessa retomada crítica da tradição é a discussão sobre o espaço e sobre o imaginário cultural formado a partir dele. Essas atividades metalingüística e metadiscursiva de releitura já são percebidas e enfatizadas 64 Descrição das pesquisas pela natureza dos protagonistas, que por serem viajantes, pessoas do espaço urbano, estão aptos a questionarem o espaço geográfico e cultural no qual estão provisoriamente inseridos, rompendo com a provável estaticidade de valores oriunda da sedimentação dos mesmos. Dessa maneira, o sertão, a seca ou a aridez, nessas novas produções não são representadas sob o ponto de vista de um explorador, sem vínculos com o espaço geográfico e cultural, ou tampouco sob o viés de alguém que, por ter raízes na região, tenha aderência total e completa ao mundo definido pelo sertão. Sendo assim, os protagonistas constantemente questionam dogmas e valores, sejam estes os da tradição cultural, sejam os próprios (tidos como “civilizados”, como define provisoriamente Adonias, protagonista de Galileia). Esta escolha acentua o caráter de retomada, de reapropriação e recriação de discursos previamente existentes, pois ao mesclar os olhares de dentro do sertão/da seca aos de fora, ou ao colocar os personagens refazendo a própria memória, também a tradição regionalista está sendo esmiuçada, questionada. Assim, nessas obras, a viagem é combinada à reflexão de valores que vão do espaço, aos culturais e aos pessoais, inter-relacionados. Em Galileia, (2009) o protagonista, há muito tempo afastado da terra de origem, volta à propriedade “fantasma” da família, a fim de se despedir do avô. No trajeto, tenta preencher as lacunas de uma história que, apesar de ter participado ativamente, jamais compreendeu. No entanto, por mais que o protagonista, que é médico em uma grande cidade, tenha se distanciado do espaço e da cultura de origem, conforme ele se aproxima do coração do sertão, seu comportamento começa a se modificar, assim como o seu discurso, cuja estrutura é definida pelo ato rememorativo, o qual confronta situações passadas, desenroladas no campo paradigmático da seca, com a consciência atual do narrador. No caminho, percebemos que há uma troca osmótica entre o lado exterior e o interior de cada um dos personagens: todos têm, dentro de si, um vasto sertão particular1, sendo que o espaço físico externo apenas reflete a angústia e a solidão dos viajantes (MIGUEL apud DICKE, 2008, p.10). Inclusive há no romance de Brito uma frase que sintetiza a conexão mantida entre meio, personagem e até a tradição regionalista2: “O sertão a gente traz nos olhos, no sangue, nos cromossomos. É uma 1 2 Intertexto com uma das definições de sertão expressas em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Idem. 65 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa doença sem cura” (BRITO, 2008, p. 19). Portanto, a aridez que as obras retratam é humana, individual ou coletiva, mas humana. Em Cinema, aspirina e urubus (2005), um alemão, Johan, vem ao Brasil para fugir de uma guerra eminente com a qual não concorda. O filme se passa em 1942 e retrata a viagem conjunta de Johan, representante do medicamento "Aspirina", e de um nordestino, Ranulpho, que tenta sair da região. A paisagem, a cultura e o povo nordestinos são mostrados no decorrer das viagens de Johan que, para vender a sua Aspirina, recorre à fascinação do meio cinematográfico, expresso aqui em filmetes de propaganda do medicamento. Ao longo do filme, os papéis sociais típicos vão se apagando, e cada um dos personagens assume características do outro, até trocarem por definitivo de papéis: fugindo da guerra e da deportação iminente, o alemão embarca em um trem, com destino à Amazônia para ser trabalhador braçal, sina de muitos nordestinos sem opção, enquanto Ranulpho herda seu caminhão, que passa a dirigir pelo sertão afora. Com essa breve descrição das obras fica evidente que as narrativas contemporâneas sobre o sertão retratam valores universais, perceptíveis na relação entre Ranulpho e Johan, que possuem diferentes nações, realidades – inclusive climática, fato abordado em um dos diálogos do filme – e perspectivas, mas também uma profunda identificação inter-pessoal. Ou seja, apesar de as obras em questão retrarem o sertão e a seca, estas são figuras, cuja função é exprimir os valores universais contidos no nível fundamental, que independem do local onde se desenvolvem as narrativas. É por isso que em Galileia, por exemplo, o narrador/protagonista Adonias percebe que a aridez é característica inerente às relações humanas, e não só ao cenário sertanejo que o cerca. Dessa maneira, o sertão é o veículo pelo qual esses valores são expressos e, simultaneamente, a inspiração estética para a sua abordagem. Ao contrário do livro, no qual o sertão é primeiramente visto como disfórico, no filme há o contraponto de duas visões diferentes, a de Johan, para quem o Brasil e o sertão são um refúgio, uma alternativa à guerra, e a de Ranulpho, a qual reitera a visão de subdesenvolvimento do seu país e de sua região. Em um determinado momento, ele chega a dizer que, no Brasil “nem guerra chega”. Ou seja, sua visão do país é exatamente oposta à de Johan. No entanto, com a troca de papéis, que acarreta em uma síntese dos pontos de vistas diversos, o final do filme também sugere que a aridez é 66 Descrição das pesquisas humana, representada em última instância pela guerra e não pelo ambiente sertanejo que serve de cenário para a narrativa. Este, quando associado a elementos de campos paradigmáticos diversos, contribui para a expressividade nas obras estudadas, como acontece quando se insere uma figura, uma palavra ou uma imagem que se distancia do universo sertanejo, a exemplo da motociclista que tange um rebanho, situação que descontrói o estereótipo patriarcal do “sertanejo forte” montado a cavalo, como o próprio narrador de Galileia constata. Em Cinema, aspirina e urubus, percebemos o contraste entre a falta de recursos básicos no sertão e os filmetes cinematográficos, que além de serem objetos tipicamente modernos, retratam tematicamente a modernização, como é o caso das narrativas sobre São Paulo, uma “cidade civilizatória”. Assim como em Galileia, cujo protagonista acredita possuir os valores civilizados porque modernos (em contraposição à “barbárie” e ao “atraso” sertanejos), nesses filmetes a modernização é característica instauradora da civilidade, argumento que, como vimos, será refutado ao final do filme, com a sugestão de que o produto típico dessa mesma civilização é a guerra generalizada, mundial. A oposição modernização versus atraso é explicitada no filme pelo próprio Ranulpho, que nota que a falta de acesso à água contrasta com acessibilidade dos bens modernos que são o Cinema e a Aspirina, um medicamento que promete curar uma infinidade de males, dentre os quais não se encontra a sede. Já no livro, o contraste é entre o sertão e a globalização, ambos imbuídos um no outro de maneira paradoxal. Em um determinado momento, Adonias e seus primos ouvem a história de um dono de restaurante, cujo filho roubou um celular que, na visão do pai, era um objeto inútil no local, sobretudo pela falta de sinal para que o aparelho funcionasse. O pai também menciona que os jovens não querem mais usar roupas típicas da região, ao mesmo tempo em que se encantam com a tecnologia que, no entanto, não se adapta às condições locais. Ou seja, atualmente, a cultura globalizada se imbrica até nos recônditos sertões, modificando a relação mantida entre o meio e a sociedade. Além do hibridismo de campos paradigmáticos, exemplificado por meio da oposição sertão versus modernidade ou globalização, existe um hibridismo de procedimentos semióticos diversos, também relacionado ao “entre-lugar”, literal e metafórico, ocupado pelos protagonistas, já que o choque entre locais culturalmente e geograficamente distintos gera, além das reflexões dos protagonistas, uma abordagem híbrida do sertão, fato que também será sentido nas linguagens, e não só na temática. 67 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Por exemplo, em Galileia, a linguagem, sucinta, direta “seca” é também imagética, pois “filma” o sertão, suposição confirmada pelo próprio narrador, que utiliza termos cinematográficos na elaboração da sua narrativa. Exemplo dessa concisão da linguagem que associa seca aos procedimentos fílmicos é a passagem direta, sem explicações, entre as histórias que Adonias narra, em um tipo de corte que se assemelha ao cinematográfico. Essas histórias, que Adonias relembra (e recria), fazem com que sua narrativa assuma características típicas da rememoração, pois fatos passados e fatos presentes se alternam, fazendo com que a linearidade cronológica seja abolida em nome de uma dinamicidade que simula a estrutura do próprio ato rememorativo. Ainda no mesmo romance há a presença do gênero epistolar que, com suas características próprias, modifica o andamento da narrativa. Já em Cinema, aspirina e urubus, o caso mais exemplar é a presença e a abordagem dos filmetes publicitários, que enfatizam o próprio Cinema como gênero, ora se confundindo com este, ora se diferenciando. Tanto o hibridismo quanto a revisitação da tradição são elementos metalingüísticos, uma vez que o fazer artístico é colocado em pauta, questionado pelo leitor/espectador. O que nos leva a Jakobson (s/d), para quem toda obra poética é, naturalmente, metalingüística, pois evidencia os traços de sua própria construção. Nas obras elencadas temos exemplos tanto de uma metalinguagem temática, quanto uma metalinguagem estrutural, na qual a criação/modificação da forma é evidente e aparece, por vezes, conjugada à primeira. Peguemos, por exemplo, a coloração sépia de Cinema, aspirina e urubus, a falta de foco ou definição de algumas imagens ou iluminação estourada, que simula a luminosidade típica do sertão nordestino, exacerbando-a de modo que, no filme, é a aridez que define tomadas, contrastes e intensidade da luz, relacionadas ao sol inclemente do sertão, além disso, a cromaticidade associa-se à infertilidade, à seca/aridez devido ao uso de cores desbotadas, tendentes a uma monocromia terrosa. São temas que a estrutura do filme procura assimilar, dando à câmera usos específicos, modificando a cromaticidade e a iluminação das cenas, o ritmo de montagem, etc., procedimentos que, de acordo com a utilização, nos fazem reconhecer que aquilo que estamos vendo é uma obra de ficção, construída, elaborada segundo critérios estéticos bem delimitados, e não uma pretensa reprodução inequívoca da realidade. 68 Descrição das pesquisas Da mesma maneira, os mencionados filmetes publicitários fazem com que a natureza do próprio filme, como constructo, seja exposta, pois além de aludirem à capacidade de persuasão e fascinação do Cinema, os próprios personagens tematizam, por meio de discussões, as questões relativas às linguagens e aos gêneros, como acontece quando um espectador percebe que a simples junção dos filmes/propagandas com a estrutura necessária para sua exibição, montada a céu aberto, “não é cinema de verdade”, propondo uma discussão sobre a linguagem que será resolvida na própria forma do filme. Assim, a metalinguagem é recorrente no filme, pois, além da exibição dos filmes, há uma constante referência ao Cinema, seja por meio de diálogos, seja por meio de cenas nas quais predomina a linguagem visual, como é o caso de Johan, utilizando a luz do projetor para criar figuras de sombra, em uma menção ao Teatro de sombras, um “antepassado” do cinema. Ou ainda Ranulpho que, maravilhado, projeta na palma da sua mão as imagens em movimento, tornando a experiência cinematográfica sensorial, pois explora, ao menos virtualmente, o tato, sentido que não é usualmente relacionado à fruição fílmica. Do mesmo modo, temos em Galileia a já referida linguagem seca e a reconstrução do ato rememorativo, em um movimento centrípeto e não linear que enfatiza a estrutura da obra e o ato enunciativo. Justamente por isso, temos em Galileia uma metalinguagem construída por meio dos discursos: o protagonista tem consciência tanto do próprio discurso quanto dos alheios, afinal a sua narrativa é baseada, muitas vezes, em histórias que lhe foram contadas, as quais, em conjunto com as próprias memórias, Adonias tenta organizar de maneira una e coerente, a fim de entender a sua família e a si mesmo. Logo, o discurso principal deixa entrever a psicologia de outros personagens, seja por meio do discurso indireto livre, que funde sua psicologia de narrador à de um terceiro, seja pelos discursos diretos. De qualquer maneira, há uma moldura narrativa que contêm os demais discursos, criando uma situação polifônica que destaca o fazer enunciativo, como também acontece no filme. No romance também há a transcrição de uma carta escrita por uma terceira pessoa, e não pelo narrador/personagem. Nessa carta, assim como o restante da narração do protagonista, há uma discussão sobre a história que está sendo narrada, um elemento temático relacionados à construção narrativa. É interessante notar que essas alusões a feitura da obra são emolduradas pela narrativa maior, em uma construção do tipo mise en abyme, que reitera a metalinguagem estrutural, característica que também está 69 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa presente na obra fílmica, na medida em que todas as experiências cinematográficas, as discussões acerca do gênero, estão englobados pela narrativa dos dois viajantes. Bibliografia ALBUQUERQUE JR., D. M. de. Nos Destinos de fronteira: história, espaços e identidade regional. Recife: Edições Bagaço, 2008. ANDRADE, M. Sertão é coisa de cinema. João Pessoa: Marca de fantasia, 2008. AVELLAR, J. C. O chão da palavra: Cinema e literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1988. BAKHTIN, M. 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Pretendemos nesta pesquisa, abordar os aspectos do feminismo pelo viés da crítica anglo-americana em duas obras ficcionais que foram publicadas relativamente no mesmo período, ou seja, final dos anos sessenta e início da década de setenta: La Femme Rompue (1967), de Simone de Beauvoir (1908-1986), e A Fairly Honourable Defeat (1970), da escritora irlandesa Iris Murdoch (1919-1999). Para tal propósito, temos como intuito, primeiramente, estabelecer um diálogo entre o pensamento filosófico de Beauvoir e o de Murdoch, já que ambas as autoras se destacaram no contexto do pós-guerra não somente por meio de seus textos literários, mas também devido a suas visões filosóficas que exaltavam a importância do outro e o respeito pela liberdade e individualidade alheia, o que condiz com os princípios do feminismo. Posteriormente, estabeleceremos uma relação entre a crítica literária feminista e o pensamento beauvoiriano e murdochiano no que tange a questão do papel da mulher como leitora ou mesmo escritora de textos literários. Dessa forma, citaremos o papel do leitor (a) como instância fundamental no processo de desconstrução do caráter discriminatório das ideologias de gênero e demonstraremos que assim como Virginia Woolf, Beauvoir e Murdoch defendiam o conceito de androginia na literatura, pois estas negam a dicotomia essencialista entre masculino e feminino no que se refere ao papel do escritor (a).Finalmente, analisaremos os diferentes recursos estéticos que Beauvoir e Murdoch utilizam na caracterização de suas personagens femininas, já que La Femme Rompue apresenta as características de um romance moderno, enquanto A Fairly Honourable Defeat possui traços de um romance realista. A representação das mulheres nos discursos dos grandes filósofos do século XVIII, como Kant e Rousseau, pouco contribuiu para que estas gozassem dos mesmos direitos sociais e políticos dos homens. Ancorados pela crença de que as mulheres, determinadas pela natureza, tinham seus atributos somente consagrados ao papel de esposa e mãe, esses filósofos favoreceram a propagação do discurso misógino. David 75 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Hume, Condorcet e Stuart Mill foram alguns dos poucos filósofos que, ainda no século XVIII e XIX, reivindicaram para as mulheres os mesmos valores de igualdade, liberdade e participação política os quais, até então, eram dedicados somente aos homens. No século XX, com o término da Segunda Guerra Mundial, Simone de Beauvoir e Iris Murdoch se destacaram no contexto literário e filosófico da época pela relevância dos temas que ambas abordavam e que traziam à tona a questão da liberdade de cada indivíduo na sociedade e sua responsabilidade moral diante do outrem. Além disso, o pensamento filosófico das autorasaponta para o fato de que a liberdade de escolha de cada indivíduo está igualmente condicionada às questões de gênero e sexualidade. Defensora do engajamento nas artes, ou seja, de que a literatura também deveria ser o sustentáculo ideológico e político do autor, Beauvoir evoca em suas análises filosóficas, literárias e em suas obras autobiográficas sua própria situação como sujeito, como mulher e como testemunha dos conflitos da Segunda Guerra Mundial, da Ocupação nazista, da Guerra da Argélia, entre outras questões sociais e políticas com as quais esta sempre esteve engajada, como podemos constatar em sua declaração: “I think that you write with everything you are, including political opinions, including your situatuion as a woman. You write on the basis of your situation, even when you don’t talk about it”.(BEAUVOIR, apud BRISON, 2003, p.195). Assim sendo, logo em seu primeiro ensaio filosófico, Pour une moral de l’ambiguité (1946), Simone de Beauvoir estabelece os princípios de uma ética social ao afirmar que certos fatores sociais, que vão além do controle do sujeito, principalmenteno que diz respeito às mulheres,podem oferecer diferentes possibilidades e desafios para a prática de ações. Em sua obra Le Deuxiéme Sexe (1949),Beauvoir retoma as questões existenciais e filosóficas que já havia abordado previamente em Pour une morale de l’ambiguité, mas se dedica a analisar mais especificamente os fatores que definem a existência da mulher e as possibilidades desta transcender sua facticidade. Dessa forma, a autora faz uma ampla análise das questões relativas à biologia, à psicanálise, ao materialismo histórico, aos mitos e à educação que norteiam o universo feminino e conclui que a feminilidade é um devenir, um tornar-se, e que demodo algum a mulher é definida por uma natureza que a determina: “on ne naît pas femme, on le devient” (BEAUVOIR, 1979, p.13). Embora os conceitos filosóficos referentes à moral defendidos por Iris Murdoch se diferenciem em relação aos de Simone de Beauvoir, ambas as autoras buscaram por 76 Descrição das pesquisas diferentes maneiras o sentido da prática moral do sujeito, em um contexto marcado pela angústia e o vazio espiritual que ressoavam o fim de duas grandes guerras, fatos que resultaram em marcas profundas em toda a produção artística, literária e filosófica daquele momento. Para Beauvoir, o agir eticamente consistia na tomada de consciência do indivíduo perante a sua realidade de sujeito situado e da ambiguidade de sua existência, para que este pudesse superar sua condição de oprimido e transcender sua facticidade. JáMurdoch,não nega o existencialismo, mas contesta alguns de seus conceitos e julga que a conduta de um indivíduo, não pode ser limitada somente aos imperativos da razão ou aos fatos empíricos. Segundo esta, as ações do sujeito abrangem também os aspectos e mistérios da consciência humana e fatos que vão além das expressões da conduta moral ou dos atos de escolha. Em um de seus ensaios filosóficos, The sublime and the beautiful revisited,Murdoch, ao se referir ao existencialismo, elucida:“existentialism shares with empiricism a terror of anything which encloses the agent or threatens his supremacy as a center of significance. In this sense both philosophies tend toward solipsism” (MURDOCH, 1999, p.269). Porém, ambas as autoras se conciliam em suas visões filosóficas ao exaltar a importância do outro e o respeito pela liberdade e individualidade, valores que as autoras certamente precisavam reafirmar no contexto do pós-guerra. EmA Literature of their own (1977),Elaine Showalter divide a literatura inglesa em três fases entre o período de 1840 a 1960: a Feminine fase, entre 1840 e 1880, caracterizada pela repetição dos padrões da tradição literária dominante; a segunda fase, denominada Feminist, entre 1880 a 1920, que seria aquela marcada pelo protesto e ruptura em relação aos modelos vigentes e a fase Female, a partir de 1920, na qual houve por parte das autoras uma autodescoberta e a busca por uma identidade. Ao descrever essas três fases da literatura inglesa de autoria feminina, Showalter menciona Iris Murdoch ao analisar os romances produzidos na década de 1960, classificando-a como pertencente a ultima fase dessa tradição: In the fiction of Iris Murdoch, Muriel Spark, and Doris Lessing, and the younger writers Margareth Drabble. A. S. Byatt, and Beryl Bainbridge, we are beginning to see a renaissance in women’s writing that responds to the demands of Lewes and Mill for an authentically female literature, providing “woman’s view of life, woman’s experience. (SHOWALTER, 1977, p.35) 77 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Poderíamos utilizar essa mesma classificação da tradição literária de autoria feminina feita por Showalter no contexto da literatura francesa e afirmar que, assim como Iris Murdoch, Simone de Beauvoir pertence à fase female na qual a busca por uma autoconsciência feminina é o que prevalece na representação de suas personagens femininas. No entanto, devemos ressaltar que tanto Murdoch como Beauvoir rejeitavam a ideia de uma écriture féminine ou de qualquer outro valor essencialista que diferenciasse os indivíduos. Tal como a teoria da androginia de Virginia Woolf, queinsistia na desconstrução da identidade sexual e que foi criticada por algumas feministas, como Cixous ou mesmo Showalter,Beauvoir e Murdoch acreditavam que o principal objetivo da luta pela emancipação da mulher teria que se alicerçada na construção da igualdade entre os sexos. La Femme Rompue, última obra ficcional de Simone de Beauvoir, é constituída por três novelas, L’âge de discrétion, Monologue e La Femme Rompue, que abordam o tema da vulnerabilidade das mulheres no que diz respeito ao envelhecimento, à solidão e à perda do ser amado. Nessas três narrativas, a autora recorre ao fluxo de consciência, ao monólogo e a escrita de um diário para expor as experiências caóticas pelas quais passam as personagens, experiências que resultaram das próprias escolhas que cada qual fez para si mesma.Em La Femme rompue, podemos observar os mesmos recursos estilísticos citados por Auerbach em A Meia Marron (2009), e que fazem igualmente da obra de Simone de Beauvoir, um exemplo de um romance em que o sentido do real realiza-se unicamente por meios das constatações e digressões das consciências das personagens femininas. Diferentemente de Beauvoir,Iris Murdoch sempre deixou evidente a sua preferência pelo estilo de romance realista do século XIX encontrados nas obras de Walter Scott, Jane Austen, George Eliot e especialmente Tolstoy. Segundo ela, uma das principais qualidades que o romance pode oferecer ao seu leitor, é a pluralidade de tipos humanos reunidos em um universo ficcional proporcionando assim, uma visão ampla da diversidade da natureza humana. Dessa maneira, opondo-se à narrativa de Simone de Beauvoir, em A Fairly Honourable Defeat, a objetividade é garantida por meio dos diálogos e por um narrador em 3ª pessoa, heterodiegético, que analisa o caráter das personagens devido à sua onisciência. Embora A Fairly Honourable Defeat tenha sido publicado no início da década de setenta, quando na sociedade inglesa as mulheres já haviam conquistado alguns direitos que as levariam a uma maior liberdade e poder no campo social e político, muitos impasses que estas precisaram superar nas décadas anteriores são ainda abordados por 78 Descrição das pesquisas Murdoch nessa obra. Por exemplo, na Grã-Bretanha, o aborto passou a ser disponibilizado pelo sistema público de saúde a partir de 1967. No entanto, Murdoch por meio da personagem Morgan Browne, ilustra as dificuldade e humilhações que as mulheres enfrentam quando precisam ou querem recorrer ilegalmente a essa prática para interromper uma gravidez. Porém, Morgan Browne, ao contrário das personagens de La Femme rompue, goza de mais liberdade para fazer diferentes escolhas em sua vida, pois possui uma carreira e sente-se livre mesmo para deixar o marido e partir em busca de uma aventura nos Estados Unidos. Assim sendo,é a independência econômica de Morgan Browneque a define como sujeito e lhe proporciona certo poder e autonomia, tal como afirma Simone de Beauvoir em Le Deuxiéme Sexe, quando aponta a busca por um trabalho como algo primordial para que a mulher alcance certa liberdade: “c’est par le travail que la femme a en grande partie franchi la distance qui la séparait du mâle; c’est le travail qui peut seul lui garantir une liberté fondée concrète” (BEAUVOIR, 1986, p.597). Consideramos que a pesquisa proposta se justifica pela grande relevância que Iris Murdoch e Simone de Beauvoir possuem no cenário literário mundial e pelo estudo da representação do sujeito feminino em duas grandes obras ficcionais que, embora tenham sido publicadas em culturas diferentes e por diferentes autoras, compartilham temas e valores inerentes não apenas à época de suas publicações, mas que ainda permeiam os estudos sociais e literários nas mais diversas sociedades. Referências bibliográficas AUERBACH, E. A meia marrom. In:_____. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2009. BEAUVOIR, S. La femme rompue. Paris: Gallimard, 1967. ___________, S. Le deuxième sexe . Paris: Gallimard, 1986. BEAUVOIR, S. Por uma moral da ambiguidade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. BRISON. S. J. Beauvoir and feminism: interview and reflections. In: CARD, C. The Cambridge Companion to Simone de Beauvoir. New York: Cambridge, 2003. MURDOCH, I. 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Podemos dizer que algumas conclusões já foram tiradas em relação ao conto Sol, Lua e Tália (VOLOBUEF)1, coletada por Giambattista Basile na Itália do século XVII e publicada postumamente na coletânea Il Pentamerone ossia La fiaba delle fiabe, em 1634, e também da comparação deste com o filme A Bela Adormecida (1959). Este paralelo entre estas duas obras foi objeto de discussão em uma sessão de comunicações no III Colóquio “Vertentes do Fantástico na Literatura” e também em um artigo ainda não publicado enviado para a revista Literartes, da USP. Como se trata de um conto coletado no século XVII é, provavelmente, dentre as obras escolhidas para análise, aquele que mais se aproxima das versões originais e orais da história. Repleto de cenas violentas e cruéis, episódios envolvendo traição, antropofagia e até a violação física da protagonista, não era, obviamente, um conto voltado para o público infantil. Entretanto, devemos considerar que somente no século XIX o conceito de infância começou a se transformar e que à época de Basile, as crianças eram vistas como adultos em miniatura 1 O conto utilizado nesta pesquisa é uma tradução feita pela Prof.ª Dr.ª Karin Volobuef e fornecido pela autora. A tradução foi feita a partir da edição em italiano preparada por Benedetto Croce (Bari: Gius. Laterza & Figli, 1925, vol. II. p. 297-303). Não publicado. 83 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa e que não havia nenhum pudor por parte dos adultos em dizer coisas como as relatadas neste conto na presença delas. Deparamo-nos, no conto, com um narrador muito interessante, pois sua narração é muito sintética em alguns momentos, como quando relata o episódio do nascimento de Tália até o cumprimento da maldição em apenas dois parágrafos; entretanto é muito expansivo em outros, como nos momentos que envolvem a rainha traída e suas longas falas. É um conto simbólico que utiliza metáforas e referências históricas para descrever as personagens, o que é confirmado pela descrição da rainha como aquela que possuía uma “carranca de Nero”, ou se refere aos filhos do rei como “dois pomos áureos de beleza”. Ao compararmos este conto com o filme da Disney encontramos diferenças significativas, como, por exemplo, o episódio do adormecer da protagonista. Enquanto em Sol, Lua e Tália o fato se dá nos primeiros momentos e desencadeia uma série de eventos posteriores, no filme, Aurora somente adormece depois de passados cerca de cinquenta minutos do longa-metragem. As protagonistas são muito semelhantes no que diz respeito à sua inocência e passividade frente aos perigos que as ameaçam. Tália, no final da história, tem que confrontar a rainha que a acusa de traição e ameaça jogá-la em uma fogueira, mas Aurora sequer fica sabendo do perigo que corre. Já o príncipe salvador e a bruxa vilã sofreram grandes transformações de uma obra para outra. Em primeiro lugar, aquele que hoje é um príncipe jovem, corajoso e apaixonado, no conto italiano era um rei, ou seja, um homem mais maduro, e casado. A bruxa Malévola que lança a maldição sobre Aurora por vingança por não ser sido convidada para os festejos do batismo da princesa, antes era a esposa do rei que elaborou os planos mais cruéis a fim de vingar a traição que sofreu. No filme, Aurora deve receber um beijo de amor verdadeiro para se livrar do sono profundo em que se encontra. No conto de Basile, o rei encontra Tália adormecida e a viola fisicamente sem que ela acorde, volta para o seu reino e deixa a princesa estendida. Depois de passados nove meses, Tália dá à luz duas crianças que ao procurarem o seio da mãe, acabam sugando seu dedo e retirando a farpa de linho que a mantinha naquele estado inerte. Outra diferença significativa entre os enredos é a questão da família. No conto de Basile, logo após Tália cair em um sono profundo, o pai a abandona e vai embora para esquecer o infortúnio sofrido. Já no filme, três boas fadas fazem com que toda a côrte adormeça junto com a princesa, pois consideram que seria um sofrimento muito grande para todos vê-la naquele estado. Ou 84 Descrição das pesquisas seja, esta característica do conto mostra como a história ganhou uma atmosfera familiar e até mesmo cristã com o passar dos anos. Também foram feitas as primeiras considerações sobre tempo e espaço em Sol, Lua e Tália (VOLOBUEF). O conto é, aparentemente, muito cinematográfico. Em alguns momentos temos o espaço apresentado pelo recurso do mise en abime o que nos oferece focalização baseada no distanciamento paulatino e na amplitude espacial, como no trecho em que o pai abandona Tália no bosque: [...] o desventurado pai, após ter chorado um barril de lágrimas, assentou Tália em uma poltrona de veludo debaixo de um dossel de brocado, no interior do próprio palácio, que ficava em um bosque. Depois, cerrada a porta, abandonou para sempre a casa, motivo de todos os seus males, para apagar completamente de sua lembrança o infortúnio sofrido. (VOLOBUEF) Já o filme nos parece menos articulado neste sentido, talvez devido ao seu ano de produção e os ainda escassos recursos disponíveis na época. Quanto ao tempo, sabemos que o filme se passa no exato período de dezesseis anos, pois Malévola lança uma maldição sobre Aurora que deverá se cumprir antes do anoitecer do seu décimo sexto aniversário. No conto coletado pelos irmãos Grimm é dito que a protagonista adormece aos quinze anos e que permanece neste estado por cem anos. Em Perrault, não é explicitada a idade da protagonista, porém a quantidade de anos que ela passa dormindo é a mesma do conto alemão. Já em Basile, nenhuma informação é fornecida. Não sabemos a idade de Tália ao cumprir deu destino espetando o dedo em uma roca de fiar, assim como não sabemos quanto tempo ela permanece no bosque até que o rei a encontre. Somente temos uma vaga ideia de que o rei leva um pouco mais de nove meses para voltar a vê-la, pois quando isso acontece, ela acabou de dar à luz seus dois filhos. Outro aspecto que ganha relevância ao confrontarmos estas duas obras é a moral expressa em cada uma. Enquanto o filme A Bela Adormecida (1959) defende princípios morais próximos ao ideal cristão, como o casamento, a caridade, o amor ao próximo, Sol, Lua e Tália (VOLOBUEF) oferece a visão de que a sorte determina o destino das pessoas. Em mais de um momento é dito neste conto que o acaso fez com que tudo acontecesse daquela forma e o conto é encerrado com estes versos: “aquele que tem sorte, o bem / mesmo dormindo, obtém” (VOLOBUEF), ou seja, nada é preciso ser feito para que o êxito final seja alcançado, caso este seja seu destino pré-determinado. 85 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Estas são apenas algumas das conclusões desta análise inicial. Pretende-se utilizar esta mesma metodologia para todos os contos e, como já foi dito antes, confrontá-los a fim de ressaltar suas semelhanças e diferenças. As teorias utilizadas até o momento são aquelas que auxiliam na compreensão do gênero conto, do conto maravilhoso e das estruturas narrativas, como, por exemplo, as dos autores André Jolles, Carlos Reis e Ana Cristina M. 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O projeto de pesquisa surgiu de um trabalho que foi realizado durante minha iniciação científica, na qual trabalhamos com a comparação entre a lírica amorosa de Garrett e as cantigas medievais de D. Dinis. A pesquisa, intitulada Garrett: um trovador no século XIX, buscou demonstrar, por meio de uma análise comparativa da lírica de D. Dinis e de Almeida Garrett, o modo como a literatura romântica reaproveita procedimentos formais e elementos temáticos da tradição medieval, estabelecida na literatura portuguesa com as cantigas de amor e de amigo. Como vínhamos trabalhando com uma tradição da lírica amorosa em Portugal, passamos a nos interessar pelo modo como esta tradição se renova e se reapresenta em diferentes momentos históricos. Na impossibilidade de realizar um estudo diacrônico, tarefa que seria impossível no curto tempo de um mestrado, optamos por realizar um recorte histórico que nos permitisse dar continuidade ao estudo iniciado anteriormente e, ao mesmo tempo, trazer o foco para a contemporaneidade. Na busca de um poeta que dialogasse visivelmente com a tradição lírica amorosa, deparamo-nos com a poesia instigante de Nuno Júdice, que tem no tema amoroso um dos principais motivos de reflexão poética. O romantismo segundo Guinsburg (1978) e Cidade (19--), além do consenso de muitos outros críticos deste período, foi um movimento complexo, de difícil definição. Enquanto no mundo clássico o indivíduo era subordinado à sociedade, no mundo pósrevoluções é a sociedade que subordina o indivíduo. Isso ocorre de modo geral em toda 88 Descrição das pesquisas a Europa, inclusive em Portugal, onde a adesão ao movimento foi tardia, conforme afirma Guinsburg (1978). Segundo Saraiva e Lopes (1917), a revolução industrial ocorrida em 1850, transformou em menos de meio século toda a estrutura da sociedade européia. O progresso econômico e político da época configura o fortalecimento da mais nova classe social do século XIX, a burguesia. Com o advento dessa nova classe, que passa a dominar o campo das artes, devido a seu poder e influência cada vez maior dentro da sociedade, o gosto literário se altera. Como explicitam Saraiva e Lopes: [...] o público do Romantismo não tem grande preparação especificamente literária. Ignora as convenções e os padrões da literatura clássica [...] aprecia mais a força do virtuosismo, gosta da expressão concreta imediatamente acessível, das imagens e símbolos que dão corpo bem sensível ao pensamento. Está enraizado em valores locais e regionais [...] (LOPES-SARAIVA,1917, p.678) Ou seja, esta nova classe, rompe com os modelos clássicos, com a cultura grecoromana e busca em suas próprias raízes culturais o substrato para sua literatura. No caso específico de Portugal, é na Idade Média, que os artistas vão encontrar sua inspiração. É no período medieval que encontram valores importantes como o cristianismo, rompendo assim com o paganismo cultivado no período clássico. Vários fatos históricos confluem para a formação do estado português que são a base de uma longa tradição de identidade lusitana. É nas origens deste estado que os românticos lusitanos vão buscar elementos que possam configurar uma identidade cultural portuguesa. No período romântico, conturbado por revoluções, ideias iluministas e liberais, o grande anseio das nações tanto quanto dos indivíduos é a liberdade. Lutava-se contra representantes considerados inautênticos e autoritários, em busca de reviver um espírito coletivo comum. Os românticos empreendem uma busca de ideias, costumes, temas e tradições medievais para, como já dito anteriormente, resgatar as raízes do país, trabalhar a fundo questões de nacionalidade e cultura tradicional. Podemos dizer que os românticos, ao mesmo tempo, que dialogaram com a tradição medieval e nela se inspiravam para expressar-se artisticamente, também antecipavam, segundo Larica (2008), uma definição moderna da relação entre o mundo e a consciência. 89 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Por outro lado, trata-se de um período cujo ambiente não tem grandes preocupações científicas, desvalorizando o intelectualismo e o racionalismo. Larica irá afirmar que “Em oposição ao que ocorria no classicismo, no romantismo predomina ‘[...] a efusão sentimental, a dissonância, o subjetivismo como força motriz da autoexpressão do artista, a originalidade, o ímpeto do gênio e o elemento dionisíaco” (2008, p. 27). Assim, valor da obra, segundo a pesquisadora, é transferido da obra para o autor, o que gera o cunho autobiográfico da produção desse período, como se percebe em Almeida Garrett e nos diversos ensaios sobre a sinceridade ou o fingimento em sua obra poética, principalmente em relação às vicissitudes do amor. A modernidade, segundo a autora, muito tem de revisitação do movimento romântico, ou seja, o romantismo é retomado, porém com olhos críticos, já que, na modernidade, o sujeito não é mais visto como empírico, mas como um estado de alma: “Com a lírica moderna de Baudelaire, surge a poesia em que os sentimentos entusiásticos e a paixão pessoal, marcantes na poesia romântica, vão ser dominados, gerando um poetar guiado pelo intelecto” (2008, p. 37). É, pois neste contexto da modernidade que se insere o poeta Nuno Júdice, que estabelece um diálogo com a poesia romântica do amor (LARICA, 2008) e com uma tradição que coloca a liberdade de expressão do sentimento no centro de atenção: “[...] o poeta persegue a palavra numa renovação moderna do lirismo [...]” (p. 55). Na poética de Júdice, o amor deixa de ser tratado como uma irracional efusão sentimental, que apenas repete o discurso romântico. O poeta dialoga com o romantismo e até com o sentimentalismo desse movimento de maneira racional, colocando em evidência a artificialidade do mundo contemporâneo, a impossibilidade do sujeito realizar-se e a inconcretude da emotividade. Sua poética repensa todos esses topos da tradição e problematiza o lirismo na contemporaneidade. Para Larica (2008), trata-se de um neorromantismo. O livro de Almeida Garret de onde serão selecionados os poemas do corpus é Folhas Caídas, publicado em 1853. É nesta obra que podemos encontrar todas as características principais do movimento romântico. Saraiva, em sua Introdução, na edição de 1943, afirma tratar-se de uma obra de “[...] tom íntimo, confidencial e pessoal [...]” (1953, p. 22), o que evidencia o ideal romântico de fazer da arte uma expressão da vida. Se, na Iniciação Científica, com o estudo de alguns poemas deste livro pudemos chegar a uma comparação concreta com o trovador D. Dinis e, assim, demonstrar a forma como se manifestou a reescrita que os românticos empreenderam da lírica 90 Descrição das pesquisas trovadoresca, no Mestrado, acreditamos na possibilidade decomparação entre a produção de Nuno Júdice e a poesia reunida no livro de Garret. Desse modo, pretende-se contribuir para um estudo da revisitação que os poetas contemporâneos vêm realizando de tradições do passado, além de investigar de que modo Garret, no romantismo, e Júdice na modernidade, realimentam a longa tradição da poesia de amor em língua portuguesa. Entender a função e os efeitos da multiplicidade de vozes na poética contemporânea é um desafio para o estudioso que se debruça sobre a produção lírica das duas últimas décadas. Estágio atual da pesquisa: Para que possamos trabalhar com a comparação entre ambas as líricas, inicialmente buscaremos compreender o papel dos procedimentos metapoéticos utilizados pelos dois poetas no diálogo estabelecido com a tradição lírica amorosa, além de verificar a natureza do sujeito lírico configurado nas duas poéticas amorosas. Os eixos que irão sustentar a pesquisa são o método de análise terá como referência principal a obra de Candido (1987 e 2004) entre outros citados na bibliografia, e o método comparatista, que permite colocar em evidência uma série de elementos que se pretende analisar, por meio do confronto entre “elementos não necessariamente similares” (CARVALHAL, 1991, p. 11) e até mesmo díspares. Além da autora citada, consta da bibliografia do projeto o livro de Sandra Nitrini (1987), que também irá fornecer subsídios para a utilização do método. A pesquisa foi dividida em etapas de desenvolvimento. Tratando-se de um trabalho que engloba mais de um período literário, estes serão estudados separadamente. Inicialmente, está sendo feita a leitura da obra de Nuno Júdice a fim de selecionar o corpus, assim como a leitura de títulos sobre o poeta e sua fortuna crítica, também presentes nesta bibliografia.Em seguida, serão aprofundadas as leituras relativas ao período romântico e ao estudo do poeta Almeida Garrett. A abordagem do amor e suas relações com a poesia será fundamentada nas leituras de Ovidio (2001), Platão (s.d.), Paz, Rougemont (1961 e 2003), Maulpoix (1998), entre outros. Cabe ressaltar que está pesquisa foi modificada no mês de julho de 2013, a pesquisa anterior, que, buscava ecos do trovadorismo a partir da análise de poemas amorosos de Almeida Garrett e Nuno Júdice encontrou dificuldades ao longo de seu 91 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa desenvolvimento. A Poesia Reunida (2000) com a qual pretendemos trabalhar somente foi encontrada no mês de Julho. Devido ao atraso na leitura desta, e do curto período para trabalharmos, ao mesmo tempo, com três tradições literárias, pareceu-nos mais prudente para o desenvolvimento do trabalho de mestrado, fixar-nos apenas nas análises comparativas entre Nuno Júdice e Almeida Garrett, cabendo somente ao doutorado a investigação dos ecos medievais na obra do poeta contemporâneo. Neste primeiro semestre de pesquisa, foi possível a realização de duas disciplinas, que possibilitaram o desenvolvimento de um trabalho apresentado no II Simpósio Internacional de Cultura, Literatura e Sociedade, UFV. Pudemos ainda, com as disciplinas cursadas, compreender como se configura o sujeito poético e a metalinguagem na produção Judiciana. No momento, estão sendo realizadas leituras de títulos relativos à fortuna crítica de Júdice, bem como a leitura atenciosa de sua Poesia Reunida, que como exposto acima, somente foi encontrada em meados do mês de julho. Até o presente momento podemos concordar com estudiosos como Ida Alves(2006), Larica (2008) e Amaral (1990), e salientara constante busca que Júdiceempreende uma por tradições do passado, e dentre elas, o diálogo com a poesia romântica amorosa, seja para desconstruí-la ou apenas teorizá-la em seus poemas lírico amorosos. Bibliografia ADORNO, T. Notas de literatura. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1991. AMARAL, F. P. DO. O Mosaico Fluído. Lisboa: Editora e Livreiro CRL, 1990. ALVES, I. M. dos S. F. Júdice: arte poética com melancolia. Boletim de pesquisa NELIC. n. 08/09, Florianópolis, mar. 2006. Disponível em <http://www.cce.ufsc.br/~nelic/boletim8-9/idaferreiraalves.html>. ______. A linguagem da poesia: metáfora e conhecimento. In Terra roxa e outras terras– Revista de Estudos Literários, vol. 2, num. 7, p. 3-16, Londrina, 2002. <http://www.uel.br/cch/pos/letras/terraroxa7> ______. A poética de Nuno Júdice: lirismo subjetividade e paisagens. In:___ e MAFFEI, Luís (Orgs.). 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Neste primeiro semestre, a pesquisa focou a ampliação de seu arsenal teórico, adquirido no decorrer das duas disciplinas cursadas: “Mito e poesia”, ministrada pelo Prof. Dr. João Batista de Toledo Prado, e “Seminários de orientação”, ministrada pelo Prof. Dr. Antônio Donizeti Pires. Com relação a esta última, o debate viabilizou a revisão do projeto, a confirmação da validade de algumas propostas exegéticas tomadas como fulcro de leitura, e a reavaliação da intenção de se estudar, além da poesia, a obra crítica de Dante Milano; decidimos que, ao invés de metodicamente debruçar-se sobre tal conteúdo, seria mais interessante lançá-lo à mão sempre que isso aqueça a discussão dos poemas, mas que encará-lo como corpus seria fugir demasiado de nosso foco primevo: o Poesias é que deve ser analisado, pois que isso configura corpus mais que suficiente para esta dissertação, e não podemos cair no risco de trabalhá-lo com a mão frouxa. Novas leituras foram feitas e adensarão as discussões futuras, como o capítulo dedicado à poesia e pensamento do Este ofício do verso, de Jorge Luis Borges, que é questão fundamental em Dante. Já a primeira disciplina, “Mito e Poesia”, abriu novas veredas para este estudo, até então amparado apenas pelo arsenal de crítica de lírica. Dante Milano é um escritor marginal sui generis: ou seja, inclassificável. Na verdade, somente quem conhece a fundo a sua poesia é que poderá compreender a força e a profundidade desta sentença: eis a dificuldade em se falar do poeta-esquecido; ao mesmo tempo, eis a relevância de fazê-lo. Acontece que, como levanta Ivan Junqueira, Dante é o poeta de “irrepreensível unidade” (2007, p.XXIV). Esta unidade advém de uma cosmogonia: ética e estética, aqui, estão intrínsecas, não apenas como o produto poético final, mas como poética onde o pensamento penetra como tópica, ritmo, ethos e essência, por fim; nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda, “seu pensamento é de fato sua forma.” (HOLANDA apud MILANO, 1973, p.8); ou, para Ivan Junqueira, Dante é o poeta do “pensamento emocionado” (2007, p.XIX). 96 Descrição das pesquisas Observamos a poesia pensativa de Dante Milano de posse de uma chave exegética: o correlativo objetivo eliotano. Dante compõe um paideuma de imagens universalizantes. É com a dureza clássica que olhará para o mundo a seu redor: no decorrer do Poesias vemos o eu-lírico imerso em uma paisagem universal, não datada, que fornece a este uma experiência totalizante: uma cidade do mundo e do cosmos. É nos índices naturais ou artificiais dessa cidade que se moverão os poemas. O eu-lírico do Poesias é um arguto observador desses índices, e, à maneira do filósofo antigo, neles adivinha sua filosofia e sua perplexidade. É este, por fim, o correlativo objetivo de Dante, cujo pensamento é capaz de metamorfosear-se em objeto, sem perder sua densidade reflexiva (antes, adensa-a). Assim, é com essa força que o poeta se aproximará de um grotesco de cunho alighieriano e de um surrealismo antigo. E é nesse ponto que faremos uma nova reflexão em nível teórico. Desde cedo ficou claro que, por uma questão de honestidade intelectual, era necessário e urgente entrar pelas veredas de “um certo surrealismo” (já apontadas por Ivan Junqueira), notadamente em alguns pontos da obra de Dante Milano. Porém, que surrealismo seria este, posto que “tantos há” e que um largo braço da academia ainda vê o surrealismo como algo essencialmente bretoniano? É preciso se achegar ao próprio Breton, que disse que o surrealismo sempre houve: Bosh, Dürer, João Evangelista, Carrol, entre muitos. Mas isso não basta: folheando a Divina Comédia, vemos o grotesco do imaginário pagão e medieval escorregar muitas vezes para o campo do surreal, para o mundo avesso das coisas, que não poderiam ser, e entretanto o são logo podemos nomear ou inomear (evocar) sua existência. Contra isso, ainda, contrasta o olhar duro e severo do homem clássico: “eu vi, de olhos despertos” (MILANO, 1973, p.117), dirá Dante Milano em seu soneto mais surrealista, intitulado “Metamorfoses”, que seguirá dizendo: Sonho maior que o sonho de quem dorme, Eu vi, de olhos despertos, fabulosas Metamorfoses, conexões monstruosas Entre o olhar e a aparência multiforme. Eu vi o que a luz expele e a sombra engole. Vi como na água o corpo em si se enrola, Quebra-se o torso, a perna se descola E os braços se desmancham na onda mole. Vi num espelho alguém cujo reflexo O transformava noutra criatura. E num leito de amor já vi perplexo Seios com olhos! e mudar-se a dura 97 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Nuca em anca, o ombro em joelho, a axila em sexo, O dorso em coxa, o ventre em fronte pura. Sequiosos de dar conta desta vereda (que conflui na mesma direção de nosso olhar: poesia do pensamento, perplexidade e esquecimento), vimos na obra A imaginação simbólica, de Gilbert Durand, a oportunidade de discutir essas imagens, não com o arsenal teórico apenas lírico, mas emprestando recursos da mito-crítica. Aqui, Durand revela-se interessante para nós por considerar a imaginação simbólica o pensamento humano por excelência: para Durand, as escolas racionais do peripatetismo e cartesianismo são tão somente uma redução da imaginação simbólica a superretóricas: e é este poder imaginativo-imagético que dá ao homem a capacidade de, através de imagens, organizar sua afetividade (e aqui Freud, para ele, perde força por enxergar as imagens cristalizadas no id, principalmente as da infância, como neuroses, e não como força de equilíbrio). Por fim, a imaginação simbólica tem a função de redescobrir o homem – e Durand fala mesmo em uma teofania, um ecumenismo universal e uma remitificação do homem. Não se distancia de Paz, no capítulo “La outra orilla” de El arco y La lira, em que este sustenta, justamente, a necessidade de um salto mortal para se chegar à outra margem; e este chegar lá é, em verdade, chegar aqui, em si. E, assim, voltar a ser. Pois bem: este caminho interessa para pensarmos Dante: voltar a ser. Sua poesia, de gesto eminentemente ocidental, cuja raiz clássica empresta o siso da dura escola de Dante Alighieri, descobre no mestre antigo, e em si mesmo, a rudeza e crueza como ferramentas de humanização/poetização: este o motivo pelo qual seria absurdo enquadrar Dante Milano nos apertados moldes da geração de 45. Não se trata, nunca, este “classicismo”, de um classicismo de gabinete, como é sempre qualquer reprodução por modismo do modelo clássico. Dante pertence à geração de 30, ou seja, a uma geração de poetas altamente individuais. Estes aspectos de crueza descritiva, coados pela clareza clássica, dão o tom de seu gênio, assim como foi o humanismo de Alighieri ou o maneirismo de Camões: estéticas irredutíveis, de difícil nomeação. Somando-se isso aos veios de modernidade idiossincrática que percorrem a obra do poeta, em especial o tomo “Terra de ninguém”, somos obrigados a reconhecer nele um poeta universal e um homem de seu tempo – posto que essas duas condições não prescindem, mas precisam uma da outra. 98 Descrição das pesquisas Afunilando novamente a questão do surrealismo, daremos nesse momento passos em direção a utilizar a mito-crítica para repensar a poesia de Dante de forma una: não por um desejo da concisão, mas para atender àquela “irrepreensível unidade” em que falou Ivan Junqueira. Posto que o mito comporta o real, o suprarreal, o surreal e o irreal, parece-nos interessante conduzir Dante por esse caminho: lembramos aqui que as tônicas de nossa exegese são pensamento, perplexidade e esquecimento. Essas atitudes são tomadas frente ao mundo real, mas não necessariamente se desdobrarão em realismo: para um poeta clássico, o realismo é ferramenta de linguagem e visão do mundo; o “realismo” de um René Magritte, entretanto, encerra em si o surreal vedado. Em um artista como De Chirico o mito é força de equilíbrio afetivo com que o artista elabora sua autonarrativa: pensamos que o mesmo ocorre com Dante. Este arguto observador da natureza, que é seu eu-lirico, busca a si todo o tempo. E nas imagens a sua volta se reencontra e se reequilibra – se a unidade é irrepreensível o equilíbrio também deve ser. Por fim, de posse de autores como Durand e Cassier (e outros, como Antônio Donizeti Pires, que enquadrou Dante Milano na tradição órfica pela sua estupenda “Elegia de Orfeu”), no trabalho da metáfora e da poética do ponto de vista da mitocrítica, daremos início a essa nova jornada deste trabalho: situar o olhar desejante de Dante Milano numa cosmogonia, onde a ocorrência do real (MILANO, 1973, p.32): Pedra, coisa no chão, face parada, Indiferente à carícia da mão, Figura inerte que não sente nada, Corpo que dorme e a que me abraço em vão. do irreal (MILANO, 1973, p.67): De tão lúcido, sinto-me irreal. do superreal (MILANO, 1973, p.117): Eu vi o que a luz expele e a sombra engole. Vi como na água o corpo em si se enrola, Quebra-se o torso, a perna se descola E os braços se desmancham na onda mole. e do surreal (MILANO, 1973, p.117): 99 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa E num leito de amor já vi perplexo Seios com olhos! e mudar-se a dura Nuca em anca, o ombro em joelho, a axila em sexo, O dorso em coxa, o ventre em fronte pura. acomodem-se suavemente numa totalidade, e não numa anulação irônica das partes. Assim nos pede o poeta que foi tão rígido com a confecção de seu único cancioneiro, o Poesias. Encerramos esta etapa do trabalho, portanto, abrindo um novo veio, sem fechar aquele que sempre falará mais alto: a crítica de poesia, e a análise dos poemas. Bibliografia BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada. In: ____. Poesia Completa & Prosa. São Paulo: Nova Aguilar, 1985.p. 33-102 BORGES, Jorge L. Ficções. São Paulo: Globo, 2005. BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. BRETON, André. 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London: Wordsworth Editions Limited, 2003. 101 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa “TUDO TINHA DE SEMELHAR UM SOCIAL”: AS RELAÇÕES ENTRE LITERATURA E SOCIEDADE NA RECEPÇÃO CRÍTICA DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS Candice Angélica Borborema de Carvalho Mestranda – Bolsista CNPq Profa. Dra. Maria Célia de Moraes Leonel (Or.) Ancoradas em linhas teóricas e metodologias diversas, as leituras críticas acerca da obra de Guimarães Rosa, neste mais de meio século decorrido desde que o escritor surgiu na cena literária com Sagarana (de 1946), têm sido elaboradas e reelaboradas. Tais abordagens – fruto da irradiação da obra rosiana pelos mais diferentes veios interpretativos – permitiram que se ampliasse a compreensão da produção ficcional do escritor mineiro para além dos limites iniciais da crítica. No caso de Grande sertão: veredas (de 1956), as leituras desdobraram-se de tal modo que contamos hoje com um quadro crítico bastante vasto, de forma que é cabível sistematizarem-se as múltiplas perspectivas de interpretação do romance em diferentes vertentes analíticas e metodológicas – pesquisas linguísticas e estilísticas; análises de estrutura e composição de gênero; crítica genética; estudos esotéricos e metafísicos; interpretações sociológicas, históricas e políticas, dentre outras. Voltando-se às abordagens críticas atreladas à corrente interpretativa sociológica, historiográfica e política de Grande sertão: veredas, o propósito deste estudo consiste em examinar o tratamento dado à historicidade do romance por tais abordagens. Em outros termos, propõe-se investigar (de uma perspectiva crítica e histórica) como se dimensiona, no curso de tal direcionamento crítico, a oposição entre literatura e sociedade. Alentados pela possibilidade de paralelismo entre a obra rosiana e a historiografia, os estudos pertencentes à referida linha hermenêutica vêm paulatinamente, sobretudo neste século, ampliando as relações funcionais entre estrutura social e composição literária ao encarar obra, principalmente, como romance-ensaio e/ou como alegoria político-histórica do Brasil. Com raízes fixadas nas proposições encetadas no ensaio de Antonio Candido (2006) de 1957 – “O sertão e o mundo” (posteriormente intitulado “O homem dos avessos”) –, o veio crítico sociológico, historiográfico e político de Grande sertão: 102 Descrição das pesquisas veredas é inaugurado na década de 1970 pelo estudo de Walnice Nogueira Galvão (1972). Em As formas do falso, amparando-se teoricamente em obras capitais da historiografia, economia e ciências sociais brasileiras (como as de Oliveira Vianna, Caio Prado Júnior, Rui Facó e Maria Isaura Pereira de Queirós), a ensaísta procede à investigação do universo descrito no romance e assegura que a obra de Guimarães Rosa – que “dissimula a História para melhor desvendá-la” – constitui o “[...] mais profundo e mais completo estudo até hoje feito sobre a plebe rural brasileira” (GALVÃO, 1972, p.63, p.74). Depois de duas décadas de isolamento, a orientação crítica introduzida pelo trabalho de Walnice Nogueira Galvão (1972) foi retomada enfaticamente em meados dos anos 1990 por, entre outros, Heloisa Starling (Lembranças do Brasil: teoria, política, história e ficção em Grande sertão: veredas, 1999), Willi Bolle (grandesertão.br: o romance de formação do Brasil, 2004) e Luiz Roncari (O Brasil de Rosa: mito e história no universo rosiano: o amor e o poder, 2004), os quais, ampliando as dimensões históricas e sociológicas do romance, reinterpretam-no, em níveis distintos, como a representação alegórica do Brasil. Uma vez esboçado, em linhas gerais, o percurso das interpretações sociológicas, historiográficas e políticas de Grande sertão: veredas, que são a matéria desta investigação, vejamos o plano de desenvolvimento da pesquisa. Através da demarcação das partes que alicerçam a então abordagem, procuramos – além de esclarecer com rigor os pressupostos e fixar os critérios em causa – mostrar sumariamente os resultados atingidos e delinear os objetivos a serem alcançados. Em seu estágio atual, o presente estudo compõe-se de quatro capítulos (cada qual subdividido em diversos segmentos articulados). Como base para o exame da crítica rosiana, o primeiro capítulo concentra-se, inicialmente, em apresentar uma revisão da trajetória histórica da crítica literária, buscando delimitar algumas de suas acepções fundamentais. Seguindo uma linha cronológica, situamos as origens da crítica literária na Idade Média; mostramos sua cristalização no campo das ciências humanas ao longo da modernidade; chegando ao debate mais atual, trazemos à tona formulações e teorias que se aglutinam em torno dos aspectos principais e das funções da crítica literária na contemporaneidade. Na sequência, traçamos um panorama amplo da crítica literária no Brasil, estabelecendo como recorte o intervalo entre os anos 1940 e os dias atuais (período que contextualiza a recepção crítica da obra de Guimarães Rosa). Buscou-se registrar as 103 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa principais mudanças e tendências ocorridas do terreno da crítica ao longo dos últimos setenta anos, salientando que a segunda metade da década de 1940 (coincidindo com o momento da publicação de Sagarana) marca o deslocamento da crítica realizada nos jornais (a chamada crítica de rodapé, em que se sobressai o nome de Álvaro Lins) para a crítica institucionalizada. “Esta começa a mostrar os efeitos do ensino superior de letras, que motivou a sistematização da pesquisa, com o aumento do número de monografias; de tal modo que a partir da década de 1960 a crítica dos universitários tornou-se modalidade predominante.” (CANDIDO, 2007, p.114). Acrescente-se que, na década de 1940, Antonio Candido despontava no cenário crítico brasileiro (em 1945 é publicada Brigada ligeira – primeira coletânea de artigos do crítico). Cabe destacar que a investigação dos caminhos trilhados historicamente pela crítica literária permite-nos enxergá-la como um processo dinâmico e entender que “[a]s censuras ou os louvores que fazemos a tipo de pensamento somente têm sentido quando procuramos situá-lo no tempo em que floresceu.” Dessa maneira, “[...] em cada pensamento e em cada ato do homem teremos dois aspectos a julgar: a sua vitalidade em face da corrente geral da história, e a sua validade em relação ao momento limitado que o viu manifestar-se.” (CANDIDO, 1988, p.113). Como este trabalho enfoca a oposição entre literatura e sociedade, fixamo-nos de modo mais detido (ainda no primeiro capítulo) no pensamento crítico de Antonio Candido, assinalando, primeiramente, as ideias matrizes vinculadas à concepção de historicidade literária firmadas em Formação da literatura brasileira (CANDIDO, 2009), escrita entre 1945 e 1957, mas publicada apenas em 1959; em seguida, procuramos apurar em pormenor as considerações metodológicas acerca das relações funcionais entre estrutura social e composição da obra literária amadurecidas por Antonio Candido (2000) nos ensaios enfeixados em Literatura e sociedade, cuja primeira edição é de 1965. Cumpre dizer que, nessa direção, valemo-nos também das leituras do prefácio de O discurso e a cidade (CANDIDO, 2004c, p.9-14) e de “A literatura e a formação do homem” (CANDIDO, 2002a, p.77-92), onde o crítico volta a tratar da relação entre literatura e sociedade. Todos esses aspectos levantados e debatidos no primeiro capítulo nos serviram de substrato para que pudéssemos nos dirigir à recepção crítica de Grande sertão: veredas. No segundo capítulo, inclinamo-nos (em um primeiro momento) à averiguação dos estudos existentes sobre o romance, apurando a profusão de leituras que constituem a fortuna crítica do escritor, contextualizando o surgimento de tais leituras e 104 Descrição das pesquisas sistematizando-as em diferentes vertentes analíticas e metodológicas. Em seguida, debruçamo-nos sobre os escritos de Antonio Candido (1989a, 1989b, 2002b, 2002c, 2004b, 2006) dedicados à obra rosiana. As leituras das resenhas de Sagarana (CANDIDO, 2002b) e de Grande sertão: veredas (CANDIDO, 2002c) – publicadas originalmente em 1946 e 1956 – foram seguidas por um exame rigoroso do ensaio seminal do crítico sobre o romance de Guimarães Rosa – “O homem dos avessos” (CANDIDO, 2006). Procurou-se aprofundar a compreensão das bases que alicerçam o cerne da interpretação crítica de Antonio Candido voltada à ficção rosiana: a dialética entre o local e o universal, ou como explicita Alfredo Bosi (2002, p.48, grifo do autor), as “[...] instâncias míticas pelas quais Guimarães Rosa penetrou no real natural e histórico, o Sertão, descrevendo-o, transfigurando-o, interpretando-o, universalizandoo.” Essa visada crítica sobre Grande sertão: veredas (firmada na integração dialética entre localismo e universalismo) se lança como estofo nos demais ensaios de Antonio Candido (1989a, 1989b, 2004b) acerca da produção ficcional rosiana e alicerça o conceito de “superregionalismo” com que o crítico (CANDIDO, 1989b, p.162) definiria a obra de Guimarães Rosa1. No terceiro capítulo, enfocamos As formas do falso. Baseando-se no pressuposto de que a configuração de Grande sertão: veredas está centrada na ambiguidade – aspecto enfatizado por Antonio Candido (2006, p.124-125) em “O homem dos avessos” –, Walnice Nogueira Galvão (1972, p.13) constrói sua abordagem do romance por intermédio da articulação de duas instâncias: “matéria historicamente dada” e “matéria imaginária” (entendidas como planos imbricados e complementares). A primeira é a matéria do sertão: as condições sociais, econômicas e políticas vigentes no meio rural brasileiro. A investigação da representação de todos esses aspectos na obra rosiana é desenvolvida na primeira parte do ensaio: “A condição jagunça” (GALVÃO, 1972, p.17-47). A segunda dimensão (“matéria imaginária”) é abordada na segunda parte do estudo: “A forjadura das formas do falso” (GALVÃO, 1972, p.51-74). Diz-nos Walnice Nogueira Galvão (1972, p.52): por ser o sertão o substrato do romance, o imaginário do sertão – “matéria imaginária [...] que está entranhada na própria matéria” – passa a ser também parte de sua representação. Observemos que, de acordo com a ensaísta, em nenhum momento Grande sertão: veredas desvale o “compromisso com a realidade” 1 Consonando com as proposições de Antonio Candido, Alfredo Bosi (2007, p.392) classifica a obra rosiana como “romance de tensão transfigurada” à medida que força os “limites do gênero romance” e toca a “poesia” por meio da “transmutação mítica ou metafísica da realidade”. 105 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa (GALVÃO, 1972, p.37). É desse prisma que se procura compor a representação do imaginário popular do sertão no romance associando-a ao conceito de medievalização, ou seja, à presença da cultura medieval (dos elementos legendários que remontam às novelas de cavalaria) na mitologia do cangaço. Na terceira e última parte do ensaio – “O ponteador de opostos” (GALVÃO, 1972, p.77-132) –, a ensaísta examina o perfil (e a condição ambígua) do narrador-protagonista do romance: “jagunço-letrado” (GALVÃO, 1972, p.77). Eis um dos pontos fulcrais desenvolvidos em As formas do falso. No quarto capítulo, voltamo-nos às interpretações do romance de Guimarães Rosa norteadas pela concepção de alegoria. Iniciamos por grandesertão.br: o romance de formação do Brasil de Willi Bolle (2004)2. Alicerçado em categorias e conceitos de Walter Benjamin, o ensaísta propõe fazer uma releitura da história das estruturas sociais e políticas do país por intermédio de Grande sertão: veredas. Seu alvo é mostrar que a representação do Brasil na obra rosiana está centrada em um “problema antigo e atual” da nação: “a ausência de um verdadeiro diálogo entre os donos do poder e o povo”, o que constitui um sério obstáculo para a “plena emancipação do país” (BOLLE, 2004, p.17). Por outros termos, objetiva-se revelar que, através do romance rosiano – que se configura como uma “forma de pesquisa” e um “organon da História”, valendo-se de termos respectivamente de Antonio Candido (2009, p.432) e Walter Benjamin3 –, “[...] a realidade histórico-social do país é iluminada por uma qualidade específica de conhecimento que, desse modo, não se encontra em nenhum outro tipo de discurso.” (BOLLE, 2004, p.22). Observemos que se trata de um esforço hermenêutico, não apenas no sentido de averiguar como se constrói a relação entre literatura e sociedade, mas de assegurar, com base nessa oposição, que é possível desenvolver uma historiografia a partir da obra literária na instância de sua recepção (um dos aspectos centrais do conceito de historiografia alegórica de Walter Benjamin e o eixo em torno do qual orbitam as concepções de crítica bejaminiana). 2 O ensaio resulta de uma série de artigos (BOLLE, 1990, 1994-95, 1997-98, 1998, 1999, 2001, 2002) dedicados à investigação de Grande sertão: veredas. 3 A expressão benjaminiana “organon da História” implica, como esclarece W. Bolle (2000, p.107) em Fisiognomia da metrópole moderna: representação da história em Walter Benjamin, utilizar a literatura como uma “forma de historiografia”. Tal concepção é desenvolvida por W. Benjamin em “Literaturgeschichte und Literaturwissenschaft”; a referência se encontra em W. Bolle (2000, p.107, nota 9, p.403). 106 Descrição das pesquisas Estabelecidos como pontos de partida a “situação narrativa” e o “trabalho do narrador” – considerados a “modelização artística” do mencionado problema (a ausência de diálogo entre as classes) –, a interpretação incorpora os demais “elementos constitutivos do romance”: o sertão, a jagunçagem, o diabo, Diadorim, a representação da sociedade e a invenção da linguagem. Todas essas instâncias são examinadas de modo a integrarem-se e/ou a convergirem àquilo que o ensaísta define como o escopo de sua investigação: a leitura de Grande sertão: veredas como um “retrato do Brasil” (BOLLE, 2004, p.22)4. Dedicado a construir tal leitura, o autor alega que Guimarães Rosa teria organizado sua “narração em forma de uma imensa rede labiríntica”, em que a história do país estaria encenada por meio de “fragmentos esparsos” e de modo cifrado, cabendo ao leitor identificar e reorganizar tais fragmentos. “Essa rede ficcional serve de medium para observar e investigar a rede dos discursos sobre o país.” (BOLLE, 2004, p.9). Para deslindar tais discursos supostamente enredados à trama ficcional e mostrar que a obra rosiana é uma “história criptografada do Brasil” (BOLLE, 2004, p.336), o intérprete recorre ao exame constrastivo do romance com alguns dos consagrados textos voltados à constituição da sociedade brasileira e de suas estruturas justificando que “[...] a qualidade da representação rosiana do país só pode ser avaliada devidamente através de uma análise comparada.” (BOLLE, 2004, p.23). Ao situar Grande sertão: veredas no contexto dos ensaios de formação do Brasil (cânone das interpretações do país elaboradas ao longo do século XX, sobretudo entre os decênios de 1930 e 1950), lembrando que o romance também foi publicado na década de 1950, Willi Bolle (2004, p.24) tenciona demonstrar que a narrativa rosiana – com um “potencial teórico sui generis” – “[...] ocupa em relação àquelas obras canônicas uma posição complementar e concorrente.” Por outras palavras, trata-se de legitimar, por meio do contraste entre ficção e ensaio, que o romance (justamente por conta das características que lhe são intrínsecas) rivaliza-se com historiografia e assume condições de vantagem em relação a ela quanto à representação da realidade do país. “A expectativa deste ensaio é poder avaliar, no final, a contribuição específica do romance de Guimarães Rosa ao conjunto dos retratos do Brasil”, afirma o estudioso (BOLLE, 2004, p.26). 4 Ver “Zur Vermittlung von Stadt- und Sertão-Kultur im Werk von Guimarães Rosa” (BOLLE, 1990) e “Grande sertão: cidades” (BOLLE, 1994-95). Nesses dois artigos, o ensaísta esboça as diretrizes de sua interpretação do romance rosiano como um retrato do Brasil. 107 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Em direção a esse fundamento movimentam-se concentricamente os eixos interpretativos e analíticos de grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. Retoma-se, nessa linha, o conceito convencional atribuído ao gênero Bildungsroman (cujo paradigma é Wilhelm Meister de Goethe) para mostrar que a narrativa de Guimarães Rosa, mais do que um romance centrado no indivíduo, tem a dimensão de um “romance social” por apresentar “elementos básicos da formação do país” (BOLLE, 2004, p.413). Como se vê, o sumo da visada crítica de que estamos tratando pauta-se na mediação entre duas instâncias genéricas: ficção e ensaio. Estreitando as relações entre esses termos, busca-se romper a antítese (ainda muito infundida nas ciências humanas) que coloca, de um lado, a “arte como reserva de irracionalidade” e identifica, de outro lado, o “conhecimento como ciência organizada”, ancorando-nos nas palavras de Adorno (2003, p.15). Com esse propósito, estabelece-se ao longo de todos os capítulos da abordagem em pauta um confronto ininterrupto entre Grande sertão: veredas e os principais títulos da tradição ensaística brasileira do século XX. Explicite-se que estamos em fase de elaboração da investigação de O Brasil de Rosa de Luiz Roncari (2004) e de Lembranças do Brasil de Heloisa Starling (1999). Ao final do exame dessas leituras, procuraremos debater dialogicamente o modo e as implicações cristalizadas no curso das interpretações sociológicas, históricas e políticas de Grande sertão: veredas. Bibliografia ADORNO, T. W. Notas de literatura I. Tradução e apresentação de Jorge de Almeida. 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Karin Volobuef (Or.) O presente estudo tem como objetivo explicitar as características das teorias de Friedrich Schiller e Heinrich von Kleist sobre a graça, a dignidade, o belo e o sublime, comparando-as, a fim de mostrar as divergências e as confluências das concepções estéticas dos autores, que foram desenvolvidas nos períodos clássico (com Schiller) e romântico (com Kleist). As obras Pentesilea (Kleist, 1808) e Die Jungfrau von Orleans (Schiller, 1801) serão objeto de análise das características acima citadas, tendo em vista a grandiosidade destas peças teatrais e a inexistência de tradução das mesmas para o português do Brasil. A pesquisa encontra-se em fase inicial. Até o presente momento participei de duas disciplinas para obtenção de créditos, ampliei o material bibliográfico – principalmente o relacionado à teoria de Friedrich Schiller – e iniciei o capítulo referente à teoria estética de Schiller sobre graça. Escritores ilustres da época de ouro da literatura alemã denominada Kunstperiode (ou “período da arte”), Friedrich Schiller (1759-1805) e Heinrich von Kleist (1777-1811) foram dois dos principais expoentes do Classicismo de Weimar (1786-1805) e do Romantismo (1797-1830) alemão. Schiller, assim como Goethe, iniciou sua carreira literária integrando uma corrente pré-romântica rebelde, o Sturm und Drang, que partia dos preceitos de “gênio original”, inspiração e luta pela emancipação das letras nacionais (frente ao modelo francês), toma uma postura sóbria diante dessa impetuosidade e avança para o desenvolvimento consciente de uma obra que visa a harmonia e busca na reconciliação com o homem atingir um fim moral que lhe dê a possibilidade de ser livre em todos os sentidos. Após a fase de juventude, Schiller e Goethe integraram o período literário denominado Classicismo de Weimar, que, segundo Rosenfeld (1993), é denominado “clássico” tanto no sentido de apogeu da produção literária na Alemanha, como por subscrever-se ao ideal de serenidade apolínea dos antigos clássicos e sua reconciliação com o mundo. 111 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Kleist, segundo Anatol Rosenfeld (1968, p. 63) é, em sentido restrito, um daqueles gênios da literatura que não se encaixa em nenhuma corrente literária, embora faça parte da época romântica pelo teor anticlássico de sua obra e pela “terrível dissonância que fragmenta o seu mundo, dissonância que só em termos utópicos ou lendários é resolvida.” (ROSENFELD 1968, p. 63). Nem totalmente clássico nem totalmente romântico, o autor se opõe aos cânones clássicos de equilíbrio, harmonia e perfeição, expandindo o melancolismo, as paixões violentas e o impulso dionisíaco a um ceticismo crítico engajado na filosofia de Kant. Sua dramaturgia - inspirada na obra de Schiller, Goethe e Shakespeare -, tende ao grotesco, e sua busca pela Graça nada mais é do que uma busca pela perfeição inconsciente, pela perfeição de movimentos inconscientes. Nos desdobramentos das teorias estéticas dos autores chegamos a uma definição sobre o conceito de graça. Em seu ensaio Sobre Graça e dignidade, Schiller procura delinear os moldes da Graça que, segundo ele, é um acessório, “uma beleza móvel”, que dá à pessoa portadora deste bem, de modo mágico, o poder de conquistar fora da natureza a beleza dos movimentos voluntários e de um fim moralmente belo. Ela nasce de modo casual, mas age expandindo seu poder “acima de todas as coisas naturais” (SCHILLER, 2008, p. 09), pois o reino da liberdade se estabelece, segundo Schiller, fora da natureza, e é apenas fora dela, em liberdade plena, que o sujeito pode estabelecer sua vontade, e, a partir daí, traçar sua destinação ética e moral. Para ele, a ação, os movimentos têm que ser necessariamente belos e aí reside a casualidade do movimento, que é desencadeado por força da vontade. A alma empresta aos movimentos toda sua beleza, não modificando o sujeito e, portanto, neste ponto entendemos que a Graça não é um adorno que o modifica, mas que apenas dá aos seus movimentos voluntários a beleza pretendida pela alma na ação. Kleist desenvolve sua teoria sobre a Graça em seu ensaio Sobre o teatro de marionetes. Nesse texto vemos o primeiro bailarino da Ópera da cidade e o narrador da história num teatro de marionetes em uma praça discutindo sobre os mecanismos de funcionamento das marionetes. Segundo o bailarino, cada movimento feito com os bonecos possui um centro de gravidade, e os seus membros funcionam como pêndulos: quando o centro é movido em linha reta pelo manipulador, os membros das marionetes desempenham curvas e quando sacudidos, parecem criar ritmo, como se estivessem dançando. Porém, segundo ele, para desenvolver este exercício de dança, quem articula os bonecos deve possuir sensibilidade, pois a alma desse manipulador é transportada 112 Descrição das pesquisas para o centro de gravidade da marionete, ou seja, o corpo do manipulador quando em movimento é transportado para o ser inanimado e a partir daí a sensibilidade do maquinista começa a transparecer nos movimentos. Em sua busca pela Graça, o narrador estimula a conversa, e, através de parábolas, são elucidados os pontos principais da teoria de Kleist sobre este conceito estético: a história do jovem que tenta repetir seus movimentos naturais no espelho d’água e não consegue comprova a teoria do autor de que a Graça só acontece em movimentos naturais. Essa teoria se assemelha à de Schiller, pois o mesmo diz que “A Graça, [...], tem de ser sempre natureza, isto é, involuntária (ao menos, parecer assim), logo, o sujeito mesmo nunca pode aparentar como se soubesse da sua graça.” (SCHILLER, 2008, p. 25). Na história de Kleist, quando o jovem tenta repetir estes movimentos, a Graça, que não acontece por vontade consciente, não se manifesta. Assim como em Schiller, para Kleist a Graça também necessita de harmonia, mobilidade e leveza para vir à tona e despertar a beleza do movimento. Porém, o teor pessimista da teoria de Kleist vem a tona quando ele formula que ao comer da árvore do conhecimento e ser expulso do paraíso, o homem perdeu a Graça, o que causou o desequilíbrio e a cisão entre Graça e razão. Ainda assim, o autor acredita que há uma possibilidade de retorno do homem a esta árvore do conhecimento através da porta dos fundos do paraíso. Este regresso ao ponto de partida da inocência não seria mais inconsciente: o homem precisaria de consciência total para este retorno. A partir de uma análise inicial das peças Pentesilea (1808) e Die Jungfrau von Orleans (1801), percebemos essa busca pela graça na figura de duas heroínas, que, não por acaso, são heroínas e não heróis. Segundo Schiller a graça é mais encontrada no sexo feminino, pois a mulher é dotada de leveza e virtude, e sua beleza arquitetônica é predisposta ao adorno da Graça. Johanna, heroína da peça de Schiller (Die Jungfrau von Orleans), é adornada pela graça divina e triunfa grandiosamente sobre exércitos. Pentesilea, heroína da peça de Kleist (Pentesilea), conjuga em si todos os atributos para que a graça habite em seu corpo, e seus movimentos, principalmente na descrição das lutas contra Aquiles, parecem movimentos de dança, de um erotismo que se transporta para o campo de batalha e seduz o jovem Aquiles à sua teia de artimanhas. Enquanto Schiller nos apresenta uma heroína carregada de pureza imaculada, contida nos preceitos do espírito que a guia, Pentesilea é toda impulso, e seus instintos são levados ao extremo, transformando sua paixão na mais grave patologia. 113 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Como a pesquisa encontra-se em faze inicial, procurarei aprofundar as diferenças e semelhanças das teorias estéticas dos autores e, a partir do material obtido, aplicar essas características à análise das peças teatrais. 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De início, creio que o maior “problema” da literatura contemporânea é o próprio fato dela ser contemporânea, isto é, coincidente com as contingências do olhar presente humano em sua condição de maior “imediatez”. O contemporâneo é sempre um “problema” e sempre exigiu, em todas as esferas da cultura, uma reação, uma “resposta” (porque, em suma, são estas reações e “respostas” que definem o contemporâneo). As “respostas” da literatura (e da poesia) ao contemporâneo devem ser intuídas, creio, no interior da ótica estética de cada autor e, às vezes, da ótica estética de cada obra específica de cada autor. A partir desta condição, é possível também verificarmos “respostas” próximas entre autores e obras, de onde a crítica infere “linhas” de atuação estética que, em futuro próximo ou distante, possam assumir estruturalmente a “definitiva” ou as “definitivas” e/ou melhor realizadas “respostas” à nossa época, como ocorreu em todas as outras. A “resposta” de um poeta como Alexei Bueno (1963- ) é a de um eu poético que retoma de modo ostensivo determinadas tradições que pretensamente corresponderiam àquilo que uma crítica como Leyla Perrone-Moisés define enfática e orgulhosamente de “altas literaturas”. Esta “linha” de ostentação da tradição, à qual pertence Alexei Bueno, também agrega autores como Ivan Junqueira e Bruno Tolentino. Os autores desta linha denominada (não sem regozijo para os delatores e ao menos certo rancor e incômodo aos rubricados) “neoconservadora” associam um elemento de eternidade da literatura a determinadas tradições poéticas ora mais ora menos distinguíveis, que irão desde clássicos antigos greco-romanos até a modernidade do século XX, excetuando as vanguardas em suas manifestações mais radicais, havendo uma ênfase na modernidade fin-de-siècle, de maneira geral. Essa associação se faz ostensiva, oscilando entre uma angústia da influência e um orgulho da influência, representativo da consciência de dialogar com as “altas literaturas” incontornáveis e de rivalizar com uma compreensão do contemporâneo que queira superá-las em sentido 116 Descrição das pesquisas mais vanguardista ou experimental ou que não as reverencie. Por fim, essa associação será, por sua vez, também associada a um humanismo essencial, a uma incancelável possibilidade de busca de um quid ontológico humano, ainda que às vezes conturbado, fugidio ou de difícil ou provisoriamente suspensa apreensão e (re)conquista. “Respostas” díspares o acusariam de permanecer pensando a tradição pela mera ótica do domínio escolar de elementos formais e/ou de transformar a tradição em uma espécie de entidade inócua, sem tensão de alteridade produtiva e recuperável via uma mistificação artificial. Mesmo não deixando de levar em consideração estas críticas, a diferença (ora mais ora menos bem realizada) da poética de Alexei Bueno que podemos perceber em seus momentos mais felizes é a de trazer para o presente do homem contemporâneo a consciência de que, ainda que contemporâneas, as tramas e vicissitudes sine qua non de sua condição o perseguem desde os tempos mais remotos, assumindo matizes de época. Alexandre de Melo Andrade demonstrou em “Os Deuses se tornam Humanos: a Poesia de Alexei Bueno” como a finitude humana e suas conseqüentes aspirações metafísicas dialogam desde sempre com o tempo mítico em relação à historicidade, diálogo que não se dissocia do homem atual. Nas Desaparições (2009), por exemplo, há boa realização desta aproximação ao presente, descoberta através da tradição da relação dúbia com o universo urbano-industrial ou da tradição da femme fatale, pensando somente nestas duas tradições. Em “Silvia Saint”, Silvie Tomčalová (1976- ), a modelo tcheca que se tornou a maior lenda da pornografia é, através da revitalização desta tradição da femme fatale, uma resposta ao poema “Karma [Marcha Triunfal]”, onde é exposto o mundo contemporâneo como reificado pelo imaginário pornóide e obsceno. Mais do que pode parecer, isto é, uma concessão a este mundo, é antes uma tentativa de dar dignidade poética a ele, transfigurá-lo simbolicamente. A luz da fissura genealógica que pisa nos passos de Silvia Saint torna sua quintessência a da arquetípica puta, isto é, possui um caráter universal, associandose à imagem da prostituta. É metamórfica, mas de uma metamorfose que conflui sincronicamente como sumário de todas as mudanças da abertura diacrônica: deusa de uma e mil faces. Deusa das prostitutas, isto é, Afrodite, mas também Vênus baixa e celeste (tradição greco-romana) – concentração do simbolismo neoplatônico das Vênus Gêmeas: Vênus Celeste e Vênus Vulgar. Silvia Saint é ambas, pois também é Saint, santa, além de puta, cadela, vaca: sórdida e santa. E, assim posto, sua fascinação é perceptível ao revelar sensações e sentimentos turbados ou prejudiciais, onde o fascinado é resignado, dedicado e modesto: 117 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Jamais, deusa, não traias Teus pobres fiéis que babam, Que em êxtases se acabam Por ti, pelas tuas aias. Louro véu do universo, Sacra estátua e cadela, Pisa esta alma que vela Teu sonho áureo e perverso. Se for uma concessão, é uma concessão pela poesia, pela universalização da poesia aqui de um cunho moderno e contemporâneo que não vira as costas para a poesia da antiguidade: é a poesia de perfil heautontimoroumenos, que se assume masoquistamente, pois aqui um mundo em “crise” ou reificado só pode ser dotado de poesia pelas vias de exibição sôfrega, autoflagelada. Neste momento poderíamos nos perguntar, um pouco sugestionados por Alfredo Bosi, até que ponto, no interior do culto da imagem contemporânea, a absorção destes temas como a pornografia não colabora negativamente com o mercado de imagens que assola ideologicamente a vida contemporânea. Bosi é radical e observa como nesta tendência está “cada vez mais árdua e rara a expressão lírica pura, forte, diferenciada, resistente” (BOSI, 2004, 17). Para mim, a poesia-resistência pode ser aquela que seleciona criteriosamente os signos que interferem na esfera da vida, mas pode ser, ao contrário, e com grande vigor, aquela poesia que absorve critica e/ou ironicamente estes signos, por mais cooptados que estejam aos dispositivos midiáticos preponderantes. Afinal, a poesia, como esclarece Michel Deguy, é “culto das imagens”, é iconófila, mas sem credulidade nem superstição, é um crer, mas sem crenças. Essa idéia deslocada do Deguy pode bem expressar parcialmente o que quero dizer com absorver imagens seja com “distanciamento” crítico ou “aproximação” irônica. Em suma, tentarei encontrar na obra de Alexei Bueno todo um complexo de busca por uma substancialidade humana, passando por tópicos que um autor como Antônio Donizeti Pires em seus estudos classifica como determinantes de um pensamento órfico-poético. Não creio que Alexei Bueno seja um autor legitimamente órfico, mas perpassa em sua obra tópicos condizentes com este pensamento órficopoético, tais como a visão analógica de mundo e as misteriosas relações da poesia e da música; o esoterismo (paganismo, Cristianismo, idealismos diversos e filosofia); sentimento de inadequação do poeta eleito; conhecimento técnico da palavra mágica; 118 Descrição das pesquisas analogia e ironia (porém se distanciando da tradição da ruptura, o que possibilita a polêmica com o Concretismo, no Brasil); atualização/incorporação do mito, inclusive degradando-o (abrindo o horizonte da questão do papel do poeta e da poesia na sociedade contemporânea e dos significados para o ser humano). Esta visão de mundo será a base para que eu possa também ler o Alexei Bueno crítico literário e polemista e assim verificar como reage o fluxo de passagem entre o pensamento crítico e o pensamento poético de Alexei Bueno, isto é, como, por exemplo, uma ideia crítica em relação à estética faz a invenção/conotação poética agir perante esta ideia, e vice-versa. Bibliografia ANDRADE, A. de M. Os Deuses se tornam Humanos: a poesia de Alexei Bueno. Revista Texto Poético. v. 8, 2010. BUENO, A. As desaparições. Rio de Janeiro: G. Ermakoff Casa Editorial, 2009. BOSI, A. O ser e o tempo da poesia. 7 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. DEGUY, M. Reabertura após obras. Campinas: Editora Unicamp, 2010. PERRONE-MOISÉS, L. Altas literaturas. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. PIRES, A. D.; FERNANDES, M. L. O. (Org.). Matéria de poesia: crítica e criação. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. SISCAR, M. Poesia e crise. Campinas, SP: UNICAMP, 2010. YOKOZAWA, S. F. C.; PIRES, A. D. (Org.). O legado moderno e a (dis)solução contemporânea (Estudos de poesia). São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011. 119 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa A REESTRUTURAÇÃO NARRATIVA E TEMÁTICA NO CONTO CONTEMPORÂNEO DE ANGELA CARTER: UMA LEITURA COMPARADA Carlos Eduardo Monte Mestrando – Bolsista CNPq Prof. Dr. Luiz Gonzaga Marchezan (Or.) Debates sempre são tempestivos, é a conclusão a que chegamos, mesmo tendo alinhado nossa pesquisa. Na primeira oportunidade em que tivemos para discutir a temática, eram quatro os caminhos possíveis. É fato, os assuntos se imbricam, mas, por vezes, geram desvios que simplesmente não conseguimos enxergar – ou até mesmo não podemos deixar de conter, engendrados pelo afã de não querer deixar nada de fora. Assim, essa ou aquela vertente, uma nova informação, ou até mesmo todo um caminho que se descortina durante as horas de leitura e pesquisa, parece nos instigar, por vezes, muito mais que aquelas intenções iniciais pretendidas, coisa que nos leva do estranhamento à satisfação, e vice-versa. Se em um primeiro momento gritamos: Eureca! No momento seguinte, já pesando as consequências do novo, nos indagamos: o que fazer com essa informação? Todo esse afã acabou sendo um pouco amenizado. Tendo realizado quatro disciplinas presenciais, quais sejam: Formas da fábula (2.o sem/2012), Aspectos da narrativa (1.o sem/2012), Procedimentos narrativos e discursivos do conto (2.o sem/2011) e Perspectivas pós-modernas da literatura contemporânea (1.o sem/2012) – sendo que em todas elas apresentou-se o Trabalho de Final de Disciplina respectivo, com nota máxima nas quatro frentes –, e também participado dos debates no XI SEL – Seminário de Estudos Literários, Unesp/Assis, com o Prof. Arnaldo Franco Júnior (10/2012), e no XIII Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários “Relações Intersemióticas”, Unesp/Araraquara, com a Profa. Dra. Sheila Pelegri de Sá (10/2012), passamos a recolha e leitura das obras fundamentais (cf. se encontram incluídas no projeto inicial), tendo completado seu fichamento, em janeiro/2013. Após estabelecer o sumário provisório, com divisão em capítulos da monografia, passamos à redação preliminar da mesma, tendo, até a presente data, finalizado um grande primeiro esboço. Atualmente, a monografia encontra-se em fase de revisão, com discussões conjuntas, entre aluno e seu orientar, o Professor Doutor Luiz Gonzaga Marchezan. 120 Descrição das pesquisas Dissemos pela oportunidade daqueles debates anteriores, sem dúvida. Tanto o professor Arnaldo Franco Júnior, como a Professora Sheila Pelegri de Sá, avaliando os caminhos que nosso trabalho poderia tomar, encetaram para uma discussão do corpus de nosso trabalho, composto por hipotexto, O Barba-Azul, de Perrault, e hipertexto, O quarto do Barba-Azul, de Angela Carter, pelo viés de sua contemporaneidade, pretendendo uma análise de sua validade contextual, dentro do conto pós-moderno, como de fato verificamos ser o mais pertinente. Como ponto de partida, fizemos uma abordagem sobre algumas noções que permeiam a produção artística a partir da década de 60, do século passado, para, então, no capítulo primeiro, traçarmos alguns lineamentos sobre o conto como gênero literário, observando os contextos em que Charles Perrault e Angela Carter produziram seus textos. Procuramos demonstrar características fundamentais não apenas destes autores, mas como a tipologia do conto, historicamente, pouco a pouco contribuiu para especificidade e sedimentação do gênero tal como o conhecemos hoje. Assim, classificações e formas de analisar seus procedimentos narrativos e discursivos permearam essa primeira parte de nosso estudo, quando nos deparamos com autores como Poe, Tchekhov, Maupassant, Joyce, Borges, Cortázar e Barth, entre outros. O segundo capítulo pretende melhor descrever uma nova abordagem da produção artística, pelo viés da pós-modernidade, quando elementos como saturação cultural, decadência, perda da energia, secundariedade e posterioridade, entre outros, canalizam para um novo ânimo produtivo, como observam teóricos como Moser, Jameson ou Lyotard, a quem recorremos, entre outros. A análise dessa descrição social permitiu-nos, como desdobramento do mesmo capítulo, chegar a algumas formas de arte que se sedimentam nesse novo contexto, fortalecendo tendências e vanguardas, tal como o feminismo, movimento a que se liga nossa autora. Interessa-nos, em particular, o atual conceito de paródia, conforme Linda Hutcheon, cujo texto, Uma teoria da paródia (1985), torna-se arcabouço fundamental em nosso trabalho. Tendo definido estes conceitos, destacando a relevância do uso da ironia para o trabalho da reescrita, partimos para o capítulo fundamental, em que o texto paradigmático de Charles Perrault, O Barba-Azul é comparado com seu hipertexto, O quarto do Barba-Azul, de Angela Carter. Para tanto, procuramos demonstrar a transformação do personagem, através do apagamento do arquetípico e do caricatural, para presidir um homem que se mistura socialmente; o deslocamento do protagonismo, com vistas à mulher que se firma como narradora de sua história; a sedimentação do literário, suplantando fragmentos da oralidade em 121 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Perrault, pelo desfazimento da moral como discurso interpretativo do conto, chegando à antimoral; observamos, também, os procedimentos discursivos como estratégia de uma escrita feminista, numa espécie de subversão narrativa; para, enfim, descrever o que entendemos tratar-se de uma transvalorização axiológica, a partir de um deslocamento da moral realizado dentro da ótica feminista. O capítulo final, destinado às conclusões, menos do que alinhavar os capítulos precedentes, procura focalizar a importância de Angela Carter dentro desse gênero camaleônico, que é o conto literário, onde certamente cada vez mais se fixará. Sistematicamente, nosso trabalho resultou na seguinte divisão: INTRODUÇÃO. ONCE UPON A TIME… UM ZEITGEIST, apresentando nosso trabalho, relacionando corpus e temática. CAPÍTULO 1. O CONTO, que subdividimos em: 1.1. CONTO TRADICIONAL E CONTO LITERÁRIO; 1.1.1. “For sale: baby shoes, never worn.”; 1.1.2. Esforços contativos; 1.1.3. Diálogos da tradição; 1.1.4. Quem conta um conto aumenta um ponto; 1.2. LINEAMENTOS SOBRE À EVOLUÇÃO DO GÊNERO; 1.2.1. Do conto ao conto; 1.3. O ESBOÇO DO CAMALEÃO; 1.3.1. A circunstância atávica do contar; 1.3.2. Passeando com artistas inspirados; 1.3.3. A forma clássica. A forma moderna. A teoria do iceberg, de Hemingway – capítulo que entendemos como fundamental, a fim de estabelecer como o conto tem sido trabalhado dentro do gênero literário, através de sua tipologia. Encerramos esse capítulo com ainda dois outros itens: 1.4. A CONTINUIDADE DAS VOZES e, 1.4.1. A estrutura do conto de fadas. O Barba-Azul, versão de Charles Perrault, quando apresentamos, através das funções de Propp, pari-passu, a estrutura do hipotexto. CAPÍTULO 2. A PRÁTICA ARTÍSTICA CONTEMPORÂNEA. 2.1. ONCE UPON A TIME... UM SPÄTZEIT; 2.2. OS CINCO ELEMENTOS DO SPÄTZEIT; 2.2.1. A perda de energia; 2.2.2. Decadência; 2.2.3. Saturação Cultural; 2.2.4. Secundariedade (ou o intertexto, o palimpsesto, a metaficção, etc); 2.2.5. Posterioridade. Capítulo em que pretendemos elaborar uma síntese do espírito produtivo, em termos artísticos, a partir das décadas de 60, do século passado, contexto de Angela Carter. Chegamos, consoante a análise daqueles elementos, a algumas práticas consagradas, destacando, entre elas, a paródia. Por este motivo, desdobramos o capítulo para dar alguma notícia acerca deste procedimento: 2.3. A PARÓDIA COMO PRÁTICA REVISIONISTA; 2.3.1. A paródia no século sério: “Poetas imaturos imitam; poetas maduros roubam”; 2.3.3. Desdobramentos paródicos. O conceito em Linda Hutcheon; 2.3.4. O referêncial da ironia. 122 Descrição das pesquisas Estes capítulos perfazem uma primeira grande parte de nossa pesquisa, com introdução e dois capítulos específicos, capazes de sedimentar o aspecto mais teórico do trabalho. Assim, trabalhamos um capítulo final, bem mais extenso, onde acreditamos haver colimado teoria e corpus de trabalho. O último capítulo restou assim dividido: 3. O BARBA-AZUL E O QUARTO DO BARBA-AZUL; 3.1. O BARBA-AZUL: UM PERSONAGEM PARA LADIES E GENTLEMEN; 3.1.1. “Por que, diabos, o BarbaAzul não tira logo a barba?”; 3.2. A NARRADORA DE ANGELA CARTER: UMA PROTAGONISTA POSICIONADA; 3.3. A MORAL E A ANTIMORAL; 3.4. CONSIDERAÇÕES ACERCA DA ESTRUTURA NARRATIVA; 3.5. UMA OPOSIÇÃO FUNDAMENTAL: WAGNER ENCONTRA DEBUSSY; 3.6. A TRANSVALORIZAÇÃO TEMÁTICA. Segue-se, a este capítulo, a conclusão e a inclusão das referências. Pois então, resumidamente, foram estas as nossas intenções. Ocorre que, como dissemos, o trabalho ainda passará por novas avaliações, sobretudo pelo crivo da banca qualificadora, em vias de se consumar. É preciso dizer, por exemplo, que toda a biografia inicial sofreu acréscimo, mas também muitos autores que esperávamos contribuir para nossa pesquisa acabaram sendo preteridos, em razão da forma requerida para a composição desse tipo de pesquisa, priorizando uma abordagem, em detrimento de muitas. Pensamos, enfim, que apenas através de reiteradas revisões o trabalho poderá lograr alguma validade, acabar dotado de certa consistência. Eventuais modificações, acréscimos e supressões, o que naturalmente ocorrerá, serão sempre bem-vindos. Bibliografia ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999. BACCHILEGA, C. Postmodern fairy tales: gender and narrative strategies. Philadelphia: U. of Penn. Press, 1997. BARTH, J. Dunyazadíada. In.:_____“Quimera”. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1986. p. 7-49. _____. The literature of the exhaustion. In:_____“The Friday book: essays and other non-fiction”. London: The John Hopkins University, 1984. BARTHES, R. O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004. BATTELLA GOTLIB, N. Teoria do conto. 4.a ed. São Paulo: Ática, 1988. BAUDRILLARD, J. Simulacros e simulação. Trad. Maria João da C. Pereira. Lisboa, PT: Relógio d’Água, 1991. _____. A troca simbólica e a morte. Trad. Maria S. Gonçalves e Adail U. Sobral. São Paulo, SP: Ed. Loyolla, 1996 BENJAMIN, W. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. 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O estudo dos parâmetros de tempo e espaço na obra de Lobo Antunes está longe de ser esgotado, a despeito dos inúmeros trabalhos que têm surgido nos últimos anos acerca destas categorias na obra deste escritor. Por se tratar de um conceito fundamental para se pensar tanto os gêneros narrativos como a própria condição humana na contemporaneidade, num exercício de “fazer coincidir a procura de sentido humano com a do sentido do texto” (CORDEIRO, 1997, p.132), ocupará posição central em nosso estudo o conceito de tempo. Se pensarmos que, conforme nos diz Jorge Fernandes da Silveira “a literatura, ao invés de ser um documento social, é uma forma de representação textual da sociedade” (SILVEIRA apud COSTA, 2009, p.2), o processo evolutivo que se verifica no uso do tempo no gênero romanesco relaciona-se diretamente com a “expressão do mundo e da 128 Descrição das pesquisas vida”, ou seja, “o tempo aparece [...] como uma coordenada tanto existencial como literária” (SEIXO, 1987, p.51). Fundamentação teórica inicial No romance contemporâneo os vários aspectos da modalidade tempo têm apresentado novas significações. Processos de elaboração e transformação têm produzido novas concepções e técnicas para lidar com este conceito. Concordamos com a autora quando inclui a obra de António Lobo Antunes entre aquelas que representam, ao mesmo tempo, “uma espécie de experiência dos limites que passa forçosamente pela contestação e desmoronamento da prática romanesca tradicional que reflectia a estabilidade de um mundo de equilíbrio inabalável, e pela recusa da imposição de leis rígidas e de significações preconcebidas” (CORDEIRO, 1997, p. 111). Ao citar especificamente nosso autor, afirma Cordeiro: Uma das suas dominantes temáticas é a que valoriza a recriação do espaço confuso da lembrança e do esquecimento, de uma memória que se obstina em percorrer o labirinto do passado num entrelaçamento de tempos e de imagens que acentuam a disforia do presente. Assim, filtrado por uma consciência magoada pelo presente que a personagem não quer aceitar e que é insuficiente para apagar as imagens do passado que por ela constantemente irrompem, o mundo volve-se em imensa teia de agressividades dominada pelas imagens deformadas e agigantadas da cidade tentacular, pelo caos das emoções e dos olhares, pela solidão dorida das partilhas impossíveis, pela inevitabilidade da queda e degradação, no fundo das quais a morte espreita. (Idem, Ibibem, 1997, p. 130). A partir desta perspectiva, vislumbramos outro aspecto que se faz presente de maneira vigorosa nos estudos literários: a relação entre história e ficção. A contribuição de Jacques Le Goff sobre esta discussão configura-se dado imprescindível para análise ao propor a mudança do status da produção ficcional enquanto registro válido para a história. Consideramos a obra de Lobo Antunes sobre a guerra colonial na África um registro histórico que transcende os limites da produção historiográfica nos moldes da ciência da história, ao transitar de maneira singular pelas fronteiras da produção ficcional, do relato histórico, autobiográfico, do documento sociológico e da memória. Um dos dados mais recorrentes na obra de Lobo Antunes é o mal estar gerado pela conturbada presença de um passado que, mesmo desencantado, configurava um 129 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa sensação de pertencimento e a impossibilidade de um novo reencontrar-se com sua própria terra, vista agora com absoluta decepção pelo caráter inglório de seus últimos acontecimentos históricos. Herdeiro de uma transformação que se inicia nos anos 1960, Lobo Antunes se alinha aos autores que se colocam à espreita das narrativas mestras, dos grandes relatos, conforme conceituação de Jean François Lyotard. No caso de Portugal, temos uma especial transformação no que se refere à identidade nacional. Elisabete Peiruque serve-se das palavras de José Mattoso para falar de “uma nova história portuguesa que se iniciou a três décadas e que coincide, em parte, com a realidade vivida em outros países e, no todo, com uma realidade planetária, já que há aí uma situação vivida como crise de identidade” (PEIRUQUE, 2011, p. 111). Na sociedade contemporânea, como dizemos anteriormente, temos uma reconfiguração do conceito de identidade que se transfigura de algo marcado pela noção de pertencimento e segurança para algo que se caracteriza pelas noções de impermanência, instabilidade e incerteza. Se há, de fato, algum nível de associação entre os conceitos de identidade nacional, cultural e individual, podemos afirmar com certa tranquilidade e adotar como pressuposto para este trabalho o fato de que no contexto da pós-modernidade eles sofrem grandes transformações. Na perspectiva das relações da história com a ficção, os romances de Lobo Antunes constituem, no primeiro momento, registros da memória elaborados literariamente (grifo nosso) e que se tornam, dentro do novo pensamento historiográfico, documentos do passado.[...]. Com uma narrativa ficcional, marcada pela fragmentação, Lobo Antunes é a voz viva da memória, do testemunho de quem viveu a realidade da guerra colonial, com a consciência do absurdo de tudo o que estava ocorrendo ali e que o precedeu. Escrito em 1979 e carregando a autobiografia em meio a uma linguagem extremamente elaborada para dar conta dos ecos que os acontecimentos têm na interioridade. Os cus de Judas constituem a lembrança contra o esquecimento. Lembrança e desmitificação, embora o romance não vá aos mitos seculares cristalizados para sempre na memória nacional portuguesa (PEIRUQUE, 2011, pp. 113114). Metodologicamente, portanto, vamos situar nosso estudo no campo mais amplo dos estudos sobre a relação entre história e ficção, servindo-se de conceituações como a metaficção historiográfica segundo a pesquisadora canadense Linda Hutcheon. E num procedimento interdisciplinar, apoiamo-nos também nas reflexões do sociólogo polonês Zygmunt Bauman faz em seu livro O mal-estar na pós-modernidade. No que toca ao tema identidade, linhamo-nos com Bauman quando afirma que “o eixo da estratégia de vida pós-moderna não é fazer a identidade deter-se – mas evitar que se fixe” 130 Descrição das pesquisas (BAUMAN, 1998, p. 114), por maior que seja o mal-estar que esta realidade nos provoque. O diálogo com este autor visa a elucidação de como a condição de combatente na guerra colonial africana impôs a seu agente: uma condição de “nãolugar”, de vida no “entre-dois” , tão própria da pós-modernidade e que a escrita loboantuniana, “de uma racionalidade truncada” apresenta de maneira primorosa e original. Novas perspectivas teóricas Com o cumprimento da disciplina História e Ficção, ministrada pela professora Márcia Valéria Zamboni Gobbi foram delineadas novas perspectivas de abordagem da obra e de aprofundamento dos temas acima mencionados. O estudo das origens e do desenvolvimento do chamado romance histórico, foi muito esclarecedor no sentido de reconhecer o romance meta-histórico, ou a metaficção historiográfica, respectivamente no estudo das autoras Amy Elias e Linda Hutcheon, como um desenvolvimento do gênero romance histórico em diálogo, contudo, com o horizonte do pós-modernismo. A articulação das dimensões histórica e ficcional foi vista em diversos autores, desde Walter Scott, passando por Alessandro Manzoni, até Jorge Luis Borges, Javier Cercas e finalizando com António Lobo Antunes. Os clássicos textos teóricos de George Lukács, os estudos do pós-modernismo de Linda Hutcheon e Frederic Jameson bem como o estudo das autoras contemporâneas Eizabeth Wesseling e Amy Elias, foram essenciais no sentido de se pensar mais detidamente a tríade aqui escolhida como tema de pesquisa: Tempo, Memória e Identidade. As noções de “historical trauma” e de “historical sublime”, presentes no livro Sublime Desire, de Amy Elias, são perspectivas que passaram a ampliar o nosso horizonte, especialmente no que se refere à memória. Entendemos que há, na obra Os cus de Judas, uma “consciência histórica pós-traumática”, que Amy Elias refere às narrativas oriundas das experiências de guerra vividas pelos romancistas que escrevem sobre este tema. Neste sentido, o trauma pode ser visto como um tipo específico ou até mesmo o avesso da memória, no sentido de se fazer presente a despeito do desejo do autor. A investigação sobre o nível de adequação deste conceito à análise da obra em questão é um ponto importante neste momento da pesquisa. A disciplina Mito e Poesia, ministrada pelo professor João Batista abriu um novo horizonte reflexivo sobre a questão do tempo. Nas suas aulas, procurávamos 131 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa encontrar elementos de ordem mítica e sua relação com a dimensão estética de diversas obras. Com o estudo específico da obra do filólogo e filósofo Eudoro de Souza intitulada História e Mito, vislumbrou-se a possibilidade de uma reflexão sobre o tempo mítico e o tempo na narrativa contemporânea. Pretende-se então enriquecer a presente reflexão buscando as reconfigurações do mito, mesmo que por meio de sua negação. Isto é bastante intenso na obra de Lobo Antunes. Ao mesmo tempo em que apresentamse mitos nacionais sofrendo um processo de desencantamento, temos também uma série de mitologias constitutivas das subjetividades, como o amor, a morte, a família, e outras instituições que remontam a um passado mítico e que sempre nortearam nossa visão de mundo, sofrendo um desmoronamento na sociedade contemporânea. Assim, confrontar o romance contemporâneo com a epopeia, buscado entender a conceituação de epopeia negativa, segundo Theodor Adorno parece-nos pertinente, especialmente se pensarmos a périplo do narrador de Os cus de Judas em relação à narrativa máxima de Odisseu, no seu regresso à Ítaca. Nosso combatente português, ao contrário daquele, não teria, neste sentido, uma Ítaca para regressar, condição intrínseca da contemporaneidade a de um “não-lugar”, da diluição de uma realidade líquida, para nos referir a Zygmunt Baumam. Muito dos estudos sobre a relação entre memória, história e ficção, já foi realizado neste semestre. Leitura de outras obras contemporâneas do romance português já foram realizadas, entre elas, O Delfin, de José Cardoso Pires, Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto, de Mário de Carvalho e outros romances de Lobo Antunes, Memória de Elefante e Fado Alexandrino. Sobre o tempo enquanto categoria literária, realizam-se no momento as leituras de Tempo e Narrativa, de Paul Ricoeur, e Para um estudo da expressão do tempo no Romance Português Contemporâno, de Maria Alzira Seixo. O estudo da questão da identidade ainda precisa ser aprofundado e a bibiografia que será usada na articulação dos conceitos também. Bibliografia ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. Tradução de Denise Bottman. – São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ANTUNES, Antonio Lobo. Receita para me lerem IN: Segundo Livro de Crônicas, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2002. ______Os cus de Judas. 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Publicações Dom Quixote: 2002. p.113 – 121. 134 Descrição das pesquisas O DUELO DOS PASTORES: UM ESTUDO SOBRE A FIGURATIVIDADE NAS BUCÓLICAS DE VIRGÍLIO Caroline Talge Arantes Mestranda – Bolsista CAPES Prof. Dr. Márcio Thamos (Or.) O entendimento da estrutura morfossintática do texto, proporcionada pela análise morfológica do enunciado, frase a frase, base para sua leitura, dá condições para se fazer o que chamamos de “tradução literal”, ou “de estudo”, ou ainda “tradução de serviço” – aquela que, como diz Alceu Dias Lima (2003, p. 13), preza pela transmissão do conteúdo gramatical: [...] o resultado da tarefa de traduzir não se distingue muito da análise ou descrição do sistema gramatical. A esta podemos chamar tradução de serviço, como fazem professores italianos. As exigências quanto a esse tipo de tradução não vão além dos conhecimentos subministrados pelos gramáticos e gramáticas da tradição e pelas outras obras de referência, no que concerne ao léxico, ou antes, às definições léxicas ali consagradas. Os cinco (5) primeiros meses que iniciaram o desenvolvimento da pesquisa foram, portanto, dedicados a esse exercício de tradução, que constitui chave para o entendimento sistemático do texto latino. Ao funcionar como referência para a leitura do texto original, sem que haja pretensão de expressar em português o equivalente à poeticidade percebida em latim, essa tradução final vem seguida de notas que trarão explicações e breves comentários acerca de dados de uma cultura tão distante temporalmente da nossa. Elas são necessárias a uma compreensão mais integral do poema e têm por base obras de referência indicadas na bibliografia que consta no projeto apresentado ao Programa de Pós-Graduação, tais como dicionários de língua, literatura e mitologia clássicas. O período decorrido do desenvolvimento da pesquisa, também abrangeu a frequência na disciplina do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários intitulada “Mito e poesia: relatos mitológicos na poesia clássica greco-latina”. O curso proporcionou embasamento acerca do papel do mito na literatura e as diversas formas 135 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa de sua abordagem no texto antigo. A monografia final está em fase de elaboração e tratará da manifestação mitológica do texto virgiliano: córpus da pesquisa de mestrado em andamento. Concomitantemente a essas atividades, foi realizada uma atualização bibliográfica decorrente de leituras reflexivo-críticas e interpretativo-explicativas, com vistas ao reconhecimento de conceitos-chave para o desenvolvimento da pesquisa, tais como poeticidade e figuratividade. Passos seguintes Devido aos esforços que requer o trabalho com uma língua antiga, e respeitandose o princípio de exequibilidade da pesquisa, fez-se a opção, no âmbito de mestrado, pela análise dos poemas de número ímpar (I, III, V, VII e IX). Tal seleção justifica-se pelo caráter singular observável nos textos pares e ímpares das Bucólicas (os primeiros caracterizados como narrativas líricas e os últimos como poemas dramáticos), numa dualidade de aspecto formal já percebida por João Pedro Mendes: Numa observação colhida em simples leitura exploratória, torna-se patente a alternância de diálogos (I, III, V, VII e IX) e monólogos (II, IV, VI, VIII e X), ou melhor, na primeira série, o diálogo está presente em todo o texto ou na maior parte dele, ao passo que, na segunda, o canto prevalece sobre o discurso. Isto, de per si, já é revelador, não podendo ser obra de mero acaso. (MENDES, 1982, p. 43). Buscar fundamentação para explorar esse caráter dramático dos poemas ímpares é a principal razão da escolha em cursar a disciplina “Poesia e Espetáculo: a Tragédia Grega” (a ser realizada no segundo semestre de 2013), que traz em sua ementa, entre outros tópicos, a abordagem das origens da poesia dramática. Já a disciplina “Tópicos de História da Tradução” (a ser realizada no segundo semestre de 2013) visa refletir sobre as relações entre literatura e tradução. Para tanto, será tratada a tradução e o intercâmbio de formas e temas literários entre línguas e culturas. São, portanto, temas de aproveitamento à pesquisa de mestrado, que tem como córpus um texto em língua latina, datado do séc. I a.C. O tópico presente na ementa, “Tradução e Semiótica: Jackobson e Alceu Dias Lima”, será de grande contribuição ao estudo. 136 Descrição das pesquisas Será realizada a análise da estrutura semiótica dos poemas pastoris selecionados, já traduzidos, com o intuito de reconhecer com clareza os efeitos de sentido apreendidos por meio da leitura em língua latina e descrever metalinguisticamente os recursos básicos da figuratividade poética responsáveis pela expressão desses efeitos. Além disso, deverá ser elaborada a redação do relatório de qualificação da pesquisa, cujo exame está previsto para 04 de novembro de 2014. Bibliografia LIMA, A. D. Possíveis correspondências expressivas entre latim e português: reflexões na área de tradução. Itinerários: revista de literatura (Semiótica), Araraquara, n. 20 (especial), p. 13-22, 2003. MENDES, J. P. Construção e arte das Bucólicas de Virgílio. Tese de doutorado, Faculdade Filosofia, Letras e Ciências Humanas USP, 1982. 137 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa DEFINIÇÃO DO IDIOMA ESTILÍSTICO SENEQUIANO NAS TRAGÉDIAS OEDIPUS E PHOENISSAE: UMA PROPOSTA DE TRADUÇÃO EXPRESSIVA Cíntia Martins Sanches Doutoranda – Bolsista FAPESP Prof. Dr. Brunno Vinicius Gonçalves Vieira (Or.) O projeto que aqui se apresenta tem como objeto as tragédias Oedipus e Phoenissae, escritas em meados do século I pelo autor latino Lucius Annaeus Seneca (4 a.C.? – 65 d.C.). Consiste em um estudo crítico sobre a tessitura poética do texto latino através da proposta de uma tradução expressiva em português para esses dois dramas. Em outras palavras, este trabalho pretende definir o idioma estilístico de Sêneca no córpus e transpor esse idioma para o português. Dentre as tragédias senequianas, Oedipus e Phoenissae são as únicas que tratam da saga dos Labdácidas. Assim, um córpus constituído por essas duas tragédias é ideal para uma abordagem completa sobre o tratamento dado por Sêneca ao mito de Édipo. A definição do idioma estilístico senequiano na composição dessas duas obras contribui para que o entendimento sobre os procedimentos literários encontrados possa ser vertido para o português com maior precisão, a partir da observação das semelhanças e das diferenças entre os recursos de ambos os dramas. As tragédias a serem estudadas são marcadas pelo uso abundante de recursos expressivos, comumente classificados como figuras de linguagem, bem como por astúcias expressivas presentes nos planos fônico, lexical, morfossintático e métrico. Este projeto propõe uma investigação de como se orquestram expressão e conteúdo no enunciado poético, oferecendo uma tradução expressiva ou, nos termos de Brodsky, procurando um equivalente desses recursos em português. O texto de Phoenissae consta de 664 versos em trímetros iâmbicos, metro tradicionalmente empregado nos diálogos dramáticos, que é também bastante empregado entre os 1061 versos que compõem Oedipus. Assim, há de se refletir sobre a escolha métrica em português para a tradução desse verso. Além dele, há outros metros empregados em Oedipus, nos cinco cantos corais e em certas partes dialogadas, “para marcar mudanças na dinâmica dos eventos ou caracterizar a tonalidade específica de uma fala em particular” (Lohner, 2009, p. 146-147). 138 Descrição das pesquisas Este projeto propõe que seja escolhido o verso de dez sílabas, em busca de uma equivalência expressiva entre o texto de partida e o de chegada. O uso do decassílabo pode ser justificado por uma tradição de equivalência que vem de tragediógrafos como Antônio Ferreira e Manuel de Figueiredo, bem como de tradutores do gênero trágico, como Filinto Elísio, José Feliciano de Castilho, Sebastião Francisco Mendo Trigozo, João Cardoso de Meneses e Sousa e Trajano Vieira. Dezotti discute o estabelecimento de relações entre os metros latinos e os portugueses durante a história dos gêneros em geral: a partir do séc. XVI principalmente, os poetas da literatura portuguesa passaram a cultivar, em nosso idioma, os vários gêneros poéticos característicos das literaturas grega e latina, como a epopéia, a ode, a écloga, o epigrama, a epístola, etc. Para cada um desse gêneros, eles foram elaborando uma ou mais estruturas rítmicas, que certamente, eram tidas como correspondentes das estruturas empregadas pelos gregos e romanos. É claro que essa correspondência foi realizada de um modo puramente arbitrário e convencional. Mas o que importa salientar é que ela permitiu que se desenvolvesse nos leitores de língua portuguesa o hábito de associarem formas rítmicas próprias do nosso sistema poético a gêneros provenientes da antiguidade clássica (DEZOTTI, 1990, p. 127). Assim, o decassílabo está intrinsecamente ligado ao gênero trágico, se se levarem em conta o histórico de correspondências em português nesse metro e a consequente equivalência estabelecida. Outrossim, a escolha do metro pode “projetar questões de estilo no texto de chegada” (Vieira, 2007, p. 139). Nessa perspectiva, acredita-se que o decassílabo (sáfico ou heroico) está mais próximo daquilo que este trabalho pretende definir como idioma estilístico de Sêneca. Se o metro estabelece um ritmo ao texto e, se “cada ritmo é uma atitude, um sentido e uma imagem do mundo, distinta e particular” (Paz, 1972, p. 61), então, a escolha pelo decassílabo carrega em si alguns significados, como a compreensão dinâmica, consequente e contínua do texto teatral. Afirma Oliva Neto (2007, p. 26) que a tradução de Bocage de Metamorfoses, de Ovídio, em decassílabos, reduz o número de sílabas dos hexâmetros ovidianos e, consequentemente, aumenta o número de versos na versão portuguesa: Bocage [...] empregara o decassílabo e, ainda não preocupado com o fato de desprender um número maior de versos, não procura, condensando, reduzir ou resumi-los. Como a unidade rítmica do poema é um verso mais conciso do que o dodecassílabo e o alexandrino – a tradução no todo, a despeito da maior dimensão que assume, ritmicamente é de uma concisão dinâmica. 139 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Quanto às partes de Oedipus nas quais não é utilizado o trímetro iâmbico, mas outros tipos de metros, o projeto de tradução aqui proposto procurará ser pertinente e coerente à escolha rítmica de cada passagem, escolhendo, oportunamente, o metro português mais adequado, não deixando de observar correspondências rítmicas já estabelecidas na história da tradução desse gênero. Há, por exemplo, em Oedipus, versos em tetrâmetro catalético trocaico (de 223 a 232), versos em hexâmetro datílico (de 233 a 238) e versos polimétricos (em diversas partes, especialmente nos coros). Este estudo contribui para as discussões acerca da literatura latina, da obra de Sêneca e, mais especificamente, das tragédias Oedipus e Phoenissae, detectando os procedimentos de construção textual e os projetos artísticos que amparam os resultados obtidos pelo autor em sua obra. Assim, continuar-se-ão os estudos iniciados em nível de Iniciação Científica (tradução dos cantos corais de Oedipus) e de Mestrado (introdução, tradução e notas de Phoenissae) por esta pesquisadora, com aprofundamento na pesquisa sobre o texto, agora, com foco na expressividade relacionada à construção do estilo trágico em Sêneca ou, nos termos de Brodsky (1994, p. 84-85), “o idioma estilístico” de Sêneca. Além do estudo acima referido, a importância e relevância almejadas neste trabalho advêm ainda da tradução poética de textos diretamente do latim para a língua portuguesa. Ainda não há publicação em português de uma tradução poética de Oedipus, tampouco de Phoenissae. Aliás, a única tradução de Phoenissae para o português a que se pode ter acesso é a tradução de estudo que foi produzida pela autora deste projeto, e que está publicada no banco de dissertações online da UNESP1. Mesmo que houvesse outras traduções expressivas ou não desses textos, o trabalho ainda teria importância fundamental, já que as versões de um texto em outra língua podem ser as mais diversas possíveis, segundo a interpretação da obra original pelo tradutor e de acordo com as suas escolhas linguísticas. É certo, além disso, que a linguagem precisa de constante revisão, dada a variação linguística do público receptor de cada momento histórico. Como afirmou Benjamin (1972, p. 197), “mesmo a maior tradução está fadada a desaparecer dentro da evolução de sua língua e a soçobrar em sua renovação”. 1 SANCHES, C.M. Phoenissae de Sêneca: estudo introdutório, tradução e notas. Dissertação (Mestrado). Orientação: Márcio Thamos. Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciência e Letras, Campus de Araraquara, 2012. 140 Descrição das pesquisas As traduções poéticas neste projeto propostas deverão ser direcionadas ao público acadêmico, especializado em estudos clássicos, bem como a quem tiver interesse pelos textos da Antiguidade Clássica. Brodsky (1994), em “O filho da civilização”, trata de traduções de textos do poeta Mandelstam para o inglês que ele julga como sendo de má qualidade, a partir do princípio de que “o mínimo que se pode esperar de seus tradutores [de Mandelstam] é pelo menos uma aparência de paridade [semblance of parity]” (Brodsky, 1994, p. 84) afirma que essa paridade pode ser conquistada por meio de uma afinidade estilística: […] o idioma estilístico (stylistic idiom) que poderia ser usado para traduzir Mandelstam é o do Yeats dos últimos anos (com quem também tem muito em comum do ponto de vista temático). […] Mas além da perícia técnica e de uma afinidade psicológica, a coisa mais crucial que um tradutor de Mandelstam precisa possuir ou então desenvolver é um sentimento análogo (like-minded sentiment) ao seu pela civilização (BRODSKY, 1994, p. 84-85). Sobre o conceito de idioma estilísco, Vieira (2007, p. 103) observa que “embora o conceito de idioma estilístico não seja claramente explicitado, Brodsky parece ter em mente tanto questões temáticas (o que se depreende da alegada afinidade temática entre Mandelstam e Yeats), como também prosódicas”. Vieira (2007, p. 103) acrescenta que: O conceito de “idioma estilístico” é bastante inquietante e faz pensar nas analogias possíveis entre poetas, entre versos, entre poemas. De fato, na medida em que a tradução expressará uma leitura possível de um texto em determinado ambiente histórico e idiossincrático, a elaboração de um idioma estilístico estará condicionada a um ato interpretativo. Dessa forma, o raciocínio em torno desse conceito se completa com a noção de tradução como interpretação, presente nos seguintes dizeres de Barbosa (1986, p. 156): Tradução agora não mais apenas como busca do Sentido […] mas como produção de sentidos. Isto significa, sobretudo, imantar, para o campo magnético da tradução, um elemento fundamental: a interpretação. Na verdade, sob o ângulo da produção de sentidos, a tradução importa na possibilidade de ser caracterizada como veículo de interpretações. Traduzir já não significa buscar o Sentido mas apontar para a própria feição polissêmica das linguagens. Tradutor: intérprete. Bibliografia 141 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa BARBOSA, J. A. Envoi, A tradução como resgate. In: _______. As ilusões da modernidade. São Paulo: Perspectiva, 1986. p. 155-8 BENJAMIN, W. A tarefa-renúncia do tradutor [Trad. S. K. Lages]. In: HEIDERMANN, W. (Org.) Clássicos da teoria da tradução. Florianópolis: EDUFSC, 2001. p. 187-215. BRODSKY, J. 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Tese (Doutorado em Estudos Literários), Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2007. 142 Descrição das pesquisas A MEMÓRIA, O TEMPO E O CORPO FEMININO EM DEBATE – UM NOVO OLHAR E UMA NOVA CRÍTICA PARA A LITERATURA PRODUZIDA POR MULHERES Cristal Rodrigues Recchia Doutoranda – Bolsista CAPES Profa. Dra. Maria Dolores Aybar Ramirez (Or.) Tema, justificativa e corpus Como se dá a representação da mulher e do feminino na literatura? Qual o limite entre ficção e realidade em um texto autobiográfico? Existiria uma estética do feminismo? A existência ou não de algum tipo de especificidade que faz um texto escrito por uma mulher diferente de um texto escrito por um homem, ou a existência de um texto feminino, independente do sexo do autor, são questões que nos levam a diferentes caminhos teóricos. Em grande parte, esse polêmico tema está ligado aos múltiplos significados socioculturais que o termo “feminino” carrega. É quase impossível dissociar o feminino da mulher, embora a feminilidade não seja algo exclusivo das mulheres, como a masculinidade não é algo exclusivo dos homens. O que se torna importante tanto no estudo da literatura produzida por mulheres, quanto na compreensão do que é feminino, é aceitar que pode existir uma diferença, ou ao menos, problematizar essa discussão. Isto não quer dizer que o diferente, o outro, no caso, o feminino, seja inferior ou marginal. Essa é uma das bandeiras levantadas por Lúcia Castello Branco (1994, p. 62), quando diz que é preciso conseguir “se fazer ouvir em sua outridade. Não o modelo unissex, mas a diferença”. Por outro lado, este tipo de reflexão pode ser arriscado, como lembra Heloisa Buarque de Hollanda (1994, p.10), uma vez que se identifica o feminino com o “outro”, e assim paradoxalmente, possibilita-se a existência de certa colaboração com a perpetuação da cultura misógina. O eixo de nossas reflexões são, desta forma, questões que envolvem os estudos de gênero aplicados à literatura. Nosso embasamento teórico aborda as reflexões de Elaine Showalter (1994), e Kate Millett (1969). Para compor o corpus escolheu-se os diários não expurgados de Anaïs Nin: Henry e June, Incesto e Fogo, que cobrem o período de 1931 a 1937. Este recorte, que 143 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa prioriza os diários de Anaïs Nin, em prol de suas obras ficcionais, serve-nos de alicerce quanto às questões da exclusão do cânone que as autobiografias e os diários sofreram. Tais questões se potencializam quando somamos a gêneros banalizados a autoria feminina, que historicamente também foi excluída. De certa forma, questionar o cânone é questionar os mecanismos de perpetuação dos discursos de autoridade da sociedade patriarcal. Anaïs Nin (1903-1977) manteve desde os seus quatorze anos até o final de sua vida diários pessoais, nos quais se sobressaem a sensualidade e a sensibilidade de como interpretava o mundo ao seu redor. Fortemente influenciada pela psicanálise freudiana e pelo movimento feminista, Anaïs tem nas relações sexuais e amorosas o fio condutor de grande parte de sua obra. Porém, muito além do erotismo, seus escritos são histórias de libertação e superação. Seus diários são considerados pela própria autora uma versão sem cortes do mundo, que para ela era uma versão “feminina” dos fatos (NIN, 2008a, p. 13-14). O diário, desde seu surgimento, foi um gênero marcado por uma série de traços característicos, sendo os principais, a fragmentação da narrativa, a notação cronológica e a presença de um suposto testemunho dos fatos. É um gênero que pretende uma representação mais fiel da realidade, uma representação não ficcional, em que quem fala participou dos fatos narrados, e revela talento para um olhar entusiasmado pelo cotidiano. Ao mesmo tempo, é inevitável ao leitor comum questionar se o que o diário nos oferece corresponde a um passado verdadeiro, ou se os fatos ocorreram de maneira diversa; cabe lembrar que se trata de um tipo de escrita subjetiva, autobiográfica. Phillippe Lejeune assim define autobiografia: “relato retrospectivo em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, dando ênfase na sua vida individual e, em particular, na história de sua personalidade” (LEJEUNE apud REMÉDIOS, 1997, p. 12). “Assim, ao relatar sua história, o indivíduo chega a si mesmo, situa-se como é, na perspectiva do que foi” (REMÉDIOS, 1997, p. 12). Se, porém, nos prolongarmos em relação ao questionamento de “verdades” e “mentiras” em um diário, chegamos em Barthes (apud KLINGER, 2007, p. 40), quando o autor diz que “não é que a verdade sobre si mesmo só pode ser dita na ficção, mas quando se diz uma verdade sobre si mesmo deve ser considerada ficção”. Ou chegamos em Mario Vargas Llosa (2007), em seu texto “A verdade das mentiras” em que coloca em cheque a verdade dentro da literatura: “Não se escrevem romances para contar a 144 Descrição das pesquisas vida, senão para transformá-la, acrescentando-lhe algo” (LLOSA, 2007, p. 13). Ou temos ainda a opinião de Dante Moreira Leite (1964), quando diz: Toda biografia é trabalho de interpretação e, portanto, de imaginação criadora. [...] No caso da autobiografia, o processo não parece muito diverso, apesar da ilusão de maior verdade: ninguém diz tudo a respeito de si mesmo, e a verossimilhança e o sentido de uma vida dependem de critérios que não são dados, diretamente, pela ação (LEITE, 1964, p. 17). Quando Leite (2007) nos diz que toda biografia, e consequentemente, toda autobiografia é um trabalho de interpretação, chegamos justamente à leitura que propomos dos diários de Anaïs Nin, quando o que se tem é a interpretação de fatos corriqueiros feita pelo olhar de uma mulher. Como a mulher vê a sociedade em que vive é algo que ficou fora da História oficial, com Anaïs Nin a mulher sai dos bastidores. Todavia, existe uma marginalização político-literária de gênero, que coloca a narrativa autobiográfica (memórias, cartas, autobiografias e diários), como sendo “coisa de mulher”, o que resulta em sua exclusão do cânone. Em particular, o diário configurase como o gênero narrativo menos valorizado e mais identificado com a escritura de autoria feminina. Para Elódia Xavier (1991; 1998), a autoria feminina identifica-se nos temas tratados de forma recorrente nos textos escritos por mulheres, os quais seriam: falar de mulheres; uso dominante da primeira pessoa; tom confessional; busca de identidade; presença da família e do espaço doméstico. Os diários, em grande parte, retratam o dia-a-dia da família, e estão repletos de observação dos detalhes banais da vida. Madeleine Foisil (1991, p. 336) dá um valor especial a esta subjetividade contida nos diários: “Os autores de memórias que mais se aproximam da vida privada fornecem, assim, um depoimento insubstituível”. A produção sobre a escrita feminina e a crítica feminista inicia-se nos anos de 1970, e, já no início dos anos 80, os estudos passam a ser aglutinados em duas grandes linhas: a anglo-americana e a francesa. Isabel Allegro de Magalhães (1995, p.18-20) define a crítica feminista anglo-americana como estudo concentrado na busca de uma atitude reivindicativa da mulher frente a sua condição feminina na sociedade, mais preocupada com o conteúdo dos textos do que com a sua expressão lingüística. Já a linha francesa, de formação mais filosófica, lingüística e psicanalítica, preocupou-se com a definição da identidade feminina, que deveria ser expressa através de uma linguagem própria ligada às experiências do corpo da mulher. Contudo, Elaine 145 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Showalter (1994), separa a linha inglesa da americana. Temos então, segundo Showalter (1994, p. 31), três grandes linhas, cada qual com suas características: a linha inglesa, de base marxista, que procura salientar a opressão sofrida pelas mulheres; a linha francesa, de base psicanalítica e desconstrucionista, tendo como principais teóricos Freud, Lacan e Derrida, e que procura salientar a repressão sofrida pelas mulheres; e a linha americana, baseada no texto, que procura salientar a expressão das mulheres na literatura. Após discutir cada corrente, Elaine Showalter propõe uma nova linha que englobe tanto a linha inglesa quanto a americana e a francesa. Essa nova teoria é chamada pela autora de ginocrítica – Gynocritics (SHOWALTER, 1994, p. 29 e 31). Em seu texto, Showalter busca construir um quadro teórico para a atual crítica feminista norte-americana. Segundo a autora (SHOWALTER, 1994, p. 24), a crítica feminista encaixa-se entre a ideologia feminista e o ideal do desprendimento, sendo esse o território da teoria no qual as mulheres devem tornar visível sua presença. Showalter busca uma crítica científica, e não uma crítica baseada na experiência. Assim, o que falta à crítica feminista é definir-se em relação às outras teorias. A autora salienta ainda que toda crítica feminista é, de alguma forma, revisionista: “Não obstante, a obsessão feminista em corrigir, modificar, suplementar, revisar, humanizar ou mesmo atacar a teoria crítica masculina mantém-nos dependentes desta e retarda nosso progresso em resolver nossos próprios problemas teóricos” (SHOWALTER, 1994, p. 27-28). É justamente quando a crítica feminista muda seu foco de leituras revisionistas para uma investigação consistente da literatura feita por mulheres que começa a existir a ginocrítica: abertura de muitas oportunidades teóricas que não se encaixam na crítica feminista. Surgem, então, duas grandes questões: como podemos considerar as mulheres um grupo literário distinto? Qual a diferença nos escritos das mulheres? Quem inaugurou o novo período da crítica feminista preocupada com a diferença da forma dos escritos literários feitos por mulheres foi Patrícia Meyer Spacks, em 1975. A mudança de ênfase – olhar exclusivamente voltado aos escritos feitos por mulheres – também ocorreu na crítica francesa, o que a aproxima da crítica americana. A questão sobre como a mulher é percebida e percebe o mundo, é vista por Showalter (1994) como uma zona selvagem, que deve estar fora dos limites do espaço patriarcal. É um “lugar” exclusivamente feminino, aonde o homem não pode chegar, enquanto, todo o “espaço” masculino é acessível às mulheres. É nesse espaço que algumas estudiosas se 146 Descrição das pesquisas concentram, como, por exemplo, as francesas. Porém, a autora lembra que é impossível fazer crítica fora dos limites da estrutura dominante: [...] cada passo dado pela crítica feminista em direção à definição da escrita das mulheres é, da mesma forma, um passo em direção à autocompreensão; cada avaliação de uma cultura literária e de uma tradição literária femininas tem uma significação paralela para nosso lugar na história e na tradição crítica (SHOWALTER, 1994, p. 50). O conhecimento da realidade em que se está inserida é a grande conquista que o feminismo e a crítica feminista podem proporcionar à vida de uma mulher, quando ela deixa de viver como uma boneca, e passa a ter vida própria. Pretende-se através de estudos históricos, filosóficos e de teoria literária alcançarmos uma nova posição crítica à cerca da literatura produzida por mulheres. Existiria, então, algo que poderíamos chamar de estética do feminismo, ou uma estética da literatura produzida por mulheres? Se traçarmos o caminho ditado pelos diários de Anaïs Nin, poderíamos chamá-la, inclusive, de estética da libertação: a mulher consciente de seu papel sócio-cultural, e livre em sua sexualidade. Objetivos Os principais objetivos são: • Fazer uma análise crítica das obras Henry e June, Incesto e Fogo de Anaïs Nin, sob o foco da ginocrítica de Elaine Showalter; • Observar e analisar a construção do tempo nos diários de Anaïs Nin; • Observar e analisar a representação do corpo feminino na escrita de Anaïs Nin; • Observar e comparar a estrutura das relações sociais, além de traçar de que maneira o contexto histórico construído nas obras interfere na vida da autora; • Observar como a narradora coloca seus conflitos existenciais em seu relato. Resultados 147 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Nestes primeiros anos de pesquisa, além de cursar as disciplinas obrigatórias, o principal objetivo do trabalho foi levantar a fortuna crítica de Anaïs Nin, e retomar o estudo feito no mestrado das principais correntes teóricas à cerca da escrita feminina, da escrita de autoria feminina e do feminismo. Além disso, publicamos um artigo a partir dos estudos do mestrado, e produzimos cinco monografias para as disciplinas da pós, que pretendemos transformá-las em capítulos da tese. Bibliografia BEAUVOIR, S. O segundo sexo: 2: A experiência vivida. Tradução de Sergio Milliet. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. BOOTH, W. C. A retórica da ficção. Trad. Maria Teresa H. Guerreiro. Lisboa: Minerva/Arcádia, 1980. BOSI, A. O tempo e os tempos. In: NOVAES, A. (Org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 19-32. BOURDIEU, P. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Berthand Brasil, 2005. BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CANDIDO, A. et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2004. CANDIDO, A. Literatura e sociedade. São Paulo: Publifolha, 2000. CASTELLO BRANCO, L.; BRANDÃO, R. S. A mulher escrita. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004. 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A enunciação de suas realizações televisivas (Hoje é dia de Maria; A Pedra do Reino; Capitu) parece produzir enunciados que reúnem a história da obra em questão e a história da crítica dos contos e/ou romances transpostos, de modo deliberado e atualizado. Esse resgate se revela na obra transposta, oferecendo outras possibilidades de compreensão e significação, que remetem não somente ao autor primeiro, mas a esse Carvalho-autoral que consegue, antropofagicamente, transpor o que era do universo literário da obra e do universo literário do autor, para um universo sincrético. Ao encontramos certas invariantes estéticas presentes na construção da minissérie Hoje é dia de Maria e tendo em vista o desenvolvimento do projeto de mestrado, - o qual analisamos o processo de leitura realizado por Carvalho na transposição do romance Dom Casmurro para a minissérie Capitu-, pensamos na possibilidade de averiguação/comparação de tais procedimentos, constituintes do ato criativo do diretor, em suas demais realizações, seja em seu único filme, Lavoura Arcaica (2001), seja em suas demais transposições literárias para a televisão - A pedra do reino (2007). O andamento da pesquisa do mestrado realizada com o estudo da obra Capitu1nos instigou a testar nas demais obras do diretor as recorrências que consolidam uma poética de escancaramento, e a qual estamos tentando delinear2. Assim, a 1 Vale ressaltar que tanto a minissérie Hoje é dia de Maria quanto a minissérie Capitu já foram analisadas por nós. A primeira, no projeto de IC, a segunda, no andamento do mestrado até sua qualificação. 2 Propusemos que tal poética vai se (con)figurando na combinação de duas tendências igualmente fortes de composição: na exploração de objetos usados em cena, em geral reciclados, tecidos velhos, artesanatos etc., combinados com o que existe de mais tecnológico, em termos de atualização e recriação 150 Descrição das pesquisas possibilidade de elencarmos tais invariantes em um projeto ampliado e que contempla quase toda a obra do diretor nos remeteu à viabilidade de um estudo sobre a construção do ethos carvalhiano. Desse modo, o que queremos ressaltar em relação à produção de Luiz Fernando Carvalho, portanto, é que o ethos deste enunciador-leitor sincrético parece estar sendo reafirmado em cada novo trabalho artístico. Embora o filme Lavoura Arcaica, transposição do romance homônimo (1975) do escritor Raduan Nassar, não integralize o córpus que se pretende analisar com a continuidade desta pesquisa3, tentaremos estabelecer as relações existentes entre a linguagem cinematográfica explorada pelo diretor em um suporte outro, a televisão, fundindo ambas as linguagens, de acordo com suas especificidades. Há, dessa forma, a tentativa de traçarmos um modo de fazer televisivo que rompa com a hegemonia desse gênero que, predominantemente, parece voltar-se para uma produção serializada, um público de massa, a fabricação de um produto comercial. Nas realizações de Carvalho, o que temos, para investigação e análise, é mais o esboço de um caminho de leitura empreendido pelo realizador que se faz crítico-leitor, constituindo uma espécie de ensaio televisivo, distanciando-se de uma simples passagem de um texto para outro sistema. Para um público majoritário de entretenimento de massa, com interesses heterogêneos e dispersos, tal tentativa do diretor, na Rede Globo de Televisão, inaugura um espaço para um tipo de produção mais reflexiva, voltada para a sensibilização e educação dos sentidos necessários ao entendimento do próprio conceito de arte. É no conjunto da obra deste diretor que podemos encontrar, também, um estudo da própria tradição do audiovisual. As técnicas da televisão e do cinema parecem ser colocadas em crise e, consequentemente, em questionamento, por suas limitações e/ou extrapolações no engendramento de sentidos. Mais do que um realizador de transposições para o cinema e para a televisão, o trabalho de Luiz Fernando Carvalho parece mobilizar e atualizar todo um repertório em dessas peças, bem como o que há de mais apurado em procedimentos de filmagem. Nossa hipótese para a consolidação dessa poética é que o elemento diferencial de Carvalho consiste no fato de ele apoiar-se na recorrência com que a denúncia dos seus procedimentos é feita. Assim, consegue produzir outros sentidos para a obra, não só devido à exploração de procedimentos metalinguísticos ao longo da trama, mas, principalmente, pelo escancaramento dos recursos, permitindo que suas minisséries sejam lidas dentro de uma ficcionalidade altamente reflexiva, que mimetiza o próprio conceito de ficção. 3 É importante ressaltar que não estudaremos a minissérie Os Maias (2001), também com direção de Luiz Fernando Carvalho, mas com parceria com Maria Adelaide Amaral, por não tratar de um trabalho de autoria e estética exclusiva do diretor em questão. 151 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa torno das obras e de suas próprias leituras, engendrando significações plurais. Desse modo, este nosso trabalho, como um todo, acentua-se como um percurso do ato de leitura realizado pelo enunciador sincrético que se faz e se mostra leitor crítico da literatura transposta. É nossa leitura sobre a leitura feita pelo diretor de uma obra literária que, por sua vez, já foi lida pela crítica, pela recepção da crítica e, consequentemente, pelo telespectador que ora debruça-se sobre o produto final dessas leituras. E como ler é eleger, procuramos conciliar este nosso trabalho com a poética do escancaramento do diretor em questão, que parece ser a sustentação desse processo de leitura, aproximação e diálogo entre a literatura e o cinema, a literatura e a televisão, a literatura e o teatro. Dentro do exagero, da hiperbolização e do escancaramento do fazer que caracterizam tais minisséries, encontramos sutilezas que permitem um estudo aprofundado da obra, da crítica, da tradição, e, principalmente, das reverberações que a produção dos escritores selecionados produzem na literatura nacional e internacional. Tais contribuições nos permitem, ainda, considerá-lo como um diretor que parece estar firmando, também, seu lugar em nossa literatura televisiva, fornecendo-nos, com seu modo de sentir suas produções, um conceito de literariedade pela imagem. Os principais objetivos da presente pesquisa podem ser elencados da seguinte maneira: 1) Articular as análises das três minisséries (Hoje é dia de Maria; A Pedra do Reino; Capitu) com o projeto estético do diretor Luiz Fernando Carvalho, examinando e descrevendo procedimentos de discursivização mobilizados pelo enunciador na manifestação discursiva de superfície. Levar-se-á em consideração as mudanças, manutenções e/ou soluções encontradas na passagem das categorias narrativas constituintes da obra literária quando transpostas para um texto sincrético, atentando, neste, para a formação de uma estratégia global enunciativa em sua composição discursiva e textual; 2) Ao buscarmos uma reflexão pormenorizada do estudo da obras selecionadas em relação às suas contribuições no âmbito da literatura, como também do estudo das marcas autorais presentes tanto nas obras desses consagrados autores/criadores quanto do autor /criador singular, pretendemos traçar, por fim, a constituição do ethos de um enunciador-sincrético que problematiza e convoca a tradição literária, a tradição fílmica e a tradição televisiva, esgarçando seus limites e instalando sua própria tradição enquanto escritor televisivo/cinematográfico. 152 Descrição das pesquisas Ao se fazer uma análise pormenorizada de uma obra televisiva e/ou cinematográfica, temos que “[...] despedaçar, descosturar, desunir, extrair, separar, destacar e denominar materiais que não se percebem isoladamente ‘a olho nu’, pois se é tomado pela totalidade”. (VANOYE, 1994, p.15). Para tal efeito, temos que estabelecer os elos existentes entre esses elementos isolados, compreendermos como se associam e, por fim, definidas suas relações, chegarmos novamente ao todo significante. Dessa forma, temos, como córpus desta pesquisa ampliada, o seguinte percurso analítico a ser atentado: - Hoje é dia de Maria (2005), baseada na obra de Carlos Alberto Soffredini e com roteiro escrito por Luiz Fernando Carvalho e Luís Alberto de Abreu, apresenta uma viagem, a um só tempo, poética e trágica, aos diversos gêneros existentes. Retrata a trajetória de uma menina rumo à maturidade e às descobertas da vida moderna, inserindo elementos cômicos em sua peregrinação. Essa forte presença do hibridismo de gêneros culmina numa rica multiplicidade de elementos, recursos e materiais que incluiu uma vasta pesquisa, ao longo do processo de realização televisiva, pelas tradições orais, populares e a diversidade artístico-cultural existentes no Brasil. Reúne, então, diferentes gêneros musicais, literários, cantos populares, teatro mambembe e dialetos regionais. Tal reelaboração do “roteiro inédito”, além de realizar um profundo mergulho na tradição oral brasileira pelas lentes da TV, acabou, também, por incorporar características que remetem aos ideais do Movimento Armorial. Esse movimento nasceu no Recife, nos anos 70, e buscou uma poética, um modo criativo apoiado na valorização da cultura popular, com o intuito de promover a imagem de uma nova literatura, de uma nova arte brasileira. E é essa relação estabelecida com tal poética que nos interessa. - Seguindo uma espécie de ressoo das leituras feitas na composição da minissérie Hoje é dia de Mar-ia, a minissérie A Pedra do Reino (2007) – transposição do Romance D’ A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta (1970), do escritor Ariano Suassuna – também pode ser denominada, conforme este, de “romance armorial – popular brasileiro”. A obra, em seu todo, é escrita em 85 folhetos e preenchida de aspectos regionais, referências nordestinas e históricas que se enquadram na poética explorada pelo Movimento Armorial, ícone da criação artística do Nordeste na época. Há uma intensa exploração e valorização da cultura popular brasileira retrabalhada na construção da minissérie, bem como um trato com o tempo de forma mítica e do espaço, a cidade de Taperóa, como índice de uma significação maior. A 153 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa teatralidade figura, nessa minissérie, como um componente narrativo, estabelecendo relações de comparação com o trato dado pela Poética Armorial; interesse, esse, na relação entre as duas minisséries Hoje é dia de Maria e A Pedra do Reino. - A minissérie televisiva Capitu, escrita por Euclydes Marinho, com colaboração de Daniel Piza, Luís Alberto de Abreu e Edna Palatnik, e texto final do diretor Luiz Fernando Carvalho, apresenta-se como uma transposição aproximada da obra Dom Casmurro, do escritor Machado de Assis. Ao longo do processo de sua realização, lemos, por meio dos efeitos de sentido construídos tanto no plano de conteúdo quanto no plano da expressão, o transparecer das experiências de Machado de Assis enquanto escritor, poeta, ensaísta, crítico, dramaturgo, preenchendo e atualizando, assim, o texto de Dom Casmurro (1899) com novas visibilidades, interpretações, retomadas, diálogos, intertextualidades e interpretações. A tomada de posição do diretor em relação ao que deveria ser transposto tanto da obra, quanto da crítica, em suas vozes ressoantes, mostra-se por intermédio de um conjunto de colagens, de tempos e de avessos. E é esse movimento de leitura realizado que nos interessa desconstruir, para, então, construir o sentido engendrado na textualização final da minissérie. Há, como se pode notar na breve descrição do córpus, um movimento de leitura que recupera não só o romance a ser transposto para outro suporte, mas a crítica, as leituras e o estilo do escritor primeiro. Instaura-se, assim, um processo de transposição televisivo que trabalha, principalmente, com a exploração e o resgate das escolhas evocadas pelas respectivas enunciações mobilizadas por um gênero que sincretiza diversas outras linguagens, pensadas não separadamente, porém como “[...] uma estratégia global de comunicação sincrética capaz de gerir o contínuo discursivo resultante da textualização.” (TEIXEIRA, 2009, p.50). O procedimento de geração por conversão (transposição) de um nível em outro faz com que as estruturas profundas de um texto, por intermédio de um processo de complexificação e preenchimento, possam converter-se em estruturas, para além da superfície, as quais, por sua vez, mediante a textualização, tornam-se manifestáveis. Entendendo que os gêneros e as linguagens vão se organizando de acordo com suas especificidades e um acaba por influenciar o outro, infere-se que o meio televisivo, assim como a literatura e toda forma de arte em geral, confere, portanto, uma notável importância para o plano de expressão, atribuindo-nos, pelas próprias características do suporte sincrético, uma dimensão maior de análise. Tal importância, de modo algum, deve ser entendida como uma dissociação e/ou um desequilíbrio no trato para com os 154 Descrição das pesquisas dois planos, constituintes de todo signo verbal e que só adquirem sentido em articulação. O que se pode verificar, pois, é a incidência, nos textos que trabalham com diferentes manifestações de linguagem, de uma estratégia de enunciação, denunciada pelo plano de expressão, a qual confere certa homogeneidade à diversidade de componentes convocados pela manifestação discursiva e textual. Com base numa análise comparativa, percebe-se que os realizadores de uma minissérie, em sua maioria, usam artifícios para causar, nos leitores, determinados efeitos de sentido, diferentes daqueles usados pelo autor da obra original. As categorias da narrativa – narrador, personagens, tempo, espaço – são bastante alteradas pela mudança na esfera de veiculação do novo texto. Considera-se, assim, que o processo de adaptação não se esgota na transposição do texto literário para outro veículo. Ele gera uma cadeia de interpretações, identificações, intertextualidades, constituindo uma realização estética que envolve tradução e interpretação de significados e valores histórico-culturais. Ao estudarmos as obras literárias constituintes do nosso córpus recorremos à extensa e consolidada fortuna crítica existente sobre as obras e seus escritores e os eventuais investigações aos quais elas possam nos remeter. Para examinar a criação televisiva, buscaremos o apoio teórico nos estudos de Anna Maria Balogh, Sergei Eisenstein, Ismail Xavier, Francis Vanoye, Robert Stam e nos textos a que eles aludem, bem como todo o material publicado sobre construção das minisséries televisivas e que incluam entrevistas concedidas pelo diretor Luiz Fernando Carvalho a respeito do processo criativo de suas realizações artísticas. Ainda, é preciso ressaltar que todos esses estudos formarão uma rede orientada e sobredeterminada pela teoria semiótica de inspiração francesa, linha escolhida como suporte teórico predominante, o que não nos inviabilizará de recorrermos a outras com que ela possa dialogar, como é o caso das reflexões que Bakhtin e seu Círculo têm deixado como contribuições cada vez mais profícuas para o enriquecimento dos estudos sobre o discurso, especialmente para a semiótica da enunciação. A opção, no entanto, pela semiótica como teoria de base, legitima-se tanto pela coerência da metalinguagem apresentada e em constante aperfeiçoamento, quanto pela construção e aplicação de métodos fundados e pertinentes à compreensão do processo de significação, que chegam a apreender o sentido "em ato", tal como o experimentamos, não apenas em seu plano cognitivo, o do inteligível, mas também no plano sensível. 155 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Bibliografia A PEDRA DO REINO. 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Maria Celeste Consolin Dezotti (Or.) “La vida no es la que uno vivió, sino la que uno recuerda y cómo la recuerda para contarla”. Gabriel García Márquez Um universo conciso e bem estruturado, onde indagações sobre o homem, sua realidade, sua existência e seu destino permeiam a narrativa, esses são alguns dos temas que permeiam a obra Crónica de una muerte anunciada (1981) do autor colombiano Gabriel García Márquez. Tencionamos com esta pesquisa analisar como uma série de acontecimentos e circunstâncias levaram ao assassinato da personagem principal, Santiago Nasar, pelas mãos dos gêmeos Pablo e Pedro Vicário. Com isso, analisaremos as memórias que são apresentadas ao longo da narrativa, que são construídas com o auxílio das personagens e do narrador da história. Outro aspecto a ser abordado nessa pesquisa é o que se refere ao trágico, uma vez que, a fatalidade das circunstâncias que levaram o personagem a morte, nos mostrou que nunca houve uma morte tão anunciada. Ao analisarmos o narrador de Crónica de una muerte anunciada, podemos classificá-lo, segundo a nomenclatura proposta por Genette (1979), como um narrador homodiegético, uma vez que, participa da ação que narra. Segundo Reis e Lopes (1988), O narrador homodiegético é a entidade que veicula informações advindas da sua própria experiência diegética, quer isto dizer que, tendo vivido a história como personagem, o narrador retirou daí as informações de que carece para construir o seu relato. (REIS, LOPES, 1988, p. 124). A partir desta informação depreendemos que o narrador, por ser uma testemunha do assassinato da personagem principal, retira as informações de sua vivência para construir a narrativa. Entretanto, por não ter as informações totais do ocorrido, o narrador vale-se dos testemunhos das personagens que estiveram ligadas intimamente ao acontecimento: “Yo conservaba un recuerdo muy confuso de la fiesta antes de que 160 Descrição das pesquisas hubiera decidido rescatarla a pedazos de la memoria ajena.” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2010, p. 53) Essa narrativa será repleta de ida e vindas, antecipações e resgates. O narrador da obra entende que a recuperação dos acontecimentos pela memória é uma reconstrução do passado contaminado pelo presente. Segundo Benjamin (1985, p. 37), um “acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo que veio antes ou depois.”. Ecléa Bosi (1994, p.37) nos afirma que “o interesse deve estar no que foi lembrado, no que foi escolhido para perpetuar-se na história.”. Com essa afirmação podemos depreender que as memórias recolhidas na obra estudada buscam perpetuar na história um assassinato que teria ocorrido em um povoado colombiano, pois segundo Halbwachs (2006) é preciso que haja testemunhos para que um fato se perpetue e se torne memória para um grupo. Podemos perceber com as afirmações acima que as memórias são construções de grupos sociais, pois as memórias do indivíduo nunca são suas, uma vez que, não existe memória sem uma sociedade. Halbwachs (2006) nos lembra de que a constituição da memória de um indivíduo é uma combinação das memórias dos diferentes grupos dos quais ele participa e sofre influência. Esse crítico nos chama a atenção para o fato de que a memória coletiva tem como base as lembranças que os indivíduos recuperam enquanto integrantes de um grupo, cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva. Assim, vemos que a obra de García Márquez é construída a partir da apresentação de diversos pontos de vista sobre a personagem e o “agravo” que o teria levado a morte. Cada personagem tem uma identidade o que nos leva a pensar que os depoimentos não estão livres das visões de mundo pautadas em preconceitos enraizados na cultura do povoado. Assim, por se tratar de uma suposta desonra, muitos personagens no fundo se recusaram a avisar Santiago Nasar, pois “ [...] la mayoría de quienes pudieron hacer algo por impedir el crimen y sin embargo no lo hicieron, se consolaron con el pretexto de que los asuntos de honor son estancos sagrados a los cuales sólo tienen acceso los dueños del drama.”. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2010, p. 112). Para concluirmos, Bosi (2003, p. 44) nos afirma que “ouvindo depoimentos orais constatamos que o sujeito mnêmico não lembra uma ou outra imagem. Ele evoca, dá voz, faz falar, diz de novo o conteúdo de suas vivências. Enquanto evoca ele está vivendo atualmente e com uma intensidade nova a sua experiência.”. Assim, recordando 161 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa os acontecimentos daquela segunda-feira o narrador e as personagens buscam construir as últimas quatro horas de Santiago, e é provável que, essas vivências tenham lacunas, que ao decorrer da narrativa possam ter sido preenchidas com a imaginação, uma vez que a memória é construída com ambiguidades e enigmas. Portanto, percebemos que o narrador ao invés de esclarecer os fatos, só aumenta as possibilidades de significação, pois nos deixa transparecer suas opiniões a respeito da diegese. Com a leitura da obra podemos perceber que a intenção do narrador não é a de esclarecer se realmente Santiago Nasar teria ou não desonrado Ângela Vicário. A narrativa funciona para obscurecer as circunstâncias que levaram a personagem à morte. O que nos chama a atenção é que a obra apresenta fatos que podem ser explicados sob diferentes ângulos. Há dúvidas e equívocos que não são esclarecidos pelos relatos e concluímos que o silêncio é um morador que convive com o tumulto das vozes. Segundo Halbwachs (2006, p. 29) “[...] recorremos a testemunhos para reforçar ou enfraquecer e também para completar o que sabemos de um evento sobre o qual já temos alguma informação, embora muitas circunstâncias a ele relativas permaneçam obscuras para nós.”. As memórias, assim como nos afirma Bosi (1994, p. 20), “[...] é reflexão, compreensão do agora a partir do outrora; é sentimento, reaparição do feito e do ido, não sua mera repetição.”. Com isso, percebemos a ideia central desse narrador, que busca entender sua vida, com o outrora, com seu passado significativo. As memórias que as personagens relatam ao narrador, por vezes, apresentam pontos contraditórios e é a partir dessa contrariedade que o narrador irá construir seu texto, explicitando ao leitor as divergências que os relatos apresentam, para que assim nos conduza as nossas próprias percepções acerca do assassinato da personagem. Assim, como nos apresenta Ecléa Bosi (2003), em suas análises sobre as memórias, é com o vínculo com o passado que construímos nossa identidade, a nossa visão de mundo. Na busca pelas circunstâncias que levaram a este crime, o narrador apresentanos o rico passado deste povoado que durante anos não pôde falar de outra coisa. “[...] porque ninguno de nosotros podía seguir viviendo sin saber con exactitud cuál era el sitio y la misión que le había asignado la fatalidad.” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2010, p. 111). Entretanto, devemos lembrar que a memória é uma construção social e um fenômeno coletivo, assim, por fazer parte da construção social do indivíduo é modelada pelos grupos sociais. Ao dar voz ao povoado o narrador transparece ao leitor a visão de mundo pautada em preconceitos na qual o povoado era constituído. A identidade, 162 Descrição das pesquisas sentimentos, ideias e valores são difundidos em depoimentos, que deixam à mostra a complexidade dos acontecimentos. Bosi (2003, p. 33) nos diz que “[...] a memória é a história de um passado aberto, inconcluso, capaz de promessas. Não se deve julgá-lo como um tempo ultrapassado, mas como um universo contraditório do qual se podem arrancar o sim e o não, a tese a antítese, o que teve seguimento triunfal e o que foi truncado.”. E por tratar-se de um “passado aberto”, o narrador decide coletar as circunstâncias desse assassinato e desvendar os mistérios ocultos por trás de “tantas coincidências funestas”, e este é um fatalismo desconhecido, irracional e envolvente, que nos obriga a reflexionar mais profundamente sobre esta obra. No que se refere às características trágicas presente na obra, estudos nos mostraram que a problemática do trágico continua em aberto. Lesky (1971) nos afirma que: [...] antes de mais nada, defrontamo-nos aqui com a questão de saber se o conteúdo trágico, entendendo-se ainda a palavra em sua acepção mais geral, está tão intimamente vinculado à forma artística da tragédia, que só aparece com ela, ou se, na criação literária [...] dos gregos já se encontraram germes em que se prepara a primeira e, ao mesmo tempo, a mais perfeita objetivação da visão trágica do mundo [...]. (LESKY, 1971, p. 18) Segundo esse crítico, seria necessária uma minuciosa pesquisa para obtermos com segurança o desenvolvimento do termo “trágico”. Entretanto, pode-se afirmar que os gregos criaram a arte trágica, mas não uma teoria que a definisse e que fosse além de sua construção e envolvesse a concepção do mundo como um todo. Aristóteles em sua Poética (1980) utiliza o termo de forma simplificada e aplicada ao emprego posterior dado a ele, a de simples adjetivo, vemos que o filósofo o explica, entretanto não o avalia. Malhadas (2003, p. 36) nos diz que “[...] o trágico está condicionado ao despertar das emoções próprias da tragédia, ou seja, do terror e da piedade e, por conseguinte, do patético, principalmente nos finais catastróficos.”. Percebemos que o termo “trágico” designa uma maneira de ver o mundo, e a noção de que nosso mundo é trágico em sua essência mais profunda é bem mais antiga do que imaginamos. Para Lesky (1971, p. 44) “[...] a concepção do trágico é ao mesmo tempo uma visão do mundo.”. Com isso percebemos que as memórias apresentadas na obra possuem características que podemos classificar como sendo trágicas, uma vez que, nos são 163 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa apresentadas a fragilidade humana. Ao não intervirem nas ações e compactuarem com a fatalidade da morte de Santiago Nasar, é criada uma ansiedade torturada dentro da narrativa, pois tanto o narrador quanto as personagens querem esclarecer o absurdo e decifrar o destino trágico que se abateu sobre a personagem principal. Portanto, os aspectos acima apontados servirão de ponto de partida para os estudos da obra Crónica de una muerte anunciada. Evidenciaremos a sua contribuição para os estudos do trágico, memórias e análises que se pautam em observações descritivas e interpretativas do narrador. Para que isto ocorra, faremos um percurso histórico da tragédia até que consigamos chegar a estudos recentes das contribuições que esse gênero traz para a literatura. Isso implica discutirmos as características que possibilitam afirmar que a obra de García Márquez possui aspectos que podem ser considerados trágicos. Referências bibliográficas ARISTÓTELES. Poética. Tradução Eudoro de Sousa. Lisboa: Guimarães, 1980. BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e poética: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. BOSI, E. O tempo vivo da memória: ensaios de Psicologia Social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. ______. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. GARCÍA MÁRQUEZ, G. Crónica de una muerte anunciada. Buenos Aires: Debolsillo, 2010. GENETTE, G. Discurso da narrativa. Lisboa: Arcádia, 1979. HALBWACHS, M. Memória coletiva. Tradução de Laurent Léon Schaffter. São Paulo: Centauro, 2006. LESKY, A. 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Nosso principal material de estudo, neste momento de escrita do primeiro capítulo, é a obra O que é a filosofia?, de autoria de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1992). Esta obra é de grande importância para a pesquisa, pois traz novos elementos na discussão das relações que se estabelecem, e das singularidades, da filosofia, ciência e arte. Poderíamos começar dizendo, junto com Deleuze e Guattari, que as relações da filosofia com a arte, aqui incluída a literatura, se estabelecem por um laço comum: a linguagem. Mais do que a linguagem, a palavra. No entanto, é importante insistir que filosofia e literatura são campos de conhecimento marcados por uma diferença de natureza, não apenas de grau: nada de essencialismo aqui, apenas a constatação de que os problemas e conteúdos de que tratam são diferenciados. Assim como a filosofia se diferencia da ciência, também se diferencia da arte (literatura): “a filosofia faz surgir acontecimentos com seus conceitos, a arte ergue monumentos com suas sensações, a ciência constrói estados de coisas com suas funções” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 254-255). Mas esta divisão seria insuficiente se afirmássemos que cada campo é fechado sobre si mesmo: a filosofia e seus conceitos, a ciências e seu functivos, a arte e 1 Trópico de câncer (2006), Primavera negra (1995) e Trópico de câncer (2008). 166 Descrição das pesquisas seus peceptos e afectos; o interesse desta perspectiva é a afirmação que “os três pensamentos se cruzam, se entrelaçam, mas sem síntese nem identificação” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 254). O que seria esse entrelaçamento sem síntese nem identificação? Significa que os planos traçados em cada um dos três diferentes campos de conhecimento são diferenciados e atravessados por diferentes matérias: os conceitos, na filosofia; as funções ou functivos, na ciência; e afectos e perceptos, na arte. Estas diferentes matérias e formas de pensar podem levar a aproximações, relações de proximidade entre os campos, mas não ao ponto de uma síntese que os agruparia. Por mais que se queira dizer que certo escritor possui uma filosofia, e que caberia ao crítico perceber esta filosofia e dar forma a ela2, as relações entre filosofia e literatura se dão entre formas de pensamento diferenciadas, entre dois planos diferentes: “a filosofia quer salvar o infinito, dando-lhe consistência: ela traça um plano de imanência”; a arte “quer criar um finito que restitua o infinito: traça um plano de composição” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 253). Estes planos diferenciados são também habitados, traçados, de maneira diferenciada: a filosofia e seus conceitos, a arte e a sensação. Entre o conceito e a sensação, todo um universo que não os deixa se identificarem, mesmo que digamos que exista uma sensação de conceito e um conceito de sensação: são diferentes formas de pensamento, formas que possuem relação mas não se deixam subsumir uma na outra. O escritor pensa por meio de sensações. O principal objetivo do escritor é criar um bloco de sensações, “isto é, um composto de perceptos e afectos” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 213). Perceptos se distinguem de percepções, pois são independentes daqueles que os experimentam; afectos são diferentes de afetos, pois não são apenas sentimentos ao extrapolar, transbordar, a força daqueles que atravessam3. Isto significa dizer que os compostos de sensações criados pelos escritores extrapolam a simples relação empática entre leitor/obra ao criarem compostos que extravasam, e muito, a sua intenção original – seja ela estritamente pedagógica, engajada ou para épater la bourgeoisie. A arte, a literatura, conservam em si seu ser de sensação: as 2 Este é o intento de Indrek Manniste ao afirmar que Henry Miller possui uma filosofia própria que sustenta toda sua obra (MANNISTE, 2013). Não queremos dizer que Manniste se engana ao montar um sistema filosófico a partir de Miller: afirmamos apenas que o autor “constrói” a filosofia de Henry Miller, como filósofo, diferente de Miller que pensa a partir da literatura. 3 É interessante perceber que D. H. Lawrence já trazia uma distinção parecida entre emoções e sentimentos. No caso, o que ele vê como sentimento seria o que Deleuze e Guattari tratam como afectos: “Digo sentimentos e não emoções. Emoções são coisas que nós mais ou menos reconhecemos. [...] E só até aí vai a nossa educação, quanto aos sentimentos. Não temos linguagem para os sentimentos, pois nossos sentimentos nem existem para nós” (LAWRENCE, 2010, p. 122). Lawrence trabalho os sentimentos como algo que extrapola as simples condições de conveniências que as emoções trariam – identificação. 167 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa sensações, formadas por perceptos e afectos, são seres independentes daqueles que as criam e as experimentam: uma obra de arte, um romance, deve se sustentar por si mesmo, em seu trajeto de superação de um “modelo”, de um espectador, do próprio autor que, pela própria auto-posição do criado, já não tem mais o que dizer sobre aquilo que criou: a intenção não faz mais parte da obra de arte no mundo, o objetivo do escritor não faz mais parte de sua literatura. A obra de arte existe por si. Talvez este seja um caminho deveras perigoso, afirmar que a arte existe em si, beirando um idealismo de seres de sensação, sendo por si mesmos fora de qualquer contexto. Mas, se olharmos mais atentamente, perceberemos que afirmar que um ser de sensação (uma obra de arte) existe em si é o mesmo que afirmar que “mesmo que o material só durasse alguns segundos, daria à sensação o poder de existir e de se conservar em si, na eternidade que coexiste com essa duração” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 216). O imbricamento com a filosofia é muito pronunciado em toda nesta passagem. Algo importante a ser apontado é que falamos em arte e em literatura indiscriminadamente: isto porque, em um sentido talvez esquecido ou estrategicamente ocultado, a literatura é uma arte. Sua preocupação, a preocupação do escritor como artista, é a mesma que a do pintor, do músico, do escultor “é arrancar o percepto das percepções do objeto e dos estados de um sujeito percipiente, arrancar o afecto das afecções, como passagem de um estado a um outro. Extrair um bloco de sensações, um puro ser de sensação” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 217). Mas, é claro, existem as singularidades que separam o escritor e os outros artistas: o material é diferenciado, a forma de fazer surgir estes blocos de sensações é diferente. Seu material “são as palavras, e a sintaxe, a sintaxe criada que se ergue irresistivelmente em sua obra e entra na sensação” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 218). O escritor busca fazer sua obra sustentar-se por si mesma, como todo outro artista, mas os meios são diferenciados. Sua técnica, seu material, não procuram fazer como, não procuram a verossimilhança, mesmo que o próprio escritor diga o contrário: a literatura não comunica, não traduz sentimentos, não leciona. Os escritores produzem perceptos, suas paisagens não são mero plano de fundo: a paisagem vê: O percepto é a paisagem anterior ao homem, na ausência do homem. [...] Por que dizer isso, já que a paisagem não é independente das supostas percepções dos personagens, e, por seu intermédio, das percepções e lembranças do autor? E como a cidade poderia ser sem homem ou antes dele, o espelho, sem a velha que nele se reflete, mesmo se ela não se mira nele? É o enigma (frequentemente 168 Descrição das pesquisas comentado) de Cézanne: “o homem ausente, mas inteiro na paisagem”. Os personagens não podem existir, e o autor só pode criálos porque eles não percebem, mas entraram na paisagem e fazem eles mesmos parte do composto de sensações. É Ahab que tem as percepções do mar, mas só as tem porque entrou numa relação com Moby Dick que o faz tornar-se baleia, e forma um composto de sensações que não precisa de ninguém mais: Oceano. [...] Os afectos são precisamente estes devires não humanos do homem, como os perceptos (entre eles a cidade) são as paisagens não humanas da natureza. [...] Não estamos no mundo, tornamo-nos, nós nos tornamos, contemplando-o. Tudo é visão, devir. (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 219-220) Pelo que mostramos até aqui, a arte, a literatura, prescindiria do humano como conteúdo primeiro e definidor de suas barreiras. Este não-humanismo não se relaciona com a feitura das obras, mas com a natureza das obras mesmas: seres de sensação, compostos de perceptos e afectos. A literatura, e aqui pensamos principalmente nas obras de Miller, pode se beneficiar desta perspectiva pois toma o lugar central como produtora de seres de sensação: não apenas a pintura, a escultura, a música ou o cinema; longe da esterilização da experiência literária levada a cabo, principalmente, pelos escritores pós-modernos da literatura americana4 que: “nos quer instruir na arte da narração, da imaginação fazedora de mito” (GASS, 1974, p. 104). Em sua maioria professores de escrita criativa5, suas obras acabam tendo a característica de parecerem exemplos de técnicas narrativas, resolvendo as relações entre literatura e vida por meio da metáfora: a literatura é “incuravelmente figurativa e o mundo que o romancista constrói é sempre um modelo metafórico de nosso próprio mundo” (GASS, 1974, p. 64). Qualquer concepção, ou aspecto, da literatura que escape aos moldes de uma metáfora é excluída: mesmo as relações entre literatura e mundo se dão em um plano metafórico na teoria de William H. Gass – aqui a técnica e a beleza da linguagem, seus ritmos e metáforas; ali, o mundo onde reina o acaso e que funciona como modelo mais ou menos aproximado do que o escritor pode produzir em suas obras: sua relação mediada por um como se que prolifera na interface linguagem/vida, instaurando a metáfora e relegando a linguagem, sua potência, a segundo plano6. 4 Pensamos aqui, principalmente, em autores como John Barth, Robert Coover, William H. Gass e Donald Barthelme. Excetuamos, sem maiores explicações teóricas, os casos específicos de Thomas Pynchon, Don DeLillo e Kurt Vonnegut. 5 Cf. Wlliam H. Gass, A ficção e as imagens da vida: “O fato da grande maioria desses escritores ensinar a escrever, quase não surpreende”, p. 104-105. 6 É interessante perceber este movimento pois grande parte da experiência filosófica e de outras áreas do conhecimento durante o século XX e XXI girou em torno de questões sobre a linguagem. 169 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Óbvio está, por hora, que estas são apreciações de um trabalho em andamento. Além da necessidade continuar o trabalho com as obras de Deleuze e Guattari, ainda se faz premente insistir de uma maneira não estanque na relação contrapontual do pósmodernismo americano com o modernismo de Miller, o que demanda uma maior delimitação dos autores que serão trabalhados e suas posições respectivas sobre a literatura e a ficção. Cabe lembrar que o objetivo do trabalho não é fazer uma crítica da pós-modernidade, o que já foi feito a contento por autores muito mais tarimbados, mas sim utilizar esses diferentes concepções do fazer literário como forma de melhor perceber o texto milleriano dentro de uma perspectiva que une literatura e filosofia. Outro ponto importante a mencionar é que, ainda neste primeiro capítulo, pretendemos trabalhar um pouco com a história da literatura americana, buscando conexões que possam ser interessantes na construção deste caminho teórico que estamos trilhando (MELVILLE, 2009; DELEUZE, PARNET, 2004, p. 51-95). Bibliografia DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Tradução de Bentro Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Da superioridade da literatura Anglo-Saxónica. In: DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Tradução de José Gabriel Cunha. Lisboa: Relógio d’Água, 2004, p. 51-95. GASS, William H. 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Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. 170 Descrição das pesquisas FICÇÃO E HISTÓRIA: A TRANSFIGURAÇÃO DO PASSADO EM NARRATIVAS DE TEOLINDA GERSÃO E MIA COUTO Daniela Aparecida da Costa Doutoranda – Bolsista CAPES/DS e PDSE/CAPES Profa. Dra. Maria Célia de Moraes Leonel (Or.) Prof. Dr. Fernando Cabral Martins (Coord. PDSE) 1. Breve contextualização do projeto de pesquisa de doutorado em desenvolvimento A pesquisa de doutorado em desenvolvimento (2011-2015), intitulada “Ficção e História: a transfiguração do passado em narrativas de Teolinda Gersão e Mia Couto”, está inserida na linha de pesquisa Teorias e Crítica da Narrativa do Programa de PósGraduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP de Araraquara, sob orientação da Profa. Dra. Maria Célia de Moraes Leonel. A investigação focaliza interações entre Literatura e História em narrativas de dois escritores contemporâneos das literaturas de língua portuguesa: Teolinda Gersão (Portugal) e Mia Couto (Moçambique). Nosso corpus de análise é constituído de cinco romances: Paisagem com mulher e mar ao fundo, de 1982, e A árvore das palavras, de 1997, de Gersão e Terra sonâmbula, de 1992, Vinte e zinco, de 1999, e O último voo do flamingo, de 2000, de Couto. A escolha dessas obras deveu-se ao fato de incorporem em sua urdidura fatos históricos recentes nos dois países que, em muitos aspectos, possuem pontos de intersecção, devido ao colonialismo português na África do século XV ao XX, que teve término somente com a Revolução dos Cravos de 25 de abril de 1974. Outros fatores também justificam a escolha do nosso corpus. Os três romances de Couto foram escolhidos por tecerem certa sequência cronológica na tomada dos fatos pela ficção; os dois da escritora portuguesa, por trazerem, no corpo ficcional, questões históricas muito próximas às das narrativas do escritor moçambicano. Além do procedimento de tomada da matéria histórica, os dois autores se aproximam por fazerem uso de uma escrita intimista: ao lado do factual, há o aflorar de subjetividades que refletem os dramas humanos individuais de personagens que, metonimicamente, refletem a coletividade. 171 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa A pesquisa contou com estágio de doutoramento sanduíche, no período de 01/03/2013 a 31/07/2013, junto ao Departamento de Estudos Portugueses da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, sob orientação do Prof. Dr. Fernando Cabral Martins. A realização do PDSE teve fundamental importância para o processo de investigação, pois proporcionou o pleno acesso a materiais bibliográficos1 fundamentais para o pleno êxito das atividades traçadas para a pesquisa no exterior e a continuidade da tese no Brasil. Assim, com o aparato teóricocrítico diferenciado, obtido com o estágio sanduíche, tem sido possível alcançar ainda mais a qualidade científica almejada na produção da escrita parcial2 e, posteriormente, na escrita final da tese. Além disso, foi possível realizar um contato pessoal com a escritora Teolinda Gersão que, na ocasião, falou sobre o seu processo de escrita e deu esclarecimentos elucidativos sobre as relações entre literatura e realidade que permeiam o projeto estético dos romances Paisagem com mulher e mar ao fundo e A árvore das palavras, que fazem parte do nosso corpus. 2. A transfiguração do passado: o discurso da História3 nas malhas da ficção Empregada como artifício literário no processo composicional das obras escolhidas para nosso corpus de análise, a História - do modo como é trabalhada no tecido da ficção contemporânea aqui estudada – constitui-se elemento estruturador do texto literário, em conjunto com as instâncias narrativas. Desse modo, nossa hipótese de trabalho é a de que o factual não se configura como mero pano de fundo nesses 1 Totalizaram mais de três mil laudas entre aquisição de obras, que não são editadas no Brasil, fotocópias e digitalizações de livros raros e/ou esgotados, encontrados nos Centros de Investigação da Universidade Nova de Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal e Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Todo material bibliográfico está em processo de leitura, fichamento e análise crítica, a fim de avaliá-lo qualitativamente e verificar as possíveis inserções de leituras críticas dos mesmos no corpo da tese. 2 A tese encontra-se em processo parcial de escrita: três capítulos foram produzidos. O primeiro, sobre as matizes entre literatura e realidade, está completo; o segundo - que trata das literaturas africanas de língua portuguesa, dando ênfase para a produção em Moçambique com Mia Couto - e o terceiro, cuja temática é a produção romanesca em Portugal pós-Revolução dos Cravos, com destaque para a produção literária de Teolinda Gersão, estão em fase de aprofundamento devido ao novo material bibliográfico encontrado durante o estágio PDSE em Lisboa. 3 Utilizamos na tese a diferenciação de História com inicial maiúscula para fatos históricos e história, com inicial minúscula, no sentido de narrativa ficcional, indo ao encontro da diferenciação utilizada por Maria Teresa de Freitas (1986, p.7). 172 Descrição das pesquisas romances, nem como elemento caracterizador ou formador de romances históricos ou de textos historiográficos, mas sim como peça responsável, em especial com as categorias narrativas de espaço e tempo, por trazerem questionamentos em torno da realidade versus ficção e pela produção e ampliação dos sentidos que se quer alcançar no e pelo texto literário. É consenso entre os críticos a afirmação de que na prosa atual em Portugal e Moçambique a incorporação, no corpo textual, do contexto histórico recente das duras realidades vividas pelas duas nações é empregada de forma ostensiva – principalmente nas obras do pós-independência (das ex-colônias portuguesas da África) e do pós-25 de Abril de 1974. Deseroicizando a História oficial, os romances de Gersão e Couto, aqui estudados, dão margem à imaginação e invenção literárias, sem a preocupação de demarcar fielmente o mote histórico. A presença da temática histórica é percebida numa primeira leitura dos romances de Gersão e Couto, seja por fazerem parte do domínio do senso comum do leitor, seja por existirem de maneira efetiva no discurso veiculado pela historiografia: ditadura salazarista, colonialismo, Guerra Colonial, Revolução dos Cravos, entre outros. O termo transfiguração, empregado no título e adotado nas análises das obras, é tomado com base na definição cunhada por Maria Teresa de Freitas (1986, p.7; grifos nossos), ao analisar as relações entre Literatura e História na obra ficcional de André Malraux: Por meio de um arranjo literário, os elementos históricos vão ser redistribuídos num conjunto fictício, que se transforma em algo diferente do universo social de onde eles foram extraídos ao criar uma história, com personagens e situações dramáticas, o autor tentará passar uma visão pessoal do universo – que não é de forma alguma cópia da realidade, mas sim interpretação dos acontecimentos relacionados à História -, através da qual chegará a uma realidade de natureza distinta daquela que a originou. A transfiguração artística deforma o mundo exterior, e produz uma determinada realidade filtrada pelos preconceitos e pelos anseios do escritor; essa deformação é o que determina o valor estético da ficção. O que ocorre na incorporação do histórico nas obras literárias de André Malraux, analisadas por Freitas, e nos romances de Gersão e Couto do nosso corpus, é a transfiguração/transformação do que seria a realidade objetiva. A linguagem narrativa cria, portanto, a representação de um cenário, que não é cópia da realidade como pretende o discurso histórico, que se utiliza principalmente da função referencial da 173 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa linguagem, mas revela, por meio de um posicionamento discursivo que privilegia o poético, um espaço textual singular, em que a história oficial se redimensiona pelo viés subjetivo das instâncias narrativas, afirmando-se como matéria e parte da ficção e não como documento histórico. Freitas (1986, p.7) afirma ainda que a transfiguração “[...] é o momento em que a imaginação do autor se liberta das imposições da História e se afirma como criação literária [...]”. Essa colocação faz-nos lembrar as importantes reflexões de Antonio Candido em Literatura e sociedade (2000, p.13), em que o crítico brasileiro afirma que a linguagem literária possui liberdade na incorporação da realidade, podendo deformá-la se for necessário para maior expressividade. Para Candido (2000, p.13), a liberdade “[...] é o quinhão da fantasia, que às vezes precisa modificar a ordem do mundo justamente para torná-la mais expressiva [...]”, constituindo-se “[...] num movimento paradoxal que está no cerne do trabalho literário e garante a sua eficácia como representação do mundo”. Mas o autor alerta que não “[...] basta aferir a obra com a realidade exterior para entendê-la, [pois isso] é correr o risco de uma perigosa simplificação causal” (CANDIDO, 2000, p. 13). Além das análises críticas de Freitas (1986) e Candido (2000), para o estudo da interação entre realidade e ficção na obra de Gersão e Couto, tomamos as discussões dos Estudos Culturais sobre o espaço geográfico da escrita. Posição defendida pelo crítico Edward Said em “História, literatura e geografia” (2003, p.225-226), quando afirma ser indispensável pensar a literatura do seu espaço geográfico de produção, levando em consideração as mudanças geográficas do mundo pós-eurocêntrico, ou seja, é necessário, de acordo com o autor, refletir sobre o espaço não só textual, mas social para a compreensão das diferentes perspectivas construídas no processo de tomada dos fatos históricos e incorporação da História e da memória pela literatura contemporânea, em especial pela produção literária de países de independência recente, como é o caso de Moçambique. Assim, cada um dos autores partilha, em espaços geográficos diferentes, de um passado conflituoso, com dimensões e problemas diferentes para cada um dos povos, que metonimicamente são representados em seus romances por meio de dramas individuais. Teolinda Gersão, por exemplo, em Paisagem com mulher e mar ao fundo, de 1982, analisa criticamente a postura do Estado Novo de enviar os jovens para servir nas colônias na Guerra Colonial, além do drama dos retornados, por meio dos amigos e família de Hortense e Clara, protagonistas do romance. Mia Couto, em Vinte e zinco, 174 Descrição das pesquisas romance de “encomenda” pela Editorial Caminho em comemoração aos 25 anos dos Cravos de Abril, retrata os últimos dias do PIDE Lourenço de Castro, trazendo a atmosfera de perseguição, mortes, prisões e torturas em Moçambique ocasionadas pela presença dos portugueses, durante o período colonial, revelando que o 25 de Abril português não possui o mesmo significado para os moçambicanos, que almejam outro vinte e cinco: o 25 de junho de 1975, data em que de fato ocorre a independência do país. Ou seja, cada um em seu espaço e tempo da escritura escreve sobre as mazelas da História, não com o objetivo de retratar fielmente o histórico, mas de transfigurá-lo e/ou deseroicizá-lo. O que fica em evidência é o olhar crítico da literatura para com a matéria histórica recente, por meio do retrato do choque cultural, sob diferentes perspectivas e pelas artimanhas da linguagem, operadas pelo estilo próprio de cada escritor. Portanto, o estudo busca, por meio da análise do corpus literário escolhido, confrontar os diferentes olhares sobre o passado recente das duas nações veiculados pelos romances de Teolinda Gersão e Mia Couto. O intuito da pesquisa é traçar convergências e divergências entre a produção de Gersão e de Couto, levando sempre em consideração o contexto histórico-crítico em que essas obras foram produzidas e também a geografia (SAID, 2003, p.225-226) de cada produção e as preferências e tendências marcantes de cada um dos autores, a fim de analisar os procedimentos narrativos na incorporação do discurso da História no espaço da ficção como elemento constitutivo da matéria ficcional (CANDIDO, 2000, p.7), operando a produção de novos sentidos, juntamente com as instâncias narrativas. Além disso, como mencionado, investigar, no procedimento de tomada da matéria histórica, o uso de uma escrita intimista, que por meio do aflorar de subjetividades mostram a busca pela identidade coletiva. Para o desenvolvimento da pesquisa são tomados como embasamento teóricocrítico os seguintes grupos de textos: a) sobre a ficcionalização da História e o problema da representação da realidade ao longo da crítica literária; b) teóricos dos Estudos Culturais para a compreensão da configuração da literatura em países de independência recente, como é o caso de Moçambique; c) teórico-críticos sobre a constituição e principais tendências das literaturas de língua portuguesa, em especial, a produção de Moçambique com Mia Couto e de Portugal pós-Revolução dos Cravos, com destaque para a obra ficcional de Teolinda Gersão; d) teóricos para a compreensão dos conceitos de memória, história e ficção; e) da Teoria da Narrativa para a análise das categorias narrativas, em especial o tempo e o espaço; f) críticos sobre a história recente de 175 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Portugal e Moçambique. Bibliografia4 ANDRADE, L. P. de. Alguns voos em O último voo do flamingo. 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Umberto Eco é um autor que mostra, em seus textos, inúmeras possibilidades de leitura, visto que suas obras são prenhes de interpretações, como o próprio autor diz. Em seu texto Seis passeios pelo bosque da ficção fica evidente esta sua asserção. A partir desta ideia constrói Yambo, personagem principal do romance A misteriosa chama da rainha Loana e reflexo deste leitor, que desbravará a floresta escura de sua memória e de sua história, compondo assim a identidade de um ser de seu tempo, fragmentado, multifacetado, um sujeito “conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente” (HALL, 2006, p.12). O que se busca é fazer uma leitura, dentre as muitas possíveis, da obra em questão para associá-la aos estudos sobre pósmodernidade e teoria literária. Apesar disso, é preciso fixar-se em determinados pontos ao se tratar de uma pesquisa de sua obra, levando-se em conta que são inúmeras as possibilidades, torna-se válido retratar aquelas que sejam apropriadas para o tema, a fim de trazer luz à teoria. Com base nesta ideia, este projeto de mestrado visa, a partir da figura do narrador, abordar estes temas, posto que se trata de um narrador homodiegético, que relata sua vida de maneira perturbada e ambígua, pois vivencia uma perda parcial da memória, causada por um acidente não especificado. Halbwachs (1990), em seu texto A memória coletiva, define a memória como sendo uma construção social, baseada em experiências coletivas e que só mantêm seu valor de acordo com as experiências que se perpetuam. Dialogando com A misteriosa chama da rainha Loana, encontramos um personagem que busca reconstruir suas 179 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa memórias e sua identidade a partir de imagens que o remetam a seu passado, que já não é mais o mesmo nem enquanto recordação, nem enquanto “revisitação” da lembrança. Yambo, ao buscar essa reconstrução, acaba por criar uma nova memória de uma situação hipotética, que nem sequer tem certeza de ter vivido. Diz ainda Halbwachs que a memória se reconstrói constantemente, ligando as recordações remotas às experiências contemporâneas, renovando-se incessantemente. Esta afirmação leva à constatação de que Yambo, portanto, depois de voltar de um coma causado por um acidente não justificado, remodela suas memórias, podendo, então, reconstruir sua identidade a seu bel-prazer, escrevendo sua história a partir de um novo prisma interpretativo. A reconstrução de sua identidade passa pela revisitação dos materiais visuais que compuseram suas vivências pueris. Apesar disso, os espaços revisitados trarão novas concepções, visto que o Yambo de hoje não é o mesmo de sua infância, o que imprime às suas interpretações um novo caráter. O não pertencimento ao tempo e ao espaço se faz presente em sua busca, e acaba tormando-se mote para sua ideia fixa. Verifica-se aqui a reescritura de sua história, suas origens, para a confecção de sua identidade atual. O teórico John Barth (1967) fala a respeito da literatura da exaustão, que consistiria na falta de argumento e criatividade para produzir textos literários originais, e soluciona essa problemática demonstrando, através de seus contos, que a literatura pode ser revisitada e remodelada, não consistindo nisto uma falta de originalidade nem tampouco plágio. É uma referência renovada, uma nova forma de ressuscitar os clássicos, conferindo a eles uma nova possibilidade de leitura, de acordo com a visão do próprio leitor. Em Dunyazadíada (1986), Barth demonstra como um clássico pode renovar-se sem perder sua autonomia e, ao mesmo tempo, como a literatura contemporânea pode se transformar, em termos estéticos e no nível do conteúdo, sem fugir dos preceitos que qualificam a obra literária. Yambo é o leitor de sua própria história. É o leitor de um livro novo, um leitor arguto que busca os entremeios da linguagem. Segundo o próprio Umberto Eco, existem caminhos dentro do texto e cabe ao leitor fazer sua escolha entre a trilha já exposta e o desbravamento da floresta da leitura de prazer (cf.BARTHES, 1987). Segundo Derrida (2001), os arquivos da memória são constituídos por escrituras, ou seja, tudo o que guardamos na memória é a leitura e posterior reescritura do mundo que nos circunda. Yambo precisará percorrer o caminho da leitura de si para conseguir reconstruir sua identidade, que é formada a partir da memória construída pela convivência social. A narrativa inicia-se com a pergunta que será argumento para toda a 180 Descrição das pesquisas busca do personagem: “E o senhor, como se chama?”. Este seria o início da constituição da individualidade, da identidade que seguirá com cada um por toda a vida e até além dela: seu nome. Em Eagleton (2010), pode-se verificar que Lacan explana acerca da constituição do eu através do espelhamento, e cada ser vai aglomerando em si as referências do que se é partindo da comparação com o outro, para formar o Outro referencial interno do ideal de conduta. Yambo, que já possuía uma identidade, agora precisará reaver essa identidade e, para isso, precisará encontrar-se através da leitura de si, penetrando nos “palácios da memória” (cf. AGOSTINHO, 1955) de sua própria história, investigando o texto para encontrar sua resposta à pergunta: Quem sou eu? O sujeito pós-moderno seria constituído a partir da fragmentação do eu e da adoção de diversas identidades para compor suas características. Os questionamentos sobre identidade e a relação com o pertencimento a algum grupo é um assunto recente. Pensar em identidade é pensar nas transformações sociais ocorridas na segunda metade do século XX e, além disso, nos reflexos do avanço tecnológico no indivíduo. Um ser contemporâneo a esses acontecimentos, que viveu toda esta transformação, torna-se um questionador de seu papel dentro desta máquina complexa. Yambo perde-se em si mesmo por não reconhecer a que lugar pertence, e por isso retoma sua origem, buscando compreender como chegou onde se encontra. Ali se defrontrará não mais consigo mesmo, mas com um aspecto de si, uma parcela que o compõe (ou compunha) e que se transformou no que hoje o constitui. Através da análise do texto, buscar-se-á comprovar as formas utilizadas para referir-se ao conteúdo, visto que não há gratuidade na escrita. Nota-se, através das referências intertextuais em A misteriosa chama da rainha Loana, que o autor busca enriquecer o texto literário, caracterizando a seleção do leitor apropriado. O trabalho visa proporcionar um panorama do que é a Pós-Modernidade e seus desdobramentos na sociedade e na literatura. Procurará refletir sobre as transformações decorrentes deste período, desde a (r)evolução tecnológica até suas conseqüências no cotidiano, procurando solucionar as dúvidas que pairam entre acreditar que essa transformação diz respeito a uma decadência ou a um renascimento cultural. Além disso, o estudo objetiva traçar o percurso da busca da memória por parte do personagem-narrador, investigando em que medida a memória é um fator constitutivo da identidade. Até o presente momento, a pesquisa encontra-se no estágio de confecção de artigos concernentes às disciplinas cursadas no primeiro semestre de 2013. Além disso, 181 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa foram feitos fichamentos sobre os textos que dizem respeito aos temas propostos para a análise do romance. Duas disciplinas foram finalizadas neste primeiro semestre, tendo sido feita a matrícula de mais duas para o segundo semestre, além de um seminário de orientação que acontecerá também no segundo semestre de 2013. A partir do conteúdo exposto pelas disciplinas, foi possível reorganizar alguns aspectos da pesquisa, enriquecendo o tema e canalizando o objetivo deste projeto. Após a leitura de textos sobre autoficção, foi possível rever o personagem-narrador do romance e, com isso, buscar aprofundar o conceito de narrador pós-moderno. Além disso, a análise de fatores na obra que caracterizam o período histórico que aborda, como as recordações do pós-guerra e a construção da cultura pop e sua influência na produção cultural italiana, visitando canções e livros que remetem a uma época específica. Portanto, o momento atual da pesquisa é de amarração das ideias já existentes com estas novas conceituações. A princípio, o objetivo era trabalhar a obra selecionada a partir dos conceitos pós-modernos de memória e identidade, usando como base a teoria de Halbwachs, para a questão da memória coletiva e Bauman, no que concerne à identidade fragmentada e multifacetada do sujeito pós-moderno. O que foi verificado neste primeiro semestre de 2013 foi a capacidade de aprofundamento do texto a partir do narrador da obra, visto que este narrador é riquíssimo em possibilidades de interpretação. Depois da classificação deste autor, a sugestão de que este narrador poderia ter raízes autoficcionais tornou-se possível, e então se buscou o aprofundamento em leituras sobre autobriografia ficcional e autoficção. Neste ponto, os textos de Diana Klinger, Verena Alberti foram de grande auxílio, além de outros autores que traçam o percurso do narrador através do tempo, suas transformações e a mudança das concepções do romance e suas formas de narrar, de Benjamin até Hutcheon e Silviano Santiago. Outras leituras sobre a questão da memória e da história foram surgindo, como Paul Rocoeur, Aleida Assmann, entre outros. Estes textos estão em andamento para análise e seleção, e possivelmente auxiliarão na abordagem do tema. Bibliografia AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Argos: Chapecó, 2009. AGOSTINHO, Santo. Confissões. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1955. ALIGHIERI, Dante. La Divina Commedia. 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Introdução Para chatear os imbecis / Para não ser aplaudido depois de sequências dó-de-peito / Para viver à beira do abismo / Para correr o risco de ser desmascarado pelo grande público / Para que conhecidos e desconhecidos se deliciem / Para que os justos e os bons ganhem dinheiro, sobretudo eu mesmo / Porque, de outro jeito, a vida não vale a pena / Para ver e mostrar o nunca visto, o bem e o mal, o feio e o bonito / Porque vi Simão no Deserto / Para insultar os arrogantes e poderosos, quando ficam como cachorros dentro d’água no escuro do cinema / Para ser lesado em meus direitos autorais. Com esta declaração, o cineasta Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988) respondeu à seção Pourquoi filmez-vous?, do jornal Libération, em 1987. Suas sinceras e irônicas palavras, ao melhor estilo telegráfico oswaldiano, já indiciam a singularidade do diretor, um dos expoentes do Cinema Novo. Dentre as características recorrentes de sua obra, cuja relevância foi chancelada e aquilatada por festivais nacionais e internacionais, apontaríamos: a presença de lirismo/humor e realidade/alegoria, a recuperação crítica da pornochanchada, a busca por novas formas de expressão cinematográfica, “a fusão do erudito com o popular, a fina ironia” (BENTES, 1996, p. 10), o interesse por nossa tradição e identidade culturais e a recorrência da literatura brasileira como lastro de seu método de criação. É precisamente neste último campo de estudo – o das relações entre literatura e cinema – que a presente pesquisa se insere, analisando o quinto longa-metragem de Joaquim Pedro, Guerra conjugal (1975), cujo roteiro foi elaborado a partir de contos de Dalton Trevisan. Como nosso projeto ainda se encontra em estágio inicial de desenvolvimento, apresentaremos de modo sucinto suas justificativas, objetivos e metodologia, bem como os resultados preliminares. 185 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Justificativas Se essa é a abordagem óbvia para o estudo da produção do diretor, pode-se objetar que é também uma das mais profícuas, pois, afinal, quase a totalidade de sua filmografia teve como estofo a literatura nacional1. Com efeito, observamos um número ainda pouco considerável de trabalhos sobre a obra de Joaquim Pedro2, embora esteja de fato disponível uma robusta gama de materiais, como, por exemplo, artigos, críticas em jornais, depoimentos do próprio diretor, cartas trocadas entre os cinemanovistas, etc. Além disso, o estudo de Guerra conjugal possibilitará, de um lado, entrar em contato e (quiçá) contribuir para a análise da obra de um dos mais importantes escritores de nossa literatura e, de outro, propor a leitura de um filme inserido num momento seminal da produção cinematográfica nacional, o Cinema Novo. Objetivos Conforme adiantamos, nossa pesquisa sondará as intrincadas relações entre literatura e cinema. Em específico, pretende-se analisar, por meio da discussão intersemiótica, a narrativa cinematográfica de Guerra conjugal, filme composto a partir de diferentes contos de Dalton Trevisan. Procurar-se-á verificar de que forma Joaquim Pedro operou a transposição da palavra escrita para a “palavra fílmica”, a imagem, estabelecendo assim o seu modus operandi, que sempre parte da literatura [...] para, através do processo criador, ir contestando, ininterruptamente, aquilo que havia erigido como universo de seu discurso. Prisioneiro da tradição, Joaquim Pedro não pode, no entanto, render-se à leitura respeitosa e submissa do texto. [...] Será uma forma de amor essa atenção feita de vigilância, recusa ao abandono e agressividade? Ou vingança ressentida de criador, consciente de que a sua imaginação age sempre de maneira parasitária sobre um primeiro discurso autônomo? (SOUZA, 1980, p. 195) 1 Além dos documentários sobre Manuel Bandeira e Gilberto Freyre, Joaquim Pedro realizou, entre outros: O Padre e a moça (1965), filme inspirado em poema de Drummond; Macunaíma (1969); Os Inconfidentes (1972), cujos diálogos foram extraídos dos Autos da Devassa, dos versos dos poetas inconfidentes e do Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles; e o Homem do Pau Brasil (1981), radical leitura da obra de Oswald de Andrade. Os projetos interrompidos com a sua morte – o roteiro não filmado Casa-Grande, Senzala & Cia e o desejo de trabalhar com os livros-memória de Pedro Nava – indicam que o diretor continuaria trilhando o mesmo método criativo. 2 Exaustivamente, apenas os filmes Macunaíma e Os Inconfidentes parecem ter sido estudados em Hollanda (1978), Johnson (1982) e Ramos (2002). 186 Descrição das pesquisas Sob a suposição de que Guerra conjugal cristalize algumas das características gerais que norteiam a produção de seu realizador, pretende-se também cotejar este filme com outros do diretor, com o intuito de lançar luz sobre o conjunto da obra através dos pontos de toque. Além da análise da narrativa cinematográfica (objetivo primeiro) e de se intentar estabelecer um diálogo entre este o demais filmes do cineasta (objetivo segundo), pretende-se ainda, levando em consideração o contexto histórico-social de produção da obra, deslindar as tendências estético-ideológicas aí identificáveis (objetivo terceiro). Se “os cinemanovistas viram no cinema um meio de contribuir para a solução de alguns dos problemas enfrentados pelo Brasil subdesenvolvido” (JOHNSON, 1982, p. 82), haveria em nosso objeto uma proposta de leitura crítica do país?3 Em que medida este filme se aproxima e/ou se afasta dos preceitos do Cinema Novo? Metodologia A fim de se alcançar os objetivos propostos, a pesquisa tentará cobrir os quatro pontos gerais a seguir. No primeiro momento, serão discutidas as relações entre literatura e cinema, que não se resumem à tradução de obras literárias em versões fílmicas. A orientação geral de nosso trabalho não será pautada pela observância da fidelidade, “um falso problema porque ignora diferenças essenciais entre os meios e [...] a dinâmica dos campos de produção cultural nos quais os meios estão inseridos” (JOHNSON, 2003, p. 42). Diversos são os estudos sobre tradução intersemiótica alinhados às intenções deste projeto (AVELLAR, 2007; BAZIN, 1991). Em seguida, levantaremos as narrativas de Dalton Trevisan nas quais o roteiro se baseou, situando-as na obra do escritor curitibano e no contexto de explosão do conto no Brasil nas décadas de 1960-70. Sabe-se que concursos literários eram promovidos na época, quando o gênero atraiu diversos autores. Para essa etapa, a pesquisa contará com um tríplice apoio: desde estudos mais gerais sobre o conto (MAGALHÃES JR., 1972; POE, 1997), passando pelo caso específico brasileiro (BOSI, 2001; PELEGRINI, 1996), até as leituras do conjunto da obra trevisaniana (WALDMAN, 1989). 3 Em Formação da literatura brasileira (1981), Antonio Candido destaca a vocação empenhada de nossa literatura, consciente de sua função histórica e preocupada com a construção imagética da identidade nacional. Em certa medida, tal propensão foi herdada pelos principais realizadores do Cinema Novo. 187 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa O terceiro momento será o de reflexão acerca do Cinema Novo e suas preocupações estético-ideológicas, no interior das quais Joaquim Pedro gestou sua produção. Se os cinemanovistas entediam o cinema como instrumento de interferência direta nas questões relevantes do país, é fato terem elaborado também uma expressão cinematográfica autoral e ao mesmo tempo exclusivamente nacional. Contaremos aqui com o farto número de estudos disponíveis sobre o cinema brasileiro (BERNADET, 1991; RAMOS, 1987) e o Cinema Novo (ROCHA, 1981; XAVIER, 1993). Por fim, a pesquisa procederá à análise do filme, procurando identificar e interpretar os códigos cinematográficos, os movimentos de câmera, as elipses, a fotografia, as canções, as metáforas, enfim, quaisquer mínimos elementos indicadores do peculiar método de (re)criação4 de Joaquim Pedro. Não poderemos nos furtar também ao contexto de produção de Guerra conjugal, marcado pelo “desbunde político” (HOLLANDA, 2004). Resultados parciais No primeiro semestre de 2013, procurando observar o cumprimento dos créditos em disciplinas do programa, realizamos os cursos História e ficção e Relações entre literatura e cinema: crítica genética, transcriação e reminiscências culturais, ministrados, respectivamente, pela Prof.ª Dr.ª Márcia Valéria Z. Gobbi (FCLAr) e Prof.ª Dr.ª Josette Maria A. de S. Monzani (UFSCar). A contribuição das duas disciplinas foi decisiva para o projeto. A primeira viabilizou o estudo das relações entre história e cinema a partir de outro filme de Joaquim Pedro, Os Inconfidentes, que guarda semelhanças com os romances históricos pós-modernos; enquanto a segunda nos colocou em contato com o método de análise da crítica genética e com diversos trabalhos sobre tradução intersemiótica. Além da identificação dos dezesseis contos utilizados para a composição do filme, muitas questões foram levantadas para o andamento da pesquisa: por quais procedimentos o diretor transpôs os textos para a tela? Se o filme é composto por contos de diversos livros de Dalton Trevisan (e não só do homônimo), por que Joaquim Pedro escolheu o título de Guerra conjugal? Qual é a ênfase pretendida: relações amorosas, 4 Dentre os estudos sobre a linguagem cinematográfica que servirão de suporte, destaco: Aumont (1995), Martin (2003), Metz (1972) e Xavier (2008). 188 Descrição das pesquisas cafajestagem, violência? Sendo o filme um produto cultural e semiótico, de que modo o cineasta converteu em imagens a sua experiência social, ideológica e estética? Bibliografia AUMONT, Jaques et al. A estética do filme. Campinas: Papirus, 1995. AVELLAR, José Carlos. O Chão da palavra. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. BAZIN, André. Por um cinema impuro: defesa da adaptação. In: __. O Cinema: ensaios. 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Em nossa opinião, no entanto, a obra de Xenofonte apresenta mais elementos que justificam essa filiação. Assim, o objetivo dessa pesquisa de doutorado é tentar compreender nas narrativas historiográficas de Xenofonte, Helênicas, a Anábase, Ciropedia e o Agesilau, elementos ficcionais, que aproximem a sua produção aos daqueles romancistas, procurando, com isso, entender o desenvolvimento da prosa ficcional no Ocidente. Costuma-se, nos manuais de literatura grega1, relacionar o nome de Xenofonte entre os historiadores clássicos, e esta classificação deve-se, principalmente, ao fato de Xenofonte trabalhar com temas históricos em suas narrativas. Entretanto, conforme Aristóteles (Poética, 1451b, p.79), [...] ele é poeta pela imitação e porque imita ações. E ainda que lhe aconteça fazer uso de sucessos reais, nem por isso deixa de ser poeta, pois nada impede que alguma das coisas que realmente aconteem, sejam, por natureza, verossímeis e possíveis e, por isso mesmo, venha o poeta a ser o autor delas. Ou seja, o filósofo estagirita observava que o fato de o escritor se utilizar de temas históricos não significa que sua obra seja necessariamente historiográfica. Há uma série de recursos narrativos, tanto temáticos quanto de escritura, que se constituem 1 Cf. Lesky (1986); Romilly (1984); López Férez (1988). 190 Descrição das pesquisas como elementos determinantes na caracterização de um gênero. Na historiografia antiga, o gênero se estabelece a partir da obra de Heródoto e se renova com a de Tucídides, que, ao construírem suas narrativas, se tornaram modelos para a posteridade. Ambas se configuram como obras modelares não só por narrarem fatos passados, mas também por estabelecerem critérios e formas narrativas que performatizam o gênero. Quando analisada sob esse critério – a comparação com a obra historiográfica de seus antecessores – observamos que as obras de Xenofonte (séc. IV a.C.) apresentam uma sensível mudança literária em relação a esses modelos. Nas obras que compõe o corpus dessa pesquisa, procuramos demonstrar como Xenofonte ficcionaliza os dados históricos. Por meio desta aproximação de ficção e discurso histórico, Xenofonte projeta uma nova concepção de narrativa em prosa na Grécia antiga, que influenciará as gerações seguintes, tanto na historiografia, quanto na formação do romance grego. Podemos observar essas mudanças nos comentários apresentados pelo narrador no decorrer das narrativas. Esses comentários são elementos metanarrativos que auxiliam o leitor a compreender não só a construção das narrativas comoas infrações ao gênero. Segundo Hartog (2001, p.13), esses comentários presentes naobra de Xenofonte são proêmios2 em potencial, já que identificam, conscientemente, os mecanismos que constroem a narrativa.Por exemplo, na Ciropedia II,2, o narrador traz para a narrativa uma cena de banquete, retomando as principais tópicas desse tipo de discurso. No fim da cena, o narrador afirma que os soldados, quando estavam na tenda, ocupavam-se com discursos sérios (spoudáios) e cômicos (geloia). O discurso sério-cômico é, segundo Bakhtin (2010), um dos princípios fundadores do romance, e não faz parte das tópicas do discurso historiográfico; a nosso ver, Xenofonte foi o primeiro a trazer para uma narrativa, de moldura historiográfica, gênero sério da retórica antiga, e com isso deu um passo importante na criação de uma prosa ficcional. Ao mesmo tempo, esse comentário do narrador informa ao leitor a quebra da convenção. Já nas Helênicas II.3.56, após narrar as últimas falas da personagem Têramenes, que precederam a sua morte, o narrador afirma que tais falas não são dignas de menção (oukaksióloga), mas mesmo assim as narra pelo que revelam do caráter do homem. Ao afirmar que as falas de Têramenes não são dignas de menção, nos parece que Xenofonte retoma o critério estabelecido por Tucídides em seu proêmio. Isso nos parece mais 2 O proêmio é uma estrutura discursiva que desde Heródoto faz parte do gênero. Segundo Luciano de Samóstata, em Como se deve escrever a História (2009), o objetivo do proêmio é esclarecer e facilitar ao leitor a compreensão do relato (diegésis) que se seguirá. 191 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa evidente à medida que a expressão oukaksióloga retoma o termo aksiologótaton que Tucídides utiliza. Porém, embora Xenofonte deixe claro que sua obra está construída sob o critério da historiografia tucidideana, e de que as falas de Têramenes não são dignas para uma narrativa historiográfica, mesmo assim ele as narra, estabelecendo, portanto, uma ruptura consciente com o modelo assumido. Desenha-se, desse modo, uma nova concepção de ação memorável e digna de menção, concebendo como aksiólogon não apenas os feitos dos grandes Estados e suas ações políticas e militares, mas a história e o caráter do indivíduo. A análise das Helênicas é essencial para nossa pesquisa, uma vez que é dentre as narrativas de Xenofonte a que mais se aproxima do modelo historiográfico de Tucídides. Além disso, se aceitamos a datação de Delebecque (1957), Xenofonte começou a escrever esta obra ainda na juventude, prosseguindo a sua escritura até o fim da vida. Desse modo, sentimos, com o desenrolar da leitura, a progressiva tensão entre o manter-se fiel à tradição historiográfica e o estabelecer de uma nova práxis historiográfica, revelando o amadurecimento das ideias de Xenofonte. Além disso, podemos contemplar e comparar as mudanças auferidas nas Helênicas com os projetos narrativos propostos nas outras obras de Xenofonte, que fazem parte do corpus deste estudo. Em um recente trabalho sobre a historiografia do século IV a.C., Francis Pownal (2004) discute o papel da caracterização do indivíduo nas Helênicas e demonstra que Xenofonte sacrificava a verdade dos fatos em vista de um programa moral, que se organizava pela apresentação de um feito individual que fosse exemplar ao leitor. Concordamos com a autora quanto ao valor do exemplo moral na escrita de Xenofonte, e o uso desse recurso frente à verdade histórica dos fatos, porém a conclusão da autora só explica o objetivo final de Xenofonte, não os recursos que usou para alcançar tal objetivo literário. Em nossa opinião, Xenofonte, na criação desses paradigmas morais individuais, busca heroicizar suas personagens por meio de referências aos textos poéticos da literatura grega, em especial à épica homérica, dando para a própria narrativa uma dimensão poética e universal. O título de nosso projeto, Em face do épico, retoma a interpretação de Jacyntho Lins Brandão (1992) para o termo anti-epopeia, propagado por Donaldo Schüler (1985 apud BRANDÃO, 1992). Em grego a preposição antí significa “em face de”, “a posição espacial de quem dialoga com” (BRANDÃO, 1992, p.43), e, neste sentido, a expressão estabelece a condição essencial de toda a literatura grega, como anti-epopeia, ou anti- 192 Descrição das pesquisas Homero, construindo, assim, um contínuo diálogo com a voz inaugural da literatura grega. Para compreender o diálogo literário que Xenofonte efetua com as epopeias, devemos, primeiramente, considerar a imagem do herói fornecida pelos poemas épicos, e em que medida os valores expressados pela Ilíada e Odisseia são retomados e transformados em um novo contexto literário, histórico e social. O herói épico é um indivíduo que possui dons que o tornam superiores aos outros homens comuns, despertando a admiração tanto pelos seus feitos quanto pelo seu caráter (BOWRA, 1966, p.91). Na epopeia homérica, os valores aristocráticos são condensados na fórmula do kalóskagathós, o homem nobre, belo e bom, que possui aqueles dons do corpo e do caráter que conduzem ao sucesso na ação e são, por isso, admirados (BOWRA, 1996, p.97). Aquiles, por exemplo, é filho de Tétis, uma nereida, divindade marinha, e de Peleu, rei dos Mirmidões, cujo avô era Zeus. Além disso, Aquiles foi educado pelo centauro Quíron e pelo herói Fênix, que no canto nono da Ilíada, forma ao lado de Odisseu e Ájax, a embaixada enviada por Agamemnom para demover Aquiles de sua ira. A noção dessa educação vincula-se à formação da areté do nobre, pois ao herói não basta ser valoroso na guerra; ele ainda deve portar-se como superior em tudo o mais, aspirando à honra e ao reconhecimento de “todas as suas excelências” (JAEGER, 1995, p.41). Na Ciropedia, Xenofonte nos apresenta a personagem Ciro como filho de Mandane, princesa da Média, e Cambises, rei dos persas, e descendente de Perseu, o herói mitológico. Esta genealogia é um produto ficcional de Xenofonte, pois difere de qualquer outra fonte a respeito da vida de Ciro; desse modo, a origem de Ciro é divina e nobre, como o são as origens dos heróis homéricos. Quanto à descrição de sua natureza, Ciro “era por natureza de aparência muito bela (kállistos), com alma muitíssimo bondosa (philanthropótatos), amantíssimo dos estudos (philomathéstatos) e das honras (philotimótatos), de tal modo que suportava todas as fadigas, resistia a todos os perigos, pelo amor aos elogios”3. Note-se como Ciro é descrito tanto por características físicas quanto morais, por meio de superlativos que exalçam a sua personalidade, constituindose, por isso, como um verdadeiro homem nobre. Além disso, uma das características predicadas a Ciro, o ser amantíssimo das honras, é, em síntese, a própria essência do 3 Ciropedia, I. 2. (1972).Tradução nossa. 193 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa caráter do herói épico, pois este herói só pode contemplar o valor de sua areté (excelência) por meio da time, o reconhecimento do seu valor pela sociedade. Na epopeia homérica, negar a honra do herói “era a maior tragédia humana” (JAEGER, 1995, p.31). Desse modo, Xenofonte retoma valores épicos para a construção do seu modelo de herói – e será, portanto, nosso intuito ler as obras de Xenofonte, tendo como subtexto as epopeias Ilíada e Odisseia. Assim, nosso projeto visa o estudo de quatro narrativas de Xenofonte,Helênicas, Ciropedia, Anábase e Agesilau, procurando demonstrar as diferenças, tanto temáticas quanto de escritura, que essas narrativas apresentam comparadas ao modelo de seus antecessores, Heródoto e Tucídides, questionando, mesmo, até que ponto aquelas obras podem ser classificadascomo historiográficas, e buscando compreender a relação da escrita de Xenofonte com o desenvolvimento da ficção em prosa na Grécia. Além disso, procuramos analisar a relação de intertextualidade com os modelos épicos de Homero, a fim de demonstrarmos como essa relação intertextual é importante na criação dessa ficção. Nesse percurso, o desenvolvimento de projeto está na fase de análise e tradução dos trechos escolhidos que demarcam uma ruptura, ou uma infração ao modelo historiográfico vigente. As leituras das obras de Heródoto e Tucídides, bem como de alguma fortuna crítica, nos auxiliaram a compreender como se dá a escrita historiográfica desses autores. Alguma pesquisa a respeito da intertextualidade de Xenofonte com Homero tem sido feita também, ainda que não sistematicamente, principalmente com relação à Anábase. Bibliografia ARISTÓTELES. Poética. Prefácio, Introdução, Comentário e Tradução de Eudoro de Souza. Porto Alegre: Ed. Globo, 1966. BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. BOWRA, C. M. Heroic poetry.London; Melbourne; Toronto: Macmillan, 1966. BRANDÃO, J. L. Primórdios do épico: Ilíada. In: APPEL, M. B.; GOETTEMS, M. B. As formas do épico. Porto Alegre: Editora Movimento, 1992. DELEBECQUE, E. Essaisurlavie de Xénophon. Paris: Klincksieck, 1957. HARTOG, F. (Org.).A História de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. HIGGINS, W. 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Introdução A presente pesquisa tem por objetivo fazer uma análise de um grupo de doze narrativas, contidas na obra Shenipabu Miyui (elaborada entre 1989 e 1995), mostrando, principalmente, que, nesses textos, está representada a visão de mundo indígena, integradora da realidade As narrativas são de autoria coletiva dos índios Kaxinawá (dado que elas são provenientes da tradição oral) e o volume foi organizado pelo professor indígena Joaquim Mana Kaxinawá. As narrativas de origem mítica que compõem a obra foram narradas em versões tanto na língua indígena Kaxinawá quanto em língua portuguesa, sendo, nesse caso, contadas por índios que dominavam a “língua dos brancos”. Trabalhamos apenas com essas últimas – as quais foram narradas pelos próprios indígenas em português. O primeiro capítulo tem em vista a literatura indígena brasileira contemporânea, a fim de contextualizar a obra Shenipabu Miyui.Dedicamo-nos justamente a verificar como tem ocorrido o “fenômeno da escrita indígena” no Brasil e como essas produções escritas de autoria indígena têm se revestido de um caráter literário. Buscamos investigar como se iniciou o processo de escrita indígena e traçar um quadro de como essa literatura está se configurando em termos de seus principais representantes, seus aspectos mais relevantes e seu eventual “diálogo” com a literatura brasileira – uma vez que os índios escritores convivem em ambiente marcado tanto pela cultura autóctone quanto pela do homem branco. Discutimos brevemente o apoio jurídico à questão indígena, contido na Constituição Brasileira; a questão da transição da oralidade para a escrita;a importância da arte de narrar; o valor do “velho sábio” para as comunidades; e procuramos apresentar a visão que alguns indígenas têm em relação à prática escritural de seu povo. Vale destacar que, hoje, o principal veículo de divulgação do pensamento dos indígenas 196 Descrição das pesquisas acerca de sua escritura e literatura é a internet; isso explica o uso recorrente de fontes digitais para a elaboração dessa primeira etapa. O segundo capítulo, por sua vez,tem em vista isolar os principais aspectos do mito em termos de sua realização enquanto narrativa carregada de dimensão estética. Assim, nossa abordagem volta-se ao mito enquanto matéria cultural e literária. Estudamos as características gerais do mito e suas definições; as relações entre o mito e outros gêneros, como o conto, a lenda, o maravilhoso; as relações entre mito e literatura e suas modalidades de interação; as relações entre história e mito; e apresentamos uma reflexão sobre a representação do mito na sociedade contemporânea. Para este estudo, recorremos aos estudiosos: André Jolles, Mircea Eliade, Raul Fiker, Ruthven, Joseph Campbell, Lévi-Strauss, dentre outros. No final do capítulo, tratamos especificamente do mito indígena, apresentando suas principais características narrativas, alguns de seus elementos e sua significação simbólica, procurando averiguar as especificidades e peculiaridades da expressão mítica indígena brasileira e identificar o caráter único e a dimensão criativa, próprios da forma de expressão de uma cultura específica. Neste momento, foram de importância significativa as obras de: Câmara Cascudo, Osvaldo Orico, Sérgio Medeiros e Maria Inês de Almeida. Seguindo as orientações dos professores que compuseram a banca do Exame Geral de Qualificação, parte do conteúdo teórico que compõe este capítulo poderá ser readequado, para atender melhor às análises das narrativas. Resultados parciais: descrição do estágio atual da pesquisa Na etapa atual (e final) da pesquisa, estamos nos dedicando a trabalhar especificamente com as narrativas de Shenipabu Miyui, analisando os textos enquanto realização literária. Para tanto, consideraremos sobretudo a perspectiva estética dos textos, mas também levaremos em conta o contexto cultural, social e histórico de produção das narrativas. As análises serão realizadas de forma a mostrar como se dá, nos textos, a representação da visão de mundo integradora da realidade dos índios Kaxinawá, na medida em que cada indivíduo é considerado a partir de sua relação com seus semelhantes diretos e com tudo o que constitui o mundo que o rodeia; ou seja, paradoxalmente, o indivíduo só existe a partir da coletividade. Uma das principais características desta recente literatura (escrita) de autoria indígena é sua intrínseca ligação com a terra e com a natureza. Para refletir sobre essa 197 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa relação, recorremos novamente aos estudos da professora Maria Inês de Almeida que, por sua vez, tem seguido os ensinamentos contidos na obra da escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol (1931-2008), principalmente no que diz respeito ao conceito de uma “estética orgânica”, através da qual as textualidades indígenas poderiam ser melhor compreendidas. Maria Inês teve a oportunidade de estar por três vezes com Llansol e, apesar de esta autora ainda não ser tão difundida e estudada no Brasil, a professora da UFMG acredita que a contribuição dos estudos llansolianos para o estudo da literatura indígena contemporânea seja fundamental. Para a professora mineira, a obra de Llansol traz uma poética capaz de abrir o caminho para as poéticas indígenas. A ideia da autora portuguesa de que nós somos “vivos no meio dos vivos” – ou seja, de que os seres humanos não se relacionam organicamente apenas entre si – muito se aproxima da visão de mundo ameríndia. A prática escritural e literária indígena encaixa-se numa nova poética que Maria Inês chama de “TERRI–VERBI–VOCO–VISUAL” (“terriverbivocovisual”), ou seja, uma poética que inter-relaciona as dimensões terrena, verbal, sonora e visual. Para a realização das análises, seguiremos algumas diretrizes que passamos a expor brevemente: O caráter simbólico é fortemente explorado na construção das narrativas, relacionando-as, dessa forma, ao conceito de imaginário social, compreendido por Walty (1991, p. 7), em seus estudos de narrativas dos índios Cinta-Larga, “como um conjunto de representações que uma sociedade faz de si mesma e através das quais ela se dá uma identidade”. Segundo a pesquisadora (1991, p. 17), “Os imaginários sociais passam a ser vistos, então, como um vasto sistema simbólico que toda sociedade produz e através do qual ela se percebe, se divide e elabora suas finalidades.” Acreditamos que a visão de mundo integradora da realidade seja um elemento central do imaginário social dos Kaxinawá e, portanto, um elemento central de suas narrativas como representação literária. Enquanto a visão ocidental da realidade pressupõe uma organização hierarquizada, com distinções claras entre os seres e suas funções sociais, na visão de mundo indígena, essa hierarquização desaparece. Por isso, segundo Almeida (2009), a palavra-chave para a compreensão dessa recente expressão literária não é a metáfora (como ocorre com a literatura ocidental), mas sim a metamorfose, que permeia praticamente todas as escritas indígenas, confirmando e intensificando a relação homem – escrita (literatura) – natureza. 198 Descrição das pesquisas Sendo assim, um dos tópicos centrais na análise é justamente o caráter híbrido das personagens das narrativas. A linha que separa homem e natureza é muito tênue e as metamorfoses são constantes, sendo corrente a transformação de um ser em outro – transformações essas que permeiam os três reinos: animal, vegetal e mineral. Esse hibridismo, que se manifesta sob a forma das características físicas dos seres vivos e inanimados, também se reflete em suas peculiaridades interiores, éticas e morais.Além disso, os próprios heróis das narrativas integram em si características aparentemente opostas de bem e mal; esperteza e inocência; vitória e derrota; vida e morte. Vale ressaltar que é muito forte, na cultura Kaxinawá, o conceito de Yuxin, que poderia ser explicado de forma bastante simplista, como alma, espírito ou uma força vital que permeia todos os seres (vivos), igualando-os. Podemos observar como a própria linguagem utilizada pelo narrador também contribui para intensificar a visão de mundo integradora da realidade. Os frequentes diálogos, nos quais todos os seres – humanos, animais, plantas – têm o poder da palavra comprovam essa afirmação. Aqui, mais uma vez, não há distinção ou hierarquia no poder de uso da palavra entre homem e natureza; ao invés de diferenciar e distanciar os seres, o domínio da linguagem integra-os. As marcas de oralidade são constantes nos textos e, muitas vezes, cumprem também uma função poética. Além disso, verifica-se, nas narrativas, o processo – denominado por Almeida e Queiroz (2004) de “dessubjetivação do sujeito” –, através do qual o modelo de autor/sujeito ocidental, individual e dono do saber, se dilui e passa a ser substituído pelo sujeito coletivo (a tribo), não dono, mas transmissor de um saber pertencente a toda comunidade. O sujeito que representa todo um grupo também sinaliza a visão integradora de mundo dos Kaxinawá. Por fim, segundo Souza (2003, on-line), uma das características significativas das narrativas Kaxinawá é sua natureza multimodal, entendida como o uso justaposto e simultâneo de linguagens verbal e não verbal. Assim, os textos são constituídos de partes escritas e de figuras/desenhos feitos também pelos próprios indígenas. Há, na cultura Kaxinawá, dois tipos diferentes de desenho: os desenhos geométricos abstratos, chamados kene, e os desenhos figurativos (geralmente apresentando uma cena narrativa), chamados dami. Os desenhos kene representam metonimicamente a pele da anaconda-Yube, uma figura central da mitologia Kaxinawá, responsável por trazer a cultura, a sabedoria e o conhecimento a esse povo. A reprodução das formas geométricas que cobrem a pele do 199 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa anfíbio tem caráter mimético, acompanhando o desenho que integra o tecido “vivo”. Diz Souza também que esses grafismos kene seriam usados como marcadores de veracidade, funcionando assim como fatores de legitimação das histórias contadas pelos Kaxinawá. Já os desenhos dami não são marcados pela preocupação com a reprodução fiel (imitativa) e mostram claramente a visão integradora de mundo quando misturam, em um mesmo plano, personagens e espaços de naturezas diferentes. Como parte da análise das narrativas, consideraremos também os aspectos temáticos, verificando a recorrência de determinados enredos, que apresentam traços comuns com outras mitologias. Podemos observar que há, por parte do narrador, uma incorporação de elementos específicos da cultura indígena Kaxinawá, principalmente no que se refere a nomes de animais, plantas e alimentos. Sendo assim, a fim de facilitar a compreensão das histórias narradas, e também com o objetivo de elucidar os leitores acerca desses conhecimentos, dedicaremos uma parte desta etapa da pesquisa para apresentar as características do povo Kaxinawá, seus costumes e informações sobre sua cultura. Para tanto, recorreremos à bibliografia pertinente sobre o assunto (como, por exemplo, os estudos da antropóloga Els Lagrou), mas também utilizaremos todas as informações colhidas diretamente com o povo Kaxinawá, em nossa breve experiência de convivência na aldeia indígena Altamira, localizada ao longo do rio Tarauacá, no município de Jordão, no Acre. Ao longo do desenvolvimento de nosso trabalho, decidimos conhecer o maior número possível de obras de autoria indígena, publicadas no Brasil recentemente. Iniciamos esse processo tentando adquirir essas obras nas livrarias convencionais e então deparamo-nos com os primeiros obstáculos: as obras são classificadas, na grande maioria das vezes, como literatura infantil e raramente os vendedores têm alguma informação sobre elas. Sendo assim, começamos por conta própria um processo de “garimpo” em algumas livrarias tradicionais do Estado de São Paulo e conseguimos adquirir um material bem interessante. Ao visitarmos a professora Maria Inês de Almeida e o Projeto Literaterras, em Belo Horizonte/ MG, fomos presenteados com mais algumas ricas obras de autoria indígena e, em nossa visita à Comissão Pró-Índio do Acre, também tivemos a oportunidade de adquirir um material significativo. Diante da ainda pequena divulgação e da grande riqueza desse material, julgamos pertinente dedicar a parte final de nossa pesquisa a uma breve apresentação dessas obras: seus títulos, autores, ilustradores, editoras, datas de publicação, conteúdo, público-alvo. Acreditamos que essas informações recolhidas durante toda a pesquisa 200 Descrição das pesquisas possam ser de fundamental importância para aqueles que se interessem por este veio literário, editorial e pedagógico em franco crescimento e desenvolvimento no Brasil. Bibliografia básica para o desenvolvimento da etapa atual da pesquisa ALMEIDA, Maria Inês de. Ensaios sobre a literatura indígena contemporânea. 1999. 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Com base em pesquisas já iniciadas durante o mestrado, em que estudamos questões relacionadas ao gênero romanesco e ao contexto do romance no século XVIII, pretendemos agora demonstrar como Jacques lefataliste et sonmaître representa de maneira bem característica uma das tendências do romance no século XVIII: a linha realista, que privilegiava a descrição dos modos de vida da sociedade burguesa recém-formada. Procuramos demonstrar ainda que essa obra literária do filósofo tem por principal objetivo discutir o próprio gênero, mostrando no tecido de sua narrativa como o romance, ao contrário do que pretendia a crítica, se constitui como ficção, como produto intelectual de um autor que tem à sua disposição técnicas e procedimentos que lhe permitem construir um enredo ao mesmo tempo perfeitamente verossímil e ficcional. O trabalho pretende contribuir para dar à obra de Diderot o status definitivo de literatura, deixando um pouco de lado a visão de tratado filosófico que os estudiosos têm conferido ao romance nos últimos tempos. Justificativa Raquel de Almeida Prado (2003), no estudo que fez sobre Jacques lefataliste et sonmaître, começa referindo-se ao caráter aparentemente experimentalista dessa obra de Diderot, o que, segundo a autora, teria feito do romance “um precursor muito precoce das vanguardas literárias do século XX” (p. 186), experimentalismo esse que teria proporcionado um “amadurecimento da narrativa realista”. Para Raquel, de fato, como Goethe já havia dito um século antes, nesse romance o único padrão parece ser o da ruptura: ruptura com os manuais que, no século XVIII, prescreviam como se fazer um romance e que eram muito frequentemente seguidos com afinco pelos escritores 203 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa franceses do período. Jacques lefataliste, de acordo com a autora, cuja leitura é “quase tão divertida quanto a do Shandy, causa um certo desconforto, acentuado pelas interpelações provocativas e impertinentes do narrador, por deixar a impressão de que alguma coisa se esconde por trás da sucessão de episódios” (p. 187). Tendemos a concordar com Raquel de Almeida Prado, uma vez que, de fato, a estrutura da obra desrespeita completamente os padrões de composição de um romance da época, ainda mais se pensarmos no contexto do século XVIII, quando as regras da boa escrita vigoravam com muito mais rigidez. Para nós, leitores do século XXI já habituados a encontrar todo tipo de estilo nas obras literárias, o estranhamento é de certa forma amenizado, mas ele não deixa de existir. Esse estranhamento é em grande parte causado pela característica muito singular do narrador, que dentro da obra assume muito mais que a função de contar a história. Ele é ao mesmo tempo personagem, entrando, portanto, na diegese; também se configura como narrador heterodiegético e algumas vezes como homo e autodiegético. É claro que essa grande flexibilidade de posições na narrativa tem uma função, uma especificidade que busca um objetivo dentro do texto. Ao ler e refletir sobre o conteúdo e a forma de composição desse romance, percebemos que a obra põe em cena uma série de procedimentos e técnicas que têm como principal objetivo discutir o fazer literário (metaficção), como forma de radicalizar e combater as velhas técnicas adotadas até então nas escrituras dos romances, propondo dessa maneira uma renovação profunda na forma romanesca através do uso incomum das várias categorias da narrativa: narrador, tempo, espaço, descrições, personagens, linguagem, além da mistura propositada de gêneros - romance, conto, reflexões filosóficas. Jacques lefataliste, nesse sentido, pode ser lido como um grande tratado sobre como se fazer um romance coerente com as transformações que o gênero fatalmente exigia no século XVIII. Assim, vemos como Diderot constrói de forma muito singular esse tratado ficcional. A obra procede a um duplo movimento: ao mesmo tempo em que materializa as técnicas mais comuns utilizadas nas narrativas do século XVIII, o romance faz a negação de todas elas ao praticá-las, como que transmitindo a seguinte mensagem: um romance ruim é feito assim, com longas descrições e histórias encaixadas que não têm qualquer ligação com a principal, suspensões desnecessárias, narradores que tudo sabem, inverossimilhanças de todos os tipos, histórias de amor que não encontram qualquer correspondência com a realidade. E se um mau romance é assim construído, por outro lado, uma narrativa de qualidade deve 204 Descrição das pesquisas primar pela busca da verdade, pela verossimilhança dos fatos narrados, pela construção lúcida dos personagens, dos espaços e do tempo. Nesse sentido, Diderot discute a fazer literário a partir de algumas técnicas muito específicas, consideradas, para seu momento e espaço históricos, como inovadoras e revolucionárias. Nossa pesquisa concentra-se, portanto, em estudar essas técnicas e demonstrar até que ponto as mesmas contribuíram para a renovação e evolução da forma romanesca. Ao ler a obra de Diderot e refletir sobre sua forma, supõe-se, portanto, que o romance é inovador, na França do século XVIII, em todos os sentidos. Em primeiro lugar, as categorias narrativas (narrador, narratário, tempo, espaço, história, etc.) assumem uma função totalmente nova dentro da obra; não se trata de um narrador comum, que se coloca como um simples contador de histórias, mas de um articulador irônico, um crítico de si mesmo e de seus procedimentos; assim como o narratário não tem apenas a função de mais um personagem dentro da diegese, mas, ele também, assume a função de artesão da narrativa, colocando-se como um leitor e crítico sagaz, que está de olhos e ouvidos bem abertos, espreitando cada comentário ou forma de contar do narrador principal. Na obra de Diderot essas categorias constituintes da narrativa estão desconstruídas; assumem uma função que vai além da composição da diegese, em favor da reflexão principal que a obra veicula, qual seja, pensar a constituição do romance enquanto gênero, estabelecer novos paradigmas para a prosa de ficção. Supomos, portanto, que Jacques lefataliste et sonmaître dá, na própria estrutura da narrativa, uma resposta muito original e legítima às questões que se colocavam ao gênero no século XVIII: afinal, o que é o romance? Como fazer para buscar a verossimilhança dentro da narrativa? A que se presta um romance? Qual a sua finalidade e quais devem ser as características principais que o distinguem da poesia, do drama e da História? Objetivos O principal objetivo deste trabalho é mostrar como o romance de Denis Diderot discute no plano da obra propriamente dita as principais questões do gênero, colocando em prática uma série de procedimentos que propunham a renovação e evolução da forma romanesca. Pretende-se mostrar como Diderot utiliza essas técnicas, desmascarando a ficcionalidade de qualquer relato romanesco através de um narrador 205 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa realista e lúcido e de um protagonista de caracteres picarescos como Jacques. Trata-se, portanto, de demonstrar a importância de Jacques lefatalistepara a evolução do próprio gênero ao colocar em evidência procedimentos e temas literários inovadores, transformando o falso - a ficção – em uma forma de declarar a verdade e de discutir os problemas históricos de seu tempo. Jacques lefataliste é um romance que, ao mesmo tempo em que reforça sua associação com a verossimilhança através do retrato dos costumes, indaga e procura dar uma resposta em sua própria estrutura sobre as perguntas-chave em relação ao romance enquanto gênero: o que é a ficção? O que vem a ser um romance? Nesse contexto, pode-se dizer que a obra de Diderot é o primeiro romance francês que alia radicalmente a discussão sobre a natureza do gênero com os problemas sócio-históricos da França, algo que Cervantes em parte já tinha feito um século antes com Dom Quixote na Espanha. Desenvolvimento da pesquisa A pesquisa encontra-se em fase inicial. Nesse primeiro momento, dedicamo-nos ao cumprimento de créditos exigidos pelo Programa através da realização de disciplinas e de participação em eventos. Também nos concentramos nas leituras preliminares do corpuse dos textos teóricos que servirão de base para o trabalho. Estamos, ainda, levantando dados e buscando bibliografia que possa nos auxiliar na hipótese que embasa esta pesquisa. Bibliografia ABRAHM, D. Manuel d'histoirelittéraire de la France. Paris:Éditionssociales, 1969. ABREU, M. (Org.). Trajetórias do romance: circulação, leitura e escrita nos séculos XVIII e XIX.Campinas: Mercado de Letras, 2008. ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Difel, 1964. AUERBACH, E.Mimesis: A representação da realidade na literatura ocidental. Tradução de Jacob Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2007. BARGUILLET,F. Le romanauXVIIIèmesiècle. Paris: Puf, 1981. BARTHES, R. Análise estrutural da narrativa. Tradução de Maria Zélia Barbosa Pinto. 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Com o intuito de contemplar as etapas concluídas, este relatório está dividido em: a) objetivo da pesquisa; b) estágio atual; c) atividades acadêmicas mais relevantes e d) cursos. a) Objetivo da pesquisa: O objetivo deste trabalho de pesquisa é analisar a obra Lavoura Arcaica de Raduan Nassar (1975) a partir do corpo enquanto lócus conceitual, inspirado pelo projeto teórico de Beividas cujo cerne é a junção da semiótica de linha francesa com a psicanálise. Pensando em que medida a tensão pulsional organiza a narrativa e como o texto expressa essa tensão, ou seja, como ela aparece manifestada no Plano de expressão, talvez cheguemos à conclusão que o filme homônimo de Luiz Fernando Carvalho (2001) construiu uma organização tensiva “tímica” da obra literária e, a partir de então, é possível reler a obra sob essa perspectiva. Para tanto, nesta proposta de trabalho, levaremos em conta também a tradução fílmica, dedicando um capítulo de nosso estudo ao tema. Nessa pesquisa, voltamo-nos, principalmente, para a literatura, percebendo o texto a partir do filme, o qual nos devolve para a obra literária por meio da perspectiva do corpo. b) Estágio atual: 209 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa O relatório de qualificação foi dividido em duas partes. Na primeira parte, traçamos o percurso da pesquisa desde a iniciação científica, mestrado até o doutorado e mostramos como a discussão evoluiu. Há um segundo capítulo que relata as atividades realizadas ao longo do doutorado e sua importância para a pesquisa. Na segunda parte do relatório de qualificação, foram apresentados alguns estudos realizados até então e que se dividiram nas seguintes partes principais: uma reflexão sobre o autor/ escritor e sua obra dentro da literatura brasileira, levando em consideração o trabalho da crítica, tais observações estão baseadas no conceito de paratopia do escritor, desenvolvido por Maingueneau (2001), intitulado “Paratopia do escritor: o lugar de Raduan Nassar na Literatura Brasileira; um estudo e revisão sobre o filme LavourArcaica (CARVALHO, 2001), intitulado “Do cinema à literatura: releituras”; “A isotopia do desejo”, que tratase da justificativa da escolha do projeto teórico de Beividas e de uma revisão de sua proposta; “As faces do Édipo”, subdividido em “memória”, “desejo” e “inveja”. Por último, inserimos a análise de um trecho da obra para demonstrarmos como estamos prosseguindo com o estudo. No atual momento da pesquisa, estamos empreendendo a análise da obra inteira a fim de apresentá-la concluída na tese. Pretendemos mostrar partes da análise no XIV Seminário de Pesquisa da PósGraduação em Estudos Literários da Unesp, FCLar, para demonstrar como estamos executando. c) 1. Atividades acadêmicas mais relevantes: Participação em eventos científicos na condição de ouvinte e com apresentação de trabalho: 1.1. Participação da Reunião Geral com coordenadores, professores e alunos e da palestra A Pós-Graduação na Unesp, ministrada pela Profa. Dra. Marilza Vieira Cunha Rudge, Pró-Reitora de Pós-Graduação da UNESP, promovidas pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa e pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UNESP/FCLAr, durante o “III Workshop em Letras”, ocorrido em 26 de abril de 2011, numa carga horária total de 3 horas 210 Descrição das pesquisas 1.2. III Conferência Internacional do Centro de Estudos das Línguas Africanas e da Diáspora Negra – CONCLADIN. UNESP, Campus de Araraquara, 2011. Participação na condição de ouvinte. 1.3. III Colóquio Margens – Estudos interdisciplinares nas fronteiras da literatura e da linguagem. Local: IEL / UNICAMP. Campus Campinas, 2011. Participação na condição de ouvinte. 1.4. II Encontro “Literatura e Sagrado” – fronteiras e margens do sagrado com o olhar dos estudos literários. Local: IEL / UNICAMP. Campus Campinas, 2011. Apresentação de trabalho. 1.5. XII Seminário de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários. Local: Campus de Araraquara, 2011. Apresentação de trabalho. 1.6. VII Semana de estudos teatrais da UNESP - “TEATRO, CINEMA E LITERATURA: CONFLUÊNCIAS”. Local: Campus de Araraquara, 2011. 1.7. I Seminário Internacional de Semiótica da UNESP. Local: UNESP, Campus de Araraquara, 2012. 1.8. XIII Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários relações Intersemióticas. Local: UNESP, Campus de Araraquara, 2011. 1.9. Participação no “V Workshop de Pós-Graduação em Letras Faculdade de Ciências e Letras – UNESP / Araraquara”. Participação na Assembleia e Reunião geral da Pós-Graduação. Dentro desse evento, participação da Palestra com Profa. Dra. Sandra Regina Goulart de Almeida – coordenadora adjunta da Área de Letras e Linguística da CAPES, “Tendências atuais da pesquisa em Letras e Linguística: perspectiva e avaliação”. 2. Participação como avaliadora / examinadora: 211 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa 2.1. Participação da comissão avaliadora do XXIII Congresso de iniciação científica da UNESP, área Humanas, na qualidade de avaliadora dos trabalhos apresentados no período de 03 a 06 de outubro de 2011. 2.2. Integrante da Comissão Examinadora da monografia de conclusão de curso de bacharelado em Letras de Ticiane Meneses de Araújo, intitulada “Da linguagem verbal à sincrética: o romance de Alan Pauls, e sua transcrição para o cinema por Heitor Babenco”. 3. Publicações: 3.1. Artigos: 3.1.1. André e Ana: uma perspectiva sobre o incesto em Lavoura Arcaica, romance e filme. REVISTA INTERFACES, UFRJ. Rio de Janeiro. ISSN: 15160033. N.14, V. 1/2011, 76-94. 3.1.2. O nome de Ana: território do gozo e do desejo em Lavoura Arcaica (NASSAR, 1975). Aguardando resposta. 3.1.3. Era uma vez um faminto: breves considerações sobre a intertextualidade em Lavoura Arcaica (NASSAR, 1975). REVISTA REVELL REVISTA DE ESTUDOS LITERÁRIOS DA UEMS. ISSN: 2179-4456. Ano 4. N. 02. V.07. 3.2. Capítulo de livro: Livro: A Indústria radical: leituras de cinema como arte-inquietação, organização de Ravel Giordano Paz e Fábio Akcelrud Durão (ISBN 9788577510740). O capítulo escrito se refere à obra Fitzcarraldo de Werner Herzog – “Desconcertos de obras bravias: a ópera, o filme e a selva em Fitzcarraldo”. 4. Representante discente da Pós-Graduação da Biblioteca da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP – Campus Araraquara. d) cursos: Desde o início do doutorado, cursei ao todo sete cadeiras, que somam 720 horas, tendo recebido conceito A em todas as disciplinas cursadas. Todos os cursos descritos 212 Descrição das pesquisas foram essenciais para o processo de contínuo amadurecimento do projeto de pesquisa e o cumprimento dessas etapas logo nos primeiros anos do doutorado exigiu tempo e dedicação às leituras que muitas vezes não estavam na bibliografia do projeto, mas que contribuíram enormemente para minha formação. As seguintes disciplinas foram realizadas na Unesp – FCLar (Campus Araraquara): Palavra e imagem: relações entre poesia, pintura e cinema (Profº Dº responsável Márcio Thamos), totalizando 8 créditos e 120 horas de carga horária, Semiótica e Leitura, sob a coordenação do Profº Dº Arnaldo Cortina. História e Ficção, sob a coordenação das Profª Dª Márcia Valéria Zamboni e Maria Dolores Aybar Ramirez. Discurso, Identidade e Subjetividade foi ministrada pela Profª Dª Maria do Rosário Gregolin e pelo Profº Dº Cleudemar Alves Fernandes. Gramática do Português foi ministrada pela Profª Dª Maria Helena de Moura Neves, totalizando 4 créditos e 60 horas de carga horária, durante 8 semanas. Semiótica e Literatura, ministrada pela Profª Dª Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan (Ude). Narrativa: fragmentação, memória, subjetividade e escritura, ministrada pela Profª Dª Maria das Graças Gomes Villa da Silva. d. 1) Cursos extras: Especialização em Psicologia Corporal, no Instituto Raiz de Araraquara, totalizando 394 horas de carga horária, de 2010 a 2012. Curso de extensão, Introdução à Leitura de Freud – psicopatologia freudiana: as neuroses na obra de Freud -, na Faculdade de Medicina da UNICAMP, Campus de Campinas, totalizando 30 horas de carga horária. Curso de extensão, Introdução à Psicanálise, com o Psicólogo e psicanalista Wilson Klain, no Instituto Raiz, em Araraquara, totalizando 28 horas de carga horária. Bibliografia BEIVIDAS, W. Do sentido ao corpo: semiótica e metapsicologia. Corpo e Sentido. São Paulo: Editora da Unesp, 1996. BEIVIDAS, W. Pulsão, afeto e paixão: psicanálise e semiótica. Psicologia em estudo, Maringá, v. 11, n. 2, p. 391-398, mai/ago. 2006. 213 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa BEIVIDAS, W. 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Maria Celeste Consolin Dezotti (Or.) 1. Estrutura da Tese Apesar da divisão, os três elementos selecionados para a análise (religião, magia e canto) dialogam internamente para a avaliação do status de Orfeu dentro da Argonáutica. Estendendo-se a análise da função religiosa de Orfeu dentro do poema, a investigação de como os poderes mágicos se relacionam com as ações rituais de Orfeu na Argonáutica permitirá delimitar a função da prática mágica de Orfeu no poema pois, primordialmente, é justamente de seu canto divino que dependem seus poderes mágicos. Para a compreensão plena do personagem na obra, realizar-se-á a análise e tradução, acompanhadas das devidas notas e comentários, de cada uma das passagens nas quais o personagem Orfeu aparece na Argonáutica, permitindo uma investigação profunda da participação dele na organização do poema épico em questão. Com o levantamento e a análise de todas essas passagens, mais a investigação das ocorrências de certas estruturas chave e a análise do vocabulário relacionado ao personagem Orfeu objetiva-se delinear um caminho para se caracterizar esse herói e suas aparições dentro no poema, tendo sempre por base os contextos que envolvam religião, magia e a música e poesia de Orfeu. Levando em conta os contextos que circundam cada uma das situações, delimitamos um conjunto de episódios cuja análise e traduções permitiram analisar todos os aspectos salutares de Orfeu sem prejudicar a continuidade da narrativa. Assim, primeiramente, optamos pela tradução completa do catálogo dos argonautas (I, 1-233), devido às implicações deste para a compreensão da estrutura da narrativa e do papel de cada um dos heróis participantes da jornada. A partir desse ponto, analisaremos todas as passagens onde Orfeu atua, estabelecendo-se, dessa forma, uma antologia de Orfeu dentro da Argonáutica, que permitirá uma noção completa de como o personagem é abordado por Apolônio de Rodes. Além dessas passagens, todos os momentos da obra 215 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa que envolvam os temas destacados nos três itens principais da análise (religião(i), magia(ii) e canto(iii)) serão devidamente abordados com base no texto grego e com a tradução e análise de cada um deles. Todas as traduções da Argonáutica serão feitas diretamente do texto grego estabelecido a partir da edição comentada de Mooney, 1912 (cf. bibliografia). Planejamos inicialmente uma estrutura da tese dividida em quatro partes, que se faz necessário sumarizar a seguir. As duas primeiras partes já constam do Relatório de Qualificação, sendo que a segunda está parcialmente completa e as seguintes estão em seu formato provisório. A seguir, um sumário da pesquisa até então: PARTE I - ORFEU: SACERDOTE, MAGO E POETA. 1. A Argonáutica e a tradição órfica; 1.1. O poema de Apolônio; 1.2. Aspectos relevantes do personagem Orfeu e a metodologia da análise; 1.3. O mito e suas fontes; 1.4. Orfeu na Argonáutica: fortuna crítica 1.5. Orfeu e o poder da thélxis; 1.6. Uma proposta de leitura antropológica; 2. A Magia; 2.1. A problemática da relação entre magia e religião; 2.3. O orfismo e o novo homem helenístico; 2.4. A teoria geral da magia de Marcel Mauss; 2.5. Claude Lévi-Strauss: linguagem simbólica e intertextualidade; 2.6. Trajeto antropológico de Gilbert Durand e o estruturalismo; 3. Religião; 3.1. O mistério da fé; 3.2. O Sagrado e o profano; 3.3. Mito, mitema e imaginário; 3.4. Um prelúdio sobre a magia na Argonáutica: a oposição thélxis e téchnē; 4. As narrativas e os narradores: o Aedo Apolônio e o Aedo Orfeu 4.1. Quem é o narrador da epopeia? 4.2. A narrativa de Apolônio. PARTE II – A PRESENÇA DE ORFEU NA ARGONÁUTICA: CANTOS I E II. Introdução: Sobre o texto e a tradução. Síntese do Canto I. 1.1 O catálogo dos Argonautas (I, vv.1-233) 1.1.1. O(s) Intróito(s) 1.1.2. Proêmio ou Hino: A performance do aedo na Argonáutica de Apolônio de Rodes. 1.1.3. Os elementos hímnicos do proêmio da Argonáutica; 1.1.4. Cumplicidade e interpretação. 1.2. A Cosmogonia de Orfeu (I, vv.450-518); 1.2.1. Poesia e Ordem; 1.2.2. Poesia e Encantamento;1.2.3. Ordem e Encantamento; 1.2.4. Amor e Luta; 1.3. A partida dos argonautas (Ar. I, vv.536-579) 1.3.1. Os observadores da partida; 1.3.2. Uma tensão sexual?; 1.3.3. Sol e Lua. 216 Descrição das pesquisas Os trechos já traduzidos mas ainda não analisados são: 1.4. A iniciação dos argonautas na ilha de Electra (I, vv.910-921) e 1.5. a dança comandada por Orfeu, como parte do ritual sugerido por Mopso para cessar as tempestades no mar (I, vv.1078-1152), do Canto I, e 2.1. A Celebração da vitória de Polideuces sobre o rei Amico do Canto II. No momento, dedicamo-nos à análise e tradução dos trechos restantes. 2. Desenvolvimento anterior O primeiro ano da pesquisa foi todo dedicado às leituras da bibliografia e ao cumprimento de créditos de disciplinas. As discussões e leituras realizadas nas disciplinas Poética da expressão: crítica da poesia e poetas críticos, ministrada pelo Prof. Dr. João Batista Toledo Prado, e Palavra e imagem: relações entre poesia, pintura e cinema, ministrada pelo Prof. Dr. Márcio Thamos permitiram estabelecer diretrizes primárias e um modelo de análise para as passagens selecionadas do poema de Apolônio. Dessas disciplinas surgiram as primeiras análises da obra. No segundo semestre do mesmo ano, a disciplina A tradução portuguesa do legado grecoromano, ministrada pelo Prof. Dr. Brunno Vinicius Gonçalves Vieira, trouxe importantes reflexões para o processo tradutório de obras clássicas, que servirão como diretrizes para as abordagens tradutórias das passagens selecionadas da Argonáutica. No ano de 2011, a disciplina Mito e poesia, também ministrada pelo Prof. Dr. João Batista Toledo Prado, trouxe mais reflexões importantes para avaliar as questões que englobam a matéria poética em relação ao mito relatado, bem como do papel da aparição desse poeta/aedo dentro da obra poética. As reflexões permitiram a elaboração de uma monografia a partir da análise envolvendo as participações de Apolo e Ártemis em I, vv.536-579, bem como a inclusão da discussão antropológica como suporte analítico e teórico. No segundo semestre de 2012, a disciplina Aspectos da Narrativa, ministrada pela Profª.Drª. Maria Célia de Moraes Leonel propiciou uma visão mais ampla das questões narrativas envolvendo a produção literária ocidental, desde as primeiras teorias sobre literatura de Aristóteles até visões mais modernas. As leituras realizadas abrangeram diversos autores de correntes teóricas distintas, o que permitiu uma visão ampla da história da teoria da Narrativa. Na monografia realizada como avaliação para a disciplina, intitulada “O aedo não é um narrador? A construção da performance na Argonáutica de Apolônio de Rodes.”, importantes pontos da discussão realizada na 217 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa disciplina foram perscrutados tendo em vista debater a natureza do narrador em Apolônio de Rodes. Para tanto, traduziram-se e analisaram-se os primeiros 22 versos da Argonáutica. Da mesma forma, as leituras iniciadas a partir das disciplinas se associaram ao levantamento bibliográfico decorrente das análises já empreendidas ou iniciadas, o que convergiu em uma expansão considerável da bibliografia apresentada ao início do doutorado. Das diversas possibilidades de leitura dos temas da magia, religião e da matéria poética do canto de Orfeu na Argonáutica, decidiu-se abranger um grande número de abordagens, mas privilegiando sempre o que o próprio texto de Apolônio oferece, em comparação com suas fontes e modelos poéticos e pela investigação da estrutura de sua obra. Essa abordagem pretende-se, de tal forma e na medida do possível, primeiramente imanentista, mas é esperado que se encaminhe a partir dessa investigação textual um aprofundamento teórico decorrente das diversas leituras selecionadas. 3. Estágio atual da pesquisa e prognósticos Pelo que foi levantado até então, pretende-se dar prosseguimento à análise da presença de Orfeu na Argonáutica de Apolônio de Rodes tendo em mente todas as implicações já apresentadas na Parte I e tudo que os primeiros trechos traduzidos e investigados do Canto I e II já permitiram compreender sobre essa presença. Esperase que, por intermédio de tais procedimentos, fique evidente a procura por um formato o mais próximo possível da versão final da tese, com sua estruturação bem delimitada e, na medida do possível, clara para o leitor. O Canto III apresentará um momento previsto da tese, o terceiro, no qual a feiticeira Medeia entrará em cena e Orfeu, consequentemente se ausentará. O confronto entre esses dois personagens é fundamental para delimitar o espaço da magia e do religioso no poema, bem como permitirá o confrontamento das teses de Mauss, Lévi-Strauss e Durand. Não obstante, retomar-se-ão se necessário for, os capítulos introdutórios da tese, numa busca por delimitar melhor esses espaços. E, como previsto, a quarta e última parte da tese trará não apenas as aparições de Orfeu em conjunto com Medeia durante o retorno dos heróis, como a conclusão da tese e as considerações finais que todo esse percurso nos permitirá compreender. 218 Descrição das pesquisas Alguns itens acabaram por aparecer incompletos ao fim desse primeiro estágio, como a tradução e análise do catálogo dos argonautas. A proposta inicial de tradução integral do catálogo está mantida e está sendo realizada, com o intuito de compreender melhor a relação entre Orfeu e os outros argonautas, e o porque de apenas ele ser único herói que Jasão é especificamente convidado a aceitar, denominado o ajudante nos trabalhos vindouros (I, v.32). Da mesma forma, toda possível implicação na apresentação desses personagens na análise já empreendida será devidamente abordada ainda no capítulo 1 da Parte II da tese, e retomada quando necessário. Realiza-se, ainda, uma retomada de modo mais aprofundado do tema da relação entre religião e magia, na discussão iniciada no capítulo 2 da Parte I, com enfoque maior nos aspectos religiosos. Para tanto a tradução e análise das cenas de rituais empreendidas por Orfeu bem como dos aspectos religiosos de outros momentos e personagens do poema – como da própria Medeia – são essenciais para compreender essa relação. O que fica evidente, até então, é que a religião, a magia e o canto de Orfeu na Argonáutica de Apolônio de Rodes são mesmo aspectos que transcendem o poema e que devem ser lidos e estudados em profundidade para a compreensão da própria narrativa do poeta. Da mesma forma, fica evidente que a miríade de recursos, referências e estratégias de que se vale o poeta é a chave para compreender não apenas Orfeu e sua tradição, mas a poesia Helenística e a presença do poema de Apolônio nesse contexto, e entender porque o poeta alexandrino é referência para os que o seguirão passa pela compreensão desses e de outros aspectos dessa monumental obra. Bibliografia 1. Edições da Argonáutica: APOLLONIOS DE RHODES. Argonautiques. Texte établi et commenté par Francis Vian et traduit par Émile Delage. Paris: Les Belles Lettres, 1976. APOLLONIO RHODIO. Os Argonautas. Tradução: José Maria da Costa e Silva. Lisboa: Imprensa Nacional. 1852. APOLLONIUS RHODIUS. Argonautica. Translated by R. C. Seaton. Cambridge: Loeb Classical, 2003. APOLLONIUS RHODIUS. The Argonautica. Edição em grego. Editado com introdução e comentários em inglês por George W. Mooney. London: Longmans, Green 219 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa and Co., 1912. 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Para tanto, desenvolveu-se certa teoria acerca das metáforas ditas marítimas. Elas teriam origem nos primevos contatos do ser humano com o elemento água bem como nas imagens formadas pela ação do vento sobre as águas calmas do mar2. Tais metáforas marítimas florescem com toda intensidade em uma determinada espacialidade que não compreende apenas o mar. Desse modo, analisando no mestrado a conotação espacial do mar, chegou-se ao conceito de ambiente marítimo. O ambiente marítimo seria aquela espacialidade que compreende, além do mar, todos os elementos e seres que circundam as pessoas que, direta ou indiretamente, dependem dessa grande extensão de água para sobreviver. Faz parte e constitui o ambiente marítimo, além do mar, evidentemente, o pescador costeiro, o capitão de navio, o faroleiro, os abastecedores de ilhas, os pertencentes às marinhas mercantes e de guerra, às prostitutas de portos, os caçadores de baleias, infinitas lendas de navios fantasmas e sereias, os aventureiros do mar, os mergulhadores, os instrumentos marítimos junto com um vocabulário náutico que está sempre presente nas narrativas de ambiente marítimo, e muitos outros elementos que fazem também parte da extensa lista de particularidades que caracteriza essa atmosfera do mar3. 1 Dissertação realizada no IEL – Unicamp e defendida em 2011. Ver capítulo III da dissertação de mestrado defendida pelo autor desse texto. 3 O vento e o sol são também elementos importantes desse ambiente marítimo e participam ativamente na formação das metáforas marítimas. Não se pode esquecer, ainda, dos odores característicos dessa atmosfera do mar: o cheiro da maresia, das plantas de ilhas, dos navios, dos peixes e outros. 2 225 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa No romance A ostra e o vento, porém, o ambiente marítimo é bem reduzido se comparado ao que se encontra emMaria de cada porto. Em A ostra sobressaem-se a ilha e a vida introspectiva e tensa daqueles que vivem afastados do continente. Aparecem personagens marinheiros, bem como navios, vocábulos náuticos, portos, e outros, mas tudo em menor escala. Maria de cada porto, por sua vez, traz uma espécie de visão panorâmica do ambiente marítimo. Os principais espaços e personagens que constitui essa espacialidade4 são abordados nessa obra de Lopes ainda que sem muitos aprofundamentos o que ocorrerá em outras obras desse autor. Encontra-se sementes de outras narrativas de Lopes em vários trechos de Maria de cada porto. E vale salientar que não se trata somente de determinado espaço do ambiente marítimo que será melhor explorado, mas de exemplos de enredo. Assim, visualiza-se o romance A ostra e o vento em Maria não apenas quando Delmiro, o protagonista, discorre sobre as ilhas e seus mistérios, mas, sobretudo, quando surge alguma história que claramente lembra aquela de A ostra: – Foi quando um cabo que veio servir aqui trouxe mulher e uma filha. Imprudência! Duas mulheres no meio de quase quinhentos homens sem ver mulher perto de um ano... Imagine o que esse homem passou nesta ilha neste barracão. E as brigas que elas provocaram só porque olhavam, obrigadas, para um ou outro. Dizem que o rapaz passou seis meses sem dormir, sentado nesse batente aí, de metralhadora em punho. (LOPES, 1977, p. 57) O romance Cais, saudade em Pedra, o terceiro de Moacir, também tem raízes em Mariade cada porto, onde Delmiro pronuncia uma frase que se parece muito com o título dessa terceira narrativa de Lopes: Navio tem sentimento de gente grande. De marcha à ré, apitando de saudade. Maruja acenando, e a ponte diminuindo, e a cidade ficando, e a melancolia de sempre, dos portos que ficam. “Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!” Não lembro quem disse isso, mas foi bem dito. (LOPES, 1977, p. 89) Vê-se, assim, que Maria de cada porto não é simplesmente a primeira obra de Moacir C. Lopes, mas uma espécie de projeto literário em que se apresenta um ambiente 4 Nesse estudo, a palavra espacialidade não pode ser entendida como sinônimo de espaço. A primeira, ao menos segundo a ideia que se desenvolve aqui, tem caráter mais amplo, sendo algo próximo a um macro espaço constituído por vários espaços que, por sua vez, englobam vários lugares. No ambiente marítimo, por exemplo, tem-se o espaço ilha, que contém vários lugares como a praia, as grutas, os faróis e outros. 226 Descrição das pesquisas marítimo que será por décadas explorado em outras narrativas. Parece mesmo que a intenção desse autor foi, desde o início, desvendar literariamente essa espacialidadesintetizada em seu primeiro romance, espacialidade que ele sabia ser vasta o bastante para não poder ser descrita em uma única obra. Dando continuidade ao cronograma apresentado no projeto de doutorado, O romance Cais, saudade em pedra foi analisado no primeiro semestre de 2013. Essa narrativatraz a história do marinheiro Gerson e dos poucos dias que ele passou em Recife após o navio em que servia naufragar. Trata-se do navio Camaquã que fazia parte da esquadra brasileira e lutava na Segunda Guerra ao lado de outras embarcações aliadas. Gerson era marinheiro raso e já havia servido em outros navios como, por exemplo, o São Paulo. Após uma noite tempestuosa o Camaquã, navio pouco seguro, veio a pique nas proximidades de Recife o que permitiu o resgate de grande parte dos náufragos. Gerson, após ser salvo, passa alguns dias em Recife, tempo em que procura por Délio, amigo marinheiro que ele acredita não ter morrido no naufrágio. Porém, nesses dias de Recife a grande busca de Gerson é mesmo sua paz interior, é a busca por um recomeço após ter estado tão próximo do fim. Nesse curto intervalo de tempo, esse marinheiro trava contato com vários personagens e lugares que são, pode-se dizer, os principais elementos das cidades portuárias. Nas várias andanças que Gerson faz pela cidade, pelo cais procurando pôr ordem em seus pensamentos e ao mesmo tempo procurando por Délio o que se tem, em verdade, é uma bem refinada caracterização da cidade portuária, do cais, de uma parte do ambiente marítimo. Por fim, Gerson encontra Délio que estava trabalhando em segredo, como espião para o governo brasileiro, a fim de descobrir um ponto secreto de abastecimento de submarinos alemães. Ao mesmo tempo Gerson se reencontra e novamente atende ao chamado do mar. Embarca em outro navio e parte, deixando para trás Tolinha, sua amante, e muitas saudades. Cais é um momento da vida de um marinheiro, mas um momento em que se consegue visualizar muito bem o que é uma cidade do mar, bem como o homem dessa espacialidade. Em Cais Lopes volta a abordar de modo direto o ambiente marítimo que tão bem foi explorado em seu primeiro romance Maria de cada porto. Em certo sentido, pode-se até dizer que Cais é uma espécie de continuação de Maria, pois também trata da história 227 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa de um marinheiro náufrago. Porém, o foco do enredo no terceiro romance está no reestabelecimento do marinheiro e não na experiência do naufrágio. Em Maria o fato principal é o naufrágio em si, os dias em que Delmiro, o protagonista, passa à deriva, mergulhando em seus pensamentos e trazendo uma visão panorâmica do ambiente marítimo. O naufrágio e o contato constante com a morte desencadeiam forças que permitem a Delmiro profundas introspecções, e a história termina quando ele chega ao porto. Em Cais o início se dá justamente quando Gerson chega ao porto após ter sido resgatado. Assim, é até possível visualizar certa continuidade de Maria de cada porto em Cais, porém nessa terceira obra, Moacir foca um local do ambiente marítimo que em Maria foi apenas caracterizado de passagem, sem muita profundidade, trata-se da porção seca desse ambiente do mar, a cidade marítima ou costeira ou, ainda, o cais e o porto. Após a análise de Cais foi possível desenvolver um pouco mais a ideia que se tinha de ambiente marítimo. Ficou claro que esse ambiente é dividido em pelo menos duas grandes partes: o mar (navios e tudo aquilo que permite a interação do homem com as águas navegáveis) e as porções de terra que se ligam diretamente a essa imensidão líquida (ilhas, penínsulas e cidades portuárias). Assim, de acordo com a dominância de uma ou outra espacialidade, as metáforas se apresentarão de formas diferentes. O mar age de modo distinto no espírito humano quando o observador está em terra, que lhe garante a segurança, mas não impede o deslumbramento provocado pela potência do mar. A ilha é um espaço que fica no meio do caminho, daí a complexidade das metáforas marítimas que lá surgem, tal como demonstrado no estudo que se fez do romance A ostra eo vento. O mar, por sua vez, será sempre sinônimo de aventuras e perigos. O estudo de doutorado terá como meta para o próximo semestre a análise do romance Onde repousam os náufragos, uma das narrativas mais recentes de Lopes, publicada em 2003. Nessa obra, espera-se encontrar uma boa definição do mar como espacialidade, ou seja, da parte espacial mais atrelada ao mundo líquido do ambiente marítimo (espera-se melhor estudar espaços como os navios, por exemplo)5. Também se iniciará, nesse segundo semestre de 2013, uma descrição mais apurada do ambiente 5 No primeiro semestre do doutorado analisou-se também o conto Navio morto publicado no livro de contos O navio morto e outras tentações do marem 1965. Nessa análise já foi iniciado um estudo do navio como espacialidade, porém, devido ànarrativa escolhida ser pouco extensa, optou-se por analisar também um romance que abordasse esse espaço, a fim de se obter mais dados que permitam melhor compreender o mar como espacialidade. 228 Descrição das pesquisas marítimo de Lopes, bem como se buscará compreender essa espacialidade como parte do regional, ideia que é inovadora em relação ao que se fez no mestrado em que o ambiente marítimo foi compreendido como uma terceira via, ou seja, um espaço que não era nem urbano nem regional. Com o avançar da pesquisa notou-se, porém, que Lopes, embora trabalhe uma espacialidade basicamente universal, deixa marcas regionais, porém não um regional provinciano, mas um regional nacional. O mar de Lopes é em grande parte o mar brasileiro, diferente, portanto, em relação a outros países e não a outro estado ou região da federação. Essa ideia, ainda muito prematura deverá ser desenvolvida e verificada nos próximos semestres, tomando como parâmetro as análises feitas nos dois primeiros anos do curso de doutorado e outras tantas leituras que vem sendo e que serão feitas. Bibliografia GOES, Fernando. A metáfora da tempestade marítima em A ostra e o vento. Dissertação de mestrado. IEL – UNICAMP, 2011. LOPES, Moacir C. A ostra e o vento. 7. ed. Rio de Janeiro: Quartet, 2000 ______. Belona, latitude noite. 2. ed. Rio de Janeiro: Cátedra, 1975. ______. Cais, saudade em pedra. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Cátedra, 1973. ______. Maria de cada porto. 6. ed. Rio de Janeiro: Cátedra, 1977. ______. O navio morto e outras tentações do mar. Rio de Janeiro: Revan, 1995. 229 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa O ESCORPIÃO E O JAGUAR: O MEMORIALISMO PROSPECTIVO D’O ATENEU, DE RAUL POMPÉIA Franco Baptista Sandanello Doutorando Prof. Dr. Wilton José Marques (Or.) Considerações iniciais A presente pesquisa de Doutorado nasceu de um projeto de Iniciação Científica desenvolvido a partir do Núcleo de Estudos Oitocentistas da Universidade Federal de São Carlos / UFSCar, sob a coordenação e orientação do Prof. Dr. Wilton José Marques, intitulado Os limites do impressionismo literário em O Ateneu, de Raul Pompéia (CNPq). Posteriormente, este trabalho evoluiu para uma pesquisa de Mestrado desenvolvida dentro da linha de pesquisa “História literária e crítica” do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” / UNESP - FCL, Ilusão e técnica narrativa em O Ateneu, de Raul Pompéia (CNPq), sob a orientação do Prof. Dr. Wilton José Marques. Atualmente, tal estudo foi continuado em uma pesquisa de Doutorado, sob o título (atualizado) de O escorpião e o jaguar: o memorialismo prospectivo d’O Ateneu, de Raul Pompéia, dentro da mesma linha de pesquisa anterior e sob a orientação do Prof. Dr. Wilton José Marques, com defesa prevista para maio de 2014. Objetivos 1. Sistematizar, no conjunto da recepção crítica d’O Ateneu, as interpretações voltadas para a análise e discussão de seus aspectos narrativos; 2. Revisar os pressupostos teóricos subjacentes à temporalidade da “Crônica de Saudades”; 3. Analisar e discutir o papel do narrador no romance em questão. Metodologia 230 Descrição das pesquisas No que diz respeito à análise textual, tomamos como ponto de partida o sistema de análise narrativa proposto por Gérard Genette em Figures III (em particular, na seção intitulada Discours du récit: essai de méthode) e em Nouveau discours du récit, texto complementar ao anterior. Trata-se basicamente de uma proposta de estudo dos problemas relacionados ao narrador a partir de um “ensaio ou tentativa de método”, i.e., de uma perspectiva diacrônica em que o estudo d’O Ateneu venha a remeter ao estudo da narrativa de memórias como um todo, e que, inversamente, as discussões teóricas auxiliem na compreensão do texto de Pompéia. Resultados parciais Até o momento, foram escritos dois de três capítulos previstos: um primeiro, a respeito do lugar do foco narrativo na fortuna crítica d’O Ateneu; um segundo, acerca da discussão teórica da narrativa de memórias; e parte de um terceiro, relativo à analise do romance. Para fins de organização, os capítulos foram dispostos em duas partes, precedidos de uma breve “Introdução”: “Fortunas teóricas e tradições críticas” (capítulos 1 e 2) e “Ilusão e técnica narrativa” (capítulo 3). No primeiro capítulo, ao levantarmos a recepção relativamente extensa deste romance, destacamos como a técnica narrativa da obra foi estudada enquanto elemento acessório ou complementar a outras questões, tais como a biografia conturbada do escritor ou o fim do escravismo e da monarquia brasileira. Assim, dividimos a recepção crítica do romance em três grandes “tendências interpretativas”: uma primeira de viés biográfico, pautada na comparação direta entre a estadia de Sérgio no internato e aquela de Pompéia no Colégio Abílio e Dom Pedro II, com destaque para os textos de Araripe Jr., José Veríssimo, Mário de Andrade, Olívio Montenegro e Temístocles Linhares; uma segunda de viés social, marcada pela compreensão do internato enquanto “microcosmo” do Brasil da época, como nos textos de Flávio Loureiro Chaves e Alfredo Bosi; e uma terceira de viés “revisionista” ou pluralista, de estudo das questões narrativas da obra a partir de apontamentos diversos, como, por exemplo, as experiências homossexuais dos internos e os aparelhos de opressão do internato, com ênfase nos textos de Silviano Santiago, José Lopez Heredia e Sônia Brayner, bem como no livro organizado por Leyla Perrone-Moisés, O Ateneu: retórica e paixão. No segundo capítulo, discutimos o lugar da memória na narrativa de primeira pessoa a partir de três argumentos: a impossibilidade de narrar uma ação no instante 231 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa mesmo em que ela ocorre, i.e., simultaneamente ao fato; a evidência de que nenhum narrador autodiegético possa ter uma visão abrangente e imparcial dos fatos; e a dificuldade classificatória subsequente da narrativa de memórias como um todo. A fim de sistematizar, ao final do capítulo, os resultados desta discussão, propôs-se uma divisão da narrativa de memórias em três “tipos” distintos, conforme a maior ou menor atenção do narrador aos fatos passados: “retrospectiva”, “presentificativa” e “prospectiva”. O terceiro capítulo consta por ora de dois primeiros subcapítulos, restando ainda outros dois por desenvolver: “A ‘verdade’ paterna”, “No reino do jaguar?”, “Sérgio signo de escorpião” e “O círculo de fogo”. Em “A ‘verdade’ paterna”, analisa-se os pontos de contato entre a fala do narrador e o discurso de seu pai, presente tanto na fala inaugural do romance quanto na carta transcrita no último capítulo. Já em “No reino do Jaguar?”, observa-se os principais elementos do discurso oficial do Ateneu, conforme exposto pelas falas de Aristarco, Venâncio e Cláudio. Nos demais – “Sérgio, signo de escorpião” e “O círculo de fogo” – pretende-se avaliar, respectivamente, a fala enviesada do narrador e seu contato destrutivo com o universo do Ateneu. Segue-se ao corpo da pesquisa, em anexo, uma bibliografia comentada da recepção crítica do romance, como forma de complementar e esmiuçar as linhas interpretativas destacadas no primeiro capítulo. Ao início desta bibliografia, há um levantamento das edições cotejadas d’O Ateneu, dividida segundo sua maior proximidade com o texto da primeira edição (1888), da segunda (1905) ou do códice de provas revisado pelo autor (1895). Bibliografia AGOSTINHO, Santo. 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Embora vários críticos tenham afirmado que esse sentimento é um dos mais universais e pouco mudou em relação a sua definição com o passar do tempo, deve-se levar em consideração que Homero possuía uma considerável variedade lexical para indicar esse sentimento, além de apresentar termos relacionados à honra e a tradição que serão indissociáveis ao medo, fato que exigirá a compreensão dos mesmos. Desta forma, mesmo que o termo medo possua universalidade e atemporalidade, a cultura que rodeia os personagens da Ilíada - bem como a moralidade e a ética, afinal por mais que esses dois elementos não estejam diretamente relacionados ao medo, eles são passíveis das resultantes e consequentes atitudes influenciadas por ele - é distinta da cultura do século XXI, fato que torna necessária a elaboração de uma pesquisa dos valores da sociedade que Homero construiu no épico para a compreensão do sentimento do medo. Deste modo o trabalho seguirá a seguinte sequência: - Conceitualização sobre o que é o herói homérico seguida da conceitualização do sentimento de medo e suas várias formas de ser interpretado, relacionando-o ao herói e evidenciando como este sentimento pode potencializar os feitos do personagem assim como humanizá-lo; - Levantamento do léxico do medo nas cenas em que esse sentimento está relacionado a Heitor, expondo todos os elementos culturais que estão intrínsecos as 234 Descrição das pesquisas passagens destacadas, enfatizando a existência das diversas variantes semânticas que a palavra medo apresenta em grego e explicando seus significados. Uma vez que já foi realizado o levantamento das cenas em que Heitor está relacionado ao sentimento de medo na Ilíada, continuarei com a leitura das obras para embasamento teórico com a finalidade de construir uma interpretação das cenas de forma coerente e eficaz. Bibliografia ADKINS, Arthur W. H. 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Este trabalho de pesquisa tem como principal objetivo a análise do romance Cidade de Deus de Paulo Lins. É importante ressaltar que não será considerada a obra cinematográfica, mas somente o romance. Desta forma, o estudo sustenta-se na ideia de que o romance se pauta na violência como um paradigma de construção da arte. Isto é, os elementos que compõem a narrativa têm como principal referência a escalada da violência na comunidade e seu desenvolvimento, retratados no livro. Assim, este trabalho se organiza em dois momentos distintos: uma análise nos relatos que compõem a historia como forma de compreensão da técnica realista empregada por Paulo Linse uma análise dos elementos básicos da narrativa que, em última instancia, se fortalecem no caráter violento da narrativa e sustentam o que a crítica denomina como hipermimetismo ou realismo brutal. Ou seja, o trabalho discute a técnica realista empregada pelo autor e, por consequência, a fundamentação desta técnica nos elementos básicos da narrativa. A representação do real é potencializada. Os conceitos estabelecidos por Auerbach são potencializados no pós-moderno. A relação realidade e ficção ganha novas perspectivas. E o romance em questão aponta uma vertente em que a violência emerge como índice, como paradigma que sustenta a narrativa e confirma uma característica reflexiva sobre o real. A questão do retorno do real é revigorada pela densidade da obra. E, nos termos de Tania Pellegrini, há um retorno ao real, mas não como forma estética de visualização da realidade, mas como um procedimento formal que situa o leitor em uma realidade contraditória e alucinante. A força deste romance consiste num processo de recorte de uma realidade brutal, violenta, que no seu limite questiona o processo de evolução social. A narração é intensa e apresenta o desenvolvimento da ficção por meio da criminalidade. Os elementos narrativos se sustentam neste índice de violência. Nesse sentido, a complexidade da obra se fortalece 237 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa em cada elemento narrativo que se potencializa e assume um caráter agressivo, ofensivo e, num jogo dialético, questionador das realidades ali presentes. Além disso, o referencial teórico se sustenta na ideia de literatura traumática proposto por Hall Foster que concebe nesta técnica realista uma forma de exposição de um trauma ao se representar o real como forma de evidencia da realidade ao leitor. O olhar do sujeito para a realidade por meio da ficção provoca uma marca, um estigma, desperta o leitor para a experiência da individualidade apontando o latente estado de fragmentação e violência dos sujeitos. O encontro do sujeito com o real ocorre na leitura do romance, o trauma, e num processo de validação entre real e ficção conduz o leitor se (re)encontre com a realidade. Perceba a estrutura em que se envolve, e como consequência, o leitor é envolvido pela narrativa a ponto de se sensibilizar com o processo. É o que Schollhammer denomina como realismo performático. Entende-se que a partir do romance discute-se a técnica de representação ficcional considerando os conceitos de realismo traumático e realismo performático como modo de questionamento e identificação desta técnica realista contemporânea. Em última instância, a discussão se dá numa forma em que a representação apresenta uma nova perspectiva distinta do que se convenciona caracterizar como mimetismo. Além disso, o que se percebe é a violência como o padrão elementar do romance. Questionam-se as ideias de realidade e ficção e como a obra consegue se situar no limiar desta perspectiva. Discussão que se pauta nas afirmações de Hutcheon quando expõe sobre a pós-modernidade e a literatura. Segundo a Hutcheon, a pósmodernidade tem como características a reflexão sobre a história. O passado não só valida o status de realidade, mas também o questiona Apresentando uma postura critica em relação ao passado. A narrativa de Cidade de Deus é marcada por um relato de experiências que, no conjunto, sustentam a narrativa e estabelecem a relação entre a forma de desenvolvimento daquilo que o autor Paulo Lins denomina como neo favela. Concomitantemente, busca-se a compreensão da singularidade desta obra para a literatura brasileira, tendo em vista que se compõem a partir de um complexo nível de relação entre relato, testemunho da realidade em forma ficcional. Segundo Schwarz, este é um romance de vigor na literatura brasileira. A busca por sua compreensão por meio de referenciais teóricos novos permite uma melhor assimilação da complexidade deste romance. E apontar como se dá o desenvolvimento desta perspectiva literária que se funda numa reflexão sobre a representação e seu cânone. 238 Descrição das pesquisas Assim, este semestre possibilitou uma readequação conceitual do projeto de pesquisa. As leituras propostas durante as disciplinas permitiram uma melhor compreensão do objeto de estudo e uma reorganização da linha de pesquisa. Diante desta reorganização, alguns questionamentos surgiram para orientar a pesquisa. A discussão sobre a representação no pós-moderno. A conceitualização do moderno e do pós-moderno e sua delimitação. Os limites entre real e ficção e, consequentemente, a literatura como forma de discussão deste limite. A técnica realista como procedimento de construção da narrativa no romance e como este retorno do real se esclarece no romance. Enfim, questionamentos que se de suma importância para o desenvolvimento desta pesquisa. Como consequência desta pesquisa, será analisado o romance numa perspectiva de apontar os elementos essências da narrativa e delinear como se desenvolve o realismo como técnica de construção literária, tendo em vista o caráter violento inerente a representação do real e como a violência é parte inerente a cada elemento narrativo (narrador, personagem, espaço e tempo) e como a ausência deste estado promove a exclusão do romance de diferentes personagens. Bibliografia ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura trad. Celeste Aída Galeão RJ: Editora Tempo Brasileiro, 1991. AUERBACH, E. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Trad. George Sperber. São Paulo: Perspectiva/EDUSP, 1971. BENJAMIN, W. Sobre o conceito de História. In: _______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 222-232. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária – 4 ed. – SP: Editora Nacional, 1975. FOSTER, H. The returnofthe real. Londres: MIT Press, 1995. GALLAGHER, C. Ficção. In: MORETTI, F. (Org.). A cultura do romance. São Paulo: Cosacnaify, 2009. p.629-658. HUTCHEON, L. Poética do Pós-Modernismo. História, Teoria, Ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991. LINS, Paulo. Cidade de Deus. SP: Companhia das Letras, 1997. PELLEGRINI, T. Realismo: postura e método. Letras de hoje. Porto Alegre, v.42, n.4, p.137-155, dez./2007 RANCIÈRE, J. O efeito de realidade e a política da ficção. Novos estudos CEBRAP. São Paulo, n.86, p.75-99, mar./2010. SCHWARZ, Roberto. “Cidade de Deus”, in: Sequências Brasileiras: ensaios, São Paulo: Companhia das Letras, 1999, pag. 163 – 171 SCHOLLHAMMER, K. E. À procura de um novo realismo: teses sobre a realidade em texto e imagem hoje. In: _____. E.; OLINTO, K. H. (Orgs.). Literatura e cultura. Rio 239 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2003. p.76-90. WATT, I. A ascensão do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 240 Descrição das pesquisas REFLEXOS DA DECADÊNCIA NO ROMANCE DE JOSÉ LINS DO REGO Isabella Unterricher Rechtenthal Mestranda – Bolsista CNPq Profa. Dra. Maria Célia de Moraes Leonel (Or.) 1. Introdução O escritor paraibano José Lins do Rego destaca-se na cena da literatura brasileira por conta dos romances de cunho regionalista, corrente literária que se tornou notável na chamada segunda geração do modernismo, compreendida entre os anos de 1930 a 1945. Marcada por colocar em primeiro plano as condições físico-sociais de determinadas regiões brasileiras, a corrente regionalista tornou-se mais expressiva na produção do Nordeste e do Sul do país, sendo José Lins do Rego um dos principais representantes da produção nordestina, ao lado de Raquel de Queirós, Jorge Amado e Graciliano Ramos, principalmente. Dos romances produzidos pelo escritor, destacam-se os pertencentes ao chamado por ele mesmo de ciclo da cana-de-açúcar, narrativas nas quais representa as condições econômico-sociais da sociedade baseada na produção açucareira dos engenhos, assim como as transformações ocasionadas pela implementação das usinas na região. São obras que ilustram, portanto, a sociedade da zona da mata nordestina no final do século XIX e início do século XX, marcada pela política patriarcal, recém abolicionista, em que o poder da terra concentra-se nas mãos dos grandes senhores de engenho. Pertencem ao ciclo da cana-de-açúcar os romances Menino de engenho, Doidinho, Banguê, O moleque Ricardo, Usina e Fogo morto, esse último considerado a obra de plenitude do escritor. Seguindo-se a classificação de Antonio Candido e José Aderaldo Castello em Presença da literatura brasileira (1968, p. 252), as demais obras reguianas dividem-se em a) “ciclo do cangaço, misticismo e seca”, ao qual se enquadram Pedra Bonita e Cangaceiros, b) “obras independentes com implicações nos ciclos”, como Pureza e Riacho Doce e c) “obras desligadas desses ciclos”, como Águamãe e Eurídice, cujas narrativas, ambientadas no Rio de Janeiro, não possuem o cunho regional e pouca atenção recebem da crítica literária nacional. Tomando por base Fogo morto, Candido e Castello (1968, p. 262) afirmam que a produção reguiana apresenta, a partir de detalhes circunstanciais, as paisagens física e 241 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa humana da região açucareira nordestina, condicionadas pela realidade – conhecida pelo escritor – social dessa região. Reunindo, em Fogo morto, os “[…] componentes fundamentais de toda a obra regionalista […]”, José Lins do Rego revela, segundo os críticos (CANDIDO, CASTELLO, 1968, p. 262), o destino humano na paisagem em questão, em que as “[…] personagens se apresentam como expressão de todas as dimensões do homem nordestino […]” e são marcadas por um “esforço dramático de libertação”, presente também em outros romances do escritor. Antonio Candido, em “Um romancista da decadência” (2004), afirma que as personagens de José Lins do Rego estão sempre “[…] em equilíbrio instável entre o que foram e o que não serão mais, angustiados por essa condição de desequilíbrio que cria tensões dramáticas, ambientes densamente carregados de tragédia, atmosferas opressivas, em que o irremediável anda solto.” (CANDIDO, 2004, p. 57). Sobre a atmosfera dos romances reguianos trata também Sérgio Milliet em “A obra de José Lins do Rego” (1991) ao afirmar que a expressividade da obra do escritor assenta na “[…] comunhão muito íntima do autor com suas personagens, os ambientes e as tragédias delas.” (MILLIET, 1991, p. 408), o que concede às narrativas a “[…] atmosfera carregada de desgraça que tanto pode pairar sobre a Paraíba como sobre Pernambuco.” (MILLIET, 1991, p. 410), podendo-se acrescentar, ainda, as considerações de Juarez da Gama Batista em “Sentido do trágico em José Lins do Rego” (1987), que atenta ao fato de as personagens reguianas terminarem sempre vencidas, carregadas de horrores, expiando culpas que não são suas (BATISTA, 1987, p. 13), o que concede a “[…] intensidade irreversível da tragédia […]” (BATISTA, 1987, p. 19) à produção do escritor. Dadas a recorrência de considerações da crítica literária acerca da tragicidade da obra de José Lins do Rego, pretende-se, no presente trabalho, avaliar de que modo o escritor constrói nos romances a atmosfera opressiva e carregada de tragédia a que se refere Candido (2004, p. 57), a fim de que se comprove que tal atmosfera é uma constante na produção do escritor. Para tal, toma-se como corpus de análise os romances Água-mãe e Fogo morto, cujas narrativas, distantes espacial e tematicamente, são permeadas da dramaticidade apontada pelos estudiosos, cabendo verificar pontos em comum que levem à compreensão e à apreensão da atmosfera aqui observada. 2. A atmosfera de decadência em Água-mãe 242 Descrição das pesquisas Água-mãe é o nono romance de José Lins do Rego e o primeiro ambientado no Rio de Janeiro, o que o distancia da produção comum do escritor. Assim como o espaço, o tema também é outro e, no lugar das narrativas baseadas na representação das relações sociais da sociedade da zona da Mata nordestina comum às obras do ciclo da cana, há o trabalho com o tema do terror sobrenatural centrado em um lugar específico: a representação das margens da lagoa de Araruama, na região de Cabo Frio, onde se passa a história. Tendo como personagens principais os componentes de três famílias distintas – a do Cabo Candinho, a de Dona Mocinha e os Mafras –, o romance em questão ilustra o comportamento da sociedade local em relação ao temor compartilhado à Casa Azul, habitação majestosa e abandonada que integra o cenário da história e da qual se crê que provêm malefícios. Abandonada no início da história, a mansão é comprada pela família Mafra, que a reforma e faz dela sua morada de férias, despertando, inicialmente, o terror nos habitantes da lagoa. Contudo, com o passar do tempo, as personagens locais passam a se relacionar com a família, afastando, por um curto período de tempo, o temor relacionado à Casa, que é retomado quando acontecimentos trágicos começam a cair sobre os Mafra, resultando na morte de alguns filhos e na falência financeira da família, recobrando-se, assim, o terror de todos em relação à Casa Azul e o novo abandono, consequentemente, desse espaço. Considerando-se as proposições de Osman Lins em Lima Barreto e o espaço romanesco (1976, p. 76), tem se que a atmosfera de uma narrativa, tal como é aqui trabalhada, provém, em grande parte, da construção e da descrição do espaço em que ocorre a ação da história, sendo, em Água-mãe, o espaço da Casa Azul o lugar principal de ambientação do sobrenatural, dado que é dele que se crê provir os malefícios que acometem às personagens. É da Casa, portanto, que provém a atmosfera trágica que permeia o romance, sendo necessário que se observe de que modo o trabalho com o espaço e a relação entre essa categoria narrativa e as personagens influencia na criação dessa atmosfera. Anne Williams, estudiosa da literatura sobrenatural, afirma em ensaio intitulado “Inner and outer spaces” (1995, p. 250) que as narrativas dessa literatura caracterizamse pela demarcação de um espaço de dentro e um de fora, de nós e dos outros, sendo o resultado trágico das histórias subsequente da violação dessas fronteiras pelas personagens. Sobre as fronteiras espaciais na literatura trata também o teórico Iuri Lotman em “O problema do espaço artístico” (1978), que afirma que há, na literatura, um traço tipológico de grande valia: o conceito de fronteira. É ela, segundo Lotman 243 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa (1978, p. 373), que “[…] divide todo o espaço do texto em dois subespaços, que não se tornam a dividir mutuamente. A sua propriedade fundamental é a impenetrabilidade. O modo como o texto é dividido pela sua fronteira constitui uma das suas características essenciais.” A fronteira, tal como define Lotman (1978, p. 373), está condicionada a separar espaços e tudo aquilo que lhes é próprio, como seres bons de seres ruins, naturais de estrangeiros, pobres de ricos etc, sendo, em Água-mãe, nítida – embora não explícita – a fronteira que divide, primeiramente, o espaço da Casa Azul do resto do território da lagoa e, consequentemente, o mal proveniente da Casa da população de Araruama. Ao ultrapassar essa fronteira, as personagens do romance acabam por descompor a ordem e a harmonia presentes no lugar e sofrem, portanto, as consequências por terem invadido o espaço maléfico representado pela Casa Azul: as mortes e desgraças que recaem sobre todos no final do romance. Deste modo, percebese que a relação direta entre espaço e personagens condiciona, em Água-mãe, os acontecimentos trágicos que constroem a atmosfera opressiva e de decadência que caracteriza a produção de José Lins do Rego, revelando que, embora o tema trabalhado seja distinto do comum à produção, o escritor consegue criar o mesmo efeito dos demais romances, sendo o uso do tema do sobrenatural utilizado, segundo Eugênio Gomes afirma em “Água-mãe” (1956), não apenas para explorar o horror, mas sim porque “[…] a dimensão em profundidade do fantástico comportava a projeção da concepção de vida que deixa transparecer em sua obra romanesca.” (GOMES, 1976, p. xi), concepção de vida essa marcada pela tragicidade aqui trabalhada. 3. A atmosfera de decadência em Fogo morto Fogo morto é o décimo romance de José Lins do Rego, considerado pela crítica a obra de plenitude do escritor. Ao retomar o ciclo da cana-de-açúcar, o escritor deixa de lado o tom memorialista que o caracterizara para trabalhar, a partir das três personagens principais do romance, “[…] as conquistas técnicas e psicológicas da compreensão[…]” da realidade, que “[…] se ligam intimamente à espontaneidade subjetiva da apreensão […]” que marcara as produções anteriores (CANDIDO, 1957, p. 2). É o romance que marca, segundo Candido (1957, p. 2), a passagem da apreensão para a compreensão da realidade, o que faz Fogo morto a maior criação artística de José Lins do Rego. O romance é dividido em três partes, dedicadas às três personagens principais da história - o seleiro José Amaro, o Coronel Lula de Holanda e o Capitão 244 Descrição das pesquisas Vitorino Carneiro da Cunha – a partir das quais se constrói, segundo Eduardo F. Coutinho, a problemática base do romance: “[…] a decadência de toda uma estrutura sócio-econômica baseada no engenho de açúcar.” (COUTINHO, 1991, p. 435). É de Coutinho ainda a afirmação de que a história de Fogo morto centra-se em torno de dois grandes núcleos, o engenho do Seu Lula – o Santa Fé – e a casa do mestre José Amaro, espaços esses que refletirão a decadência e a angústia vividas pelas personagens que os habitam, refletindo e configurando, assim, a atmosfera de decadência objeto do presente trabalho. Dado que o Capitão Vitorino Carneiro da Cunha não se liga diretamente a nenhum espaço específico, dedica-se a análise da decadência somente às duas personagens das primeiras partes do romance – José Amaro e Lula de Holanda – de modo a demonstrar como a situação e a relação com o espaço em que se inserem constrói a atmosfera em questão. Maria Rita das Graças Félix Fortes aponta em Tempo, espaço e decadência: uma leitura de O som e a fúria, Angústia, Fogo morto e Crônica da casa assassinada (2010) que o tempo é, para ambas as personagens, fator de grande influência para a decadência, dado que tanto o seleiro quanto o senhor de engenho não são capazes de se adaptar às novas condições sócio-econômicas que se implantam na região. Marcados pelo orgulho e pelo apego ao passado, terminam os dois na solidão, após passarem por um processo de autodestruição. Eduardo F. Coutinho aponta os acontecimentos que culminam na destruição de José Amaro: “[…] as críticas pessoais tecidas contra o senhor de engenho, que ocasionam a expulsão da casa onde sempre morara […] e a constante agressividade no trato com as pessoas, que dão origem à crença de que ele se transformava em lobisomem.” (COUTINHO, 1991, p. 436). O suicídio final é a concretização final do fracasso, resultado da revolta e da ineficácia de adaptação da personagem às condições exigidas pelo meio social em que vive. Já Lula de Holanda fracassa por não se adaptar à condição política que lhe é exigida, inferiorizado ao lado dos demais senhores de engenho da região. Sem vocação para gerir o engenho, Lula fecha-se na sua casa – Coutinho atenta para o fato de as janelas da casa não serem mais abertas (1991, p. 437) – e passa a viver da lembrança de glórias passadas, sendo talvez o cabriolé – que se desgasta com o tempo – o maior anunciador da decadência final do engenho: o estado de fogo morto no final da história. Pensando-se em termos espácio-temporais, pode-se perceber que ambas as personagens mantêm-se presas ao passado e às casas em que vivem, locais que 245 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa carregam no interior as marcas da passagem do tempo e da solidão que as caracterizam. As fronteiras – tal como as define Lotman – são, em Fogo morto, mais temporais do que espaciais, perceptíveis na oposição entre presente e passado. Tanto José Amaro quanto Lula de Holanda, ao insistirem em ater-se a costumes, sonhos e memórias voltados a momentos anteriores e distantes, ficam aquém dos limites temporais presentes no espaço em que vivem, derivando dessa transgressão temporal a inadequação que marca a decadência e a atmosfera opressiva que rodeia as personagens. 4. Considerações finais O presente trabalho pretendeu demonstrar que a produção de José Lins do Rego é marcada pela atmosfera de decadência que coloca em cheque o drama humano das personagens, que se mantém nas obras independentemente do tema trabalhado. Conforme observado, a atmosfera se faz perceptível a partir do reflexo da decadência no espaço das narrativas e decorre, geralmente, da transposição de fronteiras préestabelecidas nas histórias contadas, fronteiras essas que podem ser tanto espaciais quanto temporais e que provocam, quando ultrapassadas, acontecimentos prejudiciais às personagens, levando-as à decadência e à tragédia presente nos romances reguianos. Bibliografia BATISTA, J. G. Sentido do trágico em José Lins do Rego. Paraíba: Fundação Espaço Cultural da Paraíba, 1987. CANDIDO, A.; CASTELLO, J. A. José Lins do Rego. In:_____. Presença da literatura brasileira III. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968. p. 250-276. CANDIDO, A. Um romancista da decadência. In:_____. Brigada ligeira e outros escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004. p. 57-62. CANDIDO, A. A compreensão da realidade. O Estado de São Paulo, São Paulo, 28 dez. 1957. COUTINHO, E. F. A relação arte/realidade em Fogo morto. In:_____. COUTINHO, E. F. 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Márcia Valéria Zamboni Gobbi (Or.) Esta pesquisa de doutorado pretende um enfoque original não só sobre a obra de José Saramago, mas, também, a respeito da situação da ficção e da mímesis literária dentro da contemporaneidade. Tomando a ficção literária não como fingimento, mas como modelação de uma realidade, pretende-se analisar como ocorre a construção do sentimento de angústia dentro de parte da obra do escritor português José Saramago. Na verdade, a pesquisa busca, de início, uma reflexão sobre a condição do romance dentro da trajetória da representação artística, desde a sua consolidação no Romantismo. A grande preocupação desse gênero literário sempre foi, como sabemos, retratar o homem no seu percurso cotidiano. A maior transformação observada em relação a outros gêneros narrativos é a dimensão e importância dadas, no romance, ao aspecto subjetivo das personagens, que passa a modelar, inclusive, os elementos externos a eles. Nesse sentido, nossa preocupação é analisar a constituição discursiva do afeto da angústia dentro da obra do escritor português José Saramago. Reconhecendo o ser humano como alguém cuja identidade é cindida e não algo centralizado, como queria Descartes, buscamos apreender a problemática da angústia dentro de outra mais geral, a da sociedade contemporânea, já que é nela que surge esse novo conceito de homem e é ela que o romance atual representará. Hoje, temos um imperativo social assim articulado: o homem que não goza, que não sente prazer a todo momento, é alguém frustrado, marginalizado - mesmo que o gozo não leve, e não leva, a um (re)conhecimento de uma interioridade que se manifesta por meio de um discurso aparentemente caótico. Tudo ganha contornos muitos instáveis, já que o sofrimento aumenta diante de um prazer impossível que é exigido do homem através de um discurso social que luta contra outro, o subjetivo, de cada homem. Para o estágio acima da pesquisa, de onde partimos, usamos primordialmente algumas obras de Zygmunt Bauman, uma vez que seu enfoque sociológico sobre a 248 Descrição das pesquisas situação hodierna nos parece muito cabível. Usamos, com destaque, Mal-estar na pós modernidade (1999), Medo líquido (2008), Confiança e medo na cidade (2009), Amor líquido (2004). Na história da evolução da ficção romanesca como gênero, segundo Catherine Gallagher (2009), o envolvimento com a representação do cotidiano e dos problemas da classe burguesa sempre foi primordial. Hoje, então, não é mais o drama dos desencontros amorosos que aparece representado na obra, mas outro, muito mais complexo, o da própria existência. O grande problema que se coloca é: como dar contorno, por meio da linguagem escrita, a algo cujo objeto originário parece ser tão impreciso de apontar: a angústia? Para análise da presença dela dentro do universo que delineamos aqui, esta pesquisa se apoia em dois grandes pensadores: Kierkegaard – O conceito de angústia (2010a) e Temor e tremor (2009) – e Freud – Inibições, sintomas e ansiedade, Mal estar na civilização (2006b), Futuro de uma ilusão (2006a). Também nos apoiamos, ainda que em menor medida, em parte dos textos de Lacan, em que relaciona o problema do afeto ao do discurso. Apesar de a filosofia e a psicanálise atuarem de acordo com bases epistemológicas diferentes, pudemos perceber, em nossas leituras, pontos de contato entre tais autores; talvez isso surja como sintoma de uma crise, que se aprofunda, da representação do sujeito e do mundo. Trata-se de um sentimento de desamparo do homem frente à sua constituição como indivíduo em via de construção de um discurso próprio dentro de um discurso que é do outro. Ou seja, constituímo-nos dentro de uma rede discursiva de valores que são de outros para, mais maduros, tentarmos articular nosso próprio discurso numa briga em que diferenciar o que é “meu”, “o que eu quero” e o que é “do outro”, “o que é imposto” é praticamente impossível, além de doloroso. Sem o outro, puro discurso, ainda sobra algo de mim? Na obra O tempo e o cão (2009), Maria Rita Kehl tece uma série de considerações sobre o estatuto, a condição psíquica do homem contemporâneo, que muito nos interessa e muito nos chama a atenção: a profusão excessiva de imagens, a gama monstruosa de informações, o exagero no uso das capacidades conscientes do ser humano, o fim da tradição da transmissão oral da experiência, a sensação de aniquilamento do conteúdo da existência, o mal-estar advindo do fato de que somos pouco incitados a desenvolver nossa identidade em detrimento do coletivo, etc. - tudo isso culmina, inevitavelmente, como viemos considerando até agora, em uma nova forma de se entender sujeito, realidade e ficção. 249 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Assim, os pensamentos de Kierkegaard e de Freud – assim como de seus respectivos comentadores – nos amparam na medida em que trazem fôlego à nossa discussão. Kierkegaard registra a dificuldade de se assumir as rédeas da existência diante da responsabilidade iminente de se fazer escolhas. Segundo ele, assumir isso, e evoluir de um estágio estético a um religioso da existência, é retornar para a mesma de forma renovada: não se trata de abolir a razão, mas de exercer a subjetividade e a razão conjuntamente, dando nova dimensão à vida. Freud, por ser turno, apoiado na concepção de aparelho psíquico, contribui com sua visão a respeito dos afetos: o ser humano carrega consigo uma pulsão de destruição inerente a ele. Assim, na verdade, elementos como a religião, a ética e os valores são criados para diminuir nossa sensação primordial de desamparo. A sociedade, dessa forma, atua como elemento que recalca o princípio de prazer do homem, instituindo o princípio de realidade. Passamos a vida lutando entre as pulsões de vida e de morte. Voltamos a salientar que ambos os pensadores acima – fundamentais à nossa pesquisa – trabalham a partir de pressupostos diferentes: para Kierkegaard, o primordial é a existência em si enquanto ato de escolha; para Freud, o primordial é a memória, o aparelho psíquico que atua por meio de deslocamentos e condensações. Mesmo assim, apesar das diferenças, são dois autores que criam suas obras a partir das crises do século XIX. Apesar de nunca terem se conhecido ou “se lido”, pensamos que elaboram registros das fissuras contemporâneas que começam a se delinear desde então: temos os sintomas de um mal estar. Assim, dentro do romance contemporâneo, a angústia surge não só como elemento temático, mas como matéria prima que busca dar liga ao romance, fazendo emergir, mesmo que de forma aparentemente confusa, aquilo que é tão difícil de se colocar em linguagem inteligível: o narrador que se fragmenta, sempre provisório; a discussão sobre o estatuto da história, etc. Segundo Karlheinz Stierle , a ficção, como fingere, não pode ser entendida como um discurso mentiroso, mas como modelação de uma realidade. Aí encaixamos a obra de Saramago: uma grande e complexa modelação do barro amorfo que é a angústia dentro do processo existencial humano. Escolhemos dois romances de Saramago a serem analisados de forma comparativa, até porque indicam momentos diferentes da obra geral do autor: História do cerco de Lisboa e Ensaio sobre a cegueira. O primeiro corresponde a uma abordagem da existência humana diferente da do segundo: naquele temos uma tentativa de correspondência entre o que é histórico e contemporâneo; neste, o foco total é a 250 Descrição das pesquisas sociedade contemporânea, vislumbrada por meio de um acontecimento com tons fantásticos. Ao compararmos as duas obras – apontando para semelhanças com outras do mesmo autor –, a intenção é pensar o seguinte: de que forma, então, nomear a angústia? Aliás, a nomear não significaria a própria morte, uma vez que chegaria ao fim o desejo? Para tanto, nos apoiaremos em Genette, para análise do narrador, e em elementos de semiótica tensiva para análise do ritmo narrativo tendo em vista os conceitos de intensidade e de extensidade. Por fim, vale dizer que esta descrição de pesquisa tem por intenção delinear quais são os pressupostos de que partimos para analisar nosso corpus. Estamos no momento de início da escrita da tese: terminado o capítulo inicial, mais teórico, abraçaremos a análise dos romances e a respectiva escrita dos capítulos correspondentes. Bibliografia ARNAUT, A. P. Post-modernismo no romance português contemporâneo. Lisboa: Almedina, 2002 AUERBACH. Mimesis. São Paulo: Cultix, 2005 BASTAZIN, V. Mito e poética na literatura contemporânea: um estudo sobre José Saramago. São Paulo: Ateliê Editorial, 2006 BAUMAN, Z. Mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. ______. Amor líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. ______. Medo líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. ______. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. BEIVIDAS, W. Inconsciente e sentido: psicanálise, linguística e semiótica. São Paulo: Annablume, 2009. BERTRAND, D. Caminhos da semiótica literária. São Paulo: Edusc, 2006. BIRMAN, J. As pulsões e seus destinos. São Paulo: Civilização Brasileira, 2009. COMPAGNON, A. Os cinco paradoxos da modernidade. 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A aproximação dos textos é feita pelo narrador de Trimalchio que compara Gatsby a Trimalquião, e acentua-se no título dado à versão publicada em 2000, que declara o caráter intertextual da narrativa, que aqui será pensado com Julia Kristeva (1974). O trabalho iniciado no mestrado adiantou haver, entre as duas obras, possíveis e interessantes aproximações. No entanto, o foco deste estudo será dado ao tema do carnaval, que está presente nas festas e que se estende à composição das personagens, à relação estabelecida entre elas e à construção dos cenários. A análise das características carnavalescas dos textos e seus desdobramentos estará centrada na proposta teórica de Bakhtin (1993) para a carnavalização. O tema do carnaval é construído por meio de figuras que se repetem nas duas narrativas, buscaremos respaldo na teoria semiótica da figuratividade (BERTRAN, 2003) para investigar os aspectos abstratos (temáticos) e concretos (figurativos) nas obras que compõem o corpus desta pesquisa. 2. Introdução Quando F. Scott Fitzgerald (1896-1940) trabalhava no rascunho de seu romance The Great Gatsby, cogitou chamá-lo Trimalchio ou Trimalchio in West Egg, em uma evocação direta à personagem do Satyricon de Petrônio (? -65d. C.). Este projeto 253 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa apresenta uma proposta de estudo da obra Trimalchio1 (2000), publicada quase sessenta anos após a morte do autor, como resultado de um desejo pessoal de seus editores, que se justificam no prefácio do livro afirmando que a nova versão possibilita leituras diferentes das promovidas por The Great Gatsby2. O interesse para esta pesquisa em Trimalchio desperta-se inicialmente pelo título, que permite uma relação imediata com o célebre episódio presente na obra Satyricon de Petrônio. O presente projeto apresenta um desdobramento do trabalho iniciado no mestrado3, no qual um capítulo foi dedicado à comparação de “O Banquete de Trimalquião” e The Great Gatsby, com especial atenção à ambientação das festas e a construção dos cenários festivos. Esse estudo inicial adiantou a possibilidade de abordagem de diferentes temas e a ampliação da pesquisa. Já que a característica de intertextualidade, anunciada pelo desejo de Fitzgerald em intitular seu romance “Trimalquião”, parece ainda não ter despertado no Brasil, o interesse dos estudiosos de literatura. 3. Fundamentação teórica para a análise de Trimalchio e “O Banquete de Trimalquião” Um enorme intervalo de tempo separa Fitzgerald do escritor romano Petrônio; no entanto parece ter sido o Satyricon, mais especificamente o episódio “O Banquete de Trimalquião”, que inspirou a personagem título do romance de 1925. A editora Cosac Naify, ao lançar a tradução de Cláudio Aquati, publicou em seu blog um comentário sobre a edição e uma entrevista com o tradutor. Respondendo a uma pergunta sobre a relevância e aceitação de uma obra com vinte séculos de existência, o tradutor responde: 1 Como o objeto de estudo desta pesquisa foca-se na obra de 2000, o título The Great Gatsby não será utilizado e sim, Trimalchio. Exceto quando se tratar explicitamente da publicação de 1925. 2 Trimalchio will provide readers with new understanding of F. Scott Fitzgerald’s working methods, fresh insight into his creative imagination, and renewed appreciation of his genius. (WEST, 2000, p.xxii) (Trimalchio garantirá aos leitores um entendimento diferente em relação ao método de texto de F. Scott Fitzgerald, uma compreensão revigorada da imaginação criativa do autor e uma apreciação renovada de sua genialidade.) [Todas as traduções feitas do inglês para o português, apresentadas em nota neste texro, são de autoria da aluna.] 3 FONSECA, Jassyara Conrado Lira da. Imagens da diferença: o espaço em The Great Gatsby. 139f. (Dissertação de Mestrado) Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, Universidade Estadual Paulista, 2012. 254 Descrição das pesquisas Acredito que o que chamou a atenção foi uma quebra de paradigmas empreendida por Petrônio, da qual resulta uma interpretação de seu tempo, tão inteligente e tão talentosa que nela não se vê qualquer traço de julgamento. Talvez o que vem promovendo a aproximação entre Satíricon e seus leitores modernos seja justamente o que os repele ou lhes causa aversão: quanto maior a repulsa, com maior atenção o leitor examina. (AQUATI, 2009) O caráter irônico que em Satyricon interessa o leitor e lhe causa repulsa se dá também em Trimalchio, contudo de forma mais sutil. A caracterização do protagonista conduz o leitor ao riso, contudo também emociona pela sua qualidade ingenuamente romântica. A ideia de uma análise em paralelo das duas obras parte da própria narrativa de Fitzgerald. Ao declarar o término da temporada de festas na mansão Gatsby, o narrador do romance – Nick Carraway – evidencia a semelhança entre Gatsby e Trimalquião: “It was when curiosity was at the highest about him that his lights failed to go on one Saturday night – and as obscurely as it had begun, his career as Trimalchio suddenly ended.” (FITZGERALD, 2000, p. 88)4. Ao ler a afirmação do narrador é importante verificar o tom irônico presente na comparação: aproximando Gatsby de Trimalquião acentua naquele, os aspectos negativos e grotescos que compõem a caricata descrição da personagem de Petrônio. Partindo da indicação de intertextualidade apresentada pelo próprio narrador de Trimalchio, pretende-se investigar a relação que a obra norte-americana constitui com o texto latino. Os critérios para estabelecer essa comparação estarão norteados na proposta teórica de Kristeva (1974) para a intertextualidade. E nos estudos de Mikhail Bakhtin (1993) encontramos respaldo para a análise das figuras carnavalizadas que são exploradas na construção de uma atmosfera festiva, na caracterização das personagens e na construção dos cenários. Por fim, intenciona-se descrever como os elementos concretos (figurativos) são orquestrados na manifestação dos temas comuns às narrativas, baseando tais análises principalmente nos estudos semióticos sobre a figuratividade apresentados por Betrand em Caminhos da Semiótica Literária (2003). A análise comparativa das duas narrativas garante exemplos dos dois tipos de personagens caracterizadas como carnavalizadas por Bakhtin: a primeira, mais caricata, ocasionando o riso fácil e a segunda menos obviamente engraçada, todavia sem excluir a ironia. Jay Gatsby é em si uma figura carnavalesca, visto que se transforma em outro 4 Foi quando a curiosidade acerca de Gatsby atingiu o ápice, que as luzes de sua casa deixaram de acender-se em uma noite de sábado – e, tão obscuramente como começara, sua carreira como Trimalquião terminava. (Tradução nossa.) 255 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa homem para ser aceito por Daisy (sua antiga namorada), inverte seu status para tornarse digno de seu amor. A inversão de papéis é um conceito essencial para a teoria da carnavalização, a construção de personagens invertidas pode acontecer por meio de figurinos e cenários, assim mostra-se na narrativa de Fitzgerald. Nela, o protagonista tem sua elegância contestada sempre que faz uma escolha mais ousada em seu figurino, causando estranheza, despertando o riso (contido) de algumas personagens e ofendendo os olhos tradicionais de sua amada. Já em Satyricon a maneira como o anfitrião apresenta-se no banquete, extrapola as barreiras da ironia. E o riso deliberado que desperta é caracterizado pelo teórico como aberto. Ao teorizar sobre a carnavalização na literatura Bakhtin faz uso de imagens comuns às festas e as denomina como "princípios da vida material e corporal" (1993). Esta pesquisa irá examinar essas imagens – do corpo, da bebida, da comida, da satisfação das necessidades naturais e da vida sexual – presentes, e bastante comuns, às atmosferas festivas nas duas narrativas aqui analisadas. Investigando quais são os elementos concretos – as figuras – que se manifestam nas duas obras no tratamento do carnaval como tema. A possibilidade de aproximação entre figuras e imagens foi anunciada pelo próprio teórico russo, em Questões de Literatura e Estética (1998), ao analisar as obras Almas Mortas e O Capote, do escritor ucraniano Nikolai Gógol. Bakhtin afirma que o romancista comunica-se bem com a cultura popular, dizendo: “É ela [a cultura popular] que dá profundidade e nexo às figuras carnavalizadas de lugares coletivos: a Avenida Niévski, os funcionários, a chancelaria, o departamento” (BAKHTIN, 1998, p.438). Nesse mesmo ensaio continua a análise das obras e fala em “confrontações entre figuras e fatos reais” para a discussão do tema da morte e da servidão nos dois romances citados. Ao exemplificar quais são as figuras carnavalescas na obra de Gógol, Bakhtin descreve personagens e espaço, aspectos que também buscaremos analisar em nossa pesquisa e que a teoria semiótica – seguindo principalmente as propostas de Denis Bertrand – prevê como conjunto de elementos que compõem a narrativa literária, em seu aspecto temático (abstrato) e figurativo (concreto). Bibliografia AQUATI, Cláudio. Personagens femininas no Satíricon, de Petrônio. In: ___ VIEIRA, Brunno V. G.; THAMOS, Márcio. (Orgs.) Permanência Clássica: visões contemporâneas da Antiguidade Greco-romana. São Paulo: Escrituras, 2011. 256 Descrição das pesquisas _______. O Clã do Jabuti: Tradução. Entrevistador: Cosac Naify. São Paulo: Cosac Naify, 26/10/2009. Disponível em: http: <//editora.cosacnaify.com.br/blog/?p=230>. 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Grande parte de sua produção teve inspiração na Comédia Nova Grega, em especial na obra do grego Menandro, de cujas peças sobreviveram apenas fragmentos escassos, o que só aumenta a relevância das peças plautinas, já que essas também são fontes para o estudo da própria Comédia Nova Grega, haja vista a supracitada escassez de obras originais desse movimento artístico da antiguidade. A proposta deste projeto de pesquisa baseia-se no estudo de uma das obras de Plauto intitulada As Báquides, adaptada da comédia intitulada ∆ὶς ὶξαπατὶν, ou Dis Exapaton, cujo nome pode ser traduzido por “Enganado duas vezes”, do já citado Menandro, e tem por foco a presença constante do acompanhamento musical em grande parte dos diálogos das personagens, os chamados cantica, em que o instrumento utilizado geralmente era a tibia (instrumento de sopro que pode ser considerado a versão latina do αὶλός grego), e a utilização de diferentes metros para as partes musicadas, em contraste com aquelas não acompanhadas pela música (que em geral seguem uma métrica mais ou menos fixa, com versos constituídos em sua maior parte pelos chamados senários jâmbicos, i.e. versos com seis pés métricos, forma latina equivalente ao trímetro jâmbico dos gregos) e as implicações da escolha desses metros e dos efeitos expressivos obtidos por tais escolhas, partindo-se do pressuposto de que tais opções não ocorrem de forma aleatória ou ao bel-prazer do autor. A princípio, tentar-se-á fornecer uma tradução dos cantica em versos, para posterior cotejo com traduções anteriores, e uma análise crítica. Pretende-se, portanto, com a pesquisa proposta, enriquecer a 259 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa discussão sobre o teatro na antiguidade, sobretudo a da comédia na Roma Antiga, numa área que tanto carece de estudos mais aprofundados em língua portuguesa, i. e. a das letras clássicas. Descrição do estágio atual da pesquisa A pesquisa em questão propõe uma tradução em versos dos cantica da peça As Báquides, do comediógrafo latino Tito Mácio Plauto, conforme já explicitado na introdução deste texto e no resumo enviado anteriormente para o evento. O cronograma descrito no projeto propõe um período de oito meses para o levantamento bibliográfico e para o cumprimento de créditos das disciplinas necessárias para a conclusão do curso, para posterior leitura desse aporte teórico, tradução do texto proposto, cotejo com outras traduções existentes em língua portuguesa, e redação da dissertação, baseada na tradução, comentários e uma análise crítica quanto à utilização da métrica enquanto recurso expressivo na obra de Plauto, especificamente na obra já citada. Até o presente momento foram cumpridos todos os créditos em disciplinas. Encontra-se em andamento um levantamento bibliográfico no que tange às obras relacionadas na bibliografia descrita no projeto de pesquisa, com eventual acréscimo de obras à lista, além da tradução dos cantica e da elaboração da dissertação, em estágio inicial. Foi encontrada, por exemplo, uma tradução mais recente da comédia As Báquides do que a anteriormente catalogada no projeto de pesquisa, pertencente a Newton Belezza (1977). O volume contendo a tradução da peça as Báquides faz parte de um projeto de tradução da obra completa de Plauto pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tendo sido lançado em 2006. O que de forma alguma diminui a importância da pesquisa aqui realizada, haja vista o fato de que objetivo do estudo proposto é o de analisar as questões relativas à métrica no teatro plautino, em especial nos cantica, para além da tradução, e no que tange a essa questão em particular, a tradutória, é notória a ausência de traduções no português brasileiro de certas peças do sarsinate, na qual inclui-se As Báquides. Também foram encontrados volumes importantes no que concerne ao aspecto da métrica e da musicalidade no teatro antigo e nas comédias de Plauto, como Introduzione alla metrica di Plauto, do italiano Cesare Questa, bem como manuais que trazem as fundações para a compreensão da métrica na antiguidade, como o Res Metrica, de William Ross Hardie, e Initiation a la métrique et a la prosodie latines, do francês Maurice Lavarenne. Além destes, serão de particular 260 Descrição das pesquisas utilidade para a pesquisa e elaboração da dissertação algumas obras mais modernas que apresentam estudos importantes sobre o teatro romano, em particular da obra plautina, como os de Marshall (2006) e Moore (2012). Bibliografia ARISTÓTELES. HORÁCIO. LONGINO. A poética clássica. Introdução de Roberto de Oliveira Brandão. Tradução direta do grego e do latim por Jaime Bruna. 3.ed. São Paulo: Cultrix, 1988. BOSI, A. O ser e o tempo da poesia. S. Paulo: Cultrix, 1977. HARDIE, William Ross. 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Após ler a notícia, Murau passa então a recordar o seu passado antes de regressar a Wolfsegg – sua terra natal – para as cerimônias do enterro. No segundo capítulo, “O testamento”, Murau já se encontra em Wolfsegg e acompanha os preparativos para o enterro dos familiares. Assim como na primeira parte, a segunda também acontece no transcorrer de um dia. Nesses dois dias, a ação principal é narrada de maneira cronológica, no entanto ela é constantemente interrompida pelas lembranças do narrador. Na obra, Murau autoexilou-se em Roma, como forma de afastar-se de sua família e de seu país de origem, a Áustria. Esse afastamento deve-se ao fato de a personagem não se adequar ao modo de pensar da família, ou como ele mesmo pontua “eles não se interessavam por outra coisa senão sua rentabilidade e como auferir com o tempo um lucro cada vez maior de suas áreas produtivas, ou seja, de sua agricultura, que ainda hoje engloba doze mil hectares, e da mineração.” (BERNHARD, 2000, p.18). Todo o valor atribuído pela família acerca das questões patrimoniais era rechaçado por Murau, que valorizava o conhecimento como o maior patrimônio que um indivíduo pode adquirir para si. Desde a infância, Murau sempre esteve em conflito com sua família. Seu maior atrito dava-se, portanto, com sua mãe, que vivia repreendendo-o pelo seu descaso acerca dos negócios da família. Essa tensão era intensificada, quando a mãe mostrava preferir o filho mais velho Johannes – exímio caçador e futuro herdeiro do patrimônio de Wolfsegg. A única pessoa da família de quem Murau gostava era o tio Georg, que aos 262 Descrição das pesquisas trinta e cinco anos mudara-se para a Riviera Francesa, pois segundo Murau, ele também “não tinha nenhuma simpatia pelo espírito mercantil primitivo de minha família” (BERNHARD, 2000, p.25). A mãe de Murau sempre o criticava por ele passar a maior parte do tempo na biblioteca da propriedade lendo livros, que para ela não lhe trariam nada de útil e ainda desenvolveriam no filho pensamentos degenerados. Já o tio Georg foi a pessoa responsável por despertar em Murau o interesse pela arte e pelo conhecimento. É o tio quem instiga o sobrinho a seguir o caminho da intelectualidade e este lhe fora sempre grato por isso: [...] devo aliás a meu tio Georg grande parte do meu patrimônio intelectual. Ele, meu tio Georg, já muito cedo havia por assim dizer aberto meus olhos para o resto do mundo, havia chamado minha atenção para o fato de que além de Wolfsegg e fora da Áustria existia algo a mais, algo ainda mais grandioso. [...] A humanidade inteira é infinita, com todas as suas belezas e possibilidades, dizia meu tio Georg. Só os imbecis acreditam que o mundo termina onde eles próprios terminem. (BERNHARD, 2000, p. 26-27) Motivado pelo desejo de ampliar seus conhecimentos, Murau muda-se então para a Itália, onde, distante de sua família, poderá dedicar-se à sua formação intelectual. Em Roma, Murau dedica a maior parte do seu tempo às aulas de literatura que oferece ao jovem italiano Gambetti. No início do romance, Murau já tem intenção de escrever uma autobiografia. No romance Extinção, talvez a característica fundamental se deva ao fato de ele ser escrito em primeira pessoa, o que permite ao leitor vê-lo como a autobiografia de Murau. No entanto, caberia aqui uma ressalva; pois, mesmo que a obra simule um texto escrito, valendo-se de um narrador em primeira pessoa, o qual repassa sua vida – característica primordial de uma autobiografia, encontramos no texto um fluxo de consciência da personagem, marcada por uma forte sensação de presentificação. Constata-se isso, sobretudo no segundo capítulo do romance, quando a personagem chega à sua cidade natal, Wolfsegg. Aqui o aspecto autobiográfico afastase da narrativa, causando uma sensação de frequente presentificação. Neste momento, não existe mais a distância essencial para uma análise retrospectiva do que fora vivido, pois o narrador, o autor (ficcional) e a personagens participam conjuntamente da ação narrada. A voz do autor-narrador na Itália ausenta-se agora do relato. Ao longo do romance, percebemos que Extinção é um projeto que a personagem desenvolverá futuramente. Entretanto ao lermos as duas últimas frases, “De Roma, onde 263 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa agora estou de volta e onde escrevi essa Extinção, e onde permanecerei, escreve Murau (nascido em 1934 em Wolfsegg, morto em 1893 em Roma)” (BERNHARD, 2000, p. 476), descobrimos que o relato já era, na verdade, a concretização do projeto da personagem. Embora o relato seja escrito e ulterior, apenas no final da leitura isso se torna claro, mesmo que, nas primeiras linhas do texto, isso já tivesse sido antecipado por uma inserção então ainda anônima, em que se tem “escreve Murau, Franz-Josef” (BERNHARD, 2000, p. 7). Essa inserção indicaria a unidade entre autor, narrador e personagem. Há, portanto, uma sensação de tempo presente, em que a ação desenrola-se no momento em que ela é narrada, embora os fatos tenham ocorrido há aproximadamente um ano antes de sua escrita. Para melhor determinar a função do narrador no romance, nossa análise utilizará como base metodológica os textos de Genette. Segundo o autor francês, a narração autobiográfica é designada pela equação Autor = Narrador = Personagem (GENETTE, 1991, p.84). Considerando o texto de Murau, pode-se denominá-lo como uma autobiografia, ou seja, a personagem tem em mente realizar futuramente este projeto. Na verdade, a obra é uma autobiografia fictícia, uma vez que seu autor também é fictício. A equação descreveria apenas a maneira como o texto é representado, servindo para indicar um percurso de leitura. A definição de Genette conferiria ao texto a preponderância do narrador homodiegético, que, no romance em questão, é dominado pela personalidade do narrador. A equação genettiana é de suma importância para a construção da obra, mas ela não é capaz de instaurar o gênero autobiográfico. Este só é estabelecido, quando se reconhece o “pacto autobiográfico”. Segundo o teórico Philippe Lejeune, o pacto deveria ser a condição imprescindível para que se caracterize um texto como autobiografia, antes mesmo da supracitada unidade entre o autor, o narrador e a personagem. O pacto é, antes de tudo, uma relação entre o autor e o público. Murau, em seu texto, não se propõe a simular um possível ou fictício leitor, com quem simularia o pacto autobiográfico. Pelo contrário, o narrador parece ignorar seu público, pois o seu diálogo dá-se sempre consigo mesmo; ou, em alguns momentos, com seu aluno Gambetti. Não se tematiza, portanto, a recepção do relato por um leitor futuro. Desse modo, é possível afirmar que a narrativa de Bernhard escapa às conceituações correntes do gênero autobiográfico, problemática essa que será fundamental na análise aqui proposta. 264 Descrição das pesquisas Analisaremos também a que se propõe a realização da autobiografia de Murau, ou como ele mesmo a chama sua “antiautobiografia”. Seu objetivo é criticar sua família, e, sobretudo o fato de ela ter sido conivente com o regime nacional-socialista durante a segunda guerra mundial. Sua escrita é também o modo encontrado pela personagem para extinguir a si mesmo. Se, em um romance autobiográfico, a ideia primordial é o autor repassar a sua vida, com a finalidade de perpetuar a sua história, o mesmo não ocorre com Murau. O relato da personagem tem como função dissecar o passado de sua família para enfim poder exterminá-lo. Percebemos isso no trecho que se segue: Estou de fato retalhando e dissecando Wolfsegg e os meus, aniquilando-os, extinguindo-os, e retalho dessa forma a mim mesmo, disseco-me, aniquilo-me, extingo-me. Essa porém, dissera a Gambetti, é uma ideia que me agrada, minha autodissecação e auto-extinção. Não pretendo mesmo outra coisa, pelo resto da vida. E se não me engano, ainda vou ter êxito nessa autodissecação e auto-extinção, Gambetti. Na verdade não faço mais nada a não ser me dissecar e me extinguir, quando acordo de manhã, a primeira coisa que penso é nisso, pôr a me dissecar e me extinguir com resolução. (BERNHARD, 2000, p. 217) Nessa passagem, Murau diz que também deseja de certa forma extinguir-se. Poderíamos ficar somente com a ideia de uma extinção metafórica, aquela em que apenas as lembranças seriam aniquiladas, ou a personagem também remeteria a outras acepções da palavra extinguir, como, por exemplo, morrer. Sabe-se que, dentro do universo das personagens de Bernhard, a loucura, a morte e o suicídio são desfechos sempre recorrentes. No entanto, em relação a Murau, não existem no texto indícios da causa de sua morte. Poderia ter sido em decorrência de uma doença, pois a personagem, anteriormente, já havia dito que estaria doente. Poderia ser também suicídio, que, devido à sua visível perturbação, seria um provável desfecho. Contudo não há no texto pistas que nos levem a optar por nenhuma das alternativas. Este é também um ponto sobre o qual iremos nos debruçar: como representar a morte do narrador em um relato homodiegético. O tema da morte perpassa todo o livro, como, por exemplo, a epígrafe selecionada para o relato. Trata-se de uma citação de Montaigne, “Sinto que a morte me tem constantemente em suas garras. Não importa o que eu faça, ela está presente em toda parte.” Estaria Murau escrevendo porque sente que o seu fim está próximo? A informação da morte do narrador romperia dessa forma com o caráter subjetivo da obra, pois ela pode ter sido inserida por um observador ausente na narrativa. 265 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Bibliografia AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Saccer III). Tradução de Selvino J. Assman. São Paulo: Boitempo, 2008. BAKHTIN, Mikhail. “A autobiografia e a biografia”. In: ______. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 138-153. BENJAMIN, W. A arte na era da reprodutibilidade técnica. Magia e técnica Arte e Política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas Vol. 1. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. Pref. Jeanne Marie Gagnebin. 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O objetivo principal desse projeto é a realização de uma análise mitocrítica da construção dos arquétipos femininos sob o aspecto do “feminino terrível” presente em três contos sendo um deles espanhol “Los Ojos Verdes” de Gustavo Adolfo Bécquer, (1861), e os outros dois Hispano-americanos: “Mi vida com la ola” de Octávio Paz, (1949) e “História del lagarto que tenía la costumbre de cenar a sus mujeres” de Eduardo Galeano, (1995). Nessa linha investigativa trataremos sobre a representação simbólica e mítica da mulher-sereia, imagem convergente e saturada de sentidos, que se manifesta nos três contos nos contornos da figura arquetípica de mulher sedutora e atraente, mas causadora de danos, perigosa e por vezes, maligna. De fato, verificamos que o fenômeno meta empírico constituinte das modalidades literárias do sobrenatural, sejam elas o fantástico, o maravilhoso e o realismo mágico, se perfaz nessas narrativas pela manifestação insólita materializada na personagem feminina detentora de tais caracteres e que se mostra mesmo, como dínamo e ponto de intersecção de tais atributos. Estes paralelismos entre as citadas obras tão significativos merecem um olhar mais atento de nossa parte, bem como as discordâncias igualmente significativas entre os três textos. Sondaremos as repercussões dessa construção mítica e simbólica que nos traz a imagem do monstro sedutor e fatal que conduz o homem a perdição, a loucura ou a morte e ecoa nessas narrativas na sugestão da mulher que manifesta este caráter e natureza. Desse modo, refletiremos sobre a composição estética desses contos enfocando a contribuição do mito como importante referencial para a construção do arquétipo feminino, sustentando, para tanto, nossa análise nos devidos subsídios e 267 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa instrumentos teóricos pertinentes. Ainda dentro da perspectiva mitológica serão analisadas as manifestações simbólicas adjacentes ao mito e diretamente conectadas à questão da configuração desse arquétipo feminino. Dentre os elementos que compõe esta simbologia destacamos a água como componente rico em simbologia ampla, tradicionalmente relacionado ao feminino além de recorrente nas três narrativas. Gilbert Durant em sua obra As Estruturas Antropológicas do Imaginário (1997) classifica este elemento como símbolo nictomórfico e o caracteriza como símbolo da feminilidade noturna e terrível. O que constitui a irremediável feminilidade da água é que a liquidez é o próprio elemento dos fluxos menstruais. Pode-se dizer que o arquétipo do elemento aquático e nefasto é o sangue menstrual. (DURANT, 1997, p. 101) A partir dessas análises, pretendemos, em última instância, analisar a construção desses mitos, também construídos e perpetuados pelo discurso literário, que alicerçam uma construção misógina nas sociedades ocidentais. Para tal, recorremos às teorias que abordam a questão da mulher nos mitos, nas religiões e na literatura de uma perspectiva metodológica que perpassa o pensamento de Simone de Beauvoir (1967), Betty Friedan (1971) ou de Kate Millet (1974). Atentaremos, deste modo, para a questão da composição da modalidade literária que, nos referidos contos, é construído através de suas personagens femininas. Em cada um dos referidos contos verifica-se uma construção particularmente expressiva do horror, com especificidades que serão devidamente analisadas no decorrer do pretenso trabalho, partindo, para tanto, das leituras da teoria crítica que delineia a definição conceitual do fantástico e as problemáticas do gênero e construindo, segundo nosso propósito, as leituras possíveis e as reflexões adequadas. Observamos assim, as diferentes configurações de estilo literário nos três contos de modo comparativo preservando, porém nessa análise suas peculiaridades e particularidades. Na narrativa de Octávio Paz, por exemplo, encontramos indícios que comprovam que sua obra antecipa a instauração do realismo mágico, pois esta encontrase permeada de fenômenos e nuances expressivos que caracterizam essa modalidade literária tais como a naturalização do irreal sem a existência de ambiguidade e da incerteza que caracterizam o fantástico. Essa recorrência não é ocasional, haja vista que 268 Descrição das pesquisas o realismo mágico assim como o maravilhoso mantêm com o fantástico, do ponto de vista da distinção dos gêneros expressivos na literatura, uma constante dialética, sendo freqüentemente com eles confundido. (FURTADO, p. 18, 1980). Autores como Tzvetan Todorov em seu livro Introdução à literatura fantástica (1970) e a já citada obra de Filipe Furtado (1980), serão de grande importância para nossas análises, além de outros diversos críticos como Chiamp (1980), Splindler (1993) ou Michael Valdez Moses (2001) que se debruçaram sobre a pesquisa da caracterização e definição das variações existentes dentre as modalidades literárias que tem como temática o evento sobrenatural. O termo a que se pretende este trabalho delineia-se numa reflexão da problemática do fantástico na poética de Galeano, Bécquer e Paz através da análise descritiva de suas obras e procurando explicitar as relações da figurativização do fantástico com as dimensões mitológicas instauradas nas narrativas. Bibliografia BARTHES, Roland. Mitologias. Trad. R. Buongermino, P. de Souza e R.Janowitzer. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo II: a experiência vivida. Trad. Sérgio Milliet.2. ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967. BÉCQUER, Gustavo Adolfo. Rimas y Leyendas. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1979. BESSIÈRE, Irene. Le récit fantastique. Larousse: Paris, 1974. BRANDÃO, Ruth Silviano; CASTELLO BRANCO, Lucia. A Mulher Escrita. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CASSIRER, Ernst. Linguagem e mito. 4ª ed. 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Tiempo Contemporaneo, 1970. 270 Descrição das pesquisas A DRAMATURGIA DE DEA LOHER NA PEÇA INOCÊNCIA: O HIBRIDISMO TEATRAL NA CENA CONTEMPORÂNEA Júlia Mara Moscardini Miguel Mestranda – Bolsista FAPESP Profa. Dra. Elizabete Sanches Rocha (Or.) O drama sofreu diversas alterações no decorrer da história desde Aristóteles até atingir as formas estéticas atuais. Dramaturgos e diretores se empenham para acomodar conteúdo e forma em um teatro que revele traços da realidade, mas que não seja amordaçado, ou tampouco tolhido por um naturalismo excessivo. A contemporaneidade pede por um teatro que coloque o público face a face com os problemas enfrentados na sociedade, mas que isto seja feito de maneira artística e distanciada. O aspecto político do teatro ainda se faz necessário, já que encontramos na sociedade pós-moderna meios de comunicação alienantes e indutores do comodismo. É desta maneira que o teatro é concebido por Dea Loher. A dramaturga, desde suas primeiras peças, posiciona a política como cerne de sua obra e o faz não de forma direta e moralizante, mas através de artifícios que filtrem as emoções epicamente e tornem os espectadores ativos em um processo de melhoria da sociedade. Oriunda de uma terra onde o teatro político de impacto no espectador e de esclarecimento das massas tem uma forte tradição, Loher desponta no novo cenário teatral com uma estética que não permite que ela seja agrupada em nenhuma das outras formas existentes. Com a análise de Inocência (2013), sua mais tardia e, segundo a pesquisadora Birgit Haas1, a sua mais complexa peça, buscamos identificar as particularidades da escrita loheriana, sem a intenção, no entanto, de concluir ou fechar em qualquer rotulação reducionista; pelo contrário, nossa intenção é abrir um espectro de possibilidades que não só esta dramaturga proporciona ao seu público, mas também grande parte da literatura contemporânea. Uma literatura dos possíveis, uma literatura na qual não haja personagens bem construídos, mas em construção, que não precisam seguir nenhuma linha de razão. Uma literatura, cujo texto não exerça papel hierárquico, 1 Birgit Haas foi uma pesquisadora alemã especialista nas obras de Brecht e Dea Loher traçando um paralelo entre ambos os dramaturgos no livro Das Theater Von Dea Loher: Brecht und (k)ein Ende, 2006. 271 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa um texto que não tenha intenção de comunicar algo, mas que conduza o espectador a experimentar algo. Loher, portanto, não pode ser colocada como uma legítima seguidora de Brecht e tampouco como pós-dramática aos moldes de seu antigo mestre, Heiner Müller. No entanto, trata-se de dois pontos opostos que Loher incorpora em sua escrita assumindo certos elementos, transformando outros e criando uma obra crítica, social e engajada que mistura o drama tradicional, o teatro épico e a estética pós-dramática. É o teatro híbrido, ou até mesmo “rapsódia”, nos termos do grande teórico do teatro contemporâneo, Jean-Pierre Sarrazac2, hibridismo que resulta na reinvenção do teatro político colocando ênfase na interação humana, através da hibridização da política, da história, dos estereótipos de gênero. O teatro político que a dramaturga ambiciona fazer tem o teatro épico como pano de fundo em luta contra a volatilidade e autodissolução da situação política, com peças que se encontram no meio, em um third space entre passado e presente, entre verdade e mentira, entre sujeito e objeto, moderno e pósmoderno. Tal teoria advém dos estudos pós-coloniais do professor indo-britânico Homi Bhabha3. Loher, em seus dramas, não apresenta a política de forma abstrata, mas através da experiência das pessoas, a mistura de diferentes estilos e falas abre uma nova visão de drama sobre a situação política. As interações particulares e as políticas públicas são contraditórias e ao mesmo tempo dependentes, rompendo com as esferas do privado e do público e provocando na plateia uma consciência política originária de uma desorientação inicial. O resultado de tal hibridismo é um espectador reflexivo com a possibilidade de acompanhar o andamento das histórias como participantes graças ao Princípio da Incerteza da física quântica. A cada corte entre as cenas, o público é contemplado com uma visão dramática e tais cenas vão determinando a posição que o espectador deve ocupar. A aleatoriedade das cenas e a forma como as mesmas se entrelaçam fazem parte de um jogo proposto pela autora para que o público tenha consciência de que se trata de um enigma, não necessariamente na perspectiva de reconstrução de detetives, mas de observar uma teia que se forma conforme as personagens interagem e como cada uma delas é motivada a tomar certa atitude. 2 Escritor, diretor e professor de teatro, o francês Sarrazac é autor de vários livros que teoriza acerca do fenômeno teatral contemporâneo. Sua teoria é a que fundamenta grande parte desta pesquisa no que diz respeito ao hibridismo evidenciado na obra loheriana. 3 Professor e diretor do Centro de Humanidades da Universidade de Harvard. Uma das figuras mais importantes nos estudos pós-coloniais e teorizador do conceito de hibridização. De nacionalidade indiana, o professor Bhabha parte de sua experiência própria para retratar o discurso colonial britânico na Índia. 272 Descrição das pesquisas A obra de Loher pode ser considerada inovadora em vários aspectos. É possível identificar na obra da dramaturga alemã, e principalmente na peça Inocência (2003), pressupostos teóricos de filósofos das artes e ainda algumas perspectivas pós-modernas na escrita do texto e nos temas abordados. A teoria revolucionária marxista de Benjamim perpassa a dramaturgia de Loher no sentido da busca por devolver ao teatro o seu lugar sociológico de questionamentos tornando-o novamente atrativo em meio à ascensão das novas mídias. A crise das metanarrativas defendida por Lyotard também aparece na peça ratificando a falência do projeto moderno de emancipação humana e apontando para o surgimento das micronarrativas e do fragmento que não conseguem legitimação. O mundo das imagens e dos simulacros de Baudrillard recebe tratamento especial no aparato cenográfico da televisão implantada no palco. A fraude do discurso político, a convencionalidade das palavras e o poder absoluto das imagens sobre o real são explicitamente ironizados na figura do Presidente cuja imagem distorcida e muda é refletida pelo televisor. Os temas da pós-modernidade são devidamente encaixados em uma estrutura textual a qual é aparentemente linear e tradicional. No entanto, no decorrer dos episódios e ao final da peça, o texto revela um colapso espaço-temporal formado por uma estrutura cíclica e espelhar que se junta aos recursos de distanciamento brechtianos. O resultado é uma fábula pós-moderna de personagens que buscam fazer sentido ao se relacionarem uns com os outros. Há também traços que mostram a insatisfação da dramaturga com a filosofia. A Alemanha nutre um pensamento filosófico imponente, com teorias extremamente diversas com grandes representantes desde Leibniz, passando por Kant, Hegel, Marx, Schopenhauer, Nietzsche, até os filósofos contemporâneos. A dramaturga, com formação acadêmica inicial em Filosofia, não esconde o descontentamento que teve com as teorias que, para ela, eram muito distantes da realidade. Este descontentamento perpassa a peça na figura da filósofa em decadência, Ella. A filosofia e as ciências naturais, segundo Loher, já não conseguem mais responder aos questionamentos e anseios pós-modernos. Inocência (2013) deixa ao leitor/espectador sensações de um decadentismo de uma sociedade na qual a técnica, a expressão midiática e o capitalismo exauriram o espírito coletivo, a fé e a esperança. A busca desenfreada pela famigerada felicidade só tem feito os indivíduos se afastarem dela, ao usarem ferramentas inapropriadas fornecidas por um sistema que prega o conformismo e a inércia, já que lutar não é mais possível. Entretanto, esta visão negativista dimensionada pela peça não é total. Loher, através de uma história tocante, ainda deixa em aberto possibilidades de 273 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa mudança, possibilidades que são propostas aos espectadores que ao se encontrarem com aquelas personagens, que são ao mesmo tempo tão humanas e tão monstruosas, os conduz a um abismo que convoca a um despertar para a mudança através de uma redefinição da compreensão de mundo. As ações no palco implicam reações e o leitor/espectador não consegue atribuir culpa a qualquer uma das personagens, já que não é possível e também não desejado que uma soma lógica dos eventos seja racionalizada pelo público. Loher brinca com seu leitor/espectador através de um jogo de espelhos com personagens duplicadas. O jogo com os duplos, as cenas em espelho, a estrutura episódica, os cortes fílmicos e os recursos de distanciamento duplicados garantem à Inocência (2003) um "borrão dramático4" capaz de brincar com a coerência de tempo e espaço. Já não há limites entre passado, presente e futuro, assim como não há fronteiras nítidas entre culpa e inocência. Esteticamente, Loher rompe com barreiras do dramático, do épico e do lírico em um texto idiossincrático e opaco, o que nos permite concluir que também a autora se desvencilha das noções de passado, presente e futuro do teatro e da literatura, vislumbrando uma práxis híbrida e peculiar. Bibliografia BAUDRILLARD, J. As Estratégias Fatais. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. _______. A sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Elfos; Lisboa: Edições 70, 1995. Tradução de Artur Morão. BAUMGÄRTEL, S. 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Esta pesquisa investiga como a relação entre vida e morte permeia e constrói os romances Mrs. Dalloway, To the Lighthouse e Between the Acts, de Virginia Woolf, estabelecendo laços com a guerra, suas consequências e sua inscrição como um período de ruptura. A escritora, um dos expoentes do Modernismo inglês, tem como temas recorrentes em suas obras vida e morte, envelhecimento, casamento, guerra, papel da mulher – especialmente da artista –, crítica sobre os valores vitorianos, entre outros. Em seus romances e ensaios, a guerra está presente de forma sutil, vista através do cotidiano e de variados acontecimentos na vida das personagens. A primeira obra, publicada em 1925, retrata as contradições da Inglaterra em 1923, cinco anos após o conflito, que se divide entre o desejo pelo progresso e superação e uma legião de traumatizados da guerra, representados, especialmente, por Septimus. To the Lighthouse, publicado em 1927, narra um período de dez anos, dentro dos quais acontece o conflito: 1910 a 1920. A narrativa se passa em uma casa de verão da família Ramsay que atua como um microcosmo da sociedade patriarcal. Por fim, Between the Acts, postumamente publicado em 1941, coloca em cena toda uma nação ainda não recuperada das feridas da primeira guerra e que se vê diante da eclosão de um novo conflito em 1939. Deve-se atentar, pois, para uma certa progressão a um pensamento voltado à coletividade: é possível observar nas referidas obras uma espécie de mudança do foco narrativo em um indivíduo, em uma família e em uma nação, respectivamente. Tal transformação se relaciona, entre outros fatores, à forma como a guerra, particularmente as estruturas familiares e sociais que a originam, passa a ser compreendida por Woolf. Assim, por meio do estudo das estratégias narrativas utilizadas por Woolf, será traçado um paralelo entre as obras mencionadas, destacando o impacto da ação devastadora das guerras, ressaltando a desilusão, as perdas, os traumas, entre outras mazelas que acometem os indivíduos nesse momento. O trabalho com a voz narrativa, 276 Descrição das pesquisas aliado a flashbacks, analogicamente aproxima-se do trabalho da memória, reforçado pela estrutura fragmentada das obras em estudo. O jogo entre presente e passado também altera a noção de espaço, que se amplia para a exposição do interior das personagens. A autora escreveu também diversos contos, resenhas e ensaios, dentre os quais merecem destaque os que tratam diretamente da questão das guerras como Three Guineas (2006) e Thoughts on Peace in an Air Raid (2009b), que apresentam o posicionamento pacifista da escritora inglesa perante os conflitos. Entretanto, a autora foi rotulada durante muito tempo de a-histórica, alienada, além de associada apenas à imagem de fragilidade, ressaltada por seu distúrbio psicológico. Tais posicionamentos ofuscam suas contribuições ao pensamento feminista, pacifista e antifascista. Não se pode deixar de mencionar A room of one’s own (2005), um dos trabalhos mais aclamados pelos estudos feministas, e, juntamente com “Professions for Women” (2009a), enfatiza não somente a condição da mulher na sociedade, mas também da mulher nas artes. Nos três romances em questão nesta tese, pode-se dizer que as personagens envolvidas com a arte têm algum problema ou dificuldade para se expressarem, devido ao fato de realizarem inovações, tanto na forma quanto no conteúdo, em suas obras. No caso das mulheres artistas, deve-se ainda levar em conta os impasses da vida matrimonial que refletem, sobretudo, as amarras vitorianas que reforçam a submissão feminina e a ausência de voz da mulher na sociedade, sem deixar de lado o domínio das aparências nas relações. A autora inglesa elaborou também diversos ensaios críticos a respeito da literatura de seu tempo. A maioria desses ensaios se encontra presente nos dois volumes de The Commom Reader e, dentre eles, é de grande importância para o estudo da narrativa woolfiana o que se denomina “Modern Fiction” (1984). Nele Woolf abre caminho para o entendimento de suas técnicas narrativas experimentais e de seus contemporâneos ao destacar que estas surgiram graças à consciência de que as aspirações dos homens são aleatórias e nem sempre seguem o que a sociedade determina. A autora descreve a mente como receptora de uma grande quantidade de impressões – “triviais”, “fantásticas”, “passageiras” ou gravadas em “uma forma de aço”. Segundo sua descrição, é como “uma chuva de átomos” que cai por todos os lados e vai se encaixando na vida cotidiana. Além disso, Woolf se destaca não apenas pelo experimentalismo na forma de narrar, mas também pelos usos dos “modos de subjetivação do narrado”, conforme 277 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa aponta Sarlo (2007, p. 18). Ela coloca em cena as “histórias da vida cotidiana”, nas quais “[...] o passado se volta como quadro de costumes em que se valorizam os detalhes, as originalidades, a exceção à regra, as curiosidades que já não se encontram no presente.” (SARLO, 2007, p. 17). Isso se explica pelo fato de, conforme observa Pelegrini (2007), o projeto iluminista já não se adequar mais à sociedade do século XX; as descobertas sobre o inconsciente feitas por Freud traziam novas perspectivas em relação ao funcionamento da mente, particularmente, ao trabalho da memória. Vale ressaltar que a produção de Woolf e o desenvolvimento da psicanálise são contemporâneos. É difícil haver interpretações objetivas por parte do escritor, pois as próprias personagens passam a colocar sua consciência no foco narrativo. Para produzir esse efeito de sentido, Woolf utiliza nos romances as técnicas do fluxo da consciência, que, conforme Humphrey (1959), é um termo cunhado pelo psicólogo William James e, aplicado à literatura, pode ser concebido como um conjunto de técnicas: monólogo interior direto e indireto, descrição onisciente, solilóquio, associação livre, método cinematográfico, entre outras. Dentre essas técnicas, a escritora privilegia, nas narrativas em estudo, o monólogo interior indireto, a montagem no tempo e espaço e a associação de ideias, merecendo destaque também o extenso uso de intertextualidade nos três romances. Diante disso, Woolf não constrói a narrativa de forma a preparar o leitor para um clímax; seu intento é empreender uma viagem ao mundo interno das personagens e, para isso, realiza idas e vindas no tempo para dar forma à representação do trabalho da memória que, segundo Freud (1996c), corresponde ao processo de recordação mediante o preenchimento de lacunas e a repetição daquilo que foi esquecido. Nessa elaboração, o indivíduo reformula o ocorrido, dando-lhe uma nova significação no presente. Por conseguinte, desse percurso de rememoração, nasce também o trauma, que pode ser entendido, basicamente, como essa tomada de consciência no presente de uma situação-problema que ressurge por associação de ideias. Vale ressaltar que não é o evento, no momento de sua ocorrência, que atua de forma traumática, mas a lembrança, a reorganização das experiências que, por sua vez, adquirem uma significação traumática (FREUD, 1996b). Nas obras de Virginia Woolf, a guerra não é focalizada de forma objetiva, mas indiretamente, por meio de suas consequências, a partir da exposição de seus efeitos no que tange ao indivíduo atingido, diretamente ou não, pela violência dos conflitos. 278 Descrição das pesquisas Diante disso, nota-se que, nas obras de Woolf, o passado não surge simplesmente como uma lembrança que visa explicar ou ilustrar determinada situação ou personagem, mas trava um diálogo com o presente e, algumas vezes, lança vistas ao futuro. Tal diálogo temporal também é evidenciado pelo espaço, que, por sua vez, deve ser investigado em sua relação com as personagens com o objetivo de perceber como o espaço ora influencia e ora é influenciado pelos indivíduos. Assim, como observa Lins (1976, p.63), “Não só espaço e tempo, quando nos debruçamos sobre a narrativa, são indissociáveis. A narrativa é um objeto compacto e inextrincável, todos os seus fios se enlaçam entre si e cada um reflete inúmeros outros.” Deve-se atentar ainda ao estudo da intertextualidade, que, nas obras da autora inglesa, proporciona uma constante renovação do sentido. Bastante presentes nos três romances, as relações intertextuais exercem um importante papel como elemento cultural que constitui a identidade do indivíduo além de participarem do trabalho de representação da memória. Partindo dos trabalhos de Kristeva (1968) que, por sua vez, baseia-se nos estudos de Bakhtin (1997; 1998) a respeito da polifonia no romance, a intertextualidade será vista como uma permutação de textos, em que vários enunciados, vindos de outros textos, cruzam-se e neutralizam-se. O levantamento de alguns dos intertextos e suas implicações à narrativa principal atuam na análise da forma como o sujeito fragmentado do início do século XX se relaciona com a cultura nacional, que, consoante Hall (2001, p. 48, grifos do autor), “[...] não são coisas com as quais nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação.” O estudioso ressalta que as culturas nacionais são compostas de instituições culturais, símbolos e representações: “[...] é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos” (HALL, 2001, p. 50, grifo do autor). Esses sentidos se inserem nas memórias que unem o presente com o passado, com as imagens construídas da nação. Nesta tese, a intertextualidade é trabalhada juntamente com o estudo da voz narrativa, tempo e espaço, mostrando como o recurso auxilia na configuração das instâncias narrativas. A intertextualidade, portanto, nos romances woolfianos destacados para este estudo, proporciona essa conexão entre o passado e o presente. Em outras palavras, o diálogo com a tradição, empreendido pela voz narrativa, ao trazer textos de diferentes épocas e gêneros literários, promove uma atualização do passado pela produção de novos significados, épocas e gêneros literários. Como observa Eliot (1951), 279 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa os escritores do Modernismo têm consciência de que a mentalidade de sua nação sempre muda e é essencial que a arte acompanhe as transformações, o que é possível por intermédio da reconstrução literária do passado por meio do diálogo entre os textos. Vale destacar que o Modernismo foi associado por Hall (2001, p.32) ao “[...] quadro mais perturbado e perturbador do sujeito e da identidade”. Sendo assim, apesar do estudioso classificar a primeira metade do século XX como o momento da “concepção interativa” da identidade e do eu, isto é, “a identidade é formada na interação entre o eu e a sociedade”, ele aponta para alguns descentramentos nessa época. Dentre eles, destacam-se as descobertas de Freud a respeito do inconsciente. Em O ego e o id (1996a, p.38, grifo nosso), verifica-se que ego, o eu, consiste na parte modificada pela influência do mundo externo: “[...] procura aplicar a influência do mundo externo ao id e às tendências deste, e esforça-se por substituir o princípio do prazer, que reina irrestritamente no id, pelo princípio da realidade”. Essa influência do mundo externo na formação do ego é concretizada por meio das vozes paternas, dos familiares, das instituições, da História e da cultura. Sendo assim, o uso da intertextualidade em Woolf levanta uma reflexão de como a cultura, em particular a literatura, delineia a identidade dos indivíduos. Merecem atenção nesta tese os intertextos que se relacionam com poder, autoritarismo, violência, entre outros elementos que concernem à atmosfera de guerra que ronda os três romances em questão e ressalta a convivência entre vida e morte na constituição das personagens. Assim, a partir do estudo das estratégias narrativas woolfianas, pautadas no trabalho de representação da memória, a pesquisa evidenciará como a guerra e seus desdobramentos nas obras em questão parecem prender o destino humano e estimular os indivíduos a se confrontarem, constantemente, com suas próprias almas e seus medos mais profundos. Nota-se que as figuras masculinas e femininas dos romances da escritora inglesa são feridas física e emocionalmente e personificam o sentimento de solidão e isolamento na sociedade do início do século XX. Woolf estrutura as referidas obras de tal forma que vida e morte atuam conjuntamente no andamento da existência, que varia entre a uniformidade e o caos, reforçando o trabalho incessante de Eros, pulsão de vida, e Thanatos, pulsão de morte (FREUD, 1996b). De forma resumida, para o psicanalista, a existência se estabelece pela tensão constante, conflito e conciliação, entre pulsão de vida e pulsão de morte. São as ações destrutivas de Thanatos que conseguem manter a vida em movimento e constantemente lutando para se reerguer e produzir novas vidas. Para Freud (1996a) tais pulsões formam 280 Descrição das pesquisas um binômio, em outras palavras, são opostas entre si. Nota-se, todavia, que ambas as pulsões se complementam, pois, caso houvesse apenas a pulsão de vida a existência atingiria um estado de total prazer que, entretanto, paralisaria a existência. Sendo assim, no presente estudo, vida e morte são entendidos como um “amálgama”, consoante a teoria de Derrida (2005, p. 188), na releitura que realiza do trabalho freudiano voltado à descrição do aparelho psíquico. O filósofo acredita que vida e morte são pulsões que trabalham interligadas e em contato constante a fim de que a energia vital possa fluir. É o que se percebe nas obras de Woolf, em que as guerras são, portanto, representantes da força destrutiva de Thanatos, pulsão de morte, que direciona o indivíduo a retornar ao estado orgânico, em constante tensão com Eros, pulsão de vida, que tenta manter unidas todas as coisas. Configura-se, dessa maneira, o amálgama entre vida e morte, posto que, em face à devastação, as personagens buscam maneiras de dar continuidade às suas existências. Bibliografia ADORNO, T. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: ______. Notas de Literatura I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Editora 34 Ltda, 2003. AUERBACH, E. A meia marrom. 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Entendido de maneira ampla, queremos dizer por projeto nacional o tipo de literatura comprometida com a formação ou intervenção nas questões nacionais, sobretudo relativas à edificação do país enquanto uma nação moderna, construindo e redefinindo identidades para a sociedade brasileira. Essa literatura, nos parece, possui uma espécie de dualidade formal, isto é, reproduz formalmente estruturas reconhecíveis na sociedade brasileira, vincada entre os aspectos ligados à modernização e os arraigados ao passado histórico, isto é, uma oscilação entre aspectos modernos e arcaicos, civilizados e bárbaros, assim entendidos dentro de uma concepção de desenvolvimento ligada à formação dos Estados-Nação modernos. A dualidade formal, ou forma dual, nesse sentido, constituem nossa hipótese central, a ser investigada como uma regularidade dentro do corpus definido para a pesquisa, a saber, um trajeto do romantismo – período central para a definição da nacionalidade, relacionado à construção do Estado nacional brasileiro – ao romance social modernista de Oswald de Andrade. Deverão ser estudados, nesse sentido, romances que nos parecem ilustrativos para a definição dessa especificidade formal: O guarani (1857), de José de Alencar; O cortiço (1890), de Aluísio Azevedo; e o romance cíclico inacabado de Oswald de Andrade, Marco Zero (1943-1945). Esses romances nos parecem centrais por aliarem a preocupação com a formação da sociedade brasileira com as questões de identidade nacional, reportando, assim, um interesse por questões não resolvidas pelo processo histórico brasileiro. Como se percebe, este projeto tem por base as propostas lançadas por Antonio Candido na Formação da literatura brasileira, sobretudo o que o crítico define como literatura empenhada (2007, p. 19-20; 28-29). Esta literatura, vinculada ao projeto nacional, não se restringe às produções românticas: antes, grande parte da série literária 284 Descrição das pesquisas brasileira possui um fio de ligação que une as diversas manifestações estéticas a uma preocupação constante com a edificação da nação brasileira, o que não se dá, evidentemente, de maneira una, ideologicamente ou formalmente falando. No entanto, certas regularidades persistem, e estas nos parecem relacionadas ao processo de desenvolvimento de uma nação que ainda não se deu por concluído, uma intuição, manifestada estruturalmente na produção literária, de que a comunidade nacional não encontra seu termo de maneira adequada, no sentido de uma integração social que fica a meio passo. Essa incompletude de formação da nação brasileira nos sugeriu o título do trabalho, extraído principalmente da canção “Fora da ordem”, de Caetano Veloso. A dualidade entre construção e ruína é a imagem estética retirada pelo compositor brasileiro do livro Tristes trópicos, de Lévi-Strauss, que, em determinada parte da obra, quando descreve suas impressões sobre a capital paulista, no caso a Praça da Sé, diz estar “a meio caminho entre o canteiro de obras e a ruína” (1996, p. 93). Para além da arte, contudo, a questão dos contrastes brasileiros tem longa história na tradição das ciências sociais e do ensaísmo brasileiro. Uma de suas obras principais, um híbrido entre a literatura e o pensamento social brasileiro, Os sertões (1902), de Euclides da Cunha, relata os ambientes à parte da civilização propugnada pela jovem República brasileira, o contraste entre litoral e sertão, civilização e barbárie, retomando argumento utilizado pelo escritor e político argentino Domingo Faustino Sarmiento em Facundo, ou civilização e barbárie (1845). Entre as duas obras, além da semelhança estrutural – por exemplo, a disposição terra-homem-luta que norteia o livro, bem como o caráter híbrido entre texto literário e de reflexão social –, há a representação da dualidade na formação da sociedade dos dois países: a oposição civilização versus barbárie, a distância entre o aspecto progressista e o arcaico no processo social, representado de um lado pelo gaúcho e pelo sertanejo, em seus respectivos espaços, o pampa e o sertão, e as cidades ligadas à imagem de progresso e aos modelos europeus. Esse caráter híbrido das duas obras nos sugere não só que a preocupação com os rumos da sociedade em um país em formação é compartilhada pela produção intelectual, sem prioridade seja da forma estética ou da análise social, mas também que representações semelhantes podem realizar-se tanto na forma estética, artística, quanto na narrativa histórica. Se considerarmos, com Barthes, que o discurso histórico – da historiografia, e nela também poderíamos incluir as ciências sociais em geral – é “essencialmente elaboração ideológica” ou “imaginária”, no sentido de que o “(...) 285 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa imaginário é uma linguagem pela qual o enunciante de um discurso (...) preenche o tema da enunciação (...)” (1972, p. 48, tradução nossa), isto significa que o “real”, para além da noção de fato histórico ou de verdade factual, permanece como “sentido”, revogável segundo as exigências históricas (BARTHES, 1972, p. 50). Nesse sentido, a abordagem da história e, no caso que vimos apontando, da representação da realidade dos contrastes brasileiros na literatura, bem como sua significação formal e sociológica, guarda em si uma fonte que poderíamos chamar de estética: esta não parece estar apenas nas artes, portanto, mas representa uma imagem de país construída – o que não quer dizer falsa –, que põe e repõe a questão dos problemas brasileiros em formulações representativas, que guardam um sentido social de grande interesse para a série de imagens construídas sobre a sociedade brasileira. Nossa pesquisa, portanto, realiza-se em uma interface com as ciências sociais e o ensaísmo brasileiros, não necessariamente apenas com base em uma comparação entre o que se neles se produziu que tenha relação com o aspecto literário em questão: a interface deve se relacionar de maneira mais ampla, notando uma presença estruturante, na representação da sociedade brasileira, de um dualismo formal que perpassa as obras, como andamento de análise ou como forma literária. Em Sentimento da dialética, Paulo Arantes (1992), a partir da crítica de Antonio Candido e Roberto Schwarz, analisa a experiência intelectual brasileira, marcada pelo “senso dos contrastes”, como Antonio Candido a chamaria (1995, p. 12). Paulo Arantes afirma que “o dualismo (...), antes de se tornar modelo econômico, tipologia sociológica ou chave de interpretação histórica, foi sobretudo uma experiência coletiva” (1992, p. 22). Essa experiência encontra-se, portanto, como expomos, não apenas no pensamento social, mas na própria “(...) experiência social de todos os dias”, e completa Arantes, “sobretudo quando filtrada pela forma estética (...)” (1992, p. 37). Nesse sentido, pensamos ser plenamente possível a passagem da representação social dual da sociedade brasileira para a representação propriamente estética que encontramos na literatura, sobretudo quando esta se vinculava a um projeto nacional. Não raramente, veremos que a literatura antecipa, e mesmo atina, com problemas e soluções de ordem sociológica que seriam trabalhados pelas ciências sociais muito posteriormente; neste sentido Octavio Ianni afirmou que “(...) a narrativa realiza uma espécie de desvendamento. Seja sociológica ou literária, ela ‘elucida’ o narrado, seja este real ou imaginado” (1999, p. 40). A caracterização do que chamamos forma dual não se prende apenas a um aspecto definido da representação literária, mas engloba vários métodos de lidar com os 286 Descrição das pesquisas contrastes brasileiros, segundo cosmovisões de grupos sociais, políticas e estéticas, compondo uma gama de possibilidades que encontra sua unidade conceitual justamente pela maneira em que as dicotomias representadas assumem prioridade dentro do arranjo formal. Assim, desde a literatura de fundação romântica, no seu intuito contraditório de mitigar as diversidades locais – conservando-a e superando-a segundo sua função simbólico-nacional – a fim de fundar uma mitologia unitária para a nação, passando pela percepção pessimista dos contrastes nacionais no naturalismo, até a plena assunção modernista com a aceitação “carnavalizada” das dissonâncias locais, a relação entre as aporias brasileiras e a busca contínua de respostas parece dar o tom. A forma dual, assim, espraia-se tanto numa relação de desterro intelectual, sentido especialmente nas condições de produção cultural na sociedade subdesenvolvida, até a maneira de representar – ligado também, de variadas maneiras, àquele primeiro elemento – as contradições com base nos arranjos formais, seja segundo as categorias narrativas constitutivas do texto, seja pela criação de símbolos ou alegorias; de forma geral, pela disposição da linguagem literária, na sintaxe interna da obra. Neste sentido, nossa hipótese é que a forma dual se espraia por toda a gama do tecido da representação: da formulação espacial, à constituição do personagem, à constelação do entrecho, o dado do tempo e do andamento, a postura e a linguagem do narrador, etc. A questão se centra, portanto, menos em uma mera notação de oposições dentro da temática, mas em uma forma de estilização de conflitos sociais e processos de integração e desagregação, particularidade e universalidade, modernização e estagnação, urbanização e espaço rural, que entram na composição da obra literária. O desenvolvimento da pesquisa já conta com três capítulos. No primeiro, é realizada uma explanação geral sobre o que chamamos uma tradição de representação do Brasil, centrada na questão da figuração formal dos contrastes brasileiros, tanto na literatura quanto no pensamento social, que, ao longo das análises, balizará os textos literários na forma de aproximações sobre as soluções encontradas para a representação e para o estabelecimento de uma imagem do país. Assim, são abordadas as variadas contribuições do ensaísmo brasileiro, desde o século XIX até os clássicos das décadas de 1930-1940 – com Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior – e um panorama de como a literatura brasileira se integra neste processo de entendimento e interpretação do país. A pesquisa também propõe, no segundo capítulo, uma discussão de importantes textos para a compreensão do projeto nacional em literatura. Assim, já trabalhamos largamente na análise da crítica romântica e naturalista no século XIX, 287 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa centrada sobretudo em Ferdinand Denis, Gonçalves de Magalhães, Araripe Júnior, Sílvio Romero e José Veríssimo, dando ênfase aos chamados “impasses da modernização” da sociedade brasileira e às preocupações da literatura com este problema. A crítica romântica e a naturalista representaram, respectivamente, o período de formação do Estado nacional brasileiro pós-independência, no qual já não faltavam os incômodos, mais tarde recorrentes, da disparidade entre a norma da civilização burguesa dos países centrais e a prática local, e a crítica mais direta à formação social brasileira e suas implicações literárias, aspectos trabalhados com maior ou menor acuidade, embora sempre significativos da situação social da época. Esta análise da crítica oitocentista se complementa com a leitura realizada, no terceiro capítulo, do romance O guarani, que lança mão deste importante romance definidor de nossa simbologia nacional como uma espécie de alegoria de nosso desenvolvimento histórico. A dualidade presente na narrativa se escora na existência de uma hierarquia interna na qual a constelação de personagens é delineada, segundo a qual, em uma espécie de alegoria, são figurados os setores sociais que dariam esteio à formação do país: a tradição civilizatória européia, centrada na chefia de D. Antônio de Mariz, seu sucedâneo autóctone Peri, que absorve aquela tradição, e outros personagens que aparecem à margem da formação nacional, excluídos e marginais à constituição desejada. Além disso, há diversas figurações espaciais presentes no romance que sugerem uma passagem da natureza indomada à constituição de uma nova sociedade que, se deve se conformar aos modelos civilizatórios e cristãos presentes no modelo europeu, com cujos valores nossa tradição romântica dialoga, também devem manter uma particularidade local distintiva, com o horizonte de constituir uma identidade nacional. Por fim, a pesquisa inicia agora a análise do romance O cortiço, sobre o qual retoma a sugestão de Antonio Candido, que identifica como um princípio formal do texto o que ele chama de dialética do “espontâneo e do dirigido” (1993, p. 135-136). Esta significa a passagem de um processo de acumulação precário e semibárbaro para a acumulação com base em uma racionalidade capitalista, tendo como foco a ascensão social de João Romão esteada na exploração da camada miserável que habita o cortiço de sua propriedade. Nossa análise, ainda em formulação, retoma inicialmente os pontos sugeridos por Candido para embasar a leitura do romance sob a ótica de uma forma dual, uma representação alegórica do país que a percebe enquanto uma civilização vincada pela distância entre as classes, percebidas, à maneira do tempo, como uma cisão 288 Descrição das pesquisas entre raças. Nesse sentido, parece ser mantida uma regularidade com relação ao romance de José de Alencar, quanto à dualidade formal: a representação cindida das personagens, bem como a constituição do espaço romanesco, parecem dar o tom do sentido do romance quanto ao que projeta frente à construção nacional. A pesquisa, portanto, ainda em curso, se esforça em definir essa peculiaridade e recorrência da forma de representação do país, jogando luz sobre estes aspectos, sejam na literatura, sejam no pensamento social brasileiro. Bibliografia ARANTES, P. E. Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira: dialética e dualidade segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. BARTHES, R. El discurso de la história. In: BARTHES, R. et alli. Estructuralismo y literatura. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1972. CANDIDO, A. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993. ______. O significado de ‘Raízes do Brasil’. In: HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 9-21. ______. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 11. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007. IANNI, O. Sociologia e literatura. In: SEGATTO, J. A.; BALDAN, U. Sociedade e literatura no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 1999. LÉVI-STRAUSS, C. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 289 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa O REALISMO MÁGICO, REFERÊNCIAS HISTÓRICAS E A ALEGORIA: AS CONFLUÊNCIAS EM IL BARONE RAMPANTE, DE ITALO CALVINO E EL SIGLO DE LAS LUCES, DE ALEJO CARPENTIER Kelli Mesquita Luciano Mestranda Profa. Dra. Claudia Fernanda de Campos Mauro (Or.) 1. Introdução e justificativa O interesse pela comparação entre Il barone rampante (1957), de Italo Calvino e El Siglo de las Luces (1962), de Alejo Carpentier, advém das semelhanças que as duas obras apresentam, como, por exemplo, características do realismo mágico; referências a Instituições históricas, a figuras históricas e a acontecimentos históricos do século XVIII, como a Revolução Francesa. Além desses fatores, identificamos nas narrativas a presença de elementos alegóricos no que diz respeito ao contexto histórico, em que as obras se passam e que remete ao contexto do século XX, no qual os autores viveram. Italo Calvino (1923-1985) nasceu em Cuba, mas passou a maior parte de sua vida na Itália, tendo participado da Segunda Guerra Mundial, nos chamados movimentos de Resistência italiana; escreveu para jornais e revistas; foi colaborador dos jornais Giorno e Corriere della sera; teve grande envolvimento com os intelectuais de sua época, como Pavese e Vittorini; integrou por um tempo o Partido Comunista. A extensa produção de Calvino inclui contos, romances, ensaios, entre outros. Uma de suas obras de destaque é a trilogia I Nostri Antenati (1950-1960), em que estão reunidos os romances: “Il visconte dimezzato”(1952), “Il barone rampante”(1957) e “Il cavaliere inesistente”(1959). Em Il barone rampante, segundo romance da trilogia, evidenciam-se as incertezas, o conflito entre o interior do indivíduo e a realidade externa – o que se expressa mediante a ocorrência de acontecimentos insólitos. Considerando-se que, um dos grandes problemas da arte do século XX é a resistência à objetividade, pode-se apontar que o ficcionista buscou uma solução que restabelecesse a ligação entre a narrativa e a realidade, sem com isso anular seu juízo ético e histórico, daí a opção por eventos inusitados. 290 Descrição das pesquisas O enredo se passa no século XVIII e os acontecimentos nos são relatados pelo narrador-personagem Biágio de Rondó, irmão mais novo do protagonista Cosme de Rondó, filho de uma família da aristocracia decadente em terras genovesas. O protagonista discute com seu pai, o Barão Armínio de Rondó, e por causa desse desentendimento passa a morar na copa das árvores, de onde nunca mais desce até o resto fim de sua vida. Alejo Carpentier nasceu em Cuba e viveu um tempo na Europa, e retornou para Cuba, após a vitória da Revolução Cubana. Ele estudou música, arquitetura, trabalhou como jornalista, era instigado pelos movimentos políticos, integrou por um tempo o movimento surrealista. Siglo de las Luces é um romance ambientado no século XVIII, que entrelaça alguns mitos, a natureza, o passado e o presente, além de haver referências a Victor Hugues, entusiasta da Revolução Francesa, personagem existente na História oficial, foi comerciante em Port-au-Prince, na França, e organizou a disseminação das ideias da Revolução no Caribe. No enredo da história, Hugues chega a Cuba, onde transforma e movimenta ativamente a vida dos irmãos Carlos e Sofia e de Esteban, primo destes. Os três primos são de família abastada, com o tempo despertam maior interesse pelas ideias libertárias da Revolução; possuem gostos excêntricos; vivenciam Revoltas e Guerras; sofrem frustrações, mas, ainda assim, têm esperança numa sociedade melhor. Devemos destacar que no enredo, há menções do uso da guilhotina, instrumento empregado pelos idealizadores da Revolução para decapitar àqueles que não concordassem com suas formas de pensamento. 2.Objetivos e metodologia Este projeto objetiva a comparação entre os romances em Il barone rampante , de Italo Calvino e em El Siglo de las Luces, de Alejo Carpentier, a partir do estudo da vertente realista mágica; dos eventos insólitos; das referências históricas presentes em ambos os romances, pois os dois transcorrem no século XVIII, onde são contextualizados os ideais da Revolução Francesa e do Iluminismo, além da menção de figuras da História oficial e de Instituições históricas. Identificamos em ambos os romances, algumas temáticas que se repetem, por isso averiguaremos nas duas obras, a abordagem da busca pelo conhecimento por intermédio da leitura, dos livros, por exemplo. Em Il barone rampante, o espaço 291 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa primordial de acesso à cultura e à literatura se dá sobre as árvores, onde, inclusive, o protagonista constrói uma biblioteca e vive uma vida, de certo modo, isolada, enquanto em El Siglo de las Luces, na casa dos três primos, além de uma biblioteca, havia também um labirinto de caixas, cercado por livros, sendo que cada um dos primos tinha um local entre as caixas, para poder ler e refletir à vontade, estes personagens, de certo maneira, são apartados da convivência com o mundo até a chegada de Victor Hugues em Havana. Em Il barone rampante, a decisão de Cosme de morar nas árvores, e sua recusa a descer de lá, pode ser considerada uma atitude incomum, apesar de não ser totalmente impossível de acontecer. Já, em El Siglo de las Luces, encontramos referências a mitos, a crenças, a uma diversidade de culturas e etnias, pois são mencionados: índios, negros, europeus, americanos; rituais religiosos como a existência de Igrejas Católicas; de rituais mocambeiros; da Maçonaria, encontrados em uma mesma região, além da ocorrência de eventos inusitados nas narrativas em questão. A partir dessas leituras, consideramos importante traçar um panorama sobre as tipologias do realismo mágico, haja vista que, estas, muitas vezes são confundidas, tendo em vista a análise dos elementos insólitos das narrativas. Por isso, uma das etapas de nossa investigação foi o levantamento de traços que marcam e distinguem essas formas literárias, partindo-se das teorias de estudiosos como: Chiampi, Carpentier, Spindler, Moses, entre outros que serão acrescentados, no decorrer dos estudos. Como El Siglo de las Luces apresenta uma revisitação a elementos barrocos, pois, observamos a construção de longos parágrafos; descrições precisas de elementos da natureza, de paisagens, de espaços, entre outros; a retratação de diferentes culturas, religiões, etnias, da mestiçagem e distintas ideologias, faz-se necessário um breve estudo sobre a estética barroca, para tanto, investigaremos as proposições de Carreter em Estilo Barroco y Personalidad Creadora (1977); Barroco e Modernidade: ensaios sobre literatura latino-americana (1998), de Chiampi e Coordenadas do Barroco (1965), de Julio Garcia Morejón, uma vez que abordam as especificidades do estilo Barroco na América Latina e suas relações com a modernidade, além desses autores, utilizaremos algumas considerações relevantes de Carpentier e de Quiroga e de outros que serão introduzidos, conforme forem necessários. Tanto Calvino quanto Carpentier configuram em suas narrativas, o sentimento de desolação e de decepção do ser humano através do contexto do século XVIII, por meio de pontos de intersecção com o contexto do século XX, no qual, ocorreram movimentos ditatórias e déspotas, como o fascismo, o 292 Descrição das pesquisas nazismo, além da Revolução Russa e da Revolução Cubana. Il barone rampante e El Siglo de las Luces são textos que apresentam muitas referências históricas, por isso, é necessário que façamos algumas considerações entre relações de fatos da história oficial com àqueles referidos nos romances estudados. Para tanto, utilizaremos teorias de autores como: Freitas, Lammert, Lukács, Benjamim, entre outros, que serão incluídos, quando relevantes para nossas investigações. Desse modo, elucidaremos algumas questões fundamentais sobre a modernidade e as referências históricas feitas nas referidas narrativas. Por fim, nos debruçaremos sobre alguns aspectos alegóricos das narrativas em questão, e por isso nos apoiaremos em Hansen que em Alegoria construção e interpretação da metáfora (2006), nos diz que a alegoria consiste num processo de representação metafórico, pois envolve o sentido denotativo e o conotativo, para motivos de validação da interpretação alegórica, além disso, considera que a alegoria apresenta uma prévia intenção do autor. Faremos uso também de A alegoria (1986), em que Koethe estabelece comparações relevantes entre a alegoria, a metáfora e a fábula; Durand em A imaginação simbólica (1993) faz considerações importantes para compararmos o símbolo à alegoria, tendo em vista que no primeiro o leque de significações é mais amplo, na alegoria há uma especificidade na representação dos significados. Já, em As Estruturas Antropológicas do Imaginário (2002), o mesmo autor explana as dificuldades das definições simbólicas, haja vista que possuem significações ilimitadas, pois um mesmo símbolo pode apresentar, inclusive, significações contrárias. Durand nos conduz a pertinência das possíveis relações simbólicas que faremos a partir da costura de elementos e episódios que a própria narrativa nos possibilita. Tendo em vista que Calvino aborda questões existenciais de uma forma fabulosa, trazendo à tona a situação de incompletude do homem moderno, que se sente fragmentado, devido aos acontecimentos históricos da primeira metade do século XX, tais como a crise positivista e o fim das certezas do homem moderno inferidas em sua narrativa, que possuem pontos de ligação com o contexto do século XVIII. Enquanto Carpentier trata questões revolucionárias e suas contradições, frustrações e esperanças, a partir de acontecimentos históricos do século XX, como a Revolução Cubana e as características autoritárias presentes até mesmo em governos, considerados libertários e igualitários, que também possuem relações com o século XVIII, além de observamos a mescla de culturas e ideologias que ele reúne em sua obra. Por essas razões, 293 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa consideramos pertinente a comparação das obras, uma vez que apresentam confluências quanto às manifestações do realismo mágico; ao contexto histórico; às temáticas, entre outras. Bibliografia BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e poética. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. CALVINO, Italo. Os nossos antepassados. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. ______. I nostri antenati: Il visconte dimezzato. Il barone rampante Il cavaliere inesistente. 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Ponta Grossa: Uniletras, n. 11:109-118, dez. 1989. HANSEN. João Adolfo. Alegoria construção e interpretação da metáfora. Campinas: Editora da Unicamp, 2006. KOETHE, Flávio R. A alegoria. São Paulo. Ática, 1986. (Princípios). LAMMERT, Eberhard. “História é um esboço”: a nova autenticidade narrativa na historiografia e no romance. Trad. Marcus Vinícius Mazzari. Revista Estudos Avançados. São Paulo, v. 9, n.23, p. 289-308, 1995. LUKÁCS, Georg. O romance como epopéia burguesa. Trad. Letizia Zini Antunes. Ad Rominem, São Paulo, n. 1, p. 87- 136, 1999. MOREJÓN, Julio Garcia. Coordenadas do Barroco. São Paulo: Seção Gráfica da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1965. MOSES, Michael Valdez. Magical Realism At World’s End. Literary Imagination. The Reviewolf the Association of Literay Scholars and Critics. Durham, v. 3 - I, p. 105 -133, 2001. SPINDLER, William. Realismo mágico: uma tipologia. Trad. Fábio Lucas Pierini. Revisão: Fernanda Cristina de Freitas Sales. Forum for modern languages studies. Oxford, 1993, v. 39, p.75-85. 294 Descrição das pesquisas JUAN RULFO E A CONSTRUÇÃO DO SUBJETIVO Larissa Müller de Faria Mestranda Profa. Dra. Guacira Marcondes Machado Leite (Or.) No início do século XX, com a crise do romance, começa a ser produzida, mais precisamente na Europa e nos Estados Unidos, a narrativa poética ou, segundo Freedman, o romance lírico. Tal forma surge vislumbrando atender às necessidades de uma nova escrita, na qual aspectos sociológicos não deveriam aparecer, como acontecia no Realismo e no Naturalismo, por exemplo. Trata-se de obras que buscam uma forma que represente e abarque, em maior totalidade, a relação do individual e subjetivo (até então mais relacionado à poesia e, consequentemente, ao belo) com o mundo e sua realidade (habitualmente mais próximo da forma da prosa). É nesse sentido que a prosa, que está mais próxima da representação do ser enquanto sujeito fragmentado, vai repensar alguns de seus princípios afim de conseguir abranger a relação de busca (subjetiva) que permeia o homem e sua existência. É esse novo romance, lírico, que, com mais atributos da poesia, tentará dar conta dessa nova relação do homem com o mundo, com suas experiências e com seus sonhos. É nessa perspectiva que Juan Rulfo, escritor mexicano de grande evidência na literatura hispano-americana, será abordado. Inovador e rico em elementos imaginativos, unido a elementos de observação da realidade que o circunda, Juan Rulfo retoma em algumas de suas narrativas temas históricos mexicanos significativos, como, por exemplo, a revolução. Contudo, o faz através de uma perspectiva mais interna, inovadora e complexa, pois a trata sob um olhar subjetivo que reinventa a realidade objetiva, atribuindo-lhe caráter irreal, inquietante e fantasmagórico de grande densidade poética. Assim, o imaginário se produz no esteio da realidade natural, originando uma visão peculiar, ambígua e desequilibrada, que rompe com as formas tradicionais da narrativa, ao ser aplicada nos contos publicados em El llano en llamas e no romance Pedro Páramo. O romance escolhido para análise é Pedro Páramo, publicado em 1955. A proposta principal é analisá-lo a partir do conceito do romance lírico e da narrativa poética. O que se propõe é uma abordagem da relação entre o imaginário e a realidade, o elemento sobrenatural e a memória no desenvolvimento da narrativa. A obra Pedro Páramo é capaz de suscitar 295 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa diversas leituras, desde os aspectos da vida social quanto da individual, concretizando-se como espaço de uma nova linguagem. É nesse sentido que o presente trabalho abordará e enfocará o estudo da voz principal de Juan Preciado, pois é nesse fio que vai tecendo o enredo da obra, que temos não só a presença da voz lírica, mas também a “evocação” de outras vozes que constituem a narrativa. Nessa perspectiva, o estudo e a abordagem da narrativa poética em sua relação com o desenvolvimento contemporâneo do herói, na visão poética de Luckács, se fará presente e permeará todo o trabalho. Ambos os conceitos permitem a imaginação e reinvenção do enredo, que se dará sob uma perspectiva subjetiva. Aqui, a questão da instancia narrativa é essencial para o entendimento de como o “dizer” (a narração) e o “perceber” (a perspectiva) se articulam para produzir efeitos, e “como a percepção do mundo romanesco se encontra filtrada pelo espírito do centro de orientação, a perspectiva narrativa é influenciada pelo psiquismo do perceber” (REUTER, 2002: 73-74). Diferentemente da idade da epopeia - de civilizações felizes - em que “o grego só conhece respostas, mas nenhuma pergunta, só conhece soluções (às vezes enigmáticas), mas nenhum enigma, só conhece formas, mas nenhum caos” (Lukács, 1975: 29), Juan Preciado representa não apenas o homem moderno solitário que está em desconcerto com o mundo e desprovido da proteção dos deuses, mas tem consciência disso, encontrando-se de forma dramática com suas inimagináveis e monstruosas emoções, das quais não pode fugir. O recorte pelas abordagens teóricas do romance lírico e da narrativa poética deve-se ao fato de que ambos permitem ao leitor perceber a centralização da voz lírica, ainda que haja o desdobramento de outras “vozes”. Essa estrutura lírica compõe, nessa narrativa, um de seus problemas centrais na leitura e na determinação do foco narrativo. Bary (sem data: 907), crítico literário, apesar de não utilizar o termo ‘narrativa poética’, como vários outros críticos, elucida bem a relação entre o romance e a narrativa poética, afirmando que Pedro Páramo é uma “fusión de elementos narrativos, líricos y dramáticos, gracias a la naturalidad y la osadía con las que Rulfo crea un mundo en que coexisten muertos y vivos, presente y pasado, cosas ‘normales’ y cosas ‘míticas’”, enfim, uma obra de ‘ensueños y lejanía’. Juan Preciado, voz central, encontra-se sozinho em um mundo que parece não lhe pertencer. Ao longo da narrativa, ele parece surpreender-se e não compreender o que está acontecendo, o que comprovamos com as suas indagações sem repostas claras, refletindo na sua busca incessante de uma referenciação que não está na realidade concreta, o que é angustiante até para o leitor. A angústia tratada na narrativa está permeada pela busca ontológica “Quem sou eu?”, fundamental para a reconstrução da memória. Tabak (2005: 26), em sua tese sobre a narrativa poética, afirma que “o tempo, o espaço, a estrutura, o estilo e o 296 Descrição das pesquisas mito coexistem e integram a formação de um todo harmônico, mas de forma livre [...] a narrativa poética cria o mundo no próprio ato de construção de si mesma" e "a referenciação não está na realidade em si, mas sim na busca pelo entendimento de uma forma de ver o mundo”. Tal afirmativa dialoga também com o desenvolvimento contemporâneo do romance, em que a experiência individual é sempre subjetiva, única e, portanto, inovadora. Ademais, percebemos que o tempo não está determinado, pois, assim como a voz principal, apresenta-se também fragmentado e mítico. Só nos é permitido saber que se trata de uma voz que, no presente de sua enunciação, descreve Comala a partir de um olhar do passado. Dessa forma, a consecutividade dos fatos e acontecimentos, espaciais e temporais, por exemplo, aparece subjugada à voz lírica. Tudo está subjugado a ela, transformado em acontecimento mítico, corroborando a ideia de que na narrativa poética, as personagens, os lugares e os tempos encontram-se desprovidos de precisão histórica. Nessa perspectiva, Poza e Figueredo (2011: 260) sublinham que a estrutura narrativa de Pedro Páramo rompe com o determinismo causalista pela maneira como presente e passado se aglutinam e pelas múltiplas perspectivas das personagens que se entrecruzam para formar uma imagem de Comala, subvertendo o modo de operacionalização do realismo tradicional. É em função da pluralidade de vozes, ou ainda, da polifonia21, que o presente trabalho abordará, de forma significativa, o estudo das personagens (vozes) presentes. Trata-se de uma narrativa entrecortada pela voz em primeira pessoa que narra, em seu presente, o passado, recorrendo à sua memória e à memória de sua mãe, bem como ao pronunciamento de demais personagens (alguns já mortos), o que desestabiliza e desorienta o leitor, que não sabe de que voz se trata. Nessa perspectiva, percebemos que o convívio da consciência com a memória tem produzido um intimismo de situações novas, algumas ousadas e desafiadoras. Atentando para a própria ideia dos ecos, o estudo da discussão sobre o papel do narrador e sua importância para a narrativa poética é essencial para a compreensão de sua estrutura, bem como da destruição do discurso. Para Reuter, (2002: 73), a questão das perspectivas (que podemos designar vozes, no romance selecionado) “é de fato muito importante para a análise das narrativas, pois o leitor percebe a história segundo um prisma, uma visão, uma consciência que determina a natureza e a quantidade das informações: podemos, com efeito, saber mais ou menos sobre o universo e os seres, podemos continuar fora dos seres ou penetrar em sua interioridade”. Segundo Tabak (2005), é justamente no foco 1 Polifonia usada, aqui, como a presença de várias vozes. 297 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa narrativo que encontramos o âmago da questão; as demais instâncias participam de forma ativa e solidária, mas é ele que comanda a cena e atrai as atenções sobre si mesmo. Nesse sentido, o discurso da voz principal, ou seja, da voz em primeira pessoa, atrai a atenção toda sobre si. Tabak (2005) ainda sublinha que a relação entre os discursos é amalgamada pelo contínuo desejo de dizer, buscar ou refletir algo que está dentro do texto e dentro da existência humana. É dessa forma que a narrativa poética se torna mítica, pois ela centraliza ou descentraliza o indivíduo e seu tempo. Tal ideia é representada pelas várias vozes presentes na narrativa. Segundo Reuter (2002: 72), “a questão das vozes narrativas concerne ao fato do contar. A das perspectivas (focalizações, visões ou pontos de vista) concerne ao fato do perceber”. Assim, podemos dizer que a narrativa de Rulfo, objeto deste estudo, tem relação íntima com o fato de contar e perceber, uma vez que é a partir das vozes e, consequentemente, focalizações e pontos de vista distintos e variados, que temos o desenrolar da história em um tempo não determinado cronologicamente. A fragmentação não só existe, mas também é necessária, porque é nas vozes líricas ou no narrador, que conduz a narrativa, que está veiculada a voz de alguém, das personagens, por exemplo, que se encontra em um tempo não identificado e que, ao mesmo tempo, não possuem características de uma pessoa, já que não são descritas fisicamente nem psicologicamente. É através da memória das personagens que nascem as imagens que fazem parte do romance, já que se trata da descrição de um local que não conhecemos e imaginamos apenas pela descrição que nos é concedida. É a memória que permite às personagens construir-se intimamente, já que suas visões são a projeção de seus estados diante do universo, o que é sempre subjetivo, demonstrando as sensações e sentimentos trazidos pela memória. Enfim, em função de a pesquisa estar no início, o intuito deste trabalho foi tentar demonstrar o panorama de algumas das teorias estéticas que serão utilizadas e aplicadas na sua realização. Bibliografia ARRIGUCCI. 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Rio de Janeiro: 1984. 299 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa DA LITERATURA AO CINEMA: A CONSTITUIÇÃO DA PERSONAGEM E DO FOCO NARRATIVO DE “A QUEDA DA CASA DE USHER”, DE EDGAR ALLAN POE, NA ADAPTAÇÃO FÍLMICA Laura Lopes de Oliveira Mestranda – Bolsista CAPES Profa. Dra. Fabiane Renata Borsato (Or.) ESTÁGIO ATUAL DA PESQUISA No presente momento foram desenvolvidos os capítulos 3 e 4 da dissertação, entregues para a revisão da orientadora, sendo que o primeiro entrará em fase de escrita; o segundo tem parte de seu conteúdo iniciado. As obras da pesquisa, a saber, A queda da Casa de Usher, conto de Edgar Allan Poe, e La Chute de la Maison Usher, filme dirigido por Jean Epstein, foram analisadas separadamente no capítulo 3 para depois haver o cotejo das duas obras no capítulo 4. Dentre os textos lidos estão: Ficção completa, Poesia & Ensaios, A estética do filme, Cómo analizar un film, La esencia del cine, Discurso da Narrativa, Crítica de ouvido, A linguagem cinematográfica, entre outros. A seguir há uma parte do conteúdo do capítulo 3: O CONTO A perspectiva narrativa adotada pelo narrador mostra que este utiliza, na maior parte do conto, a focalização interna para se expressar, pois fala dos sentimentos angustiantes que o tomam quando se encontra na propriedade de Roderick. Isto pode ser percebido logo nas primeiras linhas do parágrafo inicial, quando o narrador, que é testemunha e homodiegético, adentra os arredores da casa de Usher com seu cavalo: Durante todo um dia pesado, escuro e mudo de outono, em que nuvens baixas amontoavam-se opressivamente no céu, eu percorri a cavalo um trecho de campo singularmente triste, e finalmente me encontrei, quando as sombras da noite se avizinhavam, à vista da melancólica Casa de Usher. (POE, 1958, p. 146) 300 Descrição das pesquisas A natureza e o objeto parecem personificar-se, pois o outono é mudo, as nuvens são opressoras, o campo é triste e a casa, melancólica. O narrador coloca-se no interior dessa natureza e desse objeto, a casa, como se estes fossem donos de sentimentos angustiantes, os quais a personagem toma para si. Ele exterioriza os próprios sentimentos e a essência da natureza e da casa. A personagem-testemunha aproxima-se do que está ao seu redor de tal maneira que descobre sentimentos em coisas nãohumanas. A natureza, por meio das impressões que deixa escapar, é um pressuposto do aspecto da casa, uma amostra do que será o solar para a testemunha. Por um momento o narrador se distancia do objeto casa e o descreve objetivamente – “casa simples”, “simples paisagem”, “moitas de junças” e “troncos alvacentos de árvores mortas” – ao mesmo tempo em que personifica algumas partes da casa: “janelas paradas como olhos vidrados” e “paredes frias”. Nesta última característica, o “frias” parece ser tanto no sentido estrito da palavra quanto em seu sentido mais amplo, isto é, paredes tão frias como um ser humano cruel. Há a personificação do objeto. O narrador atribui vida ao que é inanimado para ter um motivo para seus sentimentos, em outras palavras, ele dá vida ao que é inânime para que se possa transmitir veementemente impressões que deixam a personagem perturbada. A focalização sobre si mesmo demonstra que o narrador fala de seus sentimentos com propriedade por determinado momento: Olhei para a cena que se abria diante de mim [...] – com uma enorme depressão mental que só posso comparar, com alguma propriedade, com os momentos que se sucedem ao despertar de um fumador de ópio. (POE, 1958, p. 145-146) Entretanto, desfaz tal propriedade logo em seguida: “Que era – pensava eu imóvel – que era isso que tanto me atormentava na contemplação da Casa de Usher?” (p. 146). Há como que uma desfocalização do narrador sobre ele mesmo, pois o motivo de sua angústia ficou embaçado como um câmera desfocada, a qual não permite que se tenha certeza da forma do objeto que poderia estar em evidência. O FILME Nos fragmentos que formam a sequência da taberna, a câmera leva um longo tempo para focalizar a face do amigo de Roderick Usher e identificá-lo. Até este 301 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa momento, a personagem está incompleta, focalizada de modo metonímico, pois vemos somente suas pernas, mãos, seu tronco e suas costas. O amigo representa o desconhecido, tanto para o espectador quanto para as personagens que ele encontra na taberna, pois suas expressões ainda estão veladas. Antes que o amigo entre no local, vemos três personagens em uma mesa. Seus corpos estão na diagonal, enquanto um deles está de costas. Ao ouvirem um barulho fora de campo, provavelmente o amigo batendo à porta, a personagem que está de costas se contorce para observar algo que não vemos, o que representa a dificuldade que eles têm para entender porque a personagem desconhecida quer ir à casa de Usher, lugar a que eles se recusavam ir. O contorcionismo da personagem pode gerar outros sentidos: o desconforto ao acolher o viajante desconhecido, ou mesmo o desconforto que o nome “Usher” lhe causa. A outra personagem que está sentada à mesa, no canto direito do campo, tem metade do rosto coberto pelas sombras. Esta focalização denota a desconfiança diante do desconhecido, pois a personagem à sombra não fica exposta ao que lhe é incógnito. O desconhecido entra na taberna e a câmera ainda não focaliza seu rosto. Quando pensamos que a personagem vai finalmente aparecer e adquirir a identidade de um rosto focalizado, ela é substituída por outra imagem para, em seguida, vermos a câmera em primeiríssimo plano a focalizar a carta que Roderick lhe enviou. Este fragmento apresenta uma focalização en abyme, ou seja, várias focalizações simultâneas, numa sobreposição de pontos de vista que merece análise. Fora de campo está a focalização da câmera, seguida do olhar do ainda desconhecido amigo de Usher que segura uma lupa, instrumento que o possibilita ler a carta, representante da voz de Roderick Usher. São camadas de perspectiva, e cada uma funciona como uma interpretação do texto de Edgar Allan Poe, fazendo com que o hipotexto, isto é, o conto, fique completamente distante desses novos olhares, que geram outras narrativas. Talvez Epstein quisesse mostrar a autonomia do cinema em relação à literatura, pois nesse fragmento pouco resta do conto de Poe, ou seja, a carta é o fragmento da história que ali permanece. Os desdobramentos em abismo são de Epstein, para quem a literatura se ausenta e o cinema se revela. De acordo com Epstein, a relação entre cinema e literatura é afastada, pois “o filme e o livro se opõem.” (XAVIER, 1983, p. 294). Para que um texto literário emocione o leitor, é necessário que este faça um esforço intelectual para decifrar os códigos textuais, os quais formam símbolos que não representam de maneira direta os símbolos que deseja representar, pois precisam, antes, passar pelo raciocínio 302 Descrição das pesquisas lógico. As imagens, ao contrário, por representarem de maneira direta os símbolos que deseja representar, não passam pela razão do espectador e mexem com a emoção mais rapidamente, sem precisar da razão. [...] a palavra constitui um símbolo indireto, elaborado pela razão e, por isso, muito afastado do objeto. Assim, para emocionar o leitor, a palavra deve passar novamente pelo circuito dessa razão que a produziu, a qual deve decifrar e arrumar logicamente este signo [...], ou seja, antes que essa evocação esteja por sua vez apta a mexer com os sentimentos. A imagem animada, ao contrário, forma ela própria uma representação já semipronta que se dirige à emotividade do espectador quase sem precisar da mediação do raciocínio. (XAVIER, 1983, p. 293) Nesse sentido, o filme de Epstein gera símbolos que atingem diretamente a emoção, se considerarmos a quantidade de sentidos que o filme carrega, como veremos nas próximas cenas analisadas. Bibliografia ANDREW, D. Concepts in Film Theory. Oxford: Oxford University Press, 1984. AUMONT, J. et al. A estética do filme. 3a.ed. Trad. Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1995. BACHELARD, G. A poética do espaço. Trad. Antônio da Costa Leal. Rio de Janeiro: Eldorado, s/d. CASETTI, F.; CHIO, F. Cómo analizar un film. Trad. Carlos Losilla. Barcelona: Paidós, 2010. DIMAS, A. Espaço e romance. São Paulo: Ática, 1994. EPSTEIN, J. La esencia del cine. Buenos Aires: Galatea Nueva Vision, s/d. GENETTE, G. Discurso da Narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins. Lisboa: Vega, [19-]. HUTCHEON, L. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel. Florianópolis : Editora da UFSC, 2011. LA CHUTE de la maison Usher. Direção: Jean Epstein. França: Films J. Epstein, 1928. 1 DVD (66 min), son., color. LEITE, S. U. Crítica de ouvido. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. MARTIN, M. A linguagem cinematográfica. Trad. Paulo Neves ; revisão técnica Sheila Schvartzman. São Paulo: Brasiliense, 2003. MASCARELLO, F. (Org.). História do cinema mundial. Campinas: Papirus, 2006. POE, E. A. Histórias extraordinárias. Trad. José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1958. ______. Ficção completa, Poesia & Ensaios. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1981. ______. 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A pesquisa atual, intitulada “Dos estados juntivos aos estados de alma: um estudo das paixões na lírica amorosa de Chico Buarque”, foi iniciada há um semestre, embora esteja diretamente relacionada à dissertação de mestrado “Um estudo do ethos feminino em Chico Buarque sob uma perspectiva semiótica”, concluída em abril de 2012, também sob orientação da ProfªDrª Maria de Lourdes Ortiz GandiniBaldan, que teve como precedente o trabalho de iniciação científica homônimo, com duração de dois anos, sobre o mesmo tema. Durante o desenvolvimento da pesquisa de mestrado, no entanto, uma questão dentro da poética buarquiana ficou como vazios a ser preenchido: averiguar como os estados passionais são construídos no texto e como são partilhados pelo enunciatário na semiose. Esta pesquisa de doutorado, dessa maneira, dá prosseguimento às investigações que já vinham sendo feitas em torno da obra de Chico Buarque, mas agora com enfoque nas paixões que transbordam do texto, ou seja, no compartilhamento do estado de alma que se estende do enunciador ao enunciatário. Interessa-nos, assim, investigar os componentes patêmicos investidos no discurso pelo enunciador a fim de garantir a adesão do enunciatário e a consequente eficácia persuasiva do enunciado. O modo de existência semiótico tem por base a articulação da categoria de junção ou, em outras palavras, “A existência semiótica é dada pela relação do sujeito com um objeto. Em outras palavras, um sujeito só tem existência na medida em que está em relação com um objeto.” (FIORIN, 2000, p. 178). Dessa forma, as categorias juntivas, embora sejam caracterizadas pela descontinuidade e não possam ser incluídas no nível tensivo, são a condição primeira para que o sujeito passional, que aqui tanto nos interessa, ganhe vida. Investigamos, assim, de que modo as configurações modais que precedem os estados juntivossobredeterminam-lhes e, por sua vez, de que modo os estados juntivos afetam o campo de presença e a maneira como os corpos sensíveis nele reagem. Tendo como ponto de partida os estados juntivos, depreenderemos os modelos de configuração 305 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa passional presentes no enunciado, bem como investigaremos em que medida os estados de alma do enunciador são partilhados pelo enunciatário e como a afetividade participa do processo de persuasão, inerente ao discurso. Se antes os estados juntivos eram examinados pelo viés da semiótica da ação, eles agora serão examinados a partir da semiótica das paixões e de seus desdobramentos tensivos. Valorizaremos aqui o componente patêmico do discurso: o estado de alma do sujeito passa a ser tão ou mais importante do que o estado de coisas. A obra lírico-amorosa de Chico Buarque é repleta de letras de canção nas quais os estados juntivos afetam intensamente o campo de presença e sobredeterminamos estados de alma do sujeito, por essa razão, selecionamos como córpus do trabalho letras de canção cuja carga emocional do discurso está hipertrofiada, possibilitando uma interessante investigação sobre as paixões que nele se inscrevem. Dentre as treze letras de canção que compõem nosso objeto de pesquisa, três delas – “Com açúcar, com afeto” (1966), “Atrás da porta” (1972), “O meu amor” (19771978)– já foram analisadas durante o trabalho de Mestrado, mas sob o viés de uma semiótica da ação. As demais letras de canção selecionadas para compor esse estudo são “Valsa Brasileira” (1987-1988), “Eu te amo” (1980), “Olhos nos olhos” (1976), “Futuros amantes” (1993), “Valsinha” (1970), “Trocando em miúdos” (1978), “Choro Bandido” (1985), “Palavra de mulher” (1985), “Anos dourados” (1986), “Todo o sentimento” (1987) e “A história de LilyBroun” (1982). Iniciamos nossas leituras pela Retórica(2006) de Aristóteles, que aborda questões relacionadas ao pathos e a persuasão. O que nos interessa aqui, mais do que o fazer-crer, é o fazer-sentir. De acordo com Aristóteles “obtém-se a persuasão nos ouvintes, quando o discurso leva-os a sentir uma paixão, porque os juízos que proferimos variam, consoante experimentamos aflição ou alegria, amizade ou ódio” (p. 159). A persuasão, dessa forma, não está relacionada apenas à ordem do inteligível, mas também do sensível, e é a essa esfera do sentido persuasivo que pretendemos dar prioridade em nossos estudos. O estudo do pathos já é examinado desde a Antiguidade e continua em voga nos estudos contemporâneos. A semiótica de linha francesa, principalmente em suas contribuições mais recentes de abordagem tensiva, oferece um instrumental teórico de grande valia para o estudo das disposições afetivas quando elas são verificadas dentro do contexto da enunciação. A semiótica examina as paixões como efeitos de sentido provocados no enunciatário e causados pela mobilização e combinação de uma série de 306 Descrição das pesquisas recursos (modais, fóricos, discursivos e expressivos) por parte do enunciador. Muitas leituras sobre o tema, por essa razão, já foram também iniciadas nesse primeiro semestre. O trabalho final será basicamente dividido em três partes: a primeira tem como pretensão iluminar as diferentes linhas teóricas que serão exploradas ao longo da pesquisa, demonstrar por que elas são necessárias e como é possível conciliá-las no processo de análise literária. A segunda parte será dedicada ao enfrentamento do texto: as letras de canção que compõem nosso córpus serão analisadas e a configuração passional do discurso, apreendida. Na terceira parte, compilaremos os resultados alcançados por meio da análise do córpus realizada na etapa anterior e verificaremos quais os recursos discursivos e, sobretudo, expressivos são manipulados pelo enunciador de modo a fazer com que o enunciatário partilhe seus estados de alma. Já nesse primeiro semestre, demos iníciotambém à análise do córpus, sempre buscando perseguir um processo analítico que apreende quatro fazer distintas: 1) Descrever a sintagmatização de modalidades do sujeito do enunciado que precede os estados de junção, bem como a natureza das combinações modais que contraiu, já que é o choque entre as modalidades que conduz à identidade passional do sujeito. 2) Identificar a dimensão fórica decorrente dos estados juntivos que sobredetermina as estruturas modais. Nesse sentido, é importante analisar os textos sob a perspectiva do campo de presença, observando a relação que os corpos sensíveis mantêm com seu ambiente, na qual pode predominar a euforia ou a disforia. 3) Verificar os procedimentos do nível discursivo que corroboram para a potencialização das paixões no discurso, em especial, examinar a figuratividade, tanto em seu nível mais superficial, quanto no mais profundo, que se estende aos procedimentos icônicos. 4) Examinar os efeitos expressivos do texto, pois as paixões que aparecem no plano de conteúdo do texto transbordam para o plano da expressão de modo a formar uma tessitura uniforme, em cuja plasticidade, expressão e conteúdo solidarizam-se mutuamente. 307 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa No decorrer do segundo semestre, pretendemos dar continuidade às análises, bem como à leitura da bibliografia selecionada, de modo a tornar os objetivos da pesquisa explicitados no início desta descrição palpáveis. Bibliografia ARISTÓTELES. Poética. Prefácio de Zélia de Almeida Cardoso e trad. Ediouro de Souza. São Paulo: Editora Globo S.A., 1992. ARISTÓTELES. Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006. ARISTÓTELES. Retórica das paixões. Trad. De Isis Borges B. da Fonseca. São Paulo : Martins Fontes, 2003. BARROS, D. L de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Humanitas, 2001. BARROS, D. L. P de. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo: Ática, 1999. BERTRAND, D. Caminhos da semiótica literária. Bauru: EDUSC, 2003. BRODSKY, J. Marca d’água. São Paulo: Cosacnaify, 2006. BRODSKY, J. Menos que um. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. BUARQUE H. C. Tantas Palavras. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. FIORIN, J. L. Semiótica e paixão. Revista Online de Literatura e Linguística, ano I, n. 2, dez. 2008c. Disponível em: <http://www.revistaeutomia.com.br/volumes/Ano1Volume2/especial-destaques/Jose-Luiz-Fiorin_Entrevista-a-Cristina-Sampaio.pdf>. Acesso em fev. 2012. 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Justamente por isso, e principalmente na década de 1960, a ditadura de António de Oliveira Salazar impunha ao teatro uma censura sem trégua aos textos e aos seus autores, às companhias teatrais e suas encenações e aos encenadores e artistas. O fato é que até a Revolução dos Cravos (1974) – que devolveu pacificamente a democracia ao país –, como bem apontou Luiz Francisco Rebello (1972), as peças teatrais em Portugal até conseguiam ocupar as páginas dos livros, mas quase nunca os palcos. Apesar de a peça Os imortais, primeira produção de Prista Monteiro, escrita em 1959, ter sido levada à cena apenas na década de 1980, o seu autor foi um dos poucos dramaturgos que viu algumas de suas obras encenadas ainda durante o regime de Salazar. Esta pesquisa de Doutorado tem como objetivo analisar cinco peças em um ato de Prista Monteiro, um dos mais representativos dramaturgos do teatro do absurdo em Portugal, considerando especialmente a história do teatro português e a sua relação com a censura salazarista e com os pressupostos do teatro do absurdo, apontados por Martin Esslin. Assim, elegemos, além da primeira produção dramatúrgica de Prista Monteiro, referida acima, outras quatro peças do autor: três delas poupadas pela censura e encenadas ainda durante a ditadura salazarista: A rabeca (1961), O meio da ponte (1966), O anfiteatro (1966)2 e ainda uma peça proibida duas vezes de subir à cena no 1 Depois de 1945, surgiram na cena portuguesa temas voltados para as questões sociais e as existenciais, bem como tentativas cênicas e dramatúrgicas que se aproximavam do experimentalismo – quer o do teatro épico brechtiano quer o do teatro do absurdo. 2 Antes mesmo de serem publicadas em livro no ano de 1970, estas três peças de Prista Monteiro foram encenadas na década de 1960: A rabeca – escrita em 1959, encenada pela primeira vez em 1961 pelo 310 Descrição das pesquisas mesmo período, A bengala (escrita em 1960), que se prestará a elemento de comparação no que se refere à relação da obra do dramaturgo com a censura. A partir da análise dessas peças, pretendemos desenvolver e mostrar uma reflexão crítica sobre a contribuição da obra de Prista Monteiro para as artes cênicas em Portugal e comprovar que as experimentações teatrais deste período não só estiveram ligadas a um desejo de resistência e objeção ao regime político vigente, mas também extremamente vinculadas às tentativas de renovação da cena portuguesa. Como parte do desenvolvimento da tese, realizamos recentemente o Estágio de Pesquisa em Portugal (BEPE-FAPESP), pelo período de seis meses (01/10/2012 a 31/03/2013), no Centro de Estudos de Teatro (CET) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), onde desenvolvemos investigação nas bases de dados da instituição e no Arquivo Osório Mateus (AOM), bem como em outras instituições portuguesas (arquivos, bibliotecas e museus). Durante o Estágio examinamos os processos de censura referentes às peças de Prista Monteiro; consultamos programas das peças encenadas do autor e textos críticos publicados pela imprensa da época sobre os espetáculos, sobre as companhias que os levaram à cena e sobre os seus respectivos encenadores; colhemos depoimentos de pessoas que direta ou indiretamente estiveram ligadas à obra do dramaturgo; reunimos informações a partir da consulta aos periódicos das décadas de 1950 a 1990, que trazem críticas ao teatro praticado em Portugal e às obras de outros dramaturgos do referido período, contributos importantes para a compreensão das discussões que se faziam a respeito do teatro português naquela altura. No que se refere à fundamentação teórica e instrumentos para a análise das peças, contamos com uma bibliografia fundamental sobre o absurdo a partir do ensaio de Albert Camus, O mito de Sísifo, e o estudo de Martin Esslin, autor que cunhou o termo para a arte dramática no seu famoso livro O teatro do absurdo. Depois de Esslin, outros estudiosos contribuíram para a discussão acerca desse gênero de teatro, como Bernard Dort, por exemplo, e, especificamente no âmbito do teatro português, o trabalho da pesquisadora italiana Sebastiana Fadda, que historiou a produção teatral lusa vinculada ao teatro do absurdo. No momento atual da pesquisa, estamos finalizando o tratamento dos dados colhidos durante o estágio em Portugal e realizando parte das análises das referidas Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra (CITAC), com direção de Luís de Lima, e depois, em 1966, levada à cena juntamente com O meio da ponte e O anfiteatro, pelo Teatro-Estúdio de Lisboa (TEL), com direção de Luzia Maria Martins. 311 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa peças de Prista Monteiro. Concluída a organização desse material e a elaboração do seu dossiê, teremos como resultado o texto para o Exame Geral de Qualificação. Apresentamos abaixo o plano de trabalho e o cronograma das próximas etapas: 2013 - SEGUNDO SEMESTRE Estudo individual Estudo e análise das personagens das peças de Prista Monteiro, pois temos como pressuposto que o dramaturgo português, numa perspectiva absurdista, repete determinadas características na construção das dramatis personae, como se algumas fossem evoluindo de um posicionamento dependente para uma autonomia (caso das personagens femininas) e outras fossem, por vezes, regredindo (caso das personagens masculinas), quase todas elas implicadas em relações de poder. Participação em Congressos e demais eventos acadêmicos Até o momento, duas propostas de comunicação foram aceitas nos seguintes congressos: - “O teatro do absurdo e a censura salazarista: A bengala, de Prista Monteiro” – Congresso Internacional Censura ao Cinema e ao Teatro – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - Universidade Nova de Lisboa, a ser realizado nos dias 13, 14 e 15 de novembro de 2013; - “Teatro do absurdo e Teatro épico: renovação, hibridismo e divergência na dramaturgia portuguesa dos anos de 1960” – Colóquio Internacional “Teatro: Estética e Poder”, organizado pelo Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a ser realizado nos dias 21, 22 e 23 de novembro de 2013. Redação Análise das peças e elaboração do relatório para o Exame Geral de Qualificação; 2014 312 Descrição das pesquisas - Exame Geral de Qualificação a realizar-se até 30/04/2014; - Redação do texto definitivo da tese; - Participação em congressos e eventos acadêmicos; - Publicação de artigos. 2015 - Defesa da tese (até 30 de abril). Bibliografia AZEVEDO, C. A censura de Salazar e Marcelo Caetano. Lisboa: Editorial Caminho, 1990. BARATA, José Oliveira. História do teatro português. Lisboa: Universidade Aberta, 1991. ______. Máscaras da utopia: história do teatro universitário em Portugal 1938/74. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009. CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro / São Paulo: Record, 2004. COSTA, Maria Cristina Castilho. Teatro e censura: Vargas e Salazar. São Paulo: Edusp /FAPESP, 2010. CRUZ, Duarte Ivo. História do teatro português. Lisboa: Editorial Verbo, 2001. DORT, Bernard. La représentation emancipée. 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Adágio, Évora, n. 2, p. 10-16, 1991. 315 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa A POESIA RETÓRICA DE OVÍDIO: RELAÇÕES ENTRE ARGUMENTAÇÃO E CONOTAÇÃO EM AMORES (I, 1, 3; II, 4; III, 12) TRISTIA (I, 11; III, 14); EPISTULAE EX PONTO (I, 3; III, 8) E HEROIDAE (XV) Marcus Vinícius Benites Doutorando – Bolsista CAPES Prof. Dr. João Batista Toledo Prado (Or.) O córpus selecionado para a pesquisa – Amores (I, 1, 3; II, 4; III, 12); Tristia (I, 11; III, 14); Epistulae ex Ponto (I, 3; III, 8) e Heroidae (XV) – abrange produções de fases distintas de Ovídio. O motivo para tal seleção dá-se pela intenção máxima do estudo proposto, que é a de descortinar um estilo ovidiano que perpasse sua obra e, a partir dessa definição, apresentar análises pertinentes a respeito de sua poesia. O córpus proposto, por representar fases tão diferentes da produção poética do poeta latino, com partes de sua obra jovem e de temática amorosa, como os poemas de Amores, e também partes de sua obra madura e dita do exílio, como os poemas dos Tristes, por exemplo, dá, intenta-se, embora se admitindo que não se possa alcançar a dimensão completa da poesia de Ovídio por meio de seleção de textos que, mesmo passível de abordagens factíveis dentro do tempo do curso de Doutorado, admite-se ainda seja restrita, a possibilidade de uma percepção daquilo que permanece em Ovídio, independente da época – fase da vida – ou suposta motivação dos escritos. De acordo com o projeto inicial de pesquisa e com os desdobramentos oriundos dos estudos feitos até aqui, foram traduzidos e analisados os poemas propostos para o trabalho. Durante o processo tradutório procurou-se identificar e estabelecer relações plausíveis de interpretação conotada a partir, sobretudo, de recorrências fonéticas. Tais recorrências, generalizadas sob a classificação de figuras de linguagem, mas especificadas como epístrofes, aliterações, assonâncias, paranomásias ou anáforas, são abundantemente presentes no texto ovidiano – motivo de um juízo crítico corrente na tradição literária, sobretudo aquela dos manuais e tratados de literatura latina, como atestado na Historia de la Literatura Latina, de Ettore Bignone (Buenos Aires: Losada, 1952), para quem o poeta é visto como exagerado – e contribuem, de modo metafórico, para que ligações entre partes do texto, no que diz respeito ao plano da expressão, fiquem nítidas e estabeleçam um fazer poético bastante peculiar. 316 Descrição das pesquisas Assim, pelo princípio jakobsoniano do paralelismo, mas partindo-se da premissa saussureana de arbitrariedade do signo linguístico, realizaram-se, nos textos acima citados, leituras em que a noção de motivação entre plano da expressão e plano do conteúdo, ou seja, a construção do semi-símbolo ovidiano (o signo linguístico em estado artístico, com forjada noção de não arbitrariedade) fosse investigada, de modo a poder ser vista como possibilidade de conotação, o que aprofunda a leitura de primeiro nível e mais superficial dos textos, aquela denotada e que tenda a uma mais imediata decodificação – e que pode ser feita a partir da leitura de uma simples tradução, por exemplo. Semelhante abordagem também foi realizada, em nível de Mestrado, na pesquisa que resultou na dissertação “Aracne e Palas: uma Trama de Sentido – estudo semiótico de Ovídio, Metamorfoses (Liber VI, 01-145)”, defendida em 2008, na FCLAr – UNESP, pelo presente doutorando e também sob a orientação do Prof. Dr. João Batista Toledo Prado. Sendo assim, a proposta de tradução do texto latino e análise de recursos expressivos que possibilitem conotação já foi desenvolvida em trabalho anterior de pós-graduação, tendo continuidade no estudo que ora se realiza. Na leitura de Amores II, IV, desenvolvida e apresentada em artigo (A Retórica Ovidiana: procedimentos conotativos (Amores, II, IV). In: Anais da XXV Semana de Estudos Clássicos/ V FAEC: Dioniso – Travessias e Transmutações – 25 anos!. Araraquara: Laboratório Editorial da FCL-UNESP, 2011.), as recorrências fonéticas foram analisadas como especialmente selecionadas e organizadas por meio de escolhas paradigmáticas e de relações sintagmáticas por elas contraídas, de modo a, expressivamente, reproduzirem também naquele nível a significação mais imediata da elegia, depreendida denotativamente mesmo através do contato com uma tradução não poética. No caso do estudo específico dessa elegia, verificou-se como, concomitante ao fato de todas as puellae agradarem ao eu-elegíaco, podendo ser entendidas como estando em um mesmo nível – dentro desse quesito, o de agradabilidade ao poeta – tal afirmação, reiterada no texto, vir também expressa por meio de versos bastante semelhantes, graças às recorrências fonéticas, de onde se pôde inferir que o nivelamento que se defendia como tese principal do poema tinha a argumentação reforçada pela própria expressão poética – o que se contava, de maneira sintética, no plano do conteúdo, era também contado no plano da expressão, requerendo, no entanto, uma leitura mais analítica. Como hipótese inicial, a pesquisa não se propôs, pois, somente verificar recorrências fônicas no texto ovidiano, mas, dentro do córpus selecionado, também 317 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa conferir em que contextos e de que modo tais expedientes fonéticos, que dão arcabouço a leituras em um nível conotado, reforçam argumentativamente a tese/ideia central de cada passagem dos poemas em que ocorrem ou, ao contrário, criam um contraste entre os dois planos, configurando certa ironia, em que o plano do conteúdo teria a mensagem mais imediata negada, de modo até satírico, pela expressividade. Como exemplo disto podem-se citar as justificativas feitas pelo eu-elegíaco para a fingida má poesia alegada, presentes tanto na elegia I, 11 dos Tristes, como na epístola XV das Heroides, cuja expressão contradiz as afirmações, uma vez que os textos são compostos, expressivamente, da mesma forma que qualquer outro poema de Ovídio e com a mesma qualidade poética, o que se buscou evidenciar nas análises feitas. Ovídio foi comumente classificado, pela crítica mais tradicional, como um poeta excessivamente retórico, como citam, por exemplo, os escritos de Giulio Davide Leoni, em A Literatura de Roma (8ª ed. São Paulo: Livraria Nobel, 1967). De fato, seus textos, principalmente os elegíacos, apresentam uma defesa constante de uma causa – que pode ser tanto a defesa da inocência por “amar tanto”, como a por não merecer o “exílio”. Dos dois defeitos apontados no poeta latino por essa crítica mais tradicional, a dos tratados e manuais de literatura latina, o excesso retórico e o exagero expressivo, buscou-se, na pesquisa, tecer uma relação em que este, reforçando ou negando aquele, desempenhe uma função indispensável à construção de sentidos e só enriqueça a conotação dos textos, não havendo, pois, nada que seja desnecessário, mas, ao contrário, somente útil à construção de um estilo deflagrador, até mesmo, de uma proposta poética em grande medida pessoal. Se no trabalho realizado durante o curso de Mestrado tal marca do eu-lírico ficou aparente, não se pôde, no entanto, considerá-la como característica ovidiana de fato, uma vez que restrita a um trecho de uma produção específica – os 145 versos que dão conta do mito da transformação de Aracne, dentro das Metamorfoses – ao contrário do que se buscou definir a partir da tradução e análise do córpus da pesquisa atual, por ser mais abrangente. O que diferencia, no entanto, o atual projeto daquele levado a cabo no Mestrado, e que justificou a busca por um estilo ovidiano, é não somente a proposta de uma verificação de recursos fonéticos e interpretações de conotação a partir deles, mas, também, a possibilidade de se revisar, dentro dos limites naturais restritos a um trabalho desta envergadura, o próprio eu-lírico ovidiano. Uma vez que se verificou que a escrita de Ovídio apresenta singularidades que são recorrentes tanto no jovem poeta amoroso, como no maduro poeta exilado, passa a ser plausível que, mesmo que não se questione a 318 Descrição das pesquisas veracidade do exílio enquanto dado biográfico – o que seria tão temerário, por ausência de quaisquer provas, como afirmá-la de modo inquestionável – ao menos propor uma análise que não esteja condicionada a esse biografismo, geralmente bastante redutor. Não se trata de provar que o exílio tenha ou não existido, mas de concebê-lo, sobretudo, como fato literário e relacioná-lo à própria poesia anterior de Ovídio. Assim, tomou-se como evidência o texto poético do autor latino, em particular as elegias e epístolas – escolhidas, justamente, por terem sido escritas em dísticos elegíacos, de onde se buscou definir os limites da pesquisa por esse gênero – fixando-o dentro da tradição literária de Roma e do gênero específico citado. Dentro da literatura, há aquilo que é invariável, ou seja, que pertence ao gênero, estabelecido pelos autores predecessores e base natural para que qualquer nova produção seja proposta, mas também o que é variável, ou seja, que diz respeito ao autor e a suas características composicionais particulares, sendo a contribuição que o novo poeta dá ao próprio gênero, modificando-o, também, a partir de sua individualidade. Desta forma, há que se atentar para o diálogo sempre existente na relação inquestionável entre textos dentro de uma tradição literária. Os textos são dialógicos em relação a seus contextos, compostos pela gama de escritos que compõem um cânone, que circulam e que estabelecem a produção e a recepção textual de uma determinada sociedade em uma época específica. Se isso sobrevém a todo e qualquer escritor, de todo e qualquer período, Ovídio, particularmente, dialoga com o próprio gênero elegíaco, com os textos elegíacos dos outros poetas, também com seus próprios textos elegíacos, imitando e desenvolvendo o próprio gênero, a partir de qualidades estéticas comuns – aquilo que é invariável e inerente a determinado tipo de composição - ou singulares – aquilo que é variável e correspondente a uma genialidade individual. No caso desse poeta, vê-se a evolução – não tomada aqui como melhora, mas como variação – da própria elegia, mas não só com relação a outros poetas modelares, embora se admitam as relações naturalmente óbvias que se podem verificar entre Ovídio, Tibulo, Propércio e mesmo Catulo, mas sim com relação a sua própria produção poética. O eu-lírico ovidiano traz à elegia o tema do padecimento do exílio, em resposta ao fato de o tema do padecimento amoroso já estar, dentro de uma análise pertinente, saturado, inclusive por advento dos próprios textos da produção inicial de Ovídio – sem, necessariamente, que se tenha alterado profundamente um estilo peculiar de composição poética. 319 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Se a tensão permanente entre aquilo que é variável e aquilo que é invariável dentro da natural evolução da literatura, mais recentemente apresentada por Harold Bloom (O Cânone Ocidental: os livros e a escola do tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010), é conceito que serve à literatura de todos os tempos, ele não difere, senão em intensidade – no caso menor – da própria noção de emulação, base para a constituição mesma de toda a literatura latina – o variável e o invariável como uma nova forma de conceber o engenho e a arte –, a partir do que se possa admitir confluência entre o próprio fazer poético dos romanos e a concepção analítica de um Ovídio que, ao mesmo tempo em que se afirme de modo bastante singular, encontre-se situado dentro de uma literatura determinada e dialogue constantemente com gêneros e tradições. Propôs-se, portanto, um estudo em que a evolução do gênero elegíaco tenha sido investigada, através das propostas de desenvolvimento presentes na própria escrita ovidiana, principalmente no que concerne a uma mudança temática, a assunção do exílio como tema apropriado ao desenvolvimento lamentoso, mas, também, a uma inovação formal, verificada no hibridismo epistolar-elegíaco das Heroides e das Pônticas. Com as escolhas ovidianas sendo justificadas pelo próprio contexto literário e, mais particularmente, pela genialidade inventiva do poeta, entendeu-se a obra do exílio, mesmo porque as produções dessa fase mantêm certo estilo de escrita presente em toda a produção poética do autor – aquele que se buscou deflagrar – ainda bastante próxima ao das outras obras elegíacas de Ovídio, como um desdobramento possível ao fazer literário do poeta latino. Com isso, mesmo que não se tenha proposto uma investigação da existência ou não do exílio como fato biográfico – a que se debruçam alguns estudos – propôs-se uma análise que não tenha tido o biografismo como base, o que, ao ver desta pesquisa, tende a restringir bastante os estudos. Bibliografia ALMENDRA, Maria Ana; FIGUEIREDO, José Nunes. Compêndio de Gramática Latina. Porto: Porto Editora, 2003. ANA DE BEM, Lucy. Introdução. In: Ovídio. Primeiro Livro dos Amores. São Paulo: Hedra, 2010, p.09-26. ARISTÓTELES ; HORÁCIO ; LONGINO. A Poética Clássica. 12ª ed. São Paulo: Cultrix, 2005. ASSIS SILVA, Ignacio. Figurativização e Metamorfose: o mito de Narciso. São Paulo: Editora da UNESP, 1995. 320 Descrição das pesquisas BAKHTINE, Mikhail. Le Marxisme et la Philosophie du Langage : essai d’application de la méthode sociologique en linguistique. Paris : Les Éditions de Minuit, 2009. BIGNONE, Ettore. Historia de la Literatura Latina. Buenos Aires: Losada, 1952. BLOOM, Harold. 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Tanto que se pode considerar a linguagem um alicerce destinado a receber as estruturas às vezes mais complexas, porém do mesmo tipo que as suas, que correspondem à cultura encarada sob diferentes aspectos. (LEVI-STRAUSS, 2008:86) Sabe-se que para o antropólogo essa relação se constituía principalmente entre os sistemas de oposições e correlações fonológicas e aqueles destinados à formação da cultura, de modo que, se diferentes culturas possuíssem características diversas, mas princípios organizacionais comuns, elas aproximar-se-iam de alguma forma. Dessas oposições e correlações emerge o caráter semântico que dá vida tanto à língua como à cultura. É na significação que se instaura o valor, tanto do signo linguístico, quanto das práticas cotidianas estabelecidas pela cultura. Portanto, para que a intelecção da língua se dê de forma plena, é imprescindível conhecer a cultura subsistente. Sendo a cultura um processo a que apavora o esquecimento, já que é pautado na memória coletiva de um grupo presente nos mais diversos textos culturais, em que coexistem mecanismos de seleção e rejeição de informações (LOTMAN apud FERREIRA 1994/95:117), pode-se inferir que o léxico que lhes dá suporte, de alguma forma, encerra as práticas culturais, na medida em que sua significação é dada pela 323 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa própria experiência cultural empírica, ou seja, os signos que circulam numa comunidade linguística em uma dada sincronia são investidos do valor a eles atribuído culturalmente. A construção de um texto a partir da linguagem específica de um setor qualquer da realidade implica codificar as informações, organizá-las de uma maneira e não de outra, e, por fim, introduzi-las na memória coletiva de um grupo. Lotman (apud FERREIRA 1994/95:117) afirma que“somente aquilo que foi traduzido num sistema de signos pode vir a ser patrimônio da memória”. No âmbito deste projeto, o objeto de atenção é a língua latina, apreendida na elaboração de textos por aqueles que a tinham como língua materna, a saber, os romanos copartícipes do universo cultural vigente à sua época. Constata-se, porém, que existem tanto nas informações, quanto na sua codificação, lacunas referentes ao significado, que instaurava o valor das práticas cotidianas daquela coletividade, e, também, o dos signos linguísticos. Dessa forma, para ler, ou ainda, para traduzir um texto latino – já que o presente estatuto do latim obriga a que ler seja também traduzir – não é necessário apenas que se domine a gramática da língua, mas ainda que se tenha um conhecimento amplo de dados de cultura gerais, concernentes à história, à organização política, à filosofia, à mitologia, e etc., com a dificuldade de que, muitas vezes, esses dados são bastante específicos e não podem ser encontrados em nenhuma das obras modernas sobre tais temas. Essa defasagem espaço-temporal entre os mundos antigo e moderno torna íngreme, portanto, o caminho que leva à compreensão dos signos presentes na literatura latina, fato que empece não somente a leitura/tradução em si, mas também a compreensão dos efeitos estéticos pretendidos pelo autor, tais como as escolhas léxicas e a forma como esse léxico é organizado de modo a causar tais efeitos; as relações semânticas estabelecidas com base em características próprias do cotidiano; o valor simbólico de determinados lexemas abarcando significados diversos daqueles conhecidos pelos leitores modernos. Para que se dê, então, a compreensão dessa cultura da forma como os próprios romanos a entendiam e organizavam – projeto exequível somente até certo ponto – propõe-se a leitura (sc. tradução)de textos latinos, tendo como fonte outros textos latinos. 324 Descrição das pesquisas O tema eleito no âmbito desta pesquisa é a gastronomia romana, em seus aspectos mais cotidianos, mas também na sofisticação dos banquetes, que se tornaram célebres com o advento do Império. Por ser esse um universo referencial fortemente enraizado na cultura, foi ele o escolhido para delimitar o tema da investigação no córpus1. Segundo Montanari (2008: 71) “a cozinha é o símbolo da civilização e da cultura” e também um dos fatores mais marcantes entre aqueles que diferenciam o homem dos outros animais. O ato de comer cozido, assado, e não mais cru, alia-se a um quadro de intensas mudanças no modo de vida dos povos, que vão desde o estabelecimento de um espaço fixo para se viver, com a prática da agricultura e da caça, até o surgimento das relações comerciais e de conquista causadoras de múltiplas influências (MONTANARI 2008:69). O ambiente urbano, palco das relações políticas e comerciais que caracterizavam as antigas civilizações, foi, por excelência, o lugar das influências linguísticas e culturais que se deram no período de apogeu do Império Romano. Com a comida não foi diferente. Na urbs Roma, centro político e institucional de todo o território conquistado, foi observada uma mudança na alimentação, resultante das muitas influências estrangeiras: No apogeu, a culinária romana foi a primeira cozinha internacional na história da Europa Ocidental e era praticada, com variações regionais, de um lado a outro do Império, das areias da África do norte à fortaleza das ilhas bretãs. O que começou como culinária rústica e vegetariana no tempo da república tornou-se, sob o Império, cada vez mais sofisticado, em resposta primeiro às influências etruscas e depois às gregas. Estas últimas filtraram-se através da Sicília e do sul da Itália. Depois, através de Cartago, veio o impacto do oriente. (STRONG, 2004: 26) Essas muitas trocas culturais fizeram de uma alimentação, até então muito frugal, uma prática muito mais sofisticada e fundamentada na ideia do artifício. Quanto mais se mudavam o aspecto e o gosto dos alimentos, de mais prestígio eles gozavam. A 1 Essa grafia está de acordo com a postura preconizada por PRADO, J.B.T. Para não perder o latim. Análise total. Observatório da Imprensa on-line(11/05/2004): http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=276JDB005, acesso em 12/10/09; e também: PRADO (2008). Por uma normalização ortográfica de palavras latinas incorporadas ao português. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Patrimônio cultural e identidade, no 35, p. 37-48, 2008. 325 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa distância do natural, nesse caso, indicava o quão civilizado se era. Sobre isso, diz Montanari: A ideia do artifício, que transforma a natureza, preside por séculos a atividade do cozinheiro. Formas, cores, consistências são modificadas, plasmadas, “criadas” com gestos e técnicas que subentendem uma distância programática da “naturalidade”. (MONTANARI, 2008:57) Os gestos e técnicas aplicados nessa arte da cozinha estão intimamente ligados à memória coletiva de um dado momento histórico-cultural, que conta com significados e práticas particulares e muito diversas das contemporâneas. Portanto, considerando que a “língua como sistema acompanha de perto a evolução da sociedade e reflete de certo modo os padrões de comportamento, que variam em função do tempo e do espaço” (MONTEIRO, 2000:16), um trabalho que relaciona léxico e cultura é de interesse não apenas para os estudiosos da área específica dos estudos clássicos da Roma antiga, mas também para aqueles que mergulham no universo clássico, buscando uma visão mais crítica, tanto dessas antigas sociedades, como de sua própria. Partindo do material coletado durante o trabalho de Iniciação científica, intitulado “Confluências entre o De Re Coquinaria, de Apício e a Naturalis Historia, de Plínio”, estruturou-se um “Glossário de Culinária latina”, em que foram traduzidos trechos da Naturalis Historia que pudessem, nos mais variados contextos, esclarecer os significados culturais e usos cotidianos de termos retirados de algumas das receitas do Livro I do De Re Coquinaria. O intuito deste Glossário é ajudar a desvendar o significado de termos que têm sua significação inserida em uma cultura distante e que, além disso, são parte de um conjunto de lexemas próprios do ambiente semântico pertencente às práticas gastronômicas da Antiguidade. Já por volta do século V a.C., Artemidoro, filósofo grego, teria escrito um glossário com essa finalidade, segundoSoares (2010:46) “a obra que lhe vem atribuída, um Glossário de Culinária, atesta que ao nível do saber culinário se aplicava um método próprio do logos científico em geral, a definição de terminologia própria”. Com um “vocabulário culinário próprio de uma cultura há muito desaparecida” (PRADO, 2007:3), Apício também se utiliza, em suas receitas, de toda a sorte de ingredientes, condimentos e modos de preparo, próprios da cultura gastronômica 326 Descrição das pesquisas romana e que, portanto, em muitos casos não encontram equivalentes modernos em língua portuguesa, como se pode observar na tradução das receitas apresentada a seguir: V. VINVM EX ATRO CANDIDVM FACIES: Lomentumexfabafactumvelovorumtriumalborem in lagonammittisetdiutissime agitas. Alia die eritcandidum. Et cineres vitisalbae idem faciunt. 5. Faça vinho branco a partir do tinto: Coloque sabão feito de farinha de fava ou a clara de três ovos numa moringa e agite por um longo tempo. No outro dia ele estará branco. As cinzas da videira branca produzem o mesmo efeito. VI. DE LIQVAMINE EMENDANDO: Liquamen si odorem malumfecerit, vas inane inversum fumiga lauro et cupresso, et in hoc liquamen infunde ante ventilatum. Si salsumfuerit, mellissextariummittiset moves, picas, et emendasti. Sedetmustumrecens idem praestat. 6. Como purificar o linquâmine: Se o liquâmine adquirir odor forte, defume uma vasilha vazia, de ponta-cabeça, com louro e cipreste, e derrame nela o liqüâmine previamente arejado. Se estiver muito salgado, coloque meio litro2 de mel, mexa, tampe e já o recuperou. Mas o mosto3 fresco se presta ao mesmo uso. (De Re Coquinaria, Liber I: Epimele, Trad. e notas João Batista Toledo Prado4) É fácil observar que muitos termos já traduzidos continuam trazendo significados estranhos ao nosso universo sêmico-cultural, o que se justifica pela distância espaço-temporal entre o momento em que circulavam e o momento presente, como já se assinalou aqui. Na receita de número 5, por exemplo, tem-se a palavra fava, uma planta nativa da região do mar Cáspio e do Norte da África, cultivada desde a antiguidade como fertilizante do solo; além de figurar no ornamento das casas, apesar de ser comestível (PRADO, 2004: 74). Na receita seguinte, a de número 6, temos a palavra linquâmine, por exemplo, que não conta nem com um vocábulo nem com um conceito em língua portuguesa que a definam precisamente, e que, portanto necessita de explanações para tanto. Os sentidos 2 Sextarius: medida volumétrica equivalente a 1/6 côngio ou duas heminas ou 5,4 decilitros, o que dá, aproximadamente, meio litro. 3 Mustum: trata-se do vinho novo, forma doce e ainda não complemente fermentada da bebida. Aqui, provavelmente, trate-se de sua forma ainda não fermentada, porque o autor acrescentou o qualificativo recens, “fresco”. 4 PRADO, 2004:74. 327 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa latinos para o termo indicam uma espécie de mistura líquida, um molho, ou mesmo gordura derretida à base de miúdos de pescado (PRADO, 2004: 75). Ainda na receita 6, aparece a palavra mel, que apesar de ser comum ao nosso léxico, conta com valores culturais e significados sumplementares e diversos daqueles atribuídos por nossa cultura. De posse dessas reflexões, este trabalho elegeu como córpus cenas de banquetes presentes na literatura latina, como por exemplo, as Sátiras II, 4 e II, 8 de Horácio, a famosa ceia de Trimalquião, de Petrônio, entre outras e procurará analisar, com base no Glossário de Culinária latina já referido, a significação cultural de termos recorrentes nessas cenas e, com base nessa análise, investigar de que maneira esses termos contribuem para a expressão poética dos textos em que ocorrem. Ainda que o trabalho dialogue com áreas afins como história, antropologia, arqueologia, entre outras, cabe justificar que sua finalidade está essencialmente situada no campo das Letras, na medida em que propõe restaurar as significações presentes numa dada sincronia e, mais ainda, sob crivo estético. Ao esmerilhar os signos presentes nas cenas literárias de banquetes que constituem o córpus e buscara reconstituição de seus significados por meio de comparações com as obras anteriormente mencionadas, de modo que se possa chegar ao contexto em queeles se ressignifiquem enquanto matéria-prima do fazer literário, a pesquisa tem em seu cerne a ânsia pela pluralidade semântica que só a práxis proporciona. Bibliografia FERREIRA, J. P. Cultura é memória. Revista USP, São Paulo (24): dezembro/fevereiro 1994/95, p. 114-120. LEVI-STRAUSS, C. Antropologia Estrutural. Trad. Beatriz Perrone Moisés. São Paulo: Cosac Naify, 2008. LOTMAN, I. M. Sobre o problema da tipologia da cultura. In: SCHNAIDERMAN, B. (org.) SemióticaRussa. São Paulo: Perspectiva, 1979. MONTANARI, M. Comida como cultura. Trad. Letícia Martins de Andrade. São Paulo: Senac, 2008. MONTEIRO, J. L. Para compreender Labov. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. PRADO, J.B.T. 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Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2004. 329 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa RAZÃO POÉTICA E MITO EM “LA TUMBA DE ANTÍGONA” DE MARÍA ZAMBRANO Mariana Funes Mestranda – Bolsista CAPES Profa. Dra. María Dolores Aybar-Ramírez (Or.) O século XX é marcado pelos grandes conflitos bélicos – as duas grandes guerras entremeadas pelos conflitos fratricidas instaurados pelos movimentos totalitaristas. Este clima de grande confusão, sobretudo no que tange a incoerência que advém de tais conflitos, é bastante profícuo para a produção literária e filosófica que encontravam inspiração – ou melhor, que buscavam o entendimento por meio da reflexão – na grande desorganização social que se formara. María Zambrano (1904-1991) tem sua produção indelevelmente marcada por tais conflitos. Inicia muito jovem na escrita, todavia seus escritos mais proeminentes têm sua gênese em seu exílio, que se inicia no ano de 1939, quando os republicanos são vencidos na Guerra Civil Espanhola, iniciando um longo período ditatorial. Quanto à escrita de Zambrano, a maior parte das obras da pensadora são, segundo Trueba Mira (2012, p. 13) “una reordenación o recopilación de materiales anteriores dispersos”. Entretanto, La tumba de Antígona (1967) é uma das poucas obras que foi concebida integralmente, que surge depois de uma longa reflexão – que inclui a escrita de diversos textos, como Delírio de Antígona (1948), El personaje autor: Antígna, Antígona o de la guerra civil, e de um diário, Cuadernos de Antígona, sobre o tema. Esta prática evidencia o forma pela qual se constrói o pensamento zambaniano, “todo se da inscrito en un movimiento circular, en círculos que se suceden cada vez más abiertos hasta que se llega allí dónde ya no hay más que horizonte” (ZAMBRANO, 1986, p. 13). As obras de Zambrano perpassam escritos políticos, essencialmente de cunho filosófico, e escritos poéticos com o mesmo intento. Todavia o centro de seu pensamento é uma filosofia que não se desvencilhe da poesia, a, por ela nomeada, razão poética. Assim, estabelece não propriamente uma ruptura, mas uma releitura de Platão, contra a condenação do filófoso à poesia. Releitura, pois o pensamento zambraniano é muito afinado ao platônico. Por este motivo a pensadora busca inspiração nos clássicos, sobretudo nas tragédias gregas para compor suas obras. Contudo, não se trata de simples 330 Descrição das pesquisas inspiração, senão se uma reflexão muito bem elaborada, transposta, em certa medida, à contemporaneidade da autora. Zambrano considera a Antígona de Sófocles a mais próxima à filosofia, sendo uma obra concretamente poética “pero no ajena al conocimiento” (TRUEBA MIRA, 2012, p. 20). Logo, a razão poética que figura no pensamento zambraniano é o “camino hacia el (re)conocimiento de aquella parte de lo real enterrada bajo el peso de los <<conceptos>> con que ha operado la filosofía desde Platón” (2012, p. 20). Para a pensadora é necessário vislumbrar o passado para poder seguir adiante, assim não há propriamente uma construção do futuro, senão um resgate do passado, desta forma, igual a grande parte dos pensadores contemporâneos à Zambrano, constatamos que “lo que ocupa a la filosofía contemporánea es, pues, un ejercício de revisión de un concepto de <<razón>> entronizado desde la Ilustración, que progresivamente ha ido mostrando su otra cara: ya no la liberadora de las luces sino la condenatoria de la sombras, y en el siglo XX, la de la oscuridad completa” (TRUEBA MIRA, 2012, p. 21) A Antígona de Zambrano se constrói por meio da razão poética, com o uso da palavra libertadora, a palavra que pretende a criação do real – pelas vias da poesia e do conhecimento – através da qual transcorre o protagonismo da personagem. A Antígona que a autora resgata é uma vítima inocente que se “vea <<trascendida>> gracias a la conciencia” (TRUEBA MIRA, 2012, p. 29). A Antígona de Sófocles se suicida em sua tumba. A Antígona de Zambrano, por sua vez, tem um tempo para poder morrer de outra forma “consciente de su sacrificio, el cual adquiere, así, otra dimensión más allá de la propiamente trágica” (2012, p. 29). A construção do texto evidencia esta qualidade criadora. Se faz por meio, essencialmente, do monólogo, sendo que os diálogos presentes podem, por sua vez, serem tidos como delírios, posto que tais personagens são ou sonho – na “cena” Sueño de la hermana –, ou sombra – em La sombra de la madre –, ou mortos – como em Los hermanos –, enfim, são reflexos da vida não vivida de Antígona, que se encontra na eminência de um segundo e verdadeiro nascimento, pautado pela plena consciência de si. Este segundo nascimento é fundamental ao conceito de razão poética, e em La tumba de Antígona aparece sua síntese – remetendo a Vita Nuova de Dante –, na última “cena”, na qual o Desconocido Segundo diz: “Todo ha pasado ya para ella. ¿No la ves? Ha tocado esa parte de la vida 331 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa de donde, aunque todavía se respire, no se puede ya volver. Mas nunca se irá, nunca se os irá del todo” (ZAMBRANO, 2012, p. 235). Para Mielietinski (1987, p. 117), tal “complexo da morte temporária e da renovação (do novo nascimento) […] adquiriu o sentido como que universalmente humano, extra-histórico, psicológico, e deste modo deixou definitivamente de ser um “resquício””. O estudo sob os apectos mitológicos na obra de Zambrano se afirmam posto que, segundo Mielietinski (1987, p. 17) a mitologia propõe um autêntico universo em si mesma “um modo de vida e de um caos pleno de maravilhas na divina criação de imagens, caos esse que em si mesmo já é poesia, e ao mesmo tempo é para si mesmo matéria e elemento de poesia”, assim, a mitologia se configura em um universo próprio, por meio do qual nascem as obras de arte. Ademais, segundo este estudioso “só nos limites de semelhante universo são possíveis imagens estáveis e definidas, só e unicamente através das quais os conceitos eternos podem ganhar expressão” (p. 17). Constata-se que no século XX iniciou-se o processo de “remitologização”, que abrangeu variados aspectos da cultura européia. Zambrano sustenta tal processo em sua proposta literária, elevando, de acordo com Mielietinski o mito “como um princípio eternamente vivo, que desempenha função prática também na sociedade atual” (p. 28). É determinante que consideremos o modo pelo qual os mitos são revistos, posto que “os elementos do pensamento mitológico são efetivamente concreto e estão relacionados com as sensações imediatas, com as propriedades sensoriais dos objetos, porém podem atuar como mediadores entre as imagens e os conceitos e na qualidade de signos pode superar a oposição entre o sensorial e o especulativo, atuar como operadores da reorganização” (MIELIETINSKI, 1987, p. 93). Quanto ao gênero literário que circuncreve a obra, Trueba Mira (2012, p. 28) considera a Ana Bundgard, que classifica La tumba de Antígona como “relato dialogado, en prosa”, referindo-se à obra como “drama de ideas con predominio de la discursividad sobre la acción”, enquanto que María Fernanda Santiago classifica a obra como “extenso poema en prosa”. Posto isso, notamos que as categorias concernentes ao teatro não nos serão suficientes. Assim, a obra será estudada sob o viés da prosa poética, estudados por Todorov. Ao consoderarmos Tadié (s.d., n.p.) percebemos que na prosa poética “há um conflito constante entre a função referencial, com seu papel de evocação e de representação, e a função poética, que chama a atenção para a própria forma da mensagem”. É justamente esta a intenção de Zambrano, chamar a atenção para a própria 332 Descrição das pesquisas mensagem, construir o significado pela reorganização dos acontecimentos, por meio da palabra da personagem dita a si mesma, que promoverá a ascenção, configurando o trânsito do segundo nascimento. Nestes termos, no âmbito dos Estudos Literários, a obra de María Zambrano é estudada sob três perspectivas: a) A construção da Razão Poética como proposta de reorganização do pensamento contemporâneo, pautado pela plena consciência, se valendo igualmente da poesia e da razão, vinculada ao verdadeiro nascimento, este que advém da real tomada de consciência; b) A “remitologização”, que consiste na retomada dos mitos clássicos – no nosso caso da Antígona de Sófocles – ressignificando-os, posto que não se trata propriamente de um diálogo intertextual, senão de uma nova obra – que se inicia, no nosso caso, pouco antes do desfecho da obra de Sófocles, quando Antígona é encerrada viva numa tumba; c) A Prosa Poética como recurso utilizado pela autora para construir o monólogo delirante de Antígona, que remete igualmente aos aspectos anteriores da razão poética e da “remitologização”. Assim, nosso intento é o de desvendar a razão poética zambraniana que se constrói por meio do discurso de Antígona – discurso este erigido da prosa poética –, nos valendo, obviamente, da obra de Sófocles, entretanto, somente como objeto de identificação da agonia de Antígona, que a encaminhou ao seu segundo nascimento, plenamente consciente. Logo, o corpus deste trabalho consiste na obra La tumba de Antígona, na qual Zambrano constrói a voz da razão, por meio da poesia em prosa, voz esta que será, igualmente, a construção da personagem por si mesma, uma construção que se faz por meio da palabra. Esta pesquisa encontra-se em fase de redação do texto para qualificação, de modo que em nossas análises buscamos investigar a construção da razão poética por meio da palavra da personagem, bem como o processo que se vale Zambrano de rever o mito clássico, propondo um novo olhar a estas duas instâncias, há tanto separadas, desde a condenação platônica da poesia. Ademais, os objetivos específicos deste projeto são: - Analisar a construção do pensamento da autora que defende a união transcendente da poesia e da filosofia, rebatendo o rompimento proposto por Platão, retomando os mitos clássicos; - Verificar a influência da palavra como formadora de significado e como construção do ser, pelas vias tanto da prosa poética como da razão poética zambraniana; 333 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa - A partir das análises, delimitar em que medida a transcendência proposta pela autora se relacionam com o momento histórico por ela vivido, e pela sua condição de mulher exilada. Bibliografia ADÁN, O. Zambrano opus palimpsestum. En torno a Platón y la violencia. In: BENEYTO, J.M.; GONZÁLES FUENTES, J.A. (coord.). María Zambrano: la visión más transparente. Madrid: Editorial Trotta, 2004. (p. 427 - 440). AYBAR RAMÍREZ, M. D. Literatura exilada: o espaço em L’agneau carnivore de Agustin Gomez-Arcos. 2003. 235 p. 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Um dos aspectos mais interessantes da produção de Oliveira é a sua relação intrínseca com as outras artes como a pintura, desenvolvida em filmes como O pintor e a cidade, de 1956; a escultura, que pode ser vista em As estátuas de Lisboa, de 1932; a música, que é bastante explorada em Os canibais, de 1988, e principalmente a literatura e o teatro. Renata Soares Junqueira, na apresentação do livro Manoel de Oliveira: uma presença afirma o seguinte: Leitor obstinado, com efeito, de textos filosóficos, literários e dramatúrgicos de variado quilate, inscritos num quadro autoral de grande envergadura[...], Oliveira derivou de tentativas de adaptação cinematográfica da literatura e do teatro quase todos os seus grandes filmes, que são sempre ostensivamente teatrais. (JUNQUEIRA, 2010, p. xx) Considerando que a teatralidade presente na obra de Manoel de Oliveira não é sem propósito, esta pesquisa se propõe a analisar esses aspectos teatrais, com a intenção de identificar a estética própria do cineasta e analisar esse método de criação que se vale da teatralidade para mostrar ao espectador aquilo que ele vê como o que realmente é: um filme, uma obra de ficção. Isto se revela a partir do uso de técnicas do teatro épico, que determinam claramente o distanciamento entre o espectador e aquilo que ele assiste, rompendo qualquer possível ilusão de realidade. Para análise, o filme que escolhemos é O Meu caso (ou Mon cas no título original), produzido em 1986, na França, que tem sua origem na peça O Meu Caso de José Régio. O texto de Régio, por si só, já é absolutamente teatral, primeiramente por ser um texto de dramaturgia, mas também e principalmente por se tratar de um texto metateatral, ou seja, é uma peça em que se interpreta uma peça. Manoel de Oliveira se 336 Descrição das pesquisas vale disso e acaba produzindo um de seus filmes mais herméticos, no qual o espectador assiste na tela do cinema à interpretação desta peça de José Régio, porém em uma releitura tipicamente oliveiriana. Para essa composição, o cineasta ainda faz uso de textos extraídos de Pour finir encore et autres foirades, de Samuel Beckett, e do livro de Jó, do Antigo Testamento, que subsidiam o desenvolvimento do tema da incomunicabilidade humana neste filme. A relação entre Régio e Oliveira foi sempre bastante estreita – não por acaso o cineasta adaptou várias obras do dramaturgo para o cinema. Régio chegou a mencionar o trabalho de Oliveira algumas vezes na Revista Presença, em Portugal, no inicio do século XX. O escritor modernista distinguia dois tipos de cinema: um industrial, dedicado a agradar o público, e um artístico, que buscava fazer uma pesquisa estética, e era neste segundo que se incluía Manoel de Oliveira. Para Régio, seu amigo cineasta tinha uma poderosa visão de poeta que se expressava através do cinema.1 A pesquisa encontra-se já em estágio de conclusão, em que está sendo feita a redação final da dissertação, resultante de quase dois anos de estudos acerca da obra de Oliveira e com dedicação a análise do filme Mon Cas. A tese defendida é a da presença da teatralidade como estética cinematográfica do realizador português, pensada, sobretudo através de uma aproximação com o grande nome do teatro moderno Bertolt Brecht. O filme selecionado como corpus é considerado uma obra ensaística justamente a respeito da dialética teatro/cinema e a análise permite a aproximação entre o cinema contemporâneo e o teatro moderno proposto pelo dramaturgo alemão. O embasamento teórico consiste, sobretudo, em estudos teóricos e críticos sobre a produção de Manoel de Oliveira e estudos sobre a linguagem teatral, sobre a linguagem cinematográfica e também sobre a metalinguagem, elemento tão importante em O meu caso. Dentre as teorias estudadas para embasar a análise, destacam-se a leitura da fundamentação sobre Opacidade e Transparência do discurso cinematográfico, proposta por Ismail Xavier, no intuito de compreender o funcionamento da linguagem cinematográfica; as teorias sobre montagem do renomado cineasta Sergei Eisenstein, através das quais se busca elucidar o funcionamento da construção discursiva no cinema; e a teoria sobre o Drama Moderno, de Peter Szondi, a fim de compreender melhor as relações que o cinema de Oliveira estabelece com o teatro. Na bibliografia básica da pesquisa, destacam-se ainda 1 Informação retirada do ensaio Manoel de Oliveira/José Régio: as correntes de ar, presente no catálogo da exposição Manoel de Oliveira/José Régio releituras e fantasmas ocorrida em Vila do Conde, Portugal, entre os anos de 2009 e 2010. 337 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa nomes como António Preto, Patrice Pavis, Sábato Magaldi, Anatol Rosenfeld, dentre outros. A dissertação passa pelo Exame de Qualificação no dia 25 de outubro de 2013, com banca composta pelos professores Antônio Donizetti Pires e Fabiane Borsato, na UNESP FCL/Ar e pela professora orientadora da pesquisa, Renata Soares Junqueira, da mesma instituição. Bibliografia ALFRADIQUE, Julio, LIMA, Carla. Da literatura para o cinema. Rio de Janeiro: Mirabolante, 2010. ANDREW, J. Dudley As principais teorias do cinema: uma introdução. Tradução de Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. AUMONT, Jacques, MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro. Campinas: Papirus, 2003. BAZIN, André. O cinema: ensaios. São Paulo: Brasilinse, 1991. BAECQUE, Antonio de. Cinefilia. São Paulo: Cosac Naify, 2011. (Coleção Cinema, Teatro e Modernidade). BRITO, João Batista de. Literatura no cinema. São Paulo: UNIMARCO, 2006. BRITO, José Domingos de. Literatura e cinema: mistérios da criação literária. São Paulo: Editora Novatec, 2007. CEGARRA, Michel. “Cinema e Semiologia”. In: SEIXO, Mª Alzira (org.), Análise semiológica do texto fílmico. Lisboa: Editora Arcádia, 1979, p..65-165. (Colecção Práticas de Leitura). CHALHUB, Samira. Metalinguagem 3 ed. São Paulo: Ática, 1998. EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Apresentação, notas e revisão técnica de José Carlos Avellar. Tradução de Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. EISENSTEIN, Sergei. O sentido do filme. Apresentação, notas e revisão técnica de José Carlos Avellar.. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. FERREIRA, Carolin Overhoff (org.). O cinema português através dos seus filmes. Porto: Campo das Letras, 2007. (Campo do Cinema, 5). GOLIOT-LETE, Anne e VANOYE, Francis. Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas: Papirus, 2002. JUNQUEIRA, Renata Soares (Org.). Manoel de Oliveira: uma presença. Estudos de literatura e cinema. São Paulo: Editora Perspectiva, 2010. MACHADO, Álvaro (org.). Manoel de Oliveira. São Paulo: Cosac Naify, 2005. MAGALDI, Sábato. O texto no teatro. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 2001. (Estudos, 111). MONTEIRO, Miguel (org.). Cinema e história, 6 a 10 de outubro de 2003. Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 2004. PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1999. ROSENFELD, Anatol. Cinema: arte & indústria. Pesquisa e coordenação de Nanci Fernandes. São Paulo: Perspectiva, 2009. (Debates, 288). SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno (1880-1950). Trad. de Luiz Sérgio Repa. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. 338 Descrição das pesquisas XAVIER, Ismail (Org.). A experiência do cinema: antologia. 1 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal; Embrafilme, 1983. (Arte e Cultura, 5). XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 4 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008. 339 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa A LITERATURA ORAL EM LE CHERCHEUR D’OR: LENDAS E MITOS Marília Alves Corrêa Mestranda – Bolsista CNPq Profa. Dra. Ana Luiza Silva Camarani Ao propormos um estudo sobre a obra lecléziana, pretendemos, inicialmente, investigar quais são as referências e motivações do autor para que ele faça de sua obra um arsenal de mitos e lendas, tornando-a um amálgama mítico (JOLLIN-BERTOCCHI; THIBAULT, 2004). Nosso estudo se baseará no livro Le chercheur d’or, um romance de 1985, no qual o narrador autodiegético (GENETTE, 1972, p.253) Alexis conta-nos sobre a sua infância na Ilha Maurício, além de citar os lugares por onde passou durante parte de sua vida, como a Ilha Rodrigues, por exemplo. Trata-se, portanto, de uma narrativa aparentemente calcada no romance de aventura, na qual o narradorprotagonista conta como começou a sua busca pelo ouro e como ela se transformou no decorrer dos anos. O título do livro já evoca a aventura, pois Le Clézio chama a atenção para o sentido das palavras “procura” e “busca”. A narrativa inicia-se no final do século XIX, em 1892 e termina na segunda década do século XX, em 1922. Assim, podemos entender que Le chercheur d’or (1985) abrange o período da colonização africana pelos países europeus que, devido à partilha desproporcional das terras africanas e asiáticas, iniciaram um conflito imperialista pela defesa de seus interesses econômicos, culminando, assim, na Primeira Guerra Mundial. Inicialmente, a história passa-se no Boucan, na Ilha Maurício, onde o protagonista narra sua infância feliz, mas, após um desastre natural, ele e sua família são obrigados a mudar-se para Forest Side, a parte urbanizada da ilha. Aqui, nasce no protagonista o desejo de buscar por algo melhor, pois a violência e o egoísmo do mundo capitalista passam a atormentar a harmonia e felicidade dele e de sua família. Diante disso, Alexis sente a necessidade de reencontrar seu paraíso perdido (Boucan) e, a fim de buscar uma vida melhor e de ir atrás de novas descobertas, parte, sozinho em uma embarcação (navio Zeta), para a Ilha Rodrigues, onde pretende encontrar seu tesouro perdido através de misteriosos mapas deixados pelo seu pai, que retratavam a incessante busca do ouro por um Corsário desconhecido. A partir desse momento, há um constante deslocamento espacial de Alexis que dá maior dinamicidade 340 Descrição das pesquisas à narrativa, pois o protagonista passa a procurar, incessantemente, um motivo para viver. Ao chegar à Ilha de Rodrigues, nota-se que Alexis tem seu destino transformado, pois lhe é mostrada a verdadeira essência da vida, permitindo que ele veja o mundo sob diferentes perspectivas. Lá ele vai aprofundar suas pesquisas sobre o tesouro do Corsário desconhecido e o seu desejo de riqueza vai cegar seus instintos naturais, fazendo com que ele ignore tudo o que lhe era importante até então para fazer parte da massa de homens adoentados pelo excesso de civilização e industrialização. Nesse momento, ele conhece Ouma, uma personagem representante da miscigenação das culturas e da exclusão social a qual grande parcela da África está submetida. Ela tenta fazer com que Alexis retome seus antigos valores mostrando-lhe como a soberba ocidental deu ao homem um poder maléfico, mas o protagonista está tomado pela revolta e pelo desejo de riqueza e se nega a enxergar a sabedoria das palavras de Ouma. Depois de sofrer com a violência e o excessivo materialismo do homem contemporâneo, Alexis volta às suas origens e vai à Mananava, um lugar paradisíaco cercado de elementos míticos, idealizado desde a infância do personagem. Lá, ele começa a entender o verdadeiro sentido da vida e a valorizar o que realmente tinha importância, entrando, novamente, em harmonia com o cosmos e, ao lado de Ouma, sente-se plenamente feliz. A inserção de mitos e lendas no romance No decorrer da narrativa, percebemos que Le Clézio insere, constantemente, elementos e personagens que integram esse contexto intercultural, acentuado pela diversidade lendária e mitológica. Analisando a identidade de cada personagem e sua evolução dentro da narrativa, percebemos que cada um carrega consigo uma origem mitológica diferente e que cada voz é responsável por, pelo menos, um mito ou uma lenda peculiar. Entretanto, apesar das múltiplas crenças, culturas e etnias inseridas na obra, não se tem a impressão de que uma se sobreponha à outra; ao contrário, Le Clézio coloca-as de forma equipotente cujas diversidades originárias servem como complemento, formando, assim, uma obra homogênea. Nesse sentido, não vemos, no romance lecléziano, a tentativa de subordinar a voz dos personagens à voz do herói principal, pois o próprio protagonista se identifica com a ideia de outros personagens do 341 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa romance e, muitas vezes, passa a incorporar as ideologias deles, tendo-as, portanto, como fonte de enriquecimento pessoal. É nesse panorama intercultural e homogêneo que os mitos e as lendas são inseridos no romance, ou seja, o escritor procura abranger uma grande diversidade cultural na qual crenças de várias culturas são exploradas. A princípio, mostraremos os mitos de origem ocidental, introduzidos na narrativa devido ao contexto de colonização europeia ao qual todos os personagens, de maneira direta ou indireta, estão submetidos. A semelhança da trajetória de Alexis com a de Robinson Crusoé, por exemplo, remetenos ao mito de Daniel Defoe (1719), sendo, inclusive, estabelecida uma comparação explícita pelo próprio narrador: “Je suis seul maintenant comme Robinson sur son îlê.” (LE CLÉZIO, 1985, p.71). Revisitando este mito, Le Clézio reafirma a questão da origem, da herança e do eterno retorno, pois os personagens dessa obra têm uma relação estreita com a natureza e, no decorrer do seu percurso, aprendem a valorizar a inocência da infância e do selvagem. Dentro dessa influência ocidental que vemos na narrativa, os mitos ligados à bíblia têm grande importância, pois são enunciados por meio da voz da mãe de Alexis, Mam, cuja voz é assinalada inúmeras vezes de maneira carinhosa e saudosa: “Je me souviens seulement de l’histoire du déluge, que Mam nous lisait dans le grand livre rouge, lorsque l’eau s’est abattue sur la terre et a recouvert jusqu’aux montagnes, et le grand bateau qu’avait construit Noé pour s’échapper,[...]”. (LE CLÉZIO, 1985, p.81), conta Alexis. Após ter sido exilado de seu local de origem, onde se achava longe da maldade da civilização, o protagonista aprende a valorizar o que realmente importa, retomando, assim, o mito de Jonas. O modo como Alexis retrata o berço de sua infância (Boucan) no início da narrativa e a maneira saudosa com que o retomará no decorrer de sua jornada nos remete ao Éden, onde tudo era oferecido aos homens de maneira milagrosa e farta, proporcionando à humanidade o que havia de bom para seu próprio deleite. Assim, vemos que a doce lembrança que Alexis tem da sua infância nos remete ao mito da Idade de Ouro, em que todos os homens viviam como deuses e, por isso, não havia desigualdade, violência, maldade. Ademais, a relação conflituosa entre o pai de Alexis (representante dos valores humanitários) e seu irmão, Tio Ludovic (representante do capitalismo), remete-nos à história de Abel e Caim, pois, assim como estes, aqueles divergiam muito em suas opiniões e no status social. 342 Descrição das pesquisas O mito de Jasão, de origem grega, também é revisitado na obra por meio do próprio Alexis, já que sua busca iniciática pelo “ouro” é análoga à busca de Jasão pelo tão almejado “velocino de ouro”. Durante o calvário dos dois heróis, notamos que a decepção por não encontrarem a riqueza material que procuravam é essencial para que percebam qual é o verdadeiro tesouro pelo qual buscaram por tanto tempo. A origem africana da maioria dos personagens e o espaço predominantemente africano da narrativa completam esse mosaico mítico e lendário de Le chercheur d’or. Mananava, por exemplo, é um paraíso mítico que só está disponível àqueles que entenderam qual é o verdadeiro “ouro” pelo qual a humanidade deve procurar. Além disso, a lenda de Mananava está ligada à lenda dos escravos negros, pois teria sido o ligar onde eles se abrigavam após suas fugas. Diretamente ligada a esta lenda está a dos pássaros rabos-de-palha, que estariam relacionados aos fantasmas de Mananava e seriam uma espécie de mensageiros divinos. Ao associarmos todas essas lendas expostas e considerarmos que, originalmente, pertencem a mundos e culturas extremamente diferentes, entendemos que é justamente essa heterogeneidade mítica e lendária que torna Le chercheur d’or (1985) uma obra cuja polifonia e multiplicidade de ideias buscam colocar no mesmo patamar todas as culturas existentes no mundo, fazendo com que coexistam de maneira complementar e harmoniosa, sem que uma se sobreponha à outra. Estágio atual da pesquisa No presente momento, o trabalho de pesquisa encontra-se em sua fase inicial. Até agora, foram realizadas leituras e fichamentos de alguns livros que integram a bibliografia e analisam alguns tópicos concernentes às teorias de Linda Hutcheon (1991) e de Elisabeth Wesseling (1991) acerca das questões sobre metaficção historiográfica e “ficção ucrônica”, respectivamente. Além disso, utilizaremos os conceitos de Jean-Yves Tadié sobre o romance de aventuras, contidos no livro Le roman d’aventure (1996), e de José Paulo Paes, no livro A aventura literária (1990), para embasar teoricamente nossa pesquisa, juntamente com os livros Problemas da poética de Dostoiévski (1997) e Figures (1972), de Bakhtin e Genette, respectivamente. Além disso, utilizaremos artigos que estudem a obra do autor bem como estudos críticos acerca do autor e de sua obra. 343 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Bibliografia ALAVI, F. Mawlana et Le Clézio: auteurs d’une quête mystérieuse de l’or. Université de Téhéran, 2009. ALVES DOS SANTOS, M. Viagem e utopia em J.M.-G. Le Clézio: Le chercheur d’or e Voyage à Rodrigues. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2009. ASSUNÇÃO, I. Villa aurore, de Le Clézio: o conto da infância. São Paulo, Ed. Mackenzie, 2012, p.3. BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. CAMARANI, A. A tradição literária poética e sensorial em Le Clézio. In: Itinerários, n.31, p.60. Araraquara, 2010. CAVALLERO, C. J.M.-G. Le Clézio et les sables des mots. In: Erudit, n.82, p. 121134. Montreal: Tangence, 2006. GENETTE, Gérard. Figures III. Paris: Seuil, 1972. (Poétique). HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Trad. Ricardo Cruz. Ed. Imago, Rio de Janeiro, 1991. JOLLIN-BERTOCCHI, S.; THIBAULT, B. Lectures d’une oeuvre. Nantes: Du temps, 2004. LE CLÉZIO, J.M.-G. Le chercheur d’or. Paris: Gallimard, 1985. ONIMUS, J. Pour lire Le Clézio. Paris: PUF, 1994. PAES, J.P. A aventura literária: ensaios sobre ficção e ficções. Ed. Companhia das letras, São Paulo, 1990. SALLES, M. Le Clézio, un écrivain de la rupture? In: Itinerários, n.31, p. 15-31. Araraquara, 2010. TADIÉ, J.-Y. Le roman d’aventures. Ed. Quadrige/PUF, Paris, 1996. WESSELING, E. Writing history as a prophet: postmodernist innovations of the historical novel. Ed. John Benjamins B.V., Filadélfia, 1991. 344 Descrição das pesquisas DO DORSO À CAUDA DO TIGRE: TRILHANDO A LINGUAGEM DE CLARICE LISPECTOR Marília Gabriela Malavolta Doutoranda Prof. Dr. Luiz Gonzaga Marchezan (Or.) Os romances de Clarice Lispector apresentam reiterados embates com a linguagem; seus narradores estão em busca de um modo de dizer que lhes é sempre insuficiente diante do buscado ou do vivido. Este aspecto alça a linguagem à condição de tema das narrativas, ao lado mesmo de seus enredos constitutivos, conforme, desde as primeiras publicações da autora, asseveraram os críticos Benedito Nunes e Antônio Cândido. Neste contexto, este trabalho de pesquisa identifica e analisa uma implicação significativa instaurada pelo “fracasso da linguagem” – assim nomeado por Nunes – nos romances A paixão segundo G. H., Água viva e A hora da estrela. Trata-se da imagem de aderência presente nos enredos, especialmente nas relações que se estabelecem entre seus narradores e seus personagens. Crônicas de A descoberta do mundo, embrionárias de muitos trechos dos referidos romances, compõem igualmente o desenvolvimento desta pesquisa. Os variados excertos dessas narrativas cujos conteúdos evocam atos e efeitos de grudes, colagens, pertencimentos são entendidos neste estudo como sendo formas de aderência. Os dois trechos apresentados a seguir, selecionados das crônicas Não sei e Os obedientes (I), respectivamente, exemplificam-na: “Vocês podem me dizer o que lhes interessa, sobre o que gostariam que eu escrevesse. Não prometo que sempre atenda o pedido: o assunto tem que pegar em mim, encontrar-me em disposição certa [...]” (DM, p. 466, 1999); “Trata-se de uma situação simples. De um fato a contar e a esquecer. Mas cometi a imprudência de parar nele um instante mais do que deveria e afundei dentro ficando comprometida. Desde esse instante em que também me arrisco – pois aderi ao casal de que vou falar – desde esse instante já não se trata apenas de um fato a contar e por isso começam a faltar palavras” (DM, p. 436, 1999). O estudo desenvolvido por este trabalho de pesquisa apresenta a aderência como resultante do fracassado embate com a linguagem travado pelos narradores clariceanos e também como uma metáfora da criação artística. Metáfora que se desenrola de modo 345 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa progressivo entre os romances A paixão segundo G.H., Água viva e A hora da estrela, assim como, em caráter progressivo, Nunes, ao abordar o pathos da escrita da autora, identifica a transmutação da paixão em compaixão entre PSGH e HE. Diante do exposto, o primeiro ano desta pesquisa constituiu-se essencialmente pela releitura técnica das obras A paixão segundo G.H., Água viva, A hora da estrela e A descoberta do mundo, seguidas por transcrições de excertos que contêm a referida imagem de aderência. As categorias de Tempo e de Narração foram decompostas a fim de se situar a presença da aderência, com vistas a lhe atribuir significações iniciais apontadas pelo próprio arranjo dessas categorias. Ao longo deste seu segundo ano, o trabalho de pesquisa tem consistido em leituras críticas tanto acerca da obra de Clarice quanto do I ching – o livro das mutações, uma vez que um dos 64 hexagramas que o compõem representa a imagem do aderir e pode ser lido, segundo o estudioso Richard Wilhelm, como metáfora das várias etapas do processo de criação artística, o que, de acordo com a hipótese vigente, é também metaforizado pelas imagens de aderência evocadas nas citadas narrativas de Clarice. Outras aproximações já identificadas entre a cultura chinesa, especialmente o I ching, e a escrita de Clarice subsidiam essa abordagem. Tanto no primeiro quanto no segundo ano, o trabalho contou com as ricas contribuições das disciplinas cursadas, com destaque, dado seu recorte temático, a “Aspectos da Narrativa”, ministrada pela Profa. Dra. Maria Célia Moraes Leonel, “Vanguardas Europeias e Modernismo Brasileiro”, ministrada pelas Profas. Dra Guacira Marcondes Machado Leite e Dra. Silvana Vieira da Silva, “Realismo, Realidade e Representação: do século XIX à narrativa contemporânea”, ministrada pela Profa. Dra. Juliana Santini. A primeira viabilizou o instrumental teórico para, ao se isolar as categorias de Tempo e de Narração, identificar efeitos de sentido em seus conteúdos constantes, a saber, a tematização da própria narração e o adiamento da narrativa principal. A aderência colocou-se, justamente, como um efeito de sentido resultante desses processos. A segunda propiciou reflexões mais pormenorizadas sobre Vanguarda e Modernismo Brasileiro, que, por sua vez, enriqueceram a leitura do teórico texto clariceano Sobre o conceito de vanguarda, ensaio lido pela escritora em algumas conferências de que participou, no Brasil e nos EUA, e que engendra abordagens conceituais sobre o princípio de aderência tal qual abordado pela pesquisa. A terceira, ao apresentar um leque de críticas do Realismo, permitiu identificar ou delimitar o lugar 346 Descrição das pesquisas ocupado por este na narrativa de Clarice, do que a leitura de A arte da ficção, de Henry James, foi fortemente tributária. As aulas, as leituras obrigatórias e as leituras específicas iniciais, somadas àquele primeiro trabalho de releituras, transcrições e decomposição de categorias narrativas, resultaram em dois relatórios preliminares, de sistematização de resultados. Em março, o artigo intitulado “Na teoria e na ficção: a vanguarda em Clarice Lispector” foi submetido à edição número 34 da revista ANPOL, cujo resultado de publicação ainda não foi divulgado. À agência financiadora da pesquisa, Fapesp, dever-se-á entregar Relatório de Atividades no mês de abril do próximo ano. Nos próximos dias, a pesquisa contará também com consulta ao acervo de Clarice Lispector presente no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro. Conforme agendamento já realizado, serão inicialmente consultados manuscritos de A hora da estrela, dois quadros da escritora e treze livros de sua biblioteca pessoal, dentre eles o I ching – o livro das mutações. Bibliografia CHENG, François. La Escritura Poética China. Seguido de uma antologia de poemas de Los Tang. Valencia, Pre-Textos, 2007. CHENG, Anne. História do Pensamento Chinês. Rio de Janeiro, Vozes, 2008. GENETTE, Gérard. Discurso da Narrativa. Lisboa, Arcádia, 1979. LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G. H. (edição crítica coordenada por Benedito Nunes). 2ª. ed. Madrid/Paris/México/Buenos Aires/São Paulo/Rio de Janeiro, ALLCA XX, 1996 (Coleção Archivos). ______. Água Viva. Rio de Janeiro, Rocco, 1998. ______. A Hora da Estrela. Edição especial com áudio-livro, Rio de Janeiro, Rocco, 2006. ______. Outros Escritos. Rio de Janeiro, Rocco, 2009. ______. A Cidade Sitiada. Rio de Janeiro, Rocco, 2009. JAMES, Henry. A arte da ficção. In: NOSTRAND, Albert d. Van. (org.). Antologia de crítica literária. Tradução de Márcio Cotrim. Rio de Janeiro: Lidador, 1968. p. 122-139. NUNES, Benedito. A clave do poético. São Paulo, Companhia das Letras, 2009. ______. O dorso do tigre. São Paulo, Editora 34, 2009. ______. O drama da linguagem. Uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo, Ática, 1995. ______. “Nota filológica”, in NUNES (coord.), A paixão segundo G.H., ed. crítica, 1996. ______. “A Paixão de Clarice Lispector” in VÁRIOS AUTORES, organização de Adauto Novaes. Os sentidos da paixão. São Paulo, Companhia das Letras. Companhia de Bolso, 2009. SOUSA, Carlos Mendes de. Clarice Lispector. Figuras da Escrita. São Paulo, Instituto Moreira Salles, 2012. ______. Clarice Lispector. Pinturas. Rio de Janeiro, Rocco, 2013. 347 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa WILHELM, Richard (tradução). I Ching. O Livro das Mutações. Prefácio de C.G. Jung. São Paulo, Pensamento, 2006. ______. A Sabedoria do I Ching. Mutação e Permanência. São Paulo, Pensamento, 1995. 348 Descrição das pesquisas O FANTÁSTICO BALZAQUIANO NO SÉCULO XIX: ‘LA PEAU DE CHAGRIN’ E ‘L’ÉLIXIR DE LONGUE VIE’ Marli Cardoso dos Santos Doutoranda – Bolsista CAPES Profa. Dra. María Dolores Aybar Ramírez (Or.) Sabemos que a extensão de A comédia humana não nos permite fazer uma análise aprofundada de todas as narrativas que têm o insólito como pano de fundo. Por essa razão, continuamos nossa pesquisa em L’elixir de longue vie e La peau de chagrin, duas narrativas significativas e com elementos semelhantes. Os personagens dessas duas histórias têm em comum a busca pela imortalidade e pela realização de desejos, mesmo que essa busca acabe de modo indesejado para os dois. Abordaremos mais especificamente nesse texto, um resumo do que faremos em cada capítulo da tese. No primeiro capítulo, intitulado “O escritor Honoré de Balzac na Literatura Mundial”, objetivamos um percurso pela obra balzaquiana, especificamente na importância que esse escritor possui na literatura. Honoré de Balzac dedicou-se inteiramente ao trabalho com a escrita; sua Comédia humana constitui uma espécie de museu literário, pois apresenta uma visão diversificada de vários seguimentos da sociedade. Percebemos que o escritor não ficou preso apenas a algumas questões, pelo contrário, seu trabalho vai de aspectos mais corriqueiros aos mais ‘fabulosos’. E por possuir uma obra tão ampla, a fortuna crítica sobre o escritor também é extensa. Existem estudos que focalizam o escritor como visionário, caso de Albert Béguin (1965), que aborda na obra de Balzac as questões filosóficas que embasam A comédia Humana. No caso de Pierre G. Castex (1962) há uma abordagem do fantástico em Balzac como meio de exprimir uma filosofia, através dos grandes problemas metafísicos. No caso da presente pesquisa, partiremos para estudos que envolvem o fantástico como um recurso literário que permite a exploração da natureza humana, de modos diversos. Ou seja, o tão desejado ‘poder’ passa a ser possível, por meio de elementos incomuns, como uma pele mágica ou mesmo um elixir da juventude. Nesse sentido, percebemos que: 349 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa [...] l’expérience de Balzac est liée au surnaturel ; le Mythe, ici, est moins l’expression symbolique de la vie intérieure que la confrontation de la destinée terrestre à l’horizon surnaturel. ‘L’existence humaine, la nature ambiante, la societé, la courbe de chaque destin, l’aventure courue par chaque esprit, tout lui paraît traversé, habité, gouverné par des influences dont ignore si elles sont divines ou démoniaques, mais dont il sait au moins qu’elles ont un caractère surnaturel’. (PICON, 1965, p. 11) 1 O crítico Gaëton Picon afirma que a experiência de Balzac está ligada ao sobrenatural; quer dizer que suas narrativas possuem muito mais que o objetivo de mostrar as várias facetas do psicológico humano e social, esses textos se alicerçam no sobrenatural filosófico, que como afirma Picon, possuem influências divinas ou demoníacas, como o que ocorre nas narrativas propostas para a análise. Assim, após fazer esse percurso pelas várias facetas da literatura de Balzac, faremos, no segundo capítulo, intitulado “A literatura fantástica e seus desdobramentos”, um estudo do sobrenatural que priorizará conceitos, sobre literatura fantástica, mais amplos e mais relacionados ao diálogo com o estudo da natureza humana, uma vez que as definições acerca do subgênero Fantástico na literatura são, na maioria das vezes, muito taxativas e classificatórias, ou melhor, eliminatórias. Para Tzvetan Todorov (2004), o texto só pode ser considerado fantástico quando há a hesitação, quando existe a dúvida do leitor em compreender os acontecimentos narrados como estranhos, como fantásticos, com uma explicação natural ou sem uma explicação natural. Outros críticos, como Remo Ceserani (2006), trazem a definição como modo fantástico. Segundo Remo Ceserani (2006), o modo fantástico caracteriza uma passagem de limite ou fronteira entre espaços e, ainda, é fundamentado, em alguns momentos, na existência de um objeto de mediação do plano real e do insólito. Como nosso objetivo não é classificar em molduras o objeto de estudo, utilizaremos o termo sobrenatural porque é o mais propício para que não coloquemos as narrativas escolhidas dentro de uma nomenclatura fixa. O sobrenatural em Balzac ocorre pela presença dos objetos mágicos que são os elementos fundamentais para a instituição do insólito nas histórias. Criando um elo dessas teorias mais clássicas da literatura fantástica com as da crítica francesa, chegaremos ao terceiro capítulo da tese, intitulado “Don Juan e Fausto 1 [...] a experiência de Balzac está ligada ao sobrenatural; o Mito, aqui, é menos a expressão simbólica da vida interior que o confronto do destino terrestre ao horizonte sobrenatural. A existência humana, a natureza ambiente, a sociedade, a curva de cada destino, a aventura buscada por cada espírito, tudo lhe parece atravessado, habitado, governado por influências as quais ignoro se são divinas ou demoníacas, mas que se sabe ao menos que elas têm um caractere sobrenatural. (tradução nossa) 350 Descrição das pesquisas na Literatura Balzaquiana”. Nesse momento, nosso trabalho priorizará as intertextualidades da obra balzaquiana com as figuras de Don Juan e Fausto, que correspondem a uma espécie de mito literário que percorreu narrativas de vários escritores no decorrer dos séculos. Será por essa perspectiva que faremos um apanhado sobre a presença de Satã na literatura balzaquiana. Para Milner (1960, p. 12), até 1835, o pensamento de Balzac estava relacionado ao aspecto demoníaco como condição humana: « Donc, chaque fois que nous verrons Balzac parler du diable, entendons bien qu’il ne s’agit pas pour lui d’un être réel, mais d’un mythe, c’est-à-dire d’une représentation imaginaire propre à éclairer quelque aspect de la condition humaine2 ». Após esse período, o diabo em Balzac torna-se uma potência ativa, não mais um personagem ou um arquétipo, mas uma visão comum entre os personagens da Comédia Humana. Contudo, como nossas análises priorizarão as narrativas de 1830 e 1831, investigaremos a construção desse arquétipo demoníaco, como um dos meios para a instauração do sobrenatural. O arquétipo maléfico de alguns personagens, sobretudo ao Don Juan de Belvidero, está relacionado às histórias sobre o mito de Don Juan, que na maioria das vezes, trazem a união de dois temas: a do El Convidado de Piedra e a do El burlador. Ambas retratam o don Juan como caractere essencialmente mesquinho; no primeiro, don Juan é um jovem libertino, que brinca com a vida e com a morte, já o sedutor (burlador), engana as mulheres e depois as abandona facilmente, sem nenhuma culpa. Esses personagens são tipicamente espanhóis, e Tirso de Molina, um dos criadores de don Juan, foi responsável por ilustrar características tão peculiares em um personagem literário. Podemos relembrar também de El estudiante de Salamanca de José de Espronceda. Com um livro de poesias, Espronceda traz um valor histórico ao Romantismo Espanhol, que segundo Jaime Biedma supera o valor literário. Trata-se de uma obra poética, na qual a crítica social aparece na superfície. A obra de Espronceda é considerada uma das mais interessantes do Romantismo Espanhol. Assim, fazendo esse diálogo donjuanesco, chegaremos ao conto L’elixir de longue vie, cujo enredo gira em torno de um objeto mágico, um elixir trazido do oriente, que porta a imortalidade, mas a questão essencial do conto está ligada à busca pelo 2 Logo, cada vez que nos vemos Balzac falar do diabo, entendemos que não se trata para ele de um ser real, mas de um mito, quer dizer de uma representação imaginária própria a iluminar qualquer aspecto da condição humana. (tradução nossa) 351 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa poder dos personagens Bartholoméo Belvidero e don Juan. A análise mais aprofundada desse conto será feita no capítulo quarto, intitulado “L’elixir de longue vie: ... e don Juan também buscou a imortalidade”. Mas antes disso, ainda no capítulo terceiro, veremos como a presença de Fausto é fundamental nas questões relacionadas ao pacto. O tema de Fausto é lembrado primeiramente por uma lenda alemã, aquele que remete ao possível pacto realizado entre o médico Fausto e o demônio. A busca do homem pelo conhecimento e poder é tema central de vários romances ao longo dos séculos e a figura lendária de Fausto torna-se a mais representativa na história da literatura, para esboçar esse tipo de personagem, ligado às forças demoníacas. Vieram depois outras narrativas, que abordaram esse tema, mas uma das mais conhecidas em todo o mundo é a de Goethe, dividida em duas partes – a mais célebre foi escrita em 1808. O Fausto de Goethe é um poema de dimensões épicas, que traz a história de um cientista que fez um pacto com Mefistófeles, em busca de poder e de sucesso. Essa figura representa o anseio de ultrapassar a ordem, o desejo pelo conhecimento a qualquer custo, e por esse motivo o pacto é firmado. É uma obra sempre revisitada, por apresentar o homem com todas as suas misérias e desejo de poder. Nos séculos XVIII e XIX, o desejo humano de superar a sua própria condição é o que o faz se aliar às forças do mal, mas muitos sucumbem em meio à ambição. Esse indivíduo que busca o poder a qualquer custo, mesmo que pelo auxílio de forças maléficas, é representado de diversas formas na Comédia Humana de Honoré de Balzac, que desde suas primeiras obras, já aborda temas ligados ao sobrenatural, sobretudo à questão do pacto. O diabo passa a ser uma característica, ou como afirma Milner (1960), arquétipo nos personagens literários. Nesse período, entre 1818 e 1822, há um aumento significativo de títulos frenéticos na França, segundo Muchembled: O próprio Honoré de Balzac, quando jovem, publica muita coisa sobre este tema, como por exemplo, O centenário (ou O feiticeiro), de 1822. Satã, aliás, atravessa de ponta a ponta toda a Comédia humana. Escrito em 1820-1821, seu primeiro romance, Falthurne, apresenta a heroína com este nome como uma beleza celestial que é acusada de possuir faculdades maléficas. O autor toma, no entanto, o cuidado de mostrar que essas alegações são infundadas, o que faz lembrar a tradição – inaugurada por Cazotte e seguida por Nodier – que consiste em deixar pairar uma dúvida profunda sobre a realidade dos poderes demoníacos. (MUCHEMBLED, 2001, p. 248) 352 Descrição das pesquisas Satã é representado nas narrativas balzaquianas de duas formas: como o tentador, caso de Melmoth Réconcilié e do antiquário em La peau de chagrin, e como arquétipo satânico, que modelam grande parte dos personagens de La comédie Humaine (Milner, 1960). Melmoth réconcilié (1835) surge como uma espécie de continuação do Melmoth de Maturin, personagem que carregava ambas as naturezas, a humana e a demoníaca. Por desprezar a humanidade, acabou não se convertendo, já que ele esperava ser livrado do pacto, mas não conseguiu. No caso do Melmoth de Balzac, há uma reconciliação, uma vez que surgindo como uma figura de investidor, Melmoth transfere seu fardo a Castanier, um bancário endividado e cheio de problemas amorosos: Castanier é a vítima perfeita para Melmoth, uma figura capaz de realizar qualquer negócio. Todavia, depois de assumir o fardo, o personagem sofre durante muito tempo, e um dia é tocado por uma pregação religiosa, decidindo assim, retornar ao Banco e lá consegue transferir o pacto a Claparon, que dominado por sua paixão por Euphrasie, morre sem poder passá-lo para ninguém. Nessa narrativa, encontramos o pacto da forma mais corriqueira, uma vez que há a figura do tentador e aqueles que aceitam o acordo em troca de poder ou dinheiro. No caso de La peau de chagrin (1831), romance que será analisado no último capítulo da tese – “La peau de chagrin: o pacto, os desejos e a morte” – vemos outra espécie de pacto: Raphaël de Valentin, iludido por seus fracassos financeiros e amorosos, decide-se pelo suicídio, mas antes disso, resolve entrar em uma casa de jogo, para esperar a noite chegar e, assim, ele poderá se lançar no Rio Sena sem muito alarde. No entanto, saindo da casa de jogo, o dia ainda está claro, e em uma galeria, ele encontra uma loja de Antiguidades. Nessa história, o dono da casa de antiguidades corresponde ao tentador, aquele que propõe o pacto. Os antiquários são figuras que apresentam extrema sabedoria e dedicam grande parte da sua vida à busca pelo conhecimento. O narrador, inclusive, compara essa criatura ao mesmo tempo com Mefistófeles e com Deus. Por um lado a aparência bizarra, aquele que aparece do nada diante de alguém que busca o suicídio; por outro lado, a sapiência e a forma como aborda questões tão complexas a respeito da vida. Como Mefistófeles quando apareceu a Fausto, esse ancião propõe uma alternativa ao jovem, no lugar do suicídio, apresentando-lhe o ponto chave dessa narrativa – a pele de onagro. 353 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Percebemos que essa narrativa possui muitas semelhanças com o conto do Elixir, uma vez que todos os deleites, prazeres e volúpias da vida podem ser concedidos àquele que possui essa pele. Grande parte dos personagens Balzaquianos deseja esse poder; a vontade de poder é recorrente em praticamente toda La comédie humaine, se pensarmos em Le centenaire que buscava a eternidade e, na disputa pela imortalidade entre Bartholoméo e Don Juan de Belvidero em L’elixir de longue vie. Em La peau, o jovem aceita o poder que a pele lhe concede; é necessário esse encontro com o antiquário, para que o pacto seja firmado – o pacto de poder, semelhante ao que ocorre em Fausto de Goethe – o poder e a riqueza em troca da alma humana. No romance de Balzac, o poder e a realização de desejos em troca da vida. O antiquário é o tentador dessa narrativa, é Mefistófeles com seu poder de atração e sedução. Esse pacto firmado é o ponto inicial dessa narrativa, o momento exato de troca – a vida pela morte – o suicídio adiado, e não esquecido. Para Milner (1960), o talismã corresponde à “Jouissance totale” – o Talismã como um presente de Satã – a realização de todos os deleites. ‘Vouloir et pouvoir réunis’. Raphaël de Valentin age, mas sem pensar nas consequências, quando toma posse da pele mágica. Ele só se lembra dos poderes daquele talismã quando vê o objeto diminuir com seus desejos e esse fato o preocupa, já que antes o personagem só pensara em aproveitar os desejos conquistados. Nessa narrativa, o querer e o poder são o ponto chave de toda a história de Raphaël e da pele, antes o querer não era poder e, por isso, ele perdera tudo e se endividara. Com o talismã, o jovem pode desejar o que quiser, já que agora querer é poder. Mas como querer queima e poder destrói, sua vida é destruída pela própria ambição. Percebemos que esses personagens balzaquianos possuem naturezas comuns; todos são tentados e tem a possibilidade de recusar a tentação, mas preferem arriscar tudo em busca de poder e da realização plena de seus desejos. Podemos dizer então que os personagens dessas histórias são como Fausto, eles se deixam tentar, não fogem do tentador, pelo contrário; para eles, a realização plena de seus desejos e a conquista do poder é fundamental para a continuação de sua existência. 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A pesquisa acerca dos aspectos do grotesco e do medievalismo em Gaspard de la Nuit foi divida em quatro estágios principais, perfazendo dessa maneira os quatro semestres e dois meses de duração do Mestrado, sendo eles: o estudo formal do poema em prosa; o estudo histórico-cultural da Idade Média e da estética do grotesco (sendo que é importante ressaltar que a temática do grotesco já está bastante desenvolvida, tendo em vista que o assunto foi abordado na Iniciação Científica realizada durante a graduação); o estudo da fortuna crítica a respeito de Bertrand e do movimento romântico no que tange aos seus acontecimentos históricos, bases filosóficas e estéticas; e, por fim, a análise da imagem poética grotesca em Gaspard de la Nuit, junto da redação final da dissertação. Informamos que a primeira parte da pesquisa, referente ao estudo formal do poema em prosa foi concluída. Durante este período, buscou-se compreender o poema em prosa em suas diferentes manifestações, suas origens e a problemática em sua definição e delimitação enquanto gênero. Para isso, foram consultadas obras de diferentes autores como Michael Riffaterre (1983), Suzanne Bernard (1959), T. Todorov (1980). Foram levantados autores de diferentes linhas teóricas dado o fato do estudo do poema em prosa mostrar-se particularmente difícil, por se tratar de um gênero amorfo, e cuja mutabilidade é uma de suas características definidoras. As conclusões para as quais atentamos passaram, sobretudo, pela questão dos recursos formais e estilísticos utilizados na construção das significações do poema, como o ritmo (muito variável em um gênero poético desprovido de métrica como este), o uso da sonoridade da língua no reforço às imagens criadas e as marcas temporais e enunciativas que localizam (ou distanciam) a voz lírica do poema. Deve-se ainda ressaltar que foi consultada uma bibliografia específica a respeito dos aspectos formais em Bertrand, composta pela já citada Bernard (1959) e também Guacira Machado (1981), cujo estudo procurou melhor compreender a apurada forma 357 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa poética de Bertrand de modo a embasar corretamente as futuras análises que serão feitas sobre os poemas selecionados. O foco do estudo foi, sobretudo, os pontos que tangem a constituição da imagética de sua poesia, tendo em vista que a atual pesquisa procura compreender, primeiramente, a manifestação das tensões imagéticas no Gaspard pelo prisma da cultura medieval. Foram também consideradas as afirmações importantes para a compreensão da importância das inovações de Bertrand para o Romantismo francês, viabilizando uma melhor compreensão do lugar ocupado pelo poeta dentro do ideário romântico. Declaramos ainda que foi realizado um curto estudo a respeito do lirismo, buscando compreender sua manifestação inovadora na poesia de Bertrand. Tal estudo foi realizado com vistas ao cumprimento das atividades disciplinares cursadas no semestre, mostrando-se fértil para a pesquisa, na medida em que tangencia a questão do grotesco na obra. Foram consultados autores como Salete Cara (1989), José Merquior (1997), Emil Staiger (1972) e as já citadas Bernard (1959) e Machado (1981). Os resultados desse levantamento estão sendo reunidos em um artigo para publicação. Por último, informamos que até o momento foi produzido um artigo denominado "O grotesco nos poemas Le Nain e Départ pour le Sabbat, de Aloysius Bertrand", com publicação aceita na revista NonPlusda USP (ISSN: ), prevista para o segundo semestre de 2013; e que foi realizada uma apresentação no III Encontro de Estudos Medievais da Faculdade de Letras da UFRJ, com uma comunicação oral intitulada "O grotesco no medievalismo de Gaspard de la Nuit, de Aloysius Bertrand". Durante a segunda etapa será iniciada, pretendemos fazer um estudo histórico básico da Idade Média francesa, focando, sobretudo, a questão cultural em seus contrastes e tensões, bem como o imaginário popular de época. Para o estudo do grotesco, planejamos revisar os dados já colhidos na Iniciação Científica realizada durante a graduação, acrescentando ao estudo a obra O império do grotesco, de Muniz Sodré e Raquel Paiva. Nesta fase buscaremos compreender o grotesco em sua manifestação medieval, discutida por Bakhtin (2010) e contrapô-la à sua manifestação romântica de modo a melhor avaliar sua significação dentro da obra de Bertrand. Bibliografia BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2010. BERNARD, S. Le poème em prose de Baudelaire jusqu'à nos jours. Paris: Librairie Nizet, 1959 358 Descrição das pesquisas BERTRAND, A. Gaspard de la Nuit: Fantaisies à la manière de Rembrandt et de Callot. Paris: NRF Gallimard, 1997. Ed. Établie par Max Milner. ______. Gaspard de la Nuit: fantasias à maneira de Rembrandt e Callot. Brasília: Thesaurus, 2003. BLANC, R. La quête alchimique dans l'oeuvre d'Aloysius Bertrand. Paris: Nizet, 1986. BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. 5.ed. São Paulo: Cultrix, 1997. CABRAL, M. José Régio e o poema em prosa. Forma Breve 2 – O poema em prosa. Aveiro: Tipave, 2004, vol. 2. CARA, S. de A. 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O projeto investiga a influência da Terceira Crítica kantiana na estruturação daquilo que chamamos de pensamento estético goetheano, abordando os elementos presentes em textos goetheanos a partir de 1786, ano em que Goethe realiza a famosa viagem a Itália e espécie de marco na consolidação de sua estética. Através do conceito de finalidade sem fim, Zweckmässigkeit ohne Zweck, um dos termos decisivos da Terceira Crítica kantiana, pretende-se abordar a concepção estética segundo a qual a obra de arte não é redutível a uma explicação ou dedução em uma ciência do belo. O valor da arte reside nela mesma, a arte possui um valor intrínseco, isto é, não está voltada para qualquer finalidade que não seja ela mesma. Com a noção de “objetividade sem objetivo” entendemos pois a independência do julgamento do objeto de bela arte em relação a outras instâncias, sejam morais, históricas ou filosóficas, não instrumentalizando deste modo o texto literário a nenhuma finalidade exterior, pois nenhum discurso exterior pode traduzir a verdade do texto poético. Neste sentido a expressão designa o momento de ruptura com a tradição estética preceptiva, predominante em séculos anteriores. Em resumo: o termo objetividade sem objetivo, ou „finalidade sem fim“ indica a fuga à uma estética normativa, pois o campo da arte constitui para estes autores um campo, no limite, inexprimível.Em Goethe também a arte é um campo que produz seu próprio mundo, suas próprias verdades e neste sentido deve ser julgada somente a partir de suas leis internas, intrínsecas. A idéia da intraduzibilidade do estético aparece pois, ainda que com traje específico, também em Goethe. Desde os anos 90 essa idéia adquire importância eminente para o poeta, e mesmo o Goethe maduro recorrerá a Kant e em especial à idéia de autonomia da arte. A pesquisa concentrou-se em duas obras principais de Kant, a Kritik der Urteilskraft, publicada em 1790, e o trabalho estético publicado na fase primeva do pensamento kantiano, Beobachtung über das Gefühl des Schönen und Erhabenen, publicado em 1764. As fontes principais em relação ao pensamento goetheano sobre a 361 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa arte são certamente suas cartas, diários, conversas e escritos, em especial os textos de 1760 a 1800. Por certo o pensamento sobre estética esbarra em outros campos, como por exemplo a teoria do conhecimento, ou a noção de natureza, e, ainda que estes campos tenham relevância, foram apenas secundariamente abordados. A respeito dos textos goetheanos,procurou-se enfatizar os textos onde a questão da estética é explícita ou implicitamente abordada. A pesquisa encontra-se em fase de redação final. Na qualificação apresentou-se grande parte do material teórico da tese e um capítulo referente à análise do romance Die Wahlverwandtshaften. Neste sentido,no primeiro capítulo, abordou-se a real existência do “pensamento estético” goetheano. Com efeito, o pensamento estético goetheano, se se pode chamar assim seu pensamento sobre a arte, é bastante peculiar: toda a “teoria” goetheana é anti-analítica. Em Goethe, tanto o conhecimento quanto a comoção estética não passam pela análise. Entretanto, como se abordou, é justamente esta característica que o aproxima da estética kantiana. O segundo capítulo apresentado no exame geral de qualificação consistiu em um olhar retrospectivo, que perpassou as visões contrastantes sobre a aproximação entre o pensamento estético de Kant e Goethe. Fica claro que a investigação de tal temática não pode economizar uma investigação etiológica, pois a abordagem das similaridades entre o filósofo e o poeta não constitui uma temática consensual. É necessário, pois discutirse as aproximações e os recuos entre o filósofo e o poeta ao longo da fortuna crítica. O capítulo enfatiza ainda que embora se investigue fundamentalmente a aproximação do pensamento estético de Kant e Goethe, a presente investigação não se retringe a apontar algumas conclusões talvez paradoxais, mas essenciais, entre ambos os autores. É necessário, pois adotar uma postura prudente, atenta não somente as convergências, mas também as idiossincrasias e mesmo divergências entre o pensamento de ambos os autores. Introduzindo a parte mais teórica do trabalho, investigou-se a seguir a obra Viagem à Itália, obra que narra a viagem goetheana à península italiana de 1786 a 1788 e publicada em 1816-1817. Contudo, mais do que uma reconstrução de sua viagem através das memórias e diários, a Viagem importa, antes de mais, como uma narrativa da construção de um novo olhar para com a obra de arte, como a construção da própria estética goetheana. Atrelada a esta temática discute-se ainda a noção de natureza em Goethe. A abordagem da noção de Natureza em Goethe é elementar, pois para o poeta os campos da arte e da natureza se interpenetram, de modo que colocações goetheanas 362 Descrição das pesquisas no campo da natureza ressoam no trabalho artístico: é justamente a partir do contato com a natureza em terras italianas que Goethe formula, por assim dizer, sua teoria estética. Este entrelaçamento de campos à primeira vista tão distintos agrega também uma noção chave na presente discussão: o agir conforme a si mesmos presentes tanto na conepção da arte quanto na concepção da natureza. A questão da arte e natureza pode ser melhor apreendida nos Estudos Literários através de um conceito: o de mimesis. Neste sentido discutiu-se também o conceito de mímesis, pois através desta noção é possível revelar mais claramente o teor do pensamento goetheano quanto à arte e natureza. Aborda-se pois a noção de mimesis no pensamento goetheano, concentrando no momento de transição entre o período pré-romântico do Sturm und Drang e o período que corresponde aos dois anos nos quais o poeta permaneceu na Itália (17861788), período no qual Goethe “educa” seu olhar, consolidando seu pensamento estético. A base e introdução teóricas permitem finalmenteenfrentar a questão central do trabalho. Através da noção kantiana do Zweckmässigketi ohne Zweck, analisa-se a concepção de arte em Kant e Goethe, acentuando as semelhanças entre os dois pensadores. Tanto Kant quanto Goethe recusam a mera apreensão conceitual da obra de arte, apreensão atenta às regras impostas pela tradição estética, em favor de uma fruição – ou interpretação – atenta ao inaudito, ao não traduzível da obra de arte. Daí o termo escolhido como agregador desta idéia, pois a noção da “finalidade sem fim” indica justamente a concepção da obra de arte como finalidade em si mesma, de valor intrínseco, isto é, não voltada para qualquer finalidade que não seja ela mesma. O rigor kantiano quanto a idéia de “finalidade sem fim” aclara por assim dizer a noção goetheana da obra de arte, pois Goethe não se manifesta nem de maneira homogênea, nem de maneira ordenada em seus escritos. Goethe não é o filósofo a procura do estabelecimento de critérios seguros para a análise estética. Ao contrário, seu pensamento se apresenta não raro mediante características que fogem a qualquer rigor. Vale ainda ressalvar que o trabalho explora também as impressões imagéticas as quais, não raro, se valem tanto o filósofo quanto o poeta em seus escritos. O trabalho cuida, portanto de abordar não apenas a semelhança conteudística, como também o modo e a forma, as imagens e as metáforas que aparecem nos escritos dos autores. No texto geral de qualificação esta abordagem é mais enfatizada na metáfora da captura da borboleta, para citar o exemplo mais evidente. No último capítulo do exame geral de qualificação apresentou-se uma 363 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa introdução da análise do romanc Die Wahlverwandtschaften. Porque centrar a análise no último romance de Goethe? Não seria mais oportuno abordar romances mais próximos da Viagem à Itália, já que a obra serviu de marco na consolidação da estética goetheana ou, ainda, abordar um romance no qual o tema da arte aparecesse de forma mais explícita, como Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister? A escolha d´As Afinidades eletivas e não de outra obra qualquer, foi portanto abordada: em primeiro lugar, a recepção conturbada do romance goetheano ao longo dos mais de dois séculos permite por si só uma conexão com os pressupostos teóricos abordados. O enredo é conhecido. O último romance de Goethe narra o desmoronamento do casamento de Charlotte e Edward, dois integrantes da aristocracia culta. Apesar do amor juvenil, o casal se separa quando da introdução de outros dois novos integrantes na casa, Ottilie e o Capitão. Em linhas gerais o enredo geral do romance não passa de uma novela. Não basta muito, contudo, para ver na obra algo desconcertante, a qual se debruçou e se debruçam muitos críticos literários ao longo dos séculos. O último romance de Goethe sofreu as mais variadas interpretações. Enquanto outras obras de Goethe apresentam certa coesão na fortuna crítica, a obra As Afinidades Eletivas provocou e provoca interpretações bastante divergentes, apontando assim para o campo aberto que é a arte. O próximo passo é a continuação da análise do romance, bem como a incorporação na tese de alguns aspectos levantados pela banca do exame geral de qualificação. Corpus GOETHE, J. W. von.Sämtliche Werke. Weimarer Ausgabe. In: http://goethe.chadwyck.co.uk/ ______. Sämtliche Werke. Deutscher klassiker Verlag. ______. Sämtliche Werke. Karl Hanser Verlag München. ______. Goethe Handbuch. 4 Bänder / Hrsg von Bernd Witte. Stuttgart-Weimar: Verlag J.B.Metzler. KANT, I. 'KRITIK DER URTEILSKRAFT'. Einleitung von Karl Vorländer. Leipzig: Verlag von Felix Meiner, 1922. ______. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. ISBN 85-218-0147-5. ______. Observações sobre o sentimento do belo e do sublime. Campinas: Papirus, 1993. 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Nava estreou como poeta em 1979 com o livro Películas e depois desta publicação surgiram mais cinco livros: A Inércia da Deserção (1981), Como Alguém Disse (1982), Rebentação (1984), O Céu Sob as Entranhas (1989) e Vulcão (1994). Em 2002, a editora Dom Quixote reuniu todas as obras do autor e mais quatro poemas inéditos no livro Poesia Completa- 1979-1994. Luís Miguel Nava foi encontrado morto em seu apartamento em 1995, vítima de um assassinato. O que mais ganha força em sua poesia é a abordagem dada ao corpo e à sexualidade, configurando-se um erotismo singular, em que o corpo é revelado pelo avesso. Mediante o movimento que vai do interior ao exterior cada órgão que compõe este corpo é colocado em evidência trazendo para a superfície da página as entranhas com as quais não tomamos contato. É notório que Nava se destaca devido ao rigor, a densidade de sua obra e o trabalho meticuloso do poeta ao escolher metáforas densas, construídas por meio de uma escrita transfiguradora, que enfatiza o uso de dicotomias, reveladoras da complexa ambiguidade que aflora na realidade concreta da vida. O principal objetivo do meu projeto de Mestrado é buscar articular o fazer poético de Luís Nava, tal como é configurado em seu primeiro livro, Película, com a ideia de um evento de trauma. Trata-se de uma proposta que amplia os objetivos originais do projeto. Nas primeiras leituras que empreendi da obra lírica de Nava, pude perceber uma instigante presença do real. Então, o objetivo do projeto original consistia em buscar comprovar uma possível volta ao real e compreender a natureza, a dimensão e a função deste real na estruturação dos textos poéticos deste autor. Preocupava-me também saber se esta volta ao real provocava algum deslocamento do poeta em relação à modernidade lírica, tal como descrita pelo teórico Hugo Friedrich. Deste modo, o 367 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa projeto deveria contribuir, de modo mais amplo, para situar a poética de Nava na modernidade, apontado desvios, rupturas e permanências. A poesia moderna, tal como é interpretada por Friedrich, não trata os conteúdos relacionados às coisas e aos homens de maneira descritiva. Ela torna estes conteúdos absurdos aos nossos olhos e a realidade, assunto polêmico, que se configura de modo indireto, por meio de uma complexa transfiguração do mundo, o que distancia a modernidade lírica da poesia de outros momentos históricos. Na poesia clássica, por exemplo, tudo que se insere no mundo e nas relações entre os diversos elementos está configurado de maneira a atender um conceito de ordem e de normalidade, que deve ser mimetizado por um sistema de linguagem fundamentado na racionalidade. O normal está relacionadoàs dicotomias, que fundam a vivência e a percepção. Dentre elas destacam-se as dicotomias de corpo e alma, feio e belo, superficial e profundo, abstrato e concreto, interior e exterior, sendo que a cada um dos polos corresponde uma essência, que se opõe à outra. A arte elaborada nos períodos anteriores ao século XIX cumpria seu papel ao trazer os sentidos do sujeito para perto desta normalidade, já que buscava reproduzir toda e qualquer experiência de maneira mimética. Acreditava-se na identidade entre o objeto e seu signo e, desta maneira, criava-se uma arte subordinada à realidade sensível. A partir do século XIX, com os célebres precursores do simbolismo, Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé, além dos românticos alemães, como aponta Friedrich, a arte adota outra forma de expressão, cuja proposta é distorcer, inverter ou romper a ordem natural das coisas que cercam o mundo do indivíduo. Paralelamente a estas experiências revolucionárias na linguagem poética, diversos estudos acerca da linguagem contribuíram para apontar a não correspondência entre o signo e objeto. Ortega y Gasset elucida a questão ao comentar que “entre a ideia e a coisa há sempre uma absoluta distância. O real extravasa sempre do conceito que tenta contê-lo. O objeto é sempre mais e de outra maneira que o pensado em sua ideia”. A linguagem poética, por sua vez, vai buscar uma transcendência capaz de alçar um sistema de significados muito além dos significados gerados em sua função meramente referencial. Voltando ao objetivo central do meu projeto, neste estágio da pesquisa, ele se configurou a partir das leituras e debates realizados na disciplina cursada no primeiro semestre do Mestrado. Trata-se da disciplina “Realismo, realidade e representação: do século XIX à narrativa contemporânea”. Durante o seu desenvolvimento foi possível estudar a historicidade do realismo e dentre os autores vistos em aula selecionamos a 368 Descrição das pesquisas obra do crítico Karl Erik Schøllhammer. Suas análises sobre os modelos de representação, tanto o histórico quanto os que surgiram recentemente forneceram subsídios importantes para que eu aprofundasse minha própria compreensão do objetivo que havia proposto no projeto de Mestrado. O crítico em questão propõe uma discussão a respeito das novas formas de realismo, que surgiram na década de 1990, a partir do projeto iniciado por Hal Foster em seu livro The return of the real (1996). Desse modo surgiu a intenção de relacionar o fazer poético de Luís Nava, à ideia de “evento como trauma”. Este evento está inserido em produções artísticas que vão de encontro com o aspecto mais brutal das situações cotidianas, criando uma aproximação idêntica à da lente de aumento que promove efeitos estéticos de choque ao expor o sujeito diante do limite do real. O real traumático se afasta do realismo histórico predominantemente mimético e baseia-se na releitura da vanguarda das artes plásticas. Schøllhammer esclarece o conceito como sendo uma produção artística que abandona a distância da realidade e se propõe um encontro com ela no seu aspecto mais cru, abrindo caminho através de linguagens e imagens, através do símbolo e do imaginário em direção a um encontro impossível com o real. (p. 134) O corpus selecionado para análise continua sendo o livro proposto no projeto original, Películas, publicado em 1979. A construção poética desse livro fundamenta-se na recorrência de metáforas ligadas à repetição de certas palavras e fecunda presença de imagens em movimento que constituem uma unidade bastante eloquente. Esse pendor imagético está frequentemente ligado àsfiguras da natureza (mar, ondas, praia, águas, paisagem, folhagem), ao corpo (lábios, nudez, mãos, punhos, ventre, intestinos), à claridade (sol, luz, astros, relâmpago, incêndio). Esta última característica é primordial em Películase, segundo o crítico português Gastão Cruz, revela uma “claridade brutal, insuportável” (p.284). Nava mantém uma posição vigilante em seu discurso e é cauteloso no manejo dessas metáforas de modo que elas não caiam em uma trama de sentimentalismo verborrágico ou em mera repetição sem sentido. ARS ERÓTICA Eu amo assim: com as mãos, os intestinos. Onde ver deita folhas. (Nava, 2002, p.43) 369 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Mãos e intestinos compõem a realidade desse amor e servem de aparato para materializar a sensação que este amor transmite. A tensão entre membro/órgão e sentimento causa no leitor um estranhamento devido ao movimento brutal desse corpo do interior para o exterior que promove a concretização desse sentimento. Desse modo o poema vai em direção a um real inalcançável devido à aproximação de dois universos opostos. A principal estratégia para se atingir o objetivo proposto será a análise textual dos poemas do livro Películas, fundamentando-se na teoria dos dois críticos apontados acima edirecionando o focopara a cadeia de metáforas que criam imagens relacionadas ao choque, criadas para configurar as situações traumáticas que estruturam os textos poéticos navianos. E, para entender as relações entre este configuração do real com a poética de Nava, pretendemos também dar uma atenção especial aos poemas que adotam procedimentos metapoéticos, muito presentes no livro selecionado. ATRAVÉS DA NUDEZ Esse garoto é fácil compará-lo a um campo de relâmpagos encarcerando um touro. Através da nudez vêem-se os astros. É onde o poema interioriza a sua própria hipérbole, a paisagem. Movem-se os tigres como câmaras na areia, pronto eles também a deflagrarem. A manhã espanca a praia, é impossível descrevê-la sem falar dos fios deste poema que a cosem com a paisagem. (Nava, 2002, p.46) Nas primeiras leituras realizadas do livro selecionado como corpus, pude perceber que as imagens relacionadas às dicotomias exercemum papel essencial para criar cargas semânticas que auxiliam na construção do mundo ficcional ligado a ideia de evento traumático, que sustenta a lírica de Nava. Por este motivo, a análise também deverá conferir atenção especial a estas imagens. 370 Descrição das pesquisas Luís Miguel Nava modela essas metáforas de modo a rasurar as dicotomias, o que mergulha o leitor em sentidos novos diante de uma realidade não percebida no cotidiano. Ele se utiliza, por exemplo, de “uniões entre o mais flagrantemente palpável e o que, à primeira vista, pareceria incorpóreo”, como afirma Amaral (1991, p. 154). O método de análise a ser utilizado será inspirado principalmente nas contribuições de Antonio Candido (2004), mas também no texto de Clarice Zamonaro (2005), entre outros manuais de análise integrantes da bibliografia do projeto. Paralelamente a análise, pretende-se fazer uma revisão da fortuna crítica do poeta, que, embora muito recente, já conta com estudos de importantes especialistas em poesia contemporânea, como Fernando Pinto do Amaral (1991), Gastão Cruz (2002), Eduardo Lourenço (1974), Maria João Cantinho (2002), António Manuel Ferreira (1996), Rosa Maria Martelo (2006) e Ida Maria dos S. F. Alves (2002), além de vários trabalhos acadêmicos surgidos nos últimos anos. Da fundamentação teórica do projeto, além dos estudos sobre o real, dos quais se destacam os de Foster (1996) e de Ortega y Gasset (2008), constam estudos teóricos que tratam da natureza da poesia lírica e das características da poesia moderna, como Cohen (1974), Friedrich (1978) e Paz (2012), entre outros, além dos textos que poderão fornecer subsídios para aprofundar questões relacionadas à metapoesia, às metáforas e às dicotomias presentes na lírica moderna. Bibliografia ALVES, I. M. dos S. F. 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Esta pesquisa, ainda em estágio inicial, pretende dar continuidade ao estudo sobre a poesia de Emily Dickinson iniciado e desenvolvido durante a pesquisa de Mestrado que resultou na dissertação intitulada A questão da autoria feminina na poesia de Emily Dickinson. Durante esse trabalho, propomo-nos a investigar como alguns poemas1 de Emily Dickinson poderiam demonstrar textualmente a consciência dos dilemas envolvidos na relação poeta/mulher, em especial no embate com uma tradição literária que exclui a mulher da atividade da escrita. Verificamos que as imposições da sociedade patriarcal do século XIX buscavam fazer com que as mulheres se adequassem a determinados padrões de comportamento que não incluíam, por exemplo, a vocação poética. Fazendo parte dessa dinâmica social, Emily Dickinson criou maneiras próprias de enfrentamento da tradição patriarcal tanto em sua vida pessoal – como a autoreclusão, por exemplo – como em sua poesia – visível em suas ironias, ambiguidades, metáforas e posicionamento do eu-lírico em relação a questões consideradas incompatíveis com a personalidade feminina. Por ser a autoria uma atividade essencialmente masculina e se tornar autor de um texto é se tornar seu pai-patriarca, não há lugar para a autoria feminina na tradição literária, pois ela não pertence a essa linhagem patriarcal. Diante disso, entendemos que a produção textual realizada por uma escritora como Emily Dickinson pode, de alguma forma, deixar entrever o questionamento dos valores impostos pelo patriarcado, além de se fazer perceber o conflito feminino entre encaixar-se nesses valores e superá-los. Assim, o estudo da autoria feminina não almeja encontrar uma oposição ao masculino, 1 Foram analisados o poema J 303 / Fr 409, “The Soul selects her own Society –”, o poema J 199 / Fr 225, “I'm "wife" – I've finished that –”, e o poema J 754 / Fr 764, “My Life had stood – a Loaded Gun –”. Além deles, diversos outros poemas foram utilizados para verificarmos a validade de nossas afirmações sobre a poesia de Emily Dickinson. 374 Descrição das pesquisas mas sim a consciência, no texto, de que masculino e feminino são construções discursivas regidas por uma dinâmica social dentro de determinada cultura. Diante disso, consideramos que os recursos de criação poética privilegiados por Dickinson (a ambigüidade, a ironia, a fragmentação, a construção imagética, entre outros) podem se relacionar a uma preocupação constante em se opor a padrões tradicionais da linguagem, em um nítido movimento de contestação dos valores estabelecidos literária e socialmente, pois os desvios que a poeta realiza são desvios intencionais, que visam determinado efeito, e não imprecisões técnicas. A partir disso, sugerimos que sua obra se revela como uma poesia muitas vezes de transgressão às normas poéticas e comportamentais da sociedade em que a poeta viveu, assumindo um caráter de subversão à ideologia dominante de seu contexto. A partir de nossos estudos anteriores, verificamos que o fato de a poesia dickinsoniana ser tão marcada pela ambigüidade, pelas construções metafóricas e pela multiplicidade de sentidos, resultando em uma obra de alta complexidade intelectual, deve-se, entre outros fatores estudados pela crítica em geral, ao modo como a poeta entende sua identidade feminina e poética fora do cânone e à sua maneira de trabalhar a palavra para superar a angústia advinda dessa identidade em conflito com o fazer poético. Em outras palavras, concluímos que o modo de lidar com o duplo movimento de uma auto-afirmação poética e uma auto-negação pessoal se concentra na criação de uma escrita palimpsêstica, isto é, pela sobreposição de duas camadas de sentido – texto e subtexto. Assim, pela leitura e análise dos poemas propostos durante a pesquisa de Mestrado, pudemos comprovar que os papéis desempenhados pelos gêneros feminino e masculino são discutidos pela poeta no subtexto de seus versos, fazendo emergir do texto a consciência das diversas relações que a noção de superioridade de um gênero sobre o outro impôs à mulher, social e literariamente. Do trabalho com a palavra desprendido de convenções poéticas e/ou sociais, Emily Dickinson nos proporciona múltiplos significados contidos sob a superfície dos poemas, o que faz com que seus versos se abram a diferentes abordagens: estudam-se as metáforas privilegiadas pela poeta, a ironia de seu sujeito lírico, as imagens relacionadas à natureza, sua expressão elíptica, dentre diversos outros tópicos de pesquisa. Acreditamos, contudo, que esses aspectos marcantes da poesia de Emily Dickinson, quando analisados sob a ótica da crítica literária feminista, revelam por meio do subtexto as questões envolvidas no conflito entre a consciência de gênero e a consciência da autoria. 375 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Diante disso, nossa pesquisa bibliográfica demonstrou a inexistência, no Brasil, de trabalhos acadêmicos que se proponham a estudar aprofundadamente o papel do subtexto na poesia de Emily Dickinson, papel esse que acreditamos ser da maior relevância para a compreensão de sua obra de modo geral e, mais especificamente, para a compreensão de seu processo de escrita poética enquanto produto da autoria feminina. A ênfase de nosso trabalho deverá recair sobre a análise de poemas para que possamos verificar, de fato, a validade de nossa hipótese – de que a compreensão do subtexto possa levar à compreensão do processo de criação poética, estando este vinculado à consciência poética e individual do conflito entre o ser poeta e ser mulher na sociedade patriarcal. Para tanto, este estudo considerará o contexto histórico-social da poeta como fator indissociável de sua produção literária, uma vez que acreditamos que dentro da tradição patriarcal o poder do discurso é masculino, restando às mulheres a obrigação do silêncio. Nesse sentido, a expressão poética de Emily Dickinson, contrária aos ideais patriarcais, desafia a autoridade masculina e, por conseqüência, toda a tradição literária. Porém, essa tomada de autoridade se dá de forma velada para que seja possível exprimir as angústias de ser autora e de ser mulher e, ao mesmo tempo, contornar as limitações impostas pelas instituições patriarcais. Em The Madwoman in the Attic (1984) Gilbert e Gubar argumentam que a releitura de escritoras como Jane Austen, as irmãs Brontë, Christina Rossetti e Emily Dickinson, assim como de outras autoras não incluídas no cânone literário ocidental as levou a identificar uma tradição literária feminina que se posiciona em resposta à coação sociocultural do patriarcado e que se concretiza na criação de narrativas simbólicas permeadas por esse sentimento de opressão: [...] Significantly, as my colleague [Susan Gubar] and I reread the literature of these women, we saw that what they wrote may have seemed docile enough [...] but that, like Dickinson’s work, it was often covertly subversive, even volcanic, and almost always profoundly revisionary.[…] In these narratives madwomen like Bertha Mason Rochester function as doubles through whom sane ladies like Jane Eyre (and Charlotte Brontë) can act out fantastic dreams of escape, or volcanic landscapes serve as metaphors through which apparently decorous spinsters like Emily Dickinson can image the eruption of anger into language.2 (GILBERT, 1985, p.35) 2 “Significativamente, conforme a minha colega [Susan Gubar] e eu relíamos a literatura dessas mulheres, nós vimos que o que elas escreviam pode ter parecido dócil o suficiente [...] mas que, como a obra de Dickinson, era com freqüência secretamente subversivo, até mesmo vulcânico, e quase sempre 376 Descrição das pesquisas Gilbert complementa ainda que ao fazer uso dessa estratégia de escrita, […] these literary women were revising the world view they had inherited from a society that said women mattered less than men did, a society that thought women barely belonged in the great parade of culture, that defined women as at best marginal and silent tenants of the cosmic mansion and at worst guilty interlopers in that house.3 (1985, p.35) A leitura mais aprofundada desse subtexto, no entanto, seria possível apenas à audiência feminina, que pode reconhecer nessa estratégia suas próprias angústias. Assim, o subtexto se torna um instrumento que possibilita à escritora esconder sua consciência sobre as relações de gênero em seu contexto e na tradição literária, mas, ao mesmo tempo, é também por meio dele que essa consciência se revela e pode ser discutida pela expressão literária feminina: From Austen do Dickinson, these female artists all dealt with central female experiences from a specifically female perspective. [...] women from Jane Austen and Mary Shelley to Emily Brontë and Emily Dickinson produced literary works that are in some sense palimpsestic, works whose surface designs conceal or obscure deeper, less accessible (and less socially acceptable) levels of meaning. Thus these authors managed the difficult task of achieving true female literary authority by simultaneously conforming to and subverting patriarchal literary standards.4 (GILBERT; GUBAR, 1984, p. 72-3) Além disso, para Alicia Ostriker (1985) as mulheres de maneira geral sempre tentaram se apropriar da linguagem e do discurso para que pudessem se expressar literariamente e o reconhecimento do subtexto como estratégia de subversão às regras profundamente revisionista. [...] Nessas narrativas mulheres loucas como Bertha Mason Rochester atuam como duplos através de quem senhoritas sãs como Jane Eyre (e Charlotte Brontë) podem expressar sonhos fantásticos de fuga, ou paisagens vulcânicas servem como metáforas através das quais solteironas aparentemente decentes como Emily Dickinson podem retratar a erupção da ira em linguagem.” (Tradução nossa) 3 “[…] essas mulheres literárias estavam revisando a visão de mundo que elas tinham herdado de uma sociedade que dizia que as mulheres eram menos importantes que os homens, uma sociedade que pensava que as mulheres mal pertenciam ao grande desfile da cultura, que definia as mulheres na melhor das hipóteses como marginais e inquilinos silenciosos da mansão cósmica e na pior das hipóteses como intrusas culpadas naquela casa.” (Tradução nossa) 4 “De Austen a Dickinson, todas essas artistas mulheres lidaram com experiências femininas centrais de uma perspectiva especificamente feminina. [...] Mulheres de Jane Austen e Mary Shelley a Emily Brontë e Emily Dickinson produziram obras literárias que são de alguma forma palimpsestos, obras cuja superfície esconde ou obscurece níveis de significado mais profundos, menos acessíveis (e menos aceitos socialmente). Assim essas autoras lidaram com a difícil tarefa de alcançar a verdadeira autoridade literária feminina ao sujeitarem-se aos padrões literários patriarcais e simultaneamente os subverter.” (Tradução nossa) 377 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa do patriarcado se tornou uma peça-chave para a decifração de uma tradição literária feminina: “Women writers have always tried to steal the language. What several recent studies demonstrate poignantly is that throughout most of her history, the woman writer has had to state her self-definitions in code form, disguising passion as piety, rebellion as obedience”5 (p.315). Por estarmos ainda no início deste trabalho, temos nos concentrado principalmente na leitura de textos teóricos e de poemas e no cumprimento de créditos em disciplinas. Reconhecemos, também, a necessidade de revisão de nosso projeto inicial que tem sido feita ao longo deste ano na tentativa de suprir algumas lacunas, identificar e corrigir as falhas. Bibliografia ABRAMS, M.H. The Norton anthology of English literature. New York: Norton, 1979, 2 v. AGUIAR, Isabel Cristina Moreira de. Por uma poética do limite: o conceito de epiclese na poesia de Emily Dickinson. Mestrado. Brasília: UnB, 1998. ALVES, Ivia. Amor e submissão: formas de resistência da literatura de autoria feminina? In: RAMALHO, Christina. Literatura e feminismo: propostas teóricas e reflexões críticas. Rio de Janeiro: Elo, 1999. AMARAL, Ana Luisa Ribeiro Barata. Emily Dickinson: uma poética de excesso. Tese de doutorado. 533 f. Universidade do Porto: Porto, 1995. BADINTER, E. 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Com base na leitura da obra Le pacte autobiographique (1975), de Phillipe Lejeune, analisaremos a questão da autobiografia, especialmente, em Les rêveries du promeneur solitaire (1782), última obra que consagrou Jean-Jacques Rousseau como um dos precursores da modernidade. Para o desenvolvimento do tema da memória utilizou-se como arcabouço teórico as pesquisas realizadas por Sigmund Freud em A interpretação dos sonhos (1900), Escritores criativos e devaneios (1908[1907]), Recordar, repetir e elaborar (1914) e O bloco mágico (1924). Tais pesquisas concernentes ao trabalho do inconsciente e ao desenvolvimento do aparelho psíquico dirigem a leitura da memória no texto rousseauniano tecida, aqui, pelo viés psicanalítico. O inconsciente, componente essencial do aparelho psíquico, condiciona, segundo Freud, a personalidade e as atitudes humanas. Tendo em vista a releitura efetuada por Adélia Meneses (1995), Garcia-Roza (2004), Noemi Kon (2001), além da própria teoria freudiana, será realizada uma investigação a fim de que se possa apresentar a relevância da teoria do pai da psicanálise para a compreensão de obras anteriores bem como de obras posteriores. O tema da morte, associado nessa pesquisa, ao tema da memória constrói o discurso do cidadão suíço. A morte, dotada de sentido e propósito, tornou-se um dos eixos centrais das reflexões rousseaunianas em sua última obra. O encontro com ela denuncia a postura legitimada pelo genebrino em seus dias finais. O instrumental 382 Descrição das pesquisas teórico empregado como alicerce para o entendimento desse tema, que preocupou e preocupa a sociedade até os dias de hoje, será o trabalho realizado pelo filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), em Ser e tempo (1927). As discussões levantadas pelo autor no que tange às diferenciações entre ser e ente, em seu sentido filósofo, possibilitaram a percepção da morte como a finitude ou a cessação da existência humana. “[...]Je n’écris mes rêveries que pour moi”.1 (ROUSSEAU, 1972, p.42). Aqui, adentramos no universo autobiográfico do caminhante solitário. Jean-Jacques Rousseau em sua empresa de escrever para si, compõe sua terceira produção autobiográfica, Les rêveries du promeneur solitaire, após a escritura de dois trabalhos de mesmo caráter: Les Confessions e Les dialogues, ou Rousseau juge de Jean-Jacques. A obra, publicada, postumamente, em 1782, cede ao desejo rousseauniano de conhecer a si próprio e de desfrutar do sentimento da própria existência. Apresentada pelo próprio autor como o apêndice das Confissões “[...] ces feuilles peuvent donc être regardées comme un appendice de mes Confessions”, (ROUSSEAU, 1972, p.41), as Rêveries arquitetam o exame de consciência sincero e severo sensibilizado pelo narrador no decorrer do processo de escritura. O filósofo de Genebra esclarece que nada mais tem a confessar, e, por isso, não nomeia os devaneios de confissões. Com o coração purificado, Rousseau extingue as relações com seus contemporâneos, abstém-se da sociedade e oferta sua vida à solidão. De relevância universal, sobretudo para a literatura francesa, Les rêveries du promeneur solitaire, rompe com os modelos, até então, vigentes das obras literárias considerados na era clássica como os pilares das letras, e projeta o novo protótipo de texto, difundido a posteriori pelo movimento romântico, que procurou trazer à tona a faculdade da imaginação, não só como um método relacionado à criação literária, mas também como uma nova maneira de compreensão do próprio ser. A crítica rousseauniana aponta o filósofo de Genebra como pioneiro das ideias que tomam o ser como produto da racionalidade e da irracionalidade. Abandonando a filosofia do século XVIII, Jean-Jacques Rousseau, destaca-se pela poeticidade e pela intensidade de expressão de seus sentimentos. Conjugando poesia e filosofia, as Rêveries, transmitem os desejos, até então, inconscientes do cidadão de Genebra. * As passagens de Les rêveries du promeneur solitaire traduzidas em nota de rodapé são de autoria de Fúlvia Maria Luiza Moretto, 2.ª ed., Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1986. 1 “[...] eu não escrevo meus devaneios senão para mim”. (ROUSSEAU, 1986, p.27). 383 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa A psicanálise eclode no século XIX com os estudos do médico vienense Sigmund Freud (1856-1939). Partindo de uma nova concepção teórica para a época em questão, pois até o século XVIII não fora formulado nenhum princípio alusivo ao trabalho da memória do inconsciente, o psicanalista, desenvolve a noção do inconsciente e revela que certas atitudes humanas não são regidas pelas ações conscientes, mas pelas volúpias inconscientes, denominadas por Freud, de desejos reprimidos. Desse modo, para o médico vienense, desejos reprimidos são relegados ao inconsciente e por intermédio dos sonhos, dos atos falhos, do chiste, dos lapsos de linguagem retornam ao indivíduo sem que ele se dê conta de tais processos. O interessante da intersecção desenvolvida entre a literatura, a psicanálise e a filosofia, nessa dissertação, é estabelecer de que modo a arte literária vem suprir a vontade inconsciente. Além disso, interessamo-nos na maneira pela qual o texto em si, enquanto gênero literário, modela-se para transpor no papel aquilo que é peculiar à alma: não é dado bruto que importa, mas sua transposição para o papel, e sua necessária transformação, quando entram recursos estilísticos, a metáfora, a metonímia, o símbolo, a alegoria; quando atuam os processos de elaboração poética de condensação e deslocamento [...]. A memória é apenas matéria-prima de um processo de mimese. (MENESES, 1995, p.160, grifo da autora). A memória é, portanto, o núcleo das Rêveries. A iniciativa de voltar ao passado, retrocedendo em análise de sua própria existência conduz Rousseau ao encontro com seu eu verdadeiro. No entanto, a volta ao passado é distorcida, haja vista a distância temporal estabelecida entre o tempo passado e a vivência atual. As lembranças envelhecidas mesclam-se com as percepções atuais e, o passado reconfigurado no presente, confere ao escritor genebrino momentos de felicidade plena. Todavia, é preciso reforçar que o passado não é reconstituído completamente, já que o colorido psicanalítico deturpou certos instantes, devido às repressões firmadas pelas vozes sociais. De acordo com a perspectiva freudiana, a busca da origem, ou seja, “o eterno retorno” é a chave de compreensão da existência humana. O que se vive hoje, para o psicanalista, trata-se, na realidade, de uma experiência secundária e só encontra um sentido se conectado com a vivência passada. Dessa forma, faz-se necessário o desvelamento das lembranças escondidas para o entendimento do presente e, também, do destino futuro. Sempre é preciso ter conhecimento sobre um “antes”, a saber, a 384 Descrição das pesquisas retroação é o movimento característico do inconsciente, em que num momento posterior, reconhece-se o que se procurava desde o início. Assim, o “eterno retorno do mesmo” na sua tendência zeradora, de retorno ao estado inanimado da morte, traz o rastro característico permanente do ser. Aquilo que o sujeito repete compulsivamente na busca ativa pelo seu resgate- mesmo que não o saiba- remete a uma marca, a ser decifrada como o destino predito num oráculo obscuro. O futuro está escrito num “lá atrás”, porém ele se atualiza, se traduz incessantemente, faz passe. Estranha memória essa, onde há retorno do mesmo por vias diversas, em versões superpostas mas não coincidentes. (WAJNBERG, 1997, p.107). E aí se observa uma coisa interessantíssima: Rousseau, nas Rêveries, acredita fielmente que a morte é a concretização de sua existência. Diríamos que o genebrino, diante dela, analisa sua autêntica função em vida. Como salienta Paule Adamy (1997) a morte é o ponto de partida para as renovações existenciais apreciadas pelo escritor das Confissões. O homem enquanto Dasein vive na inautenticidade, e com a chegada da morte consegue dar a sua existência um sentido autêntico e verdadeiro. A partir do estudo da memória do sistema inconsciente, proposto por Freud, conseguimos esclarecer certas falhas na memória do narrador desse texto em prosa poética. O próprio Rousseau reconhece que a escrita desinteressada das Rêveries é produto de suas oscilações anímicas. Ayant donc formé le projet de décrire l’état habituel de mon âme dans la plus étrange position òu je puisse jamais trouver un mortel, je n’ai vu nulle manière plus simple et sûre d’exécuter cette entreprise que de tenir un registre fidèle de mes promenades solitaires et des rêveries qui les remplissent quand je laisse ma tête entièrement libre, et mes idées suivre pente sans résistance et sans gêne. Ces heures de solitude et de méditation sont seules de la journée où je sois pleinement moi et moi sans diversion, sans obstacle, et où je puisse véritablement dire être ce que la nature a voulu.2 (ROUSSEAU, 1972, p.44). A estranha situação a que alude Rousseau diz respeito ao estado de sua alma. Angustiado com essas situações singulares, leia-se, a paranoica ideia do complô, as 2 “Tendo, portanto formado o projeto de descrever o estado habitual de minha alma na mais estranha situação em que possa jamais encontrar-se um mortal, não vi nenhuma maneira mais simples e mais segura de executar essa empresa do que a manter um registro fiel de minhas caminhadas solitárias e dos devaneios que as preenchem, quando deixo minha cabeça inteiramente livre e minhas ideias seguirem sua inclinação, sem resistência e sem embaraços. Estas horas de solidão e de meditação são as únicas do dia em que sou plenamente eu mesmo e em que me pertenço sem distração, sem obstáculos e em que posso verdadeiramente dizer que sou o que desejou a natureza”. (ROUSSEAU, 1986, p.31). 385 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa constantes alterações inconscientes e, sobretudo, decidido a reorganizar seu projeto de existência, a arte lhe serve de instrumento com intuito de efetivar seus planos. Entregando-se às reflexões enquanto caminhava solitário, o registro fiel dessas contemplações encantadoras que, muitas vezes, terminavam em meditações é o benefício de uma obra que consagrou Jean-Jacques Rousseau como o anunciador do Romantismo. Optando pela reclusão e, admitindo a importância da solidão na busca do conhecimento de si, Rousseau, chega a essas confissões por mérito próprio. Ser verdadeiramente aquilo que a natureza pretendeu é aprovar a função da morte em sua vida. Escrevendo, Rousseau reinventava sua história, contudo de agora em diante é feliz “[...] non d’un bonheur imparfait, pauvre et relatif, tel que celui qu’on trouve dans les plaisirs de la vie, mais d’un bonheur suffisant, parfait et plein, qui ne laisse dans l’âme aucun vide qu’elle sente le besoin de remplir”.3 (ROUSSEAU, 1982, p.101). A felicidade suficiente, perfeita e plena designada por Jean-Jacques é aquela encontrada no isolamento. Somente livre de todas as paixões é que o homem atinge o seu ajuste perfeito. A narrativa de si é a máquina da salvação, dado que por meio dela Rousseau evolui não só exteriormente, mas, em particular, internamente. O amadurecimento pessoal do filósofo de Genebra efetiva-se com a proximidade da morte. Rousseau não a teme, ela a aceita, pois sabe que ela é a prerrogativa dos mortais. Sábios são aqueles que admitem a importância da morte, como evidencia Heidegger, só com ela o Dasein alcança a autenticidade. Memória e morte são temas fundamentais nas Rêvereis. O entrelaçamento dessas duas questões configura a realidade do autor dos Diálogos. Deixando-se governar pela alma, Rousseau instaura na literatura uma nova forma de escrita literária, denominada prosa poética. A poesia completa os instantes em que o discurso filósofo não é suficiente para descrever as sensações que dispunha nas caminhadas solitário. Fixá-las pela escrita é a alternativa encontrada pelo narrador para reduplicar, ou melhor, repetir sua existência. Gravando suas memórias, Rousseau poderá a qualquer momento ir ao encontro do que desejar, pois a felicidade está ali eternizada nas folhas de papel. Como ressaltamos no início dessa apresentação a pesquisa está em fase de desenvolvimento, tendo em vista o exame geral de qualificação. Vale ressaltar que as disciplinas cursadas no ano anterior foram de extrema pertinência para a delimitação do 3 “[...] não de uma felicidade imperfeita, pobre e relativa, como a que se encontra nos prazeres da vida, mas de uma felicidade suficiente, perfeita e plena, que não deixa na alma nenhum vazio que sinta a necessidade de preencher”. (ROUSSEAU, 1986, p.76). 386 Descrição das pesquisas corpus, para o aprofundamento da bibliografia bem como para a escolha do estudo da memória e de sua relação com o inconsciente. Dedicamo-nos, agora, à própria redação da dissertação e, também, a algumas leituras complementares que nos ajudarão na compreensão das obras do filósofo genebrino. Bibliografia ADAMY, P. Les corps de Jean-Jacques Rousseau. Paris : Honoré Champion Éditeur, 1997. ARIÈS, P. História da morte no Ocidente. Trad. de Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. ARISTÓTELES. Poética. Porto Alegre: Globo, 1966. BARGUILLET, F. Le roman au XVIIIe siècle. Paris: PUF, 1981. BARGUILLET, F. Rousseau ou l’illusion passionnée. Les Rêveries du promeneur solitaire. Paris: PUF, 1991. BEGUIN, A. L’âme romantique et le rêve. Paris: J. Corti, 1963. BENJAMIM, W. O narrador. In: _____. Magia e técnica, arte e poética: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985 (Obras escolhidas, 1), p. 197-221. BERGSON, H. Matéria e Memória – Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Editora Martins e Fontes, 1990. BORGES, J. L. Funes, o memorioso. In: Ficções. 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Na dissertação de mestrado intitulada Espaço e focalização em The ambassadors, de Henry James, foi possível identificar as diferentes modalidades de focalização e instauração do espaço, o aspectoambíguodo espaço europeu, a relação entre o conceito de verdade e o espaço iluminado pela luz natural e a ligação entre falsidade e escurecimento, com base, principalmente, em Osman Lins, Iuri Lotman e Gérard Genette. Essa pesquisa anterior sobre a instauração espacial e os agentes da percepçãotambém apontoupara a questão da epifania em The ambassadorse, a partir das considerações de James Joyce, foi possível perceber a ligação entre o momento epifânico de Strether – o clímax narrativo – e o espaço que o circunda, uma pousada rural francesa. Considerando os estudos já realizados, foi possível verificar queas narrativas jamesianastendem a representarmomentos variados e difusos em que os seres cognoscentes tomam consciência de algum fenômeno relevante anteriormente ignorado, mesmo que o objeto desencadeador seja o mais trivial possível. The ambassadors, por exemplo,trata da viagem de Lewis Lambert Strether a Paris na função de embaixador da família Newsome a fim de fazer com que o jovem Chadwick retorne a Massachusetts. Tal deslocamento espacial que alicerça o romance se torna elemento essencial para engendrar o autoconhecimento de Strether por meio de sua epifaniana pousada Cheval Blanc. O tema romanesco da representação não se dá somente por meio desse enredo, mas também pelos artifícios estruturais do romance, como o paradigma da focalização: o narrador, o protagonista e as demais personagens 390 Descrição das pesquisas representamperspectivassingulares e parciais sobre determinado objeto; são embaixadores fragmentários de um todo, de uma determinada concepção cuja totalidade é inatingível. The beast in the jungle, por sua vez, trata da espera de John Marcher por um acontecimento único que mudaria sua vida para sempre. Aguarda o que chama de ataque da fera ao lado de sua confidente e amiga May Bartram por toda sua vida. Entretanto, Marcher é incapaz de perceber que o ataque já fora dado, pois havia perdido várias oportunidades de ser feliz e amar. O tema central da novela é a compreensão tardia da existência, um descompasso entre os acontecimentos da vida do protagonista e sua epifania no cemitério. Por isso, conforme nossa interpretação, a matéria-prima condicional para a aquisição de experiência é o encontro entre dois pólos: os elementos do espaço circundante e a apreensão, a percepção do sujeito. Da mesma forma, já exploramos o panorama de localização histórica e social das obras de James: aera dourada estadunidense ou Gilded Age (definida entre a década de 1870 e a virada do século XX). Tal período se refere ao desejo estadunidense de se livrar de seu passado rural e se estabelecer como potência por meio do acúmulo de capital e inovações tecnológicas. Entretanto, taisconsiderações sobre o contexto sóciohistórico só ganham sentido a partir de sua transfiguração artística na literatura: o objetivo de James não é tratar de assuntos políticos e sociais historicamente datados porquedessa conjuntura só lhe interessa o que diz respeito às idiossincrasias do ser humano. Em The ambassadors e The beast in the jungle, esse referido contexto bifurcado é repensado artisticamente ao apontar, por exemplo, para a dicotomia entre ser e parecer. As temáticas da visão literária de Henry James se dedicam a romper a futilidade das aparências e buscar a essencialidade por meio da especulação das múltiplas facetas da realidade. Constatamostambém que o diálogo das obras de James com o Modernismo literárioocorre não somente pela abordagem temática da consciência humana, mas pelo tratamentoestrutural dafocalização, uma técnica “oblíqua” e indireta construída por meio da transmissão da informação ao leitor através da mente de uma personagem: têmse tanto as marcas do narrador quanto da consciência escolhida. A produção literária de James alcança um interstício, dialogando tanto com o Realismo, de que o autor é considerado precursor, e o Modernismo. 391 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa A fecundidade da obra jamesiana permite prosseguir essa pesquisa, com a proposta de investigar de forma sistemática as articulações entre espaço e, agora, epifania. Para isso, já realizamos uma análise inicial mais profunda do espaço no romance e na novela. Tal releitura possibilitou estudarmais detalhadamente os agentes instauradores do espaço, a presença marcante dos protagonistas, as figuras de linguagem associadas, a quantidade de detalhes na descrição, o nível de dinamicidade sugerido pelo verbo da oração e o tipo de discurso que estabelece o espaço. Da mesma forma, verificamos que os momentos de percepção mais aguçada das personagens constituem circunstâncias que poderíamos chamar espelhantes: considerações de uma segunda personagem sobre uma terceira, construindo paulatinamente esclarecimentos mútuos, complementares e interdependentes. Em nossa leitura pormenorizada do corpus, verificamos, por exemplo, que sobejam construções linguísticas com múltiplas interpolações frásicas, que retardam a completude da ideia da oração, e frases inacabadas, deixadas em suspense. Tais procedimentos são completamente coerentes com a estética jamesiana: demonstram a fascinação do autor com a relação em perspectiva e sua deferência pela incompletude da percepção. Poderíamos inferir que o narrador se recusa, na própria forma linguística, a rematar alguma ideia de modo direto e imparcial. Atentamo-nos igualmente aosprocedimentosformais como aliterações, reticências, parênteses e paralelismos. É possível verificar a pertinência, por exemplo, da figura de linguagem da anadiplose, que reforça, no nível da construção linguística, o encadeamento das diversas visões singularesdas personagens sobre determinado objeto. Em meados deste segundo ano de doutorado, realizamos os desdobramentos de análise citados e cumprimos integralmente os créditos referentes às disciplinas. As respectivas monografias trouxeram relevantes aparatos conceituais para nossa pesquisa: o trabalho intitulado Espaço e epifania em The ambassadors foi apresentado no 60º. Seminário do GEL (Grupo de Estudos Linguísticos do Estado de São Paulo) e o artigo Representações da descoberta: espaço e epifania em The ambassadors foi aceito para publicação na Revista Estudos Linguísticos. Também apresentamos a comunicação Lord of the flies como narrativa poética: espaço, tempo, mito e alegoria no IV SELL (Simpósio Internacional de Estudos Linguísticos e Literários), cujo artigo está sendo elaborado para submissão aos anais do evento. 392 Descrição das pesquisas Neste momento também está em curso a análise minuciosa de The beast in the jungle assim como a redação prévia das análises e concepções teóricas. Com base, então, nas investigações sobre o espaço literário e o momento epifânico de ambas as obras, buscamos investigar a correlação latente entre tais categorias romanescase se Henry James as explorou de modo mais intenso e sistemático do que o demonstrado em The ambassadors. Das etapas a serem realizadas, afinal, citamos a análise dos prefácios de Henry Jamesa fim de investigar se o autor discorreu sobre o vínculo entre o momento epifânico e o espaço e, da mesma forma, o exame da validade em aprofundar possíveis considerações filosóficas sobre a fenomenologia. Da linguagem jamesiana, que se ocupa sobremodo do conhecimentonos termos do esquema espaço-percepção-epifania, surgem questionamentos que podem ser conjugados coerentemente, por meio de uma orientação mutuamente iluminadora,com determinadas reflexões fenomenológicas. Bibliografia ARMSTRONG, Paul. The phenomenology of Henry James.Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1983. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989. BLACKMUR, Richard P. (Org.). The art of the novel. New York: Charles Scribner’s Sons, 1934. BOOTH, Wayne C. The rhetoric of fiction. 2. ed. Chicago: The University of Chicago Press, 1983. EDEL, Leon (Ed.). Henry James: a collection of critical essays. Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, Inc., 1963. FREEDMAN, Jonathan (Ed.). The Cambridge companion to Henry James. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. FRIEDMAN, Norman. Point of view in fiction: the development of a critical concept. 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Antonio Cândido chama a atenção para essa presença marcante da vida do sertanejo mineiro e sua importância para a obra do escritor: A experiência documentária de Guimarães Rosa, a observação da vida sertaneja, a paixão pela coisa e pelo nome da coisa, a capacidade de entrar na psicologia do rústico, tudo se transformou em significado universal graças à invenção, que subtrai o livro à matriz regional para fazê-lo exprimir os grandes lugares-comuns, sem os quais a arte não sobrevive [...] na verdade o Sertão é o Mundo. (CANDIDO, 2006, p. 112) Percebemos então que o mundo do sertão é o mundo mágico, onde a natureza, a religião e as lendas são matérias para composição de uma narrativa que o crítico chamou de super-regionalista. Não somente em “São Marcos” e “Corpo Fechado”, mas em outras obras do escritor mineiro essas crenças estão diretamente ligadas à fé religiosa. Em Primeiras histórias temos a história de Nhinhinha que faz milagres e mora em um vilarejo chamado “Temor-de-Deus”. Ainda podemos destacar o romance Grande Sertão: Veredas, em que o narrador-protagonista Riobaldo também tem o corpo fechado em uma espécie de pacto com o Diabo. Em “São Marcos” encontramos o mágico também ligado ao religioso. O próprio nome do conto nos remete a um dos apóstolos de Cristo, Marcos, que em seu evangelho conta a trajetória de Jesus, a partir de seu batismo até sua ressurreição, descrevendo nesse percurso os vários milagres e curas, feitos por Jesus, como exemplo de fé incondicional. Além disso, existem várias referências no texto que leva ao religioso, “Mas minha poesia viajara muito e agora estava bem depois no nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo.” (ROSA, 1984, p. 206); “Louvado seja Deus, mais a minha Santa Luzia que cuida dos olhos da gente!” (ROSA, 1984, p. 212). Outra confirmação deste 395 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa caráter sincrético da religião em “São Marcos” é a reza brava utilizada pelo protagonista como meio de livrar-se do feitiço que lhe fora colocado. Algumas versões dessa reza são de cunho católico, outra usada por São Cipriano é também utilizada pelo candomblé, e outras variações populares têm o intuito de realizar magia, simpatia ou feitiço. A escolha das categorias narrativas também se torna importante para essa ligação com o mágico. O narrador de “São Marcos” apresenta, no início, a ideia de que não acredita em magia, mas sua atitude ambígua mostra para o leitor o contrário. Além disso, a forte crença da população local, representada na fala de Sá Nhá Rita Preta, no episódio do feitiço feito pelas crianças, nas histórias contadas por Aurísio e ainda na própria aventura do protagonista, mostra porque é possível pensar na figura antropológica do feiticeiro como parte importante para a caracterização da obra como realista mágica. Segundo Leonel (2000, p.195), em todas essas sub-histórias e na história principal Guimarães Rosa atribui à palavra sentidos mágicos e poéticos. O poder da palavra mágica explicita-se no nível da diegese – na história principal e nos encaixes que relatam fatos sobrenaturais advindos da recitação da reza. O poder da palavra, como poesia está na sub-história – a do duelo poético –, no conteúdo do discurso dissertativo do narrador e, especialmente, no nível da expressão: no uso que, no próprio texto, Guimarães Rosa faz da linguagem, em especial na descrição da natureza, transformando palavra em arte. (LEONEL, 2000, p. 195) O desafio poético com “Quem será” mostra, portanto, que em “São Marcos” há uma forma de teorização do signo linguístico enquanto objeto vivo e reflexível. Ao dissociar significado e significante da palavra, Guimarães Rosa vai abrir espaço em sua narrativa para inserir toda a força expressiva da linguagem poética do conto. Podemos perceber ainda, que o embate poético entre o narrador e “Quem-será”, que acontece no bambuzal, vai configurar, no plano narrativo, um cruzamento entre diferentes universos, como céu e terra, Deus e homem, místico e mítico, que tem como força motriz de sua criação o próprio signo poético. Em “Corpo Fechado” também temos a forte presença da religião. O protagonista Manuel Fulô consegue se livrar do valentão Targino com uma faquinha e, além disso, não é atingido pelas balas do revólver, porque tem seu corpo fechado pelo feiticeiro Antonico das Pedras. A súbita coragem de Manuel não existiria se não fosse o feitiço, e 396 Descrição das pesquisas o feito é algo impossível de acontecer se pensado racionalmente. A escolha do narrador homodiegético aqui também reforça a teoria do mágico, uma vez que esse acontecimento está sendo narrado por um doutor, um ser racionalista, que dizia não acreditar em feitiços e feiticeiro, mas vê seu amigo derrotar o inimigo através de uma força extraordinária. Conforme o antropólogo Roberto DaMatta “[...] a religião é um modo de ordenar o mundo, facultando nossa compreensão para coisas muito complexas, como a ideia de tempo, a ideia de eterno e a ideia de perda e desaparecimento, esses mistérios perenes da existência humana.” (DAMATTA, 2001. p. 112) É através da religião que temos a naturalização do elemento mágico dentro do texto. Todos no arraial veem a feitiçaria como um ato de fé, e acreditam mesmo que ela tenha o poder de transformação. Por isso Manuel, embora cause espanto no Doutor, que é quem representa o racionalismo, vai conseguir vencer a batalha, porque acredita veementemente no poder da feitiçaria. Todos esses elementos regionais, a fé do povo mineiro e o poder de transformação que ela possui confirmam a tese de que Guimarães Rosa colheu no interior de Minas Gerais a matéria mágica para compor seus textos, reafirmando assim sua aproximação com o que Carpentier chamou de real maravilloso e Spindler nomeou realismo mágico antropológico, pois trata da realidade vivida pelo sertanejo mineiro, onde o mágico não é produzido artificialmente, mas é encontrado no cotidiano desse povo, na natureza e na sua realidade. O realismo mágico surge em um contexto em que os escritores pretendiam retratar uma realidade ampliada, muito além da representação do real banal. Nesse contexto, o realismo maravilhoso e o realismo mágico antropológico descrevem obras em que se manifestam as crenças e lendas populares de uma determinada cultura, sem perder de vista a racionalidade do mundo moderno. De modo geral, o que vai caracterizar o movimento realista mágico é a convivência e a compatibilidade entre o real e o irreal, como ocorre na prosa de Guimarães. Bibliografia BRANDÃO, C. R. Memória sertão: cenários, cenas, pessoas e gestos nos sertões de João Guimarães Rosa e de Manuelzão. São Paulo: Editorial Cone Sul, 1998. CANDIDO, A. O homem dos avessos. In: Tese e Antítese. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006. 397 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa __________. Sagarana. In: COUTINHO, E. F. (Org.) Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984. CAMARANI. A. L. S. O realismo mágico nas estórias de Guimarães Rosa e Mia Couto. In: Anais do X Congresso ABRALIC. Rio de Janeiro: UERJ, 2006. CHIAMPI, I. 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Entendendo poesia e crítica como atividades reflexivas fundamentadas na linguagem, as questões principais às quais pretendemos nos lançar são: a) Como se configura e opera a indistinção entre discurso poético e crítico em Murilo Mendes e Francis Ponge? b) Como se configura a voz poético-crítica para se adequar a um ato de dupla face como esse? c) O que se depreende da aproximação ou do distanciamento da conduta lírico-crítica, levando-se em consideração subjetividade e objetividade? Nesse sentido, esta pesquisa busca ler comparativamente os dois poetas tendo por horizonte poesia e crítica enquanto atos indistintos, de caráter inacabado, em que autor e leitor participam ativamente. Assim, os poemas aparecem como atos que configuram uma prática literária, que é lírica, crítica e criativa, a um só tempo. No centro dessa prática, os sujeitos lírico-críticos manipulam a criação partindo de um corpo-a-corpo com o texto, como fica claro com as obras que selecionamos para este estudo: de Murilo Mendes, O discípulo de Emaús (1945), Convergência (1970), Poliedro (1972) e Retratos-relâmpago (1973); de Francis Ponge, Proêmes (1948), Méthodes (1961), Pour un Malherbe (1965) e La table (1981). Poesia e crítica, então, podem ser compreendidas no sentido da poiesis, de uma construção que coloca em crise (cuja raiz etimológica é a mesma que a da palavra crítica) o lírico, o crítico, a prosa, a poesia, bem como uma ideia fechada de literatura e de gêneros literários. Descrição do Estágio Atual da Pesquisa 399 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Conforme o cronograma estipulado no início do curso, encontram-se em andamento a releitura crítica do corpus e ampliação do levantamento bibliográfico acerca da Teoria geral da Poesia e da Crítica, bem como da fortuna crítica dos poetas, seguidas de leitura. Vale ressaltar que o presente trabalho é fruto de dois projetos de pesquisa anteriores, ambos contemplados com bolsas FAPESP: uma Iniciação Científica centrada na poesia de Murilo Mendes; e um Mestrado que leu comparativamente o Poliedro (1972) muriliano e o Le parti pris des choses (1942) de Francis Ponge. Ao final de seu indispensável estudo sobre a obra do poeta brasileiro, intitulado Territórios/conjunções: poesia e prosa críticas de Murilo Mendes, Júlio Castañon Guimarães (1993) sugere a aproximação. Segundo ele, Murilo Mendes e Francis Ponge procedem (guardadas as singularidades de cada poeta) a um movimento de “nãodistinção entre gêneros” – prosa, poesia e crítica. É de tal ponto que partimos. Quando se trata do cosmopolita Murilo Mendes, é mais do que sabido o quanto as suas relações com poetas, pintores e artistas, são matéria de poesia em suas obras. Não só sob a forma de uma temática, mas por meio de um verdadeiro impulso crítico desempenhado por Murilo. Da parte de Ponge, o resenhista Heitor Ferraz Mello (2000) diz do livro de Leda Tenório da Motta, Francis Ponge: o objeto em jogo, “sentir falta de uma análise detida de alguns de seus poemas [de Francis Ponge]”. A réplica da autora, também publicada pelo caderno Mais! da Folha de S. Paulo, é definitiva: 1. O poeta Francis Ponge (1899-1988), ainda que não sem angústia, não faz qualquer distinção entre prosa e poesia, o que aliás, entre outras coisas, o leva a chamar o poema de “proema” ou “proêmio” (“proême”). Assim, quando eu comento longamente, no capítulo três, um dos mais extensos e torturantes textos de Ponge, o texto intitulado “Tentativa Oral” (inteiramente traduzido por mim noutra parte: “Francis Ponge, Métodos”, Imago, 1997), acho que estou fazendo bem aquilo que o resenhista diz que eu não faço, a saber: análise do... poema. (MOTTA, 2000a, aspas do autor, negrito nosso). Ora, ao chamar de poema o longo texto de Francis Ponge intitulado “Tentativa oral”, transcrição de uma célebre conferência feita em Bruxelas, em 1947, a autora nada mais faz que designar a potência lírico-crítica desse texto. Octavio Paz (1984, p.85, grifo do autor), em seu Os filhos do barro, diz que os poetas do Romantismo “[...] concebem a experiência poética como uma experiência vital, na qual o homem participa totalmente. O poema não é apenas uma realidade verbal: é também um ato. O poeta diz e, ao dizer, faz.” Do modo como foi tomada, a 400 Descrição das pesquisas citação deixa ler, na poesia moderna de Murilo e Ponge, uma certa inclinação à função romântica do poeta-crítico. Em outras palavras, como operador da linguagem que quer transmutar a realidade. Mistura de arte e vida, são estes mesmos os resquícios da vanguarda nos dois autores (o Surrealismo, mais especificamente). Mas, o que nos interessa é pensar em poesia e crítica como atos que, embora tenham um fim em si mesmo (são poesia, afinal) têm caráter totalmente inacabado e criador. A crítica é também um ato que demanda o diálogo, o posicionamento, o julgamento, a subjetividade. Portanto, em primeiro lugar, pode-se afirmar que poesia e crítica em ambos os poetas devem ser entendidas como atos indistintos, porque se invadem um ao outro, sempre em tensão e que se configuram enquanto conjunto de teor eminentemente contínuo e criador. Ora, o próprio Murilo “[e]ncara a poesia como fenômeno diário, constante, permanente, eterno e universal. Considera seus poemas como ‘estudos’ que outros poderão desenvolver.”1 Mas, ao contrário de Ponge, o que se tem com Murilo Mendes é tanto mais o movimento de extroversão do que o voltar-se sobre si. Daí se depreende a noção de um grande tecido, de uma continuidade que se estabelece especialmente nas obras finais do brasileiro por meio de um intenso diálogo com o que vem de fora – literatura, personalidades, artes plásticas, cultura. Estes “estudos”, portanto, “[...] dão a impressão do ‘inacabado’ e tendem a se explicar uns pelos outros. Vinculadas a isso estão algumas características de sua criação: a produção por séries, o improviso e o escrever muito. Tudo isso provoca uma impressão fortíssima de homogeneidade da obra, como se esta se construísse em torno de um assunto único.” (MOURA, 1995, p.60, grifo do autor). Muito importante é o movimento de inacabamento e a noção de homogeneidade, inclusive ao redor de um único assunto. Porque, de fato, tal movimento permite depreender uma série de atos poéticos que se aproximam de uma prática literária que é lírica, crítica e criativa. Daí porque, ao se voltar à literatura, por exemplo, em poemas como “Murilograma a Baudelaire”, ou nos aforismos de O discípulo de Emaús (que dialogam de modo intenso com Ismael Nery), ou nos vários poemas dedicados a “Graciliano Ramos”, vemos que o que ali se instaura na obra de Murilo Mendes não é pura homenagem. Há diálogo, juízo, construção, criação, claramente explícitos. A forma é atuante, os discursos se sobrepõem: do poeta, do crítico, do criticado, do homenageado, do lido. É este caráter de prática literária e 1 Num auto-retrato da década de 40 citado por Murilo Marcondes de Moura (1995, p.59). 401 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa indistinção de gêneros e posturas que permite aproximar de maneira sui generis Murilo Mendes e Francis Ponge. Num estudo intitulado Francis Ponge: actes ou textes, Jean-Marie Gleize e Bernard Veck (1984, p.19, grifo do autor) afirmam que « [...] Ponge récusait, quant à lui, la distinction trop marquée entre ce qu’il appelle ses ‘moments critiques’ (les proêmes) et ses moments lyriques » (les poèmes). » Daí aparece a « [p]ratique, donc, comme notion désignant un texte, et non simplement un poème ; c’est-à-dire un travail, un acte, ou plutôt, car le pluriel est ici important, une série d’actes qui sont à la fois, simultanément ou indissolublement liés les uns aux autres, critiques et lyriques, proématiques et poétiques [...] » Vejamos que o Pour un Malherbe se debruça sobre a obra e a herança do mestre francês de modo que o empenho do juízo crítico ali estabelecido recai sobre a língua francesa (e não somente, frise-se). O ato, então, configura-se por meio da manipulação de uma matéria linguística que é viva, que continua, na leitura do leitor e do crítico Francis Ponge. Mas, assim como na obra de Murilo Mendes, há uma reverberação do material, desse ato, disseminado por toda a obra e que se constitui enfim numa prática literária que assume os foros quase que de um novo gênero literário. Nesse sentido, a prática pongiana é um tanto mais matizada que a muriliana. Coisa que não se dá de modo diverso com o longo livro-poema La table, em que as provas, os rascunhos, os erros do processo de escrita, ali estão, como se a todo momento o texto se criticasse a si próprio, como se vacilasse no seu ato de construção, que se torna inclusivo porque pressupõe o leitor (que imagina e compõe o livro) e ainda uma voz crítica que faz dialogar o texto com o seu avesso ou possibilidade. Interessante é notar que, se Murilo Mendes procede com muito mais frequência a um posicionamento crítico externo, Ponge vai numa direção em que a crítica se internaliza. O poeta francês se volta ao literário muito mais no sentido de uma autocrítica, ou metacrítica. Os textos incluídos em Méthodes, bem como os Proêmes, são grande prova de uma prática indistinta de poeta e crítico dobrado quase que exclusivamente sobre si mesmo, empenhando-se numa atividade que toma ares de preparação, proemática, de proêmio. Leda Tenório da Motta (2000, p.40) é taxativa nesse sentido: “Todos os seus escritos realizando, ao mesmo tempo, um discurso da obra e um discurso sobre a obra, que nos volta a dupla face da poesia e da crítica, da performance e da autocrítica. Toda a obra é, nesse sentido, rigorosamente meta.” No caminho que esses poetas empreendem, cabe observar a intensidade do trânsito e da 402 Descrição das pesquisas indistinção da forma e do estatuto dos textos, bem como do posicionamento da voz (seja lírica, crítica, biográfica ou todas elas a um só tempo). Acaba se rarefazendo o vão que temos entre o poeta e o crítico, que é não só crítico de literatura, mas também de artes plásticas, de música e de cultura. Assim, cabe também investigar de que modo se posicionam essas vozes lírico-críticas. Enquanto críticos, Murilo Mendes e Francis Ponge procedem também como leitores-críticos da própria obra e de outras. O ato da leitura guarda em si o da recriação, da possibilidade de estabelecer uma variação do texto lido porque começa com a posse – é um ato de criação e doação ao mesmo tempo. O poeta-crítico se situa também numa zona eminentemente criativa em que estabelece juízos, avaliações, em que age de acordo com uma experiência que é tanto literária, quanto individual. Nesse caso, o embaralhamento de posições é um tanto mais complexo já que dispõe, num mesmo centro, uma voz ficcional, mas que se quer analítica e por vezes imparcial. Então, é que estes sujeitos poetas-críticos se encontram no centro de uma prática criativa da literatura, à qual se chega pela via de vários atos (poéticos e críticos), manipulando a gestação da própria criação literária, a sua análise e a sua crítica. Ambos os sujeitos estabelecem um corpo-acorpo criativo com o texto (próprio e de outros). Isto sempre num mesmo corpo literário, que surge da palavra e é palavra. Poderíamos nos perguntar: que espécie de sujeito é este? Crítico, biográfico, poético? Evidentemente que a despeito de uma sensível inclinação ao científico, este sujeito é sempre ficcional e age de modo dialético, ocupando uma posição privilegiada, que lhe confere a capacidade de tudo agenciar – a lógica, a palavra, as coisas, o objeto poético-crítico. Nesse sentido, sobressai-se a ficcionalidade do eu-lírico e do eu-crítico. Volta a questão: o que se depreende da aproximação ou do distanciamento entre Murilo Mendes e Francis Ponge? A ideia principal é a de poesia e crítica como práticas cuja função é totalmente criadora. Do modo como operam as poéticas do brasileiro e do francês, o que se sobressai é a prática literária enquanto atividade de criação. E não só a literatura, mas ainda as artes plásticas e o cinema (que, de fato, não são nosso objetivo). É assim que podemos afirmar que poesia e crítica se juntam, irmanam-se, no sentido de uma poiesis, de um movimento de construção que é eminentemente criador. Nessa tensão, cujo lugar se encontra sempre na palavra, na linguagem, no texto, está implicada a crise do estatuto lírico e do crítico, justamente porque se trata de uma literatura que vive de tensões. Esse, o nosso horizonte de perspectivas, cuja relevância está, não na novidade da proposição, mas na execução (que se quer mais 403 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa detida e profunda por meio das análises) de uma aproximação muitas vezes ensaiada pela fortuna crítica de Murilo Mendes e de Francis Ponge. Uma relevância que se sobressai, ainda, ao observar os poetas a partir de uma postura lírica e crítica disseminada em toda a obra completa (e que pontuaremos em livros determinados) e que coloca em questão não só a figura do poeta e do crítico, mas do ato e da prática da literatura. Pode-se afirmar que as reflexões até aqui estabelecidas deixam entrever o modo específico como os dois poetas lidam com a questão da indistinção entre a poesia e a sua crítica. Partimos, portanto, do que distancia Murilo e Ponge. Desse distanciamento (contextual, teórico, literário), surge a aproximação e a possibilidade de reflexão sobre a prática poética e crítica. Nesse sentido, é importante estabelecer no momento, cumpridas todas as disciplinas e finalizadas muitas leituras, uma análise do estado das questões que nos preocupam nos dois autores separadamente, quais sejam, a relação crítica/poesia, a noção do sujeito lírico, a natureza do poético, a proximidade entre prosa e poesia e entre poesia crítica e escritura. Tal análise, evidentemente, parte da suspensão da própria ideia de indistinção. Bibliografia ARAÚJO, L. C. de. Murilo Mendes. Petrópolis: Vozes, 1972. (Poetas Modernos do Brasil, 2). BARBOSA, J. A. A metáfora crítica. São Paulo: Perspectiva, 1986. (Debates, 105). BARTHES, R. Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 2007. ______. O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BERNARD, S. Le poème en prose de Baudelaire jusqu’à nos jours. Paris : Nizet, 2004. CAMPOS, H de. Murilo e o mundo substantivo. In: ______. Metalinguagem & outras metas. 4.ed. São Paulo: Perspectiva, 1992. p.65-75. COLLOT, M. 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O status da Literatura de Exílio enquanto movimento literário foi questionado desde suas primeiras manifestações, já que escritores das mais diversas vertentes e estilos emigraram e, portanto, o conjunto dos textos abarcados sob esse rótulo tem como primeira característica a diversidade. Para a maior parte dos desterrados, a fuga e a sobrevivência no exílio foram enormes desafios; ainda assim, não foram poucos os que se imbuíram da necessidade de relatar as experiências vividas e denunciar as atrocidades cometidas pelos líderes nazistas, transfiguradas – se é que não podemos dizer maquiadas – pelo Ministério da Propaganda chefiado por Goebbels. A denúncia e o relato de experiências de caráter autobiográfico foram, seguramente, dois dos traços mais recorrentes na Exilliteratur, e o nome de Anna Seghers se destaca pela intensa participação em periódicos, congressos, associações de escritores, além dos romances e contos que publicou no período. Nascida em Mainz no ano de 1900, de uma família judia ortodoxa, Seghers – cujo verdadeiro nome era NettyReiling – estudou filosofia, história da arte e sinologia na Universidade de Heidelberg, e ainda na década de 1920 publicou textos como Grubetsch e Aufstand der Fischer von St. Barbara, pelos quais recebeu o prêmio Kleist e nos quais se pode identificar o conflito entre classes e o componente social que perpassa toda a extensa bibliografia da autora. No mesmo ano da mencionada premiação (1928), Seghers filia-se ao Partido Comunista Alemão, a cuja ideologia se manteria fiel por toda a vida. 406 Descrição das pesquisas Judia e socialista, a autora percebe a necessidade de deixar a Alemanha quando o nacional-socialismo chega ao poder em 1933; vive na França com a família até 1941, quando a invasão do território francês pelos alemães durante a Segunda Guerra os obriga a buscar novo asilo. Seghers parte então para o México, onde vive até 1947. Com o fim da guerra e a possibilidade de retornar à Europa, a escritora opta por viver em Berlim oriental, sob a influência soviética e a égide do socialismo do qual era tão convicta defensora. Nas décadas seguintes, já solidamente reconhecida, tornou-se um dos nomes mais emblemáticos do movimento que ficou conhecido como Realismo Socialista; continuou escrevendo, presidiu associações de escritores e participou de iniciativas a favor da liberdade até sua morte em 1983. Uma vez que nos debruçamos sobre a Literatura de Exílio, nos limitaremos ao corpus das publicações de Seghers no período em que esteve exilada, a saber, aos romances Em trânsito, A sétima cruz e ao conto O passeio das meninas mortas. ETAPAS CONCLUÍDAS A literatura produzida no exílio pelos escritores alemães durante os anos de poder nazista é bastante particular; manifestação artística de uma conjuntura sóciohistórica crítica, as fronteiras entre a história e a literatura são tênues e frágeis como a própria delimitação de gêneros no período. O exílio enquanto mote da literatura, contudo, data dos mais antigos textos literários de que se tem notícia, e atravessa tempos e lugares reiterando a importância da relação entre o homem e sua pátria. Desde Ulisses na antiguidade, passando por Dante exilado de Florença, Vasco da Gama na obra camoniana até a reconstrução da civilidade como sentido da sobrevivência em Robinson Crusoé e a viagem de Marlow ao Coração das trevas de Joseph Conrad, o afastamento da terra natal já foi tematizado nas mais variadas formas, contextos e significações. Desse modo, propomos para introdução da tese um texto de caráter ilustrativo que traga exemplos como os mencionados acima, de diferentes manifestações do exílio na literatura. Tal introdução – já elaborada – resgata alguns casos canônicos em que o protagonista (ou mesmo o autor) tenha sido afastado de sua terra, com o intuito de apontar para a diversidade de formas pelas quais se pode tratar do tema. Parte-se, portanto, de uma perspectiva ampla e propositadamente superficial nas análises dos textos, apenas à guisa de ilustração do que pode ser a literatura do exílio. 407 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Em seguida, abrindo caminho para tratar especificamente da Exilliteratur, julgamos oportuno escrever um ensaio de viés histórico contextualizando as condições que favoreceram o surgimento dessa literatura: do final da Primeira Guerra à República de Weimar, a grave crise econômica que assolou a Alemanha no período entre guerras, a ascensão do nazismo e os pilares de sua ideologia, a política cultural e a perseguição aos escritores, políticos e intelectuais de esquerda são os tópicos desse ensaio – já redigido – que serve de transição entre o primeiro texto, geral e ilustrativo, e a parte seguinte, específica sobre as publicações dos escritores alemães exilados. ETAPAS SEGUINTES Durante os anos de exílio, muitos escritores uniram-se em associações como o clube Heinrich-Heine, presidido por Seghers no México. Esses grupos promoviam leituras, palestras, encenações e outras atividades atinentes à intelectualidade. Outro importante produto dessa cooperação foram os periódicos; publicados em diferentes países, muitas vezes com limitações orçamentárias e dificuldades de distribuição, as revistas veicularam textos relevantes para a crítica e a teoria literária, uma vez que seus colaboradores eram alguns dos maiores autores da época, além de outros textos, de caráter político ou cultural. Dentre esses periódicos, podemos citar Das neue TageBuch, publicada em Paris e Amsterdã; Das Wort, em Moscou; Die Sammlung, em Amsterdã; Die neue Weltbühne, em Viena, Praga e Paris; Freies Deutschland, no México; e Neue Deutsche Blätter, em Viena, Zurique e Paris. Anna Seghers participou como colaboradora ou editora de vários desses periódicos, além de outros renomados autores como Bertold Brecht, Georg Lukács, Heinrich Mann, Andre Gide, Alfred Döblin e muitos outros. Dada a riqueza e a heterogeneidade de textos que compõem a Literatura de Exílio em vários gêneros, optamos por analisá-la à luz dos textos publicados nos periódicos acima citados. Usaremos como critério para seleção dos periódicos a dar maior destaque aqueles em que Anna Seghers mais atuou, e procuraremos relacionar a crítica, as ideias e propostas desses textos às realizações literárias da autora em um último momento. Dessa forma, partimos de uma perspectiva mais abrangente para uma mais específica: a obra de Seghers inserida no conjunto da Exilliteratur, contextualizada pelos textos publicados nas revistas e lida sob uma ótica que contemple o aspecto 408 Descrição das pesquisas historiográfico da importância desses periódicos para a literatura da época e do alcance da obra de Seghers afinada às propostas que sua realidade exigia. Planejamos, portanto, após os dois ensaios introdutórios acima descritos, desenvolver a tese em duas partes: - Uma primeira parte que contribua para os estudos da Literatura de Exílio explorando o conteúdo de seus periódicos - os debates entre os principais intelectuais da época, a crítica aos textos literários então publicados e as propostas para uma literatura que cumprisse o papel social de transformação da dura realidade que vivenciavam, como a ideia de um Volksfront(frente popular), defendida por Seghers e outros; - E uma segunda parte com a leitura da obra de Anna Seghers escrita no período de exílio da autora, sob a ótica das ideias vigentes apresentadas pelas publicações da autora e de outros colaboradores nos periódicos. Nessa parte do trabalho procuraremos apontar para as aproximações entre as propostas de Seghers - enquanto intelectual dialogando com seus pares – e a figuração literária dessas ideias nas obras da autora. Bibliografia ARON, Irene. A língua como pátria. 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Stuttgart: Reclam, 2003. 410 Descrição das pesquisas TUTAMÉIA: LABIRINTO DE IMAGENS E SÍMBOLOS Paula Aparecida Volante Doutoranda Profa. Dra. Guacira Marcondes Machado Leite (Or.) O universo poético de Guimarães Rosa já foi alvo de pesquisa em dissertação intitulada A prosa poética de Tutaméia. Durante o desenvolvimento desse trabalho percebeu-se a importância de elementos como o símbolo, a imagem, a metáfora e a alegoria na constituição do universo rosiano. Desse modo, pretende-se uma leitura de Tutaméia pautada na presença e função dessas estruturas, objetivando compreender a relação que estabelecem com o texto na composição de sua tessitura perfeita. A partir de contos precisamente elaborados, caracterizados pelo sintetismo e condensação, que se aproximam dos mitos e lendas, é instaurado um regionalismo que ultrapassa qualquer fronteira espacial e adentra no universal, tudo para explorar um tema comum a qualquer ser: o homem em confronto com suas intempéries. Para Castro (1993), a universalidade de Guimarães está na sua preocupação com a essência da realidade e sentido último da existência, indo além da aparência superficial. Para viver toda essa universalidade, Rosa cria personagens que se distinguem dos demais seres. Estes, como afirma Brasil (1969), são sonhadores, mágicos e imaginativos; demiurgos, que criam seus próprios mundos, vendo além da realidade. Sem medo, viajam pelo próprio inconsciente em busca do conhecimento e do mistério. De acordo com Coelho (1975), são guiados por uma fé inabalável, sempre esperançosos num final feliz, ou seja, que o encontro com a transcendência, a poesia, o infinito, o “lá” poderá se realizar. Lages (2002) considera que Guimarães elava esses seres à condição de poetas, afinal, eles vêem e fazem ver, transformando o banal que os cerca. Podem ser considerados como símbolos do infinito, pois, guardam sempre novos enigmas em suas almas iluminadas. Garbuglio (1972) demonstra que o sertão, espaço onde habitam tais seres, é um universo ambíguo e perigoso, sem deixar de ser poético e autônomo; símbolo da luta terrestre dos homens. Galvão (2000) e Candido (2000) ressaltam o caráter universal e labiríntico desse sertão, possuidor de uma consistência psicológica e existencial, representante de toda a região escura do inconsciente. 411 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa A linguagem sustenta toda essa realidade graças a sua capacidade de criação e renovação, carregada de significações duplas, palavras polifacetadas, regionalismos universalizados, neologismos, arcaísmos revigorados, entre outros. César (1968) afirma que Guimarães cria seu mundo através de uma língua inesgotável em significações, poética, simbólica, pura e universal. A palavra rosiana liberta e cicatriza o sofrimento humano, introduzindo a poesia no cotidiano. Em meio e este universo de lutas e batalhas, o símbolo surge como peça fundamental na construção da poeticidade. Chevalier (2000) considera-o como centro da vida imaginária, uma estrutura que rompe os limites e une os extremos. É a chave de um mistério que não pode ser explicado completamente; diz o indizível, ou seja, acrescenta à realidade outras dimensões, fazendo esta ser gerida por um sistema de assimilações e correspondências. Tadié (1978) e Lefebve (1980) destacam a relação do símbolo com o espírito, bem como sua capacidade de fazer uma obra de arte explodir em ambigüidade e polissemia. Jung (1977) afirma que todo símbolo tem algo de familiar, mas ocultado pela consciência. Todorov (1996) considera o significado simbólico como sendo algo vivo e inesgotável. Durand (2002) destaca o caráter criador do símbolo, além de organizador do universo. A imagem, ao lado do símbolo, também constrói a estrutura poética de Tutaméia. Entendida por Paz (1995) como entidade criada pela imaginação, que pode criar verdades e unir opostos, explicando-se na sua incompletude. Bachelard (2003) considera que a imagem deve envolver o leitor através dos sentidos e resgatar aquilo que está em seu interior, numa comunhão entre sonho e realidade. Conforme aponta Bosi (2000), elas são as palavras articuladas, um todo que pode presentificar na ausência. Segundo Eliade (2001), o símbolo, a imagem e o mito têm uma função primordial: revelar aquilo que há de secreto no ser humano. Além disso, também potencializam e renovam a língua a partir de estruturas que colocam o homem diante de contrários e desafios. A metáfora e a alegoria são os outros componentes fundamentais para o fortalecimento do poético. A metáfora é entendida por Candido (1996) como a transposição de significado de uma palavra para outra, ou melhor, uma relação de semelhança, no qual um termo afeta e é afetado pelo outro, adquirindo uma gama de significações amplas e densas. A alegoria é convencional e arbitrária segundo Todorov (1996), tendo sua interpretação caráter obrigatório, por isso afirma-se que seu 412 Descrição das pesquisas significado é finito. Kothe (1986) considera a alegoria como uma representação concreta do abstrato; do alegórico nasce a insegurança de sua aparência de certeza, já que seu significado pode não ser tão claro como pode parecer. Tais elementos são responsáveis por compor a trama de Tutaméia e aparecem sob diferentes aspectos ao longo dos contos, entrelaçando-os. Um exemplo dessa ligação é o símbolo da água, recorrente, de modo direto ou indireto, em várias histórias, como Lá, nas campinas, Ripuária, Azo de almirante, Hiato e Desenredo . Nesses contos, a água é fonte de vida, sinônimo de purificação e renascimento; mergulhar nas águas é morrer simbolicamente, retornar às origens e recuperar a energia vital. Representa a pureza, a sabedoria, a graça e a virtude, mas encerra em si valores positivos e negativos, de criação e destruição, vida e morte. Em Lá, nas campinas..., a água aparece nas lembranças de Drijimiro, jorrando de sua memória para purificá-la, refletindo sua identidade, colaborando para o reencontro com um passado ignorado. Lioliandro, em Ripuária, é outro personagem ligado à água, deixando-se guiar por ela e pelo desejo de atravessar o rio e chegar à outra margem, vislumbrando o desconhecido. No conto Azo de almirante, Hetério tem seu destino regido e transformado pela água, que o aproxima da morte, quando mata sua família, e o conduz ao renascimento, no momento em que o coloca no rumo da transformação. Em Hiato, tal elemento surge para indicar a atemporalidade e identificação, visto que, como um espelho, reflete o mundo. Desenredo concretiza a água indiretamente, através dos barcos, que seguem seu caminho, como as águas. Em todos esses textos, homens simples, marcados pela diferenciação, vivem em meio às intempéries do destino, lutam contra tudo que os afasta da poesia do mundo, para permanecer no caminho que os conduze ao lá. Eles possuem dentro de si uma chama que os ilumina nos momentos de escuridão, uma fé que os sustenta e sabedoria para criar um mundo ou aceitar seus mistérios. O triângulo e o número três são outros símbolos encontrados nesse tecido. Encerram em si a ligação entre o terrestre e o divino. Neles, nada pode ser acrescentado ou tirado, pois concretizam a perfeição, união e harmonia, por isso guardam em si a representação das fases da vida: nascimento, crescimento e morte. Entretanto, também apontam para o superior, onde se encontra o renascimento e a renovação. Assim, o triângulo/três pode ser o indicador do percurso natural do homem, que parte das imperfeições da base para atingir o cosmo do topo. 413 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa No conto Tresaventura, o personagem é uma menina caracterizada pela fragilidade e pequenez, mas sua aparência esconde a grandeza da alma. Ela deseja conhecer um arrozal, localizado próximo à sua casa e visto como um lugar sagrado, onde a comunicação com o superior pode acontecer. Tal personagem é dona de três nomes: Maria Euzinha, Djá e Iaí. Todo o caminho até o arrozal, bem como determinados acontecimentos, tem como função fazer a menina encontrar-se consigo mesma, definindo sua identidade e, como conseqüência, escolhendo definitivamente um nome. A personagem do conto Reminisção também é caracterizada por possuir três nomes: Nhemaria, Drá e Pintaxa. Esta é dona de uma identidade incerta, pois, na concepção popular é ressaltada negativamente pela sua aparência física, enquanto Romão, o marido, vê sua essência e verdadeiras qualidades interiores. A morte é, nesse caso, o início para uma nova vida, já que o fim desse homem é a chave para o renascimento de Nhemaria. Em outros textos figuram esses mesmos símbolos, como no conto Se eu seria personagem, O três homens e o boi, Desenredo e Presepe, nos quais, a tríade é a base que sustenta a trama, possibilitando seu desenrolar. Além desses elementos simbólicos, outros se fazem presentes, como as formas geométricas do círculo e do quadrado; certos animais como o boi/touro, cavalo e aves; determinadas cores, amarelo e azul; além dos rios, lagoas e do sol. Todos juntos constroem a tessitura dos contos, fazendo-se presentes de formas diversas, ora destacando seu aspecto positivo, ora ressaltando sua face negativa, mas sempre ampliando e rompendo os limites da narrativa, renovando-a constantemente. Esse trabalho objetiva, portanto, analisar número significativos de contos de Tutaméia, visando compreender detalhadamente a função desempenhada pelo símbolo e a imagem nas histórias narradas; as relações que estabelecem com os personagens; como colaboram na construção da unidade da obra, vista pelo próprio Guimarães como um “todo perfeito”; de que forma se relacionam, entre outros questionamentos. Tendo em vista a amplitude que possuem esses quatro elementos – o símbolo, a imagem, a alegoria e a metáfora -, optar-se-á por trabalhar detidamente com o símbolo e a imagem, mais abundantes nos contos e, de modo mais superficial, com a alegoria e a metáfora. Essa escolha foi feita levando em consideração a maneira como se definem e por serem elementos que se encontram interligados desde sua origem, na medida em que um surge a partir do desdobramento do outro. Por isso, a impossibilidade de suprimir qualquer um deles numa pesquisa. 414 Descrição das pesquisas A escolha dos contos que serão analisados será feita com base na presença de tais estruturas, visando selecionar aqueles em que aparecem com maior ênfase, ou ainda, contos que se relacionam com outros pela recorrência de temas ou de qualquer um dos elementos estudados, tudo para alcançar o objetivo proposto. Tal método de escolha já foi colocado em prática com os contos que seguem: Azo de Almirante, Barra da vaca, Curtamão, Reminisção, Lá, nas campinas..., Presepe, Quadrinho de história, Ripuária, Se eu seria personagem, Tresaventura, Os três homens e o boi dos três homens que inventaram um boi, Esses Lopes, Hiato, Desenredo, Grande Gedeão, Orientação e João Porém, o criador de perus. A contribuição que se pretende dar aos estudos das obras de Guimarães Rosa é a de mostrar como o símbolo, a metáfora, a alegoria e a imagem estão presentes nesses contos rosianos e o papel que desempenham na sua composição. Bibliografia BACHELARD, G. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. Tradução de Antonio Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1997 (Coleção Tópicos). ______. A psicanálise do fogo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1999 (Coleção Tópicos). ______. A Terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2003 (Coleção Tópicos). ______. A Terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre as imaginação das forças. Tradução de Maria Eugênia Galvão. 2ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001 (Coleção Tópicos). ______. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento. Tradução Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2001b (Coleção Tópicos). BOSI, A. 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C.), quando o império romano encontrava-se em seu “período de ouro”, em que houve grande expansão do território eefervescência da cultura e das Artes, despontaram, no cenário literário nacional, dois importantes poetas: Virgílio (Publius Virgilius Maro, 70 – 19 a. C.) e Ovídio (PubliusOuidiusNaso, 43 a. C. – 17 d. C.). Virgílio é o poeta épico de maior prestígio da literatura latina, em virtude do importante legado literário-cultural que deixou tanto aos seus contemporâneos, quanto às gerações futuras. Foi o autor de três grandes obras, as Bucólicas, as Geórgicas e a Eneida, que, respectivamente e bem sucintamente, tratam da vida dos pastores, da agricultura e da nação romana. Virgílio é conhecido comoo “poeta do império”, pois – diz a tradição –parte de sua obra poéticaajudou a promover o programa de paz de Augusto, em um período em que o império havia expandido muito os limites territoriais e necessitava disseminar, por diversos meios, a cultura e a língua, em busca de unidade. Virgílio, assim como outros grandes poetas do período, como Horácio, participava do “círculo de Mecenas”, uma espécie de tertúlia literária promovida por Mecenas, estadista romano, considerado o grande protetor dos artistas e incentivador das Artes. As Bucólicas, obra de maior interesse à pesquisa, é um livro composto por dez poemas pastoris, em que se retratam, sucintamente, a vida campestre. Nele, há diversos assuntos abordados, desde a expropriação de terras até as relações amorosas entre pastores. Na VI Bucólica, em que a pesquisa tem interesse mais específico, entra em destaque a voz de um narrador que conta a história da origem do mundo, a Cosmogonia. Outro poeta romano que também trouxe o tema da criação do universo foi Ovídio, que também viveu durante o período clássico da Literatura Latina e foi contemporâneo de Virgílio, na época de Augusto. Ovídio possui uma vasta produção poética, que engloba desde obras lírico-amorosas, como a Arte de Amar, até poemas de 417 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa caráter épico, como as Metamorfoses, obra de grande envergadura, em que se abordam vários temas mitológicos. Constituído de 15 poemas escritos em hexâmetros, as Metamorfoses contam diversas histórias míticas em que há, em geral, a transformação, isto é, a metamorfose de algum ser em algo, como a transformação de Narciso, jovem belo que se apaixonou pela própria imagem, em flor. No Canto I, Ovídio aborda o tema da criação do mundo, ou seja, a Cosmogonia, com mais fôlego que Virgílio, naVI Bucólica. O córpus é constituído, portanto, pelos versos de número 1 a 485 do Canto I das Metamorfoses de Ovídio e pela VI Bucólica de Virgílio, que possuem a Cosmogonia como recorte temático. A unidade do tema, assim, possibilita comparar o estilo entre os poetas, a fim de contribuir com os estudos sobre Poética e Literatura Latina. A pesquisa de doutorado, surgida a partir de ideias que se desenvolveram durante o Mestrado, está em fase inicial. Por enquanto, houve a delimitação e leitura inicial do córpus, a seleção de uma bibliografia de base e uma análise primária do texto. Em relação ao viés teórico, a proposta é estudar os versos selecionadoscom base na teoria Semiótica e na Poética. Privilegiam-se, do conjunto teórico elencado, os recursos figurativos e icônicos, bem como expedientes métricos e homologias entre plano de conteúdo e plano de expressão. Ademais, é possível, em virtude da comparação temático-estilística entre dois poetas do mesmo período, desenvolver um estudo em âmbito intertextual. Em se tratando de poesia em língua estrangeira, ainda mais, em língua antiga, é importante que se desenvolva, em apêndice, uma tradução de estudo acompanhada de notas de referências, com comentários concernentes a dados gerais de cultura (mitologia, história, geografia, filosofia etc.), necessários a uma compreensão mais integral da obra, a fim de auxiliar o entendimento do enunciado em latim e da análise literária. A pesquisa, em suma, busca compreender o fenômeno poético por meio da teoria semiótica e da poética, tendo como córpus versos de Virgílio e Ovídio, dois poetas do período clássico da Literatura Latina, que cantam a Cosmogonia, tema base de estudo da pesquisa. Por meio da comparação temático-estilística entre esses dois poetas, portanto, é possível estudar questões de estilo e de expressão, objetivos fundamentais da tese. Bibliografia 418 Descrição das pesquisas ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A Poética Clássica. Introdução por Roberto de Oliveira Brandão; tradução Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1995. ARISTÓTELES. Rhétorique. Paris: Librairie Générale Française, 1991. BERTRAND, D. Caminhos da semiótica literária. Trad. Grupo Casa. Bauru-SP: Edusc, 2003. CART, A. et al. Gramática latina. Trad. Maria Evangelina Villa Nova Soeiro. São Paulo: Taq, Edusp, 1986. CASSIRER, E. Linguagem e mito. Trad. J. Guinsburg e M. Schnaiderman. São Paulo: Perspectiva, 2009. COMMELIN, P. Mitologia Grega e Romana. Trad. T. Lopes. Rio de Janeiro: Ediouro, 19--. CONTE, Gian Biagio. Latin Literature. A History. Translated by Joseph B. Solodow. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1999. CORTE, Francesco della (org.). Enciclopediavirgiliana. Roma: Enciclopedia Italiana, 1984-1991, 6º v. COULANGES, F. de. A cidade antiga. Trad. Fernando de Aguiar. Lisboa: Livraria Clássica, 1988. ELIADE, M. Mito e Realidade. Trad. Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva, 2007. GAFFIOT, Félix. 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A Adivinha, como o próprio nome já diz, é uma Forma constituída de pergunta e resposta, na qual o interrogador desafia o “adivinhador” a acertar a resposta para a pergunta feita. Neste caso, torna-se visível a semelhança desta forma com a estrutura narrativa do romance policial, na qual o autor propõe um enigma (um crime, normalmente envolvendo um assassinato) a ser decifrado pelo detetive e, consequentemente, pelo leitor, na narrativa. Este jogo entre o interrogador e o adivinhador é encontrado na ficção policial, especialmente após a transição desta para a forma do romance, já no fim do século XIX. O pacto ficcional presente na ficção policial implica na "lealdade" do narrador - sempre alguém próximo ao detetive - ao descrever todas as pistas, ações e pensamentos do detetive com fidelidade, concedendo assim ao leitor a mesma chance que o detetive possui de decifrar o enigma. O enigma é o cerne da ficção policial. Todos os outros elementos que consagraram o gênero, como o uso da lógica e do cientificismo e a ação dedutiva do detetive atuam em função da noção de enigma, sendo movimentados por este. Toda narrativa policial se sustenta sobre o enigma inicialmente proposto. Ocorre um crime e o detetive deverá seguir as pistas, utilizando uma metodologia lógica, dedutiva e científica, para desvendar o mistério e descobrir quem é o criminoso. A centralidade do 420 Descrição das pesquisas papel do enigma é tão inquestionável na literatura policial que toda a estrutura narrativa do romance ou conto é construída com o objetivo de, ao mesmo tempo, revelar e ocultar as pistas. Tal como nas adivinhas, a resolução tem que estar evidente, porém disfarçada em descrições propositadamente confusas e em omissões sutis, sendo que tudo deve ser calculado com precisão, para que ao fim, quando a resolução for dada, o leitor/adivinhador possa perceber que a resposta estava clara desde o primeiro momento e não poderia ser outra. Basta usar a lógica para decifrar o enigma. Podendo, então, ser entendida então como a forma "completa" da Forma Simples da Adivinha, a ficção policial tem seu início situado em meados do século XIX, mais especificamente pelas mãos do escritor americano Edgar Allan Poe que, em meio a sua vasta obra, concebeu três histórias de mistério protagonizadas pelo detetive Auguste Dupin, sendo que a mais conhecida delas é, certamente, “The Murders in the Rue Morgue (1841)” 1. Foi na Europa, no entanto, por meio dos contos escritos pelo médico Arthur Conan Doyle, protagonizados pelo conhecidíssimo personagem Sherlock Holmes, que a ficção policial se consolida e se populariza, tornando-se um dos gêneros mais populares de ficção. Posteriormente, a ficção policial fez a transição da forma do conto para a do romance, com o acréscimo de vários outros elementos que a tornariam ainda mais rica e popular, como a adição de mais personagens e, principalmente, o estabelecimento de um "jogo" entre o livro e o leitor. Além de estar intrinsecamente ligada à Forma Simples da Adivinha, a narrativa romance policial mostra-se ligada também à mudança ocorrida no estatuto de ficção. A ficção, desde a metade do século XVIII, mas principalmente durante o século XIX, depois do surgimento do novel, ganha um novo significado, não mais sendo entendida como um “fingimento” ou “falsidade”, como nos séculos anteriores, mas sim ser pensada como uma “composição inventada” 2, algo que foi composto pelos ficcionistas, e que não deve ser entendido como a realidade, mas que acabou se tornando um fenômeno literário. Não é difícil associar esta mudança do estatuto de ficção com a aceitação da narrativa policial por parte da sociedade, afinal as mesmas mudanças históricas que modificaram o estatuto de ficção, proporcionaram a consolidação deste tipo de narrativa enquanto literatura. Uma destas mudanças certamente foi a ascensão de uma nova classe 1 Conto de Edgar Allan Poe, traduzido no Brasil com o título de “Os Assassinatos da Rua Morgue”. GALLAGHER, Catherine. Ficção. In: MORETTI, F. (org.). O romance 1: A cultura do romance. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 631. 2 421 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa social, a burguesia. A burguesia provoca um sem-número de reestruturações na organização social, influenciando também na cultura, portanto, não é surpreendente ver este setor social representado na narrativa policial, chegando a assumir o papel preponderante durante a transição para a forma do romance. Além das mudanças na forma da narrativa, a transição para o romance acompanhou as mudanças históricas da sociedade inglesa, acrescentando mais personagens e centrando o enigma em temas familiares, bem como a consolidação do assassinato como "crime supremo". Os principais objetivos desta pesquisa são, então, o estudo da historicidade do romance policial, o desenvolvimento das estruturas de sua narrativa, partindo do papel do narrador no romance policial e englobando o enredo e as tramas trabalhadas pelos autores, o desenvolvimento dos personagens, e, também a construção da figura do detetive e como esta se alterou neste período de tempo, levando em consideração a possível influência do contexto de produção histórico na constituição dessa narrativa. O corpus escolhido para analisar estas questões é composto por obras dos escritores Arthur Conan Doyle e Agatha Christie. As obras de Conan Doyle selecionadas para realizar este estudo são, portanto: “The Adventure of the Speckled Band” (1892), “The Adventure of the Dancing Man” (1903), e “The Adventure of the Lion’s Mane” (1926) 3, todas contendo Sherlock Holmes como protagonista. Em “The Speckled Band”, Holmes tem como cliente uma moça, herdeira de uma grande fortuna, que vive em uma casa misteriosa, no interior da Inglaterra com seu padrasto e sua irmã gêmea, que morreu em circunstâncias misteriosas. Este conto é sempre lembrado por sua ambientação e também por sua resolução bastante original e curiosa, bem como pela crueldade do assassino em questão. Em “The Dancing Men”, o cliente, um homem do interior, traz ao conhecimento de Holmes uma série de desenhos representando homenzinhos dançando e que parecem estar ligados ao passado da esposa deste senhor. Justamente pela presença destes desenhos, este conto se torna um dos mais agradáveis à leitura, apesar de possuir um desfecho dramático e violento, embora fascinante, devido à simplicidade e genialidade do processo dedutivo de Holmes. Tal conto já foi analisado, com ênfase na questão do enigma e do método lógico e dedutivo, tendo como base o alfabeto inglês para a solução deste. Atualmente, trabalha-se na análise das duas outras obras, "The Speckled Band" e "The Lion's Mane". 3 Os títulos foram traduzidos no Brasil como “A Faixa Manchada”, “Um Escândalo na Boêmia”, “O Homem do Lábio Torcido”, “Os Dançarinos” e “A Juba do Leão”, respectivamente. 422 Descrição das pesquisas Já em “The Lion’s Mane”, somos apresentados a uma situação diferente, pois está é a única de todas as histórias envolvendo Sherlock Holmes que não é narrada por Watson, sendo que este nem mesmo participa desta aventura. Holmes, após retornar da morte, decide se mudar para o interior e criar abelhas, porém acaba se envolvendo em um mistério envolvendo a morte de um professor universitário. Este conto evidentemente se destaca por possuir Holmes como narrador e ao mesmo tempo manter as regras do romance policial, não revelando os pensamentos do detetive ao leitor. Quanto a Agatha Christie, foram também selecionadas três obras: a já mencionada “The Mysterious Affair at Styles” (1924), “The Murder of Roger Ackroyd” (1926) e “Curtain” (1975) 4. O primeiro e o último livros marcam, respectivamente, o início e o fim da carreira do detetive Hercule Poirot, bem como se passam no mesmo lugar: a mansão Styles, fechando o círculo de aventuras deste detetive. O fato de as duas histórias ocorrerem no mesmo lugar, propicia também uma discussão sobre as diferenças de ambientação e as mudanças que ocorreram nestes cinquenta anos que separam as duas histórias. É claro que ao falar de Agatha Christie não é possível deixar de mencionar a obras “The Murder of Roger Acroyd” (1926), que é certamente a mais polêmica da autora, visto que neste livro ela desrespeita uma das leis fundamentais dos romances policiais, não dando ao leitor a mesma chance dada ao detetive para descobrir o mistério, já que o assassino é o narrador da história. As três obras de Christie já foram analisadas, sendo que os objetivos foram cumpridos. A ênfase das análises deu-se na questão dos enigmas, das unidades de efeito, da estruturação da narrativa, e das mudanças causadas pela modificação do narrador e do papel deste nos três romances. Nota-se, então, que uma especificidade deste trabalho é o foco no papel do narrador no romance policial. O narrador, nesta primeira fase do romance policial, tem, na maior parte das vezes, um papel secundário na história, visto que sua função é narrar as aventuras do detetive. No entanto, em algumas das narrativas que compõe este corpus, o narrador possui um papel mais especial e até mesmo central. É, então, com base nestas diferenças e em como elas atuam na organização da história que se quer contar para atingir a classe leitora, bem em como nas possíveis representações que possam ser encontradas no corpo do texto, que esta pesquisa procurará se estruturar. 4 Os romances foram respectivamente traduzidos com os títulos de “O Misterioso Caso de Styles”, “O Assassinato de Roger Ackroyd” e “Cai o Pano”. 423 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa No que concerne ao instrumental teórico, os principais conceitos utilizados são os já citados, novo estatuto de ficção, o da Forma Simples da Adivinha e a noção de enigma, e o das unidades de efeito de Edgar Allan. Atuando em função destes conceitos, utilizamos também parte da teoria de Gerard Genette 5 sobre o discurso da narrativa, como os de elipse e paralipse, sendo que estes indicam, respectivamente, a omissão temporal presente no texto e a omissão de ações, sendo que as duas são extremamente comuns no romance policial, e auxiliam na criação das unidades de efeito. Outro conceito que utilizado nesta pesquisa é o de duplicidade da estrutura narrativa do romance policial, proposto por Tzvetan Todorov. 6 Para Todorov, a estrutura do romance policial é composta por duas tramas distintas, sendo que a primeira (a do crime) tem lugar antes que o detetive tome conhecimento do enigma, e a segunda narra a investigação do crime, com o detetive buscando a solução para o enigma. São, portanto, estas duas partes que compõe a estrutura da narrativa policial, sendo que a primeira é a responsável pela existência da segunda. O estudo do papel do narrador é, como já apontado, um dos objetivos centrais deste trabalho. As questões de plausibilidade e credibilidade levantadas pelo realismo formal e pela verossimilhança, que foram provocadas pela mudança no estatuto de ficção, só tornam-se possíveis de serem pensadas quando associadas à consolidação do novel enquanto gênero literário dominante. Como serão analisadas questões referentes ao contexto histórico, livros que tratem do período já mencionado também serão utilizados, como as obras de Eric Hobsbawm e Marshall Berman. 7 Assim sendo, são estes os objetivos deste trabalho, que buscará estudar a narrativa policial por meio de seu viés histórico, pensando nas questões de representação e verossimilhança, mas também nas questões estruturais, levando-se em consideração que no caso da literatura policial, estas estão intrinsecamente ligadas, uma vez que, para que a unidade de efeito se prove efetiva, a história que se conta deve conter verossimilhança, bem como incluir aspectos da sociedade com que a classe leitora se identifique. A posição do narrador e a figura do detetive também serão 5 GENETTE, Gerard. O discurso da narrativa. Lisboa: Vega, 19[?]. TODOROV, Tzvetan. Tipologia do romance policial. IN___ As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1969. p. 93-104 7 Historiadores renomados que concentram suas pesquisas no período que vai do século XIX ao início do XX. 6 424 Descrição das pesquisas trabalhadas, especificamente a maneira como aquele retrata o detetive e as tramas presentes na narrativa. Corpus de pesquisa CHRISTIE, Agatha. The mysterious affair at Styles. London: Harper Collins Publishers, 2011. CHRISTIE, Agatha. The murder of Roger Acroyd. London: Harper Collins Publishers, 2002. CHRISTIE, Agatha. Curtain. London: Harper Collins Publishers, 2002. DOYLE, Arthur Conan. The adventure of the dancing men. IN ___ The complete illustrated short stories. London: Bounty Books, 2004. p.476-496. DOYLE, Arthur Conan. The adventure of the lion’s mane. IN ___ The complete illustrated short stories. London: Bounty Books, 2004. p.942-955. DOYLE, Arthur Conan. The adventure of the speckled band. IN ___ The complete illustrated short stories. London: Bounty Books, 2004. p.137-156. 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O ponto de partida deste projeto situa-se no segundo semestre de 2010, quando, a partir de um convênio entre a Unesp e a Universidade francesa, “Université de Provence (SecteurLettres et SciencesHumaines) – Aix-Marseille I”, efetuei um semestre de meus estudos (primeiro de setembro 2010 a 15 de janeiro de 2011), no país europeu. Durante esse período, realizei a disciplina “LittératureComparée”, que abordou a relação existente entre certos poemas em verso e em prosa do poeta Charles Baudelaire, em suas obras Lesfleursdu mal e Spleen de Paris, despertando o meu imediato interesse para o assunto. Ao voltarao Brasil, resolvi dar continuidade ao estudo em forma de Monografia de Bacharelado, aprofundando o tema, de modo que ele constituísse, posteriormente, um projeto para prestar o exame e cursar o Mestrado, no final de 2012, fato, então, ocorrido. Atualmente, a pesquisa objetiva refletir, basicamente, sobre a produção baudelairiana do poema em prosa. Mais precisamente, visa destacar a mudança de código que ele executa, denunciando a retórica da poesia, o fazer poético, na medida em que alguns textos em prosa mantêm certa correspondência com outros em verso. Essa relação existente entre os dois tipos de poemas foi explorada por Barbara Ellen Johnson em sua obra, Défigurationsdulangagepoétique (1979), que buscou um nexo entre Le spleen de Paris e Lesfleursdu mal, tomando como direção textos em prosa que retomavam, de forma explícita, o tema de um poema em verso. A partir daí, ela propõe, então, que o poema em prosa constitui uma leitura “desconstrutiva” do poema em verso. No primeiro semestre de meus estudos, pude, então, dar continuidade às leituras presentes na bibliografia, bem como realizei o cumprimento de parte dos créditos das disciplinas, cursando “Mito e poesia: relatos mitológicos na poesia clássica grecolatina” e “Poesia e Metalinguagem: teorias da poesia e metapoema”. A partir do curso de “Poesia e Metalinguagem” pude aprimorar, fundamentalmente, minhas reflexões a respeito da criação poética, por meio de textos “básicos" como a Arte poética de Horácio(1993), Palestra sobre lírica e sociedade 427 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa (1975) e mesmo Íon(1988), de Platão, que expõem determinadas tendências estéticas, no estudo panorâmico das artes poéticas, abordado em sala. Um outro aspecto da disciplina que colaborou para o enriquecimento da pesquisa foram as discussões a respeito do poeta crítico moderno que, como Baudelaire, em sua composição, deixa transparecer a realização consciente e crítica de seu trabalho, permitindo-nos chegar à compreensão de como aquilo foi construído na criação de seu próprio código, do seu próprio fazer poético. Textos quanto à modernidade também deram sua contribuição como, por exemplo, As ilusões da modernidade (1986), de João Alexandre Barbosa e A crise do verso (2008), de Mallarmé. A relação estre os poemas, no que diz respeito ao procedimento baudelairiano em análise, constitui-se como metalinguagem que reflete o próprio poeta, demonstrando sua intervenção clara no processo, na maneira como ele subverte o funcionamento de alguns poemas de Lesfleursdu mal por um trabalho de “desfiguração” e de “reconfiguração”, no qual passa de um código poético (poema em verso) para um código literário (poema em prosa), em que um texto faz referência ao outro (“souvenir du souvenir”). Quando retira as figuras do poema em verso (“desfiguração”), construindo com elas um poema em prosa correspondente, ele muda o código poético e assinala essa mudança. Vale ressaltar, também, que os estudos basicamente sobre o mecanismo da intertextualidade, em aula, colaboraram para o enriquecimento da pesquisa, por se tratar de textos que abordavam, por exemplo, o processo de escrita e reescrita, de recriação, o trabalho da citação, a ocorrência da “miseenabyme” e a ideia de textos que se reenviam, ocorrendo troca de sentido como, por exemplo, o texto “Metalinguagem e Intertextualidade”, presente no livro Texto, Crítica, Escritura (1978), de Leyla PerroneMoisés e, também, Metapoesía y críticadel lenguaje: (de la generación de los 50 a los novísimos) (2002). Tudo o que reflete, de certa forma, o procedimento baudelairiano em análise. Poderíamos pensar no poema em prosa de Baudelaire como o reflexo de um poema em verso, não sendo mais este, mas sim outro, novo e “invertido”, transfigurado pelo “jogo óptico” que nada mais é que um “jogo de linguagem”. Todo o procedimento é explicitado por Baudelaire: as figuras deslocadas, a mudança de registro retórico, a diferença de linguagem; a imagem “refletida” é outra. Ao cursar a disciplina, realizamos a leitura de metapoemas contemporâneos paraidentificar e relacionar as diferentes propostas de seus poetas, além de discutir a configuração de seus poemas, a partir da utilização apropriada e articulada da 428 Descrição das pesquisas bibliografia e de textos complementares propostos. Foi explorada, também, a poética de alguns deles, que estão entre a sistematização crítico-teórica e o fazer poético nela aplicado (metapoemas). Por fim, como avaliação final da disciplina, entregarei um artigo que trata, especificamente, da relação entre textos diferentes de um mesmo autor e do processo de reescrita elaborado por ele, como técnica de criação. “Por que reescrever?” é a pergunta que permeará todo o estudo e no cenário atual, diante da evidência e mesmo intensificação de referências aos termos como “intertextualidade”, “metalinguagem”, “metaficção”, “reflexividade”, “autotextualidade” e etc. Como observamos em sala, pude perceber que, embora o enfoque dado a eles, hoje, seja grande, sua ocorrência não é recente – Baudelaire o prova. O poeta deixa claro, já no século XIX, que o “reescrever é recriar”, que o essencial é a configuração e combinação das palavras que sustentam todo e qualquer texto como diferentes maneiras de apreensão do mundo. Samira Chalhub, em A metalinguagem (2005) destaca: “A verdade da arte literária é reveladora: rastreia o sentido das coisas, apresentando-as como se tudo fosse novo, por que nova é a forma de combinar as palavras.” (p. 9) Quanto à disciplina “Mito e poesia: relatos mitológicos na poesia clássica grecolatina”, posso dizer que o seu conteúdo não está, diretamente, relacionado ao meu objeto de estudo, mas, a partir dela, poderei explorar novos caminhos no que diz respeito às composições literárias baudelairianas, nas quais podemos observar, também, a ocorrência dos mitos. Assim, ao ter sido introduzida na atmosfera da mitologia grecolatina presente na poesia antiga, que é a base de todo e qualquer estudo sobre criação poética, e observado a ocorrência do mito, de maneira direta ou indireta, nas obras de poetas gregos e latinos (Virgílio, Catulo, Píndaro e etc); bem como, suas principais características ao longo do tempo e suas transformações de uma cultura à outra (baseando-me na leitura dos textos teóricos de apoio), serei capaz de aplicar meus conhecimentos adquiridos na análise dos textos de Baudelaire que apresentam esse caráter mitológico. A disciplina nos ofereceu um panorama bastante rico sobre o estudo da mitologia, desde seu viés antropológico até sua função nos escritos literários e suas diferentes aparições no decorrer da história, o que contribuiu não só para os meus estudos, mas, também, para minha formação profissional e pessoal. Neste próximo semestre de 2013, darei continuidade à leitura e releitura das obras indicadas na Bibliografia e cumprirei os créditos das disciplinas e das atividades complementares. 429 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa Bibliografia ADORNO, T. Notas de literatura. Rio de Janeiro: Tempobrasileiro, 1991. BARBOSA, J. A. As ilusões da modernidade. São Paulo: Perspectiva, 1986. BAUDELAIRE, C. Oeuvres complètes. Paris: Robert Laffont, 1980. _____.Le spleen de Paris (Petits poèmes en prose).Paris: Flammarion, 1987. _____. Les fleurs du mal. Paris: Presse de l’Université de Paris-Sorbonne, 2003. _____. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Aguillar, 1995. BERARDINELLI, A. Da poesia à prosa. SP: CosacNaify, 2007. BERNARD, S. Le poème en prose de Baudelaire jusqu’à nous jours. Paris: Nizet, 1959. BLANCHOT, Maurice. L’Entretien infini. Paris : Gallimard, 1969. BOSI, A. O ser e o Tempo da Poesia. 7ª. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2008. CANDIDO, A.O estudo analítico do poema. 3ª ed. 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Busca-se a análise de vinte contos: “Virginius”, publicado no Jornal da Família (1864); “Felicidade pelo casamento”, Jornal das Famílias (1866); “Uma excursão milagrosa”, Jornal das Famílias (1866); “Onda”, Jornal das Famílias (1867); “Linha reta e linha curva”, em Contos Fluminenses (1870); “Rui de Leão”, Jornal das Famílias (1872); “Decadência de dois grandes homens”, em Jornal das Famílias (1873); “Tempo de Crise”, Jornal das Famílias (1873); “Muitos anos depois”, Jornal das famílias (1874); “Um cão de lata ao rabo”, em O Cruzeiro (1878); “O Alienista”, publicado em A Estação (1881) e depois em Papéis Avulsos (1882), “Último capítulo”, em Gazeta de Notícias (1883) e Histórias sem data (1884); “O Lapso”, em Gazeta de Notícias (1883) e Histórias sem data (1884); “A causa secreta”, publicado na Gazeta de Notícias (1885) e depois em Várias histórias (1895); “Anedota pecuniária”, na Gazeta de Notícias (1888) e Várias histórias (1895); “Como se inventaram os almanaques”, Almanaque das Fluminenses (1890); “Vênus! Divina Vênus”, Almanaque da Gazeta (1893); “Um erradio”, em A Estação (1894) e Páginas recolhidas (1899); “Papéis Avulsos”, em Páginas recolhidas (1899); “Marcha Fúnebre”, em Relíquias da casa velha (1906). 431 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa No momento realiza-se a leitura e levantamento de mais bibliografia. A análise efetiva do córpus proposto será de fato iniciada em 2014. Bibliografia ALBRECHT, M. Historia de la Literatura Romana. Tradução para o espanhol Dulce Estefanía e Andrés Pociña Pérez. V1. Barcelona: Herder, 1997. ASSIS, J. M. M. Obra Completa. V. I. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1962. ASSIS, J. M. M. Obra Completa. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 2008. 4 v. BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 8ªed. São Pauolo: Hucitec, 1997a. BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. 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Acesso em 27 set. 2010, às 14h. 434 Descrição das pesquisas METROS DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA EM LÍNGUA PORTUGUESA Rafael Trindade dos Santos Mestrando – Bolsista FAPESP Prof. Dr. Brunno Vinicius Gonçalves Vieira (Or.) Introdução O presente projeto pretende esboçar uma história dos experimentos de inserção de metros clássicos em língua portuguesa. Sabe-se que a métrica utilizada por poetas e tratadistas da Antiguidade baseava-se em características fonológicas e prosódicas das línguas latina e grega que não se encontram mais nas línguas românicas. Assim, toda tentativa de inserção desta métrica em português — uma língua românica — é um problema que exige algum artifício poético como solução. O que se entende por metro clássico em cada época e círculo literário define as condições de recepção dos poemas gregos e latinos nos mesmos círculos; influi, por consequência, na elaboração dos sentidos que vão ser atribuídos à estrutura formal dos poemas. Uma história deste problema deve abranger, assim, suas condições tanto quanto seus resultados: não apenas quem se propôs, mas por que se propôs, ao que atenderia tais propostas, qual o contexto das tentativas de continuação da métrica clássica. Logo, esta pesquisa interessaria principalmente a uma história da recepção da poesia antiga em comunidades de língua portuguesa. Além disso, também contribuiria para uma história da tradução, para uma história do verso e para um estudo comparativo de sistemas de versificação. Contudo os cultores de metros clássicos estudados não são todos, necessariamente, tradutores; a maior parte se compõe de poetas originais. Nesse sentido esse trabalho se propõe a contribuir com um campo de investigação que tem merecido um interesse crescente no Brasil, qual seja os estudos de história da tradução e da recepção dos clássicos, o que tem condicionado também um aumento de interesse na história das estratégias formais em tradução de poesia antiga (cf. FLORES, 2011a; OLIVA NETO, 2007; VASCONCELLOS, 2011; VIEIRA, 2010; 2009). Dividimos as tentativas históricas de inserção em dois subtipos conforme já apontara Attridge (1993, p. 202): tentativas de verso propriamente quantitativo; 435 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa substituições simples de quantidade por intensidade, mantendo o padrão métrico em estruturas diferentes. O corpus mínimo estabelecido para o presente projeto dá preferência aos chamados versos estíquicos (como o hexâmetro e o pentâmetro), e estabelece como poetas e tradutores centrais Carlos Alberto Nunes (1897-1990), Carlos Magalhães de Azeredo (1872-1963), Vicente Pedro Nolasco da Cunha (1774?-1844), procurando ampliar a pesquisa até o século XVI, com o Auto da Paixão de Fr. Antônio de Portalegre. Estágio atual da pesquisa Desde o ingresso no Programa, o projeto sofreu modificações em função do que se descobriu desde então. A maior mudança por ora tem sido a centralização da pesquisa na produção de Magalhães de Azeredo. Este autor cita predecessores — Domingos Tarroso e Alberto Ramos — e entende que sua tentativa terá sucessores (AZEREDO, 1904, p. viii), criando uma expectativa de tradição, posteriormente esquecida e novamente requisitada por leituras atuais de Carlos Alberto Nunes (cf. CARDOSO, 2011; CONTO, 2008; FLORES, 2011a; 2011b, p. 145-6; GONÇALVES, 2011; GONÇALVES et al., 2011). Os autores citados estão sendo procurados para leitura e análise. Foram também importante descobertas as declarações de Jorge de Sena acerca do que, segundo ele, fora a primeira tentativa em português de inserção de metros clássicos — a saber, o Auto de Fr. Antônio de Portalegre (SENA, 1966, p. 408, n. 3). A pesquisa também se interessou pela tradução da Odisseia realizada por Frederico Lourenço. Nesta tradução não há um tratamento métrico uniforme dos versos, como fora corrente nas versões brasileiras de Homero. Há, no entanto, e confessadamente, uma espécie de “metro fantasma” (cf. BRITTO, 2011) subjacente aos versos atuais, dando-lhes uma medida contra os quais podem se medir — e este metro seria justamente o hexâmetro, adaptado ao português. O passo seguinte da pesquisa foi a busca por novas fontes. Consultamos a princípio dois importantes dicionários bibliográficos, a Bibliotheca Lusitana, de Diogo Barbosa Machado, e o Dicionario Bibliographico Portuguez, que lhe dá sequência, de Inocêncio Francisco da Silva. A partir da consulta a nomes já conhecidos, obtivemos informações acerca de novos nomes — como foi o caso de José Anastácio da Cunha, 436 Descrição das pesquisas citado no verbete relacionado a Vicente Pedro Nolasco da Cunha como seu tio e predecessor (SILVA, 1923). Todavia, o acesso a novos nomes pareceu muito difícil, já que, especialmente no caso de autores a serem descobertos que tenham vivido nos séculos XVI e XVII — período em que os metros clássicos vernáculos começaram a ser utilizados em toda a Europa — os biógrafos, especialmente Barbosa Machado, ora não enfatizaram a questão métrica como esperado, ora registraram-na com uma nomenclatura incoerente (MACHADO, 1759). Tais dados servem, no entanto, para demonstrar como a empresa da transposição de metros clássicos é entendida de modos diferentes a depender do círculo literário e da era em questão. Em seguida consultamos periódicos a fim de conhecer a recepção das obras do corpus. Salvo Carlos Alberto Nunes, caso mais recente, conhecido e celebrado, alcançamos resultados relevantes acerca de dois outros autores: Nolasco da Cunha e Magalhães de Azeredo. Nolasco da Cunha, contudo, teria sido um autor ainda mais obscuro não fosse ter sido censurado por Castilho. No verbete no Diccionario de Inocêncio da Silva, porém, Nolasco da Cunha obteve mais atenção, e foi, ao que parece, amigo próximo do dicionarista. A única menção a Nolasco da Cunha que encontramos, afora isto, foi de punho próprio, e no jornal que ele mesmo fundou, O Investigador Portuguez em Inglaterra (NOLASCO DA CUNHA, 1813); mas tais menções são fundamentais, porquanto ilustram como o autor lia o metro clássico, como entendia a diferença da prosódia latina para a portuguesa, como descrevia seu sistema de transposição métrica, e qual era o seu objetivo literário com tais metros. A recepção de Magalhães de Azeredo foi um tanto mais respeitosa. Poeta respeitado entre poetas, último membro fundador da Academia Brasileira de Letras a morrer, Magalhães de Azeredo não conheceu o mesmo tipo de censura, embora os metros de suas Odes nem sempre tenham sido louvados. Não se deve pensar, com isso, que sua obra tenha sido popular ou mais influente do que realmente fora: o poeta retirou-se muito cedo da convivência com os círculos literários brasileiros, em função de sua carreira diplomática. Por isso, a grande parte dos artigos e resenhas acerca das Odes foi escrita por seus colegas da Academia, especialmente José Veríssimo, que resenhou o livro logo após sua publicação (VERÍSSIMO, 1905) e Josué Montello, que tratou de seus metros bárbaros décadas mais tarde (MONTELLO, 1949). Magalhães de Azeredo, fiel à preceituação de Carducci, justapõe versos vernáculos para a realização de metros clássicos. Seu hexâmetro, por exemplo, de 437 Trabalhos completos do XIV Seminário de Pesquisa acordo com Péricles Eugênio da Silva Ramos, compõe-se com um hexassílabo grave ou esdrúxulo acrescido de um octossílabo de distribuição acentual fixa (RAMOS, 1955, p. 343-344). No entanto, uma leitura atenta destes hexâmetros pode reconhecer, apesar da distribuição acentual variável do primeiro hemistíquio, um ritmo fixo ao longo de todo o verso. Em: Eu emba|lei meus | so||nhos mais | caros: as | doces chi|meras (AZEREDO, 1904, p.3; grifos e sinalizações nossas) O que parece um hexassílabo de distribuição acentual livre (“eu embalei meus sonhos”) pode ser lido como a representação de um hemistíquio hexamétrico preciso. Basta ler o verso sob o compasso de seis pulsações musicais, fazendo coincidir os ataques com os acentos das palavras. Assim, uma sílaba forte seguida outra fraca seria lido como um verdadeiro espondeu, ao invés de um troqueu. A performação do texto pode gerar, independentemente da presença de quantidades silábicas no português, o ritmo hexamétrico. Em resenha de outra obra, Fortunato Duarte cita as Odes e elegias e, logo em seguida, refere-se à censura de Castilho aos metros clássicos em português, apenas para apontar que Castilho mudara de opinião, registrando-a em nova edição de seu Tratado (DUARTE, 1908). Às vésperas da confecção deste relatório, foi publicado um artigo que reafirma este fato (OLIVA NETO; NOGUEIRA, 2013, p. 304-305), apontando Júlio de Castilho, filho de Antônio Feliciano, como mais um poeta que experimentou metros clássicos em português, ainda que para fins didáticos, ilustrando as novas formulações de seu pai. O referido artigo ainda cita Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa, e José Maria da Costa e Silva como autores que tentaram a metrificação clássica em português. Ainda em procura de dados acerca de Magalhães de Azeredo, encontramos uma resenha a Divina chimera, obra de Eduardo Guimarães, que, segundo o resenhista, o jornalista Medeiros e Albuquerque, foi escrita em metros bárbaros (MEDEIROS E ALBUQUERQUE, 1916). Os próximos passos da pesquisa incluirão um estudo destes novos nomes. Em julho de 2013 participamos do curso Littérature grecque et latine en performance : récitals et conférences, proferido na Universidade Federal do Paraná pelo Prof. Dr. Philippe Brunet, professor da Universidade de Rouen e diretor da companhia 438 Descrição das pesquisas teatral Démodocos. O Prof. Dr. Brunet recentemente publicou uma tradução de Homero, em hexâmetros franceses, e se interessa, em sua companhia, na performação dos textos de peças antigas em seus ritmos originais. Descobriu-se, neste curso, que sua estratégia rítmica é a mesma utilizada por Magalhães de Azeredo, com a diferença de que o Prof. Dr. Bruent efetivamente utiliza a música como acompanhamento do verso. O curso foi importante, também, para entrarmos em contato com o Prof. Dr. Rodrigo Tadeu Gonçalves, que tem se interessado por experimentar inserções de metros clássicos na língua portuguesa. Além deste caso, temos registrado outros, no Brasil (ANTUNES, 2011; TÁPIA, 2012), todos mais ou menos inspirados em Carlos Alberto Nunes; o que se nota é que cada vez mais estes autores têm se interessado também por saídas ao problemas do “verso núnico”, e que também tem crescido o interesse por uma história das tentativas de inserção de metros clássicos. Bibliografia A.G.F. Edição de bolso é recolhida, mas há outras versões. O Estado de São Paulo. São Paulo, 2011. Seção Cultura. 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