sangue gelado

Transcripción

sangue gelado
Claudia Gray
SANGUE GELADO
EVERNIGHT
vol. 2
Tradução
Raquel Lopes
Prólogo
As paredes começaram a ficar cobertas de gelo.
Fascinada, observei fios de gelo a tecerem-se e entrelaçarem-se pela
pedra da sala dos registos na torre norte. O padrão cobria as paredes a
partir do chão, gelando até o tecto com algo quebradiço e branco. Alguns
cristais de neve, pequenos e brancos, pairavam no ar.
Tudo era delicado e etéreo – e nada natural. O frio cortante da sala
atravessava-me a pele e deixou-me gelada até à medula. Quem me dera
não estar ali sozinha. Se houvesse ali outra pessoa a ver aquilo, talvez eu
acreditasse que era real. Talvez acreditasse que não corria perigo.
O gelo quebrou-se com um estrondo tão grande que saltei de susto.
Perante o meu olhar atónito (a minha respiração estava acelerada e entrecortada), o gelo que gravava a janela turvou a visão do céu nocturno lá
fora e bloqueou o luar; mesmo assim, eu continuava a conseguir ver.
A sala agora tinha luz própria. Todos os fios de gelo na janela se apartaram em várias direcções que, longe de serem aleatórias, criavam um
padrão sinistro, uma forma reconhecível.
Um rosto.
O homem de gelo que eu via fitava-me também. Os seus olhos escuros
e zangados apareceram com um pormenor tal que parecia estar a olhar
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para mim. O rosto no gelo era a imagem mais vívida que eu alguma vez
havia visto.
O frio apunhalou-me o coração quando compreendi: ele estava mesmo
a olhar para mim.
Dantes, eu não acreditava em fantasmas…
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Capítulo 1
À meia-noite, a tempestade começou.
Nuvens escuras deslizavam pelo céu, cobrindo as estrelas. O vento
cada vez mais forte enregelou-me; madeixas do meu cabelo vermelho
fustigavam-me a testa e as maçãs do rosto. Puxei o capuz da minha gabardina preta e protegi a mochila debaixo dela.
Apesar da tempestade que se aproximava, os jardins de Evernight ainda
não estavam completamente às escuras. E nada menos do que escuridão
absoluta serviria. Os professores da Academia Evernight conseguiam ver
no escuro e ouvir através do vento. Todos os vampiros o conseguiam.
Claro que, em Evernight, os professores não eram os únicos vampiros.
Dentro de dois dias, o ano lectivo iria começar e os estudantes chegariam: e a maioria era composta por mortos-vivos tão poderosos e antigos
quanto os professores.
Eu não era poderosa nem antiga; e ainda estava muito viva. Mas, de
certa forma, era uma vampira – filha de dois vampiros, estava destinada
a tornar-me também uma – e tinha apetite por sangue.
Já conseguira escapulir-me por entre os professores, contando com o
auxílio dos meus poderes e também com pura sorte. Mas naquela noite
esperava pela escuridão total. Queria estar tão camuflada quanto possível.
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Acho que estava nervosa por ser a primeira vez que forçava a entrada
numa casa.
Dizer forçar a entrada faz com que isto pareça reles, como se eu fosse
apenas invadir a casa das carruagens onde a senhora Bethany morava e
saqueá-la para ficar com dinheiro, jóias ou algo do género. E eu tinha
motivos mais importantes para o fazer.
A chuva começou a cair e o céu foi ficando mais escuro. Corri pelos
jardins, lançando alguns olhares para as torres de pedra da escola
enquanto avançava. Ao deslizar pela relva molhada e escorregadia até à
casa das carruagens de telhado de cobre, fui acometida por uma hesitação
incómoda. A sério? Vais invadir-lhe a casa? Invadir a casa de quem quer
que seja? Tu nem sequer descarregas música sem pagares. Era surreal: tirar
da mochila o meu cartão laminado da biblioteca e usá-lo para outra coisa
que não requisitar livros. Mas estava determinada. Ia fazê-lo. No máximo,
a senhora Bethany ausentava-se da academia três vezes por ano, pelo que
a minha oportunidade era naquela noite. Fiz o cartão passar por entre a
porta e a ombreira e comecei a tentar arrombar a fechadura.
Cinco minutos depois, ainda estava a agitar o cartão da biblioteca sem
qualquer resultado, já com as mãos frias, molhadas e desajeitadas. Na TV,
esta parte parecia sempre tão fácil. Provavelmente, os criminosos a sério
não demoram mais de dez segundos a fazer isto. Porém, estava a tornar-se cada vez mais óbvio que eu não era grande criminosa.
Desistindo do plano A, comecei a procurar outra opção. Ao início, as
janelas não pareciam muito mais prometedoras do que a porta. É claro
que eu podia ter partido o vidro de qualquer uma delas, abrindo-a com
facilidade, mas isso lançaria por terra a componente não ser apanhada
do meu plano.
Ao contornar a casa, foi com surpresa que vi que a senhora Bethany
deixara uma janela aberta – apenas uma fresta. Era tudo o que eu precisava.
Enquanto levantava devagar a janela, vi no parapeito uma fileira de
violetas-africanas em pequenos vasos de barro. A senhora Bethany tinha-
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-as deixado num lugar onde poderiam apanhar ar fresco e talvez alguma
chuva. Era estranho pensar que a senhora Bethany se preocupava com
algum ser vivo. Arredei com cuidado os vasos para ter espaço para me
içar e passar pela janela.
Entrar por uma janela aberta? Também é muito mais difícil do que
parece na televisão.
As janelas da senhora Bethany eram bem altas, o que implicava ter de
saltar só para lá chegar. A ofegar, comecei a impulsionar-me para o interior, e foi com dificuldade que não caí no chão lá dentro. Estava a tentar
aterrar de pé. Mas passara primeiro a cabeça pela janela e não podia
virar-me a meio. Um dos meus sapatos enlameados bateu com força
numa das janelas e eu arquejei, mas o vidro não se partiu. Lá consegui
descer o que me faltava e deixar-me cair no chão.
– Muito bem – sussurrei, deitada no tapete entrançado da senhora
Bethany, com as pernas ainda por cima da cabeça, encostada ao parapeito
e muito encharcada. – E esta era a parte fácil.
A casa da senhora Bethany parecia-se com ela; tinha o mesmo toque
e até o mesmo cheiro – forte e penetrante, com alfazema. Dei-me conta
de que estava no seu quarto, o que fez com que me sentisse ainda mais
uma intrusa. Apesar de saber que a senhora Bethany tinha viajado até
Boston para conhecer «potenciais alunos», não conseguia libertar-me
da sensação de que ela poderia apanhar-me a qualquer momento. Essa
perspectiva aterrorizava-me. Já estava a começar a ficar bloqueada,
a recolher-me no meu íntimo como sempre que sentia medo.
Mas depois pensei no Lucas, o rapaz que eu amava – e que tinha
perdido.
O Lucas não quereria ver-me assustada. Quereria que me mantivesse
forte. A sua memória deu-me coragem e eu obriguei-me a levantar-me
e a lançar mãos à obra.
Prioridades em primeiro lugar: tirei os sapatos enlameados, para não
deixar mais lama na casa. Também pendurei a gabardina no puxador da
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porta mais próxima para não pingar por todo o lado. Depois fui à casa
de banho e agarrei numa mão-cheia de lenços de papel que usei para
limpar os meus sapatos e tudo o que já tinha sujado. Enfiei os lenços num
bolso da gabardina para poder deitá-los fora noutro sítio. Se havia uma
pessoa paranóica o suficiente para procurar provas de uma intrusão no
seu próprio caixote do lixo, essa pessoa era a senhora Bethany.
Achei surpreendente que a directora tivesse escolhido viver ali. A Academia Evernight era grande, grandiosa até, toda feita de torres de pedra e
gárgulas – muito ao estilo dela. Aquele lugar pouco mais era do que um
casebre. Por outro lado, ali ela tinha privacidade. Não me era difícil crer
que a senhora Bethany prezasse isso acima de tudo o mais.
A secretária parecia o local indicado para começar. Sentei-me na
cadeira de madeira com um espaldar duro, afastei um retrato em silhueta
de um homem do século xix numa moldura prateada e comecei a esquadrinhar os papéis que ali encontrei.
Caro senhor Reed,
Avaliámos a candidatura do seu filho Mitch com grande interesse.
Apesar de ser como é óbvio um estudante excepcional e um jovem exemplar, lamentamos informá-lo…
Um aluno humano que queria estudar aqui – e que a senhora Bethany
rejeitara. Por que permitiria que alguns humanos frequentassem a Academia Evernight mas outros não? Por que consentiria que entrassem
humanos de todo num dos poucos redutos vampíricos que subsistiam?
Caros senhor e senhora Nichols,
Avaliámos a candidatura da vossa filha Clementine com grande interesse. Trata-se como é óbvio de uma estudante excepcional e de uma
jovem exemplar, pelo que é com prazer que…
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Qual seria a diferença entre Mitch e Clementine? Felizmente, o sistema
organizado da senhora Bethany facultou-me acesso directo às candidaturas dos dois, mas ao analisá-las não descortinei quaisquer respostas.
Ambos tinham obtido notas assustadoramente altas nos exames finais e
apresentavam imensas actividades extracurriculares. Examinar as listas
de êxitos deles fez-me sentir a maior baldas do mundo. Nas fotografias,
tinham uma aparência bastante normal: não eram lindos, nem feios,
nem gordos, nem magros, apenas normais. Ambos viviam na Virgínia
– Mitch num prédio de apartamentos em Arlington e Clementine numa
casa antiga no campo – mas eu sabia que tinham de ser podres de ricos
para sequer equacionar estudar nesta escola.
Tanto quanto eu conseguia perceber, a única diferença entre o Mitch e
a Clementine era que o primeiro tinha mais sorte. Os pais enviá-lo-iam
para um colégio interno normal para a classe alta na costa leste, onde
se entrosaria com outros miúdos ultra-ricos e jogaria lacrosse, andaria
de iate ou faria o que quer que se fizesse nesses sítios. A Clementine,
entretanto, viveria rodeada de vampiros. Apesar de nunca vir a sabê-lo,
pressentiria que algo aqui estava muitíssimo errado. Nunca se sentiria
segura. Nem eu me sentia segura na Academia Evernight, e eu acabaria
por me transformar numa vampira – um dia.
Um relâmpago iluminou as janelas, seguido por um trovão segundos
depois. A tempestade não tardaria a piorar; estava na altura de regressar.
O desapontamento invadiu-me enquanto tornava a dobrar as cartas e as
colocava no seu lugar. Estivera tão certa de que obteria respostas naquela
noite; em vez disso, nada aprendera.
Não é verdade, disse a mim mesma enquanto vestia a gabardina
e olhava para os vasos. Ficaste a saber que a senhora Bethany gosta de
violetas-africanas. Isso vai ser mesmo útil.
Arrumei as violetas no parapeito tal como estavam antes de eu entrar
e saí pela porta da frente que, por sorte, se trancava automaticamente.
Era típico da senhora Bethany não deixar sequer esse pormenor ao acaso.
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O vento voltou a fustigar-me o rosto com chuva tão forte que sentia
as faces a arder enquanto corria na direcção da Academia Evernight.
Algumas janelas dos apartamentos dos professores ainda tinham uma luz
dourada, mas já era tarde o suficiente para que eu não me preocupasse
por alguém poder ver-me. Encostei o ombro à pesada porta de carvalho,
que se abriu obedientemente sem o mínimo rangido. Ao fechá-la atrás
de mim, pensei que estava a salvo.
Até me aperceber de que não me encontrava sozinha.
Em alerta, escrutinei a escuridão do grande átrio. Era um amplo espaço
aberto, sem recantos ou colunas onde alguém pudesse esconder-se, pelo
que devia conseguir ver quem lá estava. Mas não via ninguém. Estremeci;
de súbito, parecia-me que estava muito mais frio, como se me encontrasse
numa caverna húmida e intimidante e não entre as paredes de Evernight.
As aulas só começariam dali a dois dias, pelo que na escola só estávamos eu e os professores. Mas qualquer professor teria de imediato
começado a ralhar comigo por estar nos jardins àquela hora e a meio de
uma tempestade. Não ficaria a espiar-me no escuro.
Pois não?
Hesitante, dei um passo em frente.
– Quem está aí? – sussurrei.
Ninguém respondeu.
Talvez estivesse a imaginar coisas. Agora que pensava nisso, na verdade
eu nada ouvira. Apenas sentira, aquela estranha impressão que por vezes
temos de alguém estar a observar-nos. Passara toda a noite preocupada
com o facto de alguém poder ver-me, pelo que podia estar a ser influenciada por essa preocupação.
Depois vi qualquer coisa mexer-se. Percebi que uma rapariga estava
do lado de fora do grande átrio, a espreitar. De pé, envolvida num longo
xaile, estava do outro lado de uma das janelas – a única que tinha vidro
transparente e não vitral. Devia ser da minha idade. Apesar de estar a
chover imenso, ela parecia completamente seca.
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– Quem és? – Dei mais alguns passos na direcção dela. – És aluna
aqui? O que estás…
Desapareceu. Não fugiu, não se escondeu… nem sequer se mexeu.
Num instante estava ali, no seguinte já não. A pestanejar, fitei a janela
durante mais alguns segundos, como se ela pudesse tornar a aparecer
no mesmo sítio por artes mágicas. Não o fez. Aproximei-me mais para
tentar ver melhor, vi um resquício de movimento e, alvoroçada, saltei –
mas depois dei-me conta de que estava perante a minha própria imagem
reflectida no vidro.
Bem, que estupidez. Acabaste de entrar em pânico ao veres a tua cara.
Não era a minha cara.
Mas só podia ser. Se alguns estudantes novos tivessem chegado
naquele dia, eu saberia, e Evernight ficava numa área tão isolada que era
impossível imaginar um estranho a vaguear por ali. A minha imaginação
hiperactiva voltara a pregar-me uma partida; só podia ter sido o meu
reflexo. Nem sequer estava tanto frio ali, bem vistas as coisas.
Quando parei de tremer, subi pé ante pé pela escadaria até ao pequeno
apartamento que eu e os meus pais partilhávamos no Verão, mesmo no
topo da torre sul de Evernight. Felizmente, estavam a dormir profundamente; quando atravessei o corredor em bicos de pés, ouvi a minha mãe a
ressonar; se o meu pai conseguia dormir com aquele barulho, conseguiria
dormir durante a passagem de um furacão.
Ainda me sentia aturdida pelo que vira lá em baixo; o facto de estar
ensopada não contribuía para ficar mais bem-disposta. Mas nada disso
me importunava tanto quanto ter falhado. A minha grande tentativa de
arrombamento resultara em nada.
Não que eu pudesse fazer alguma coisa a respeito dos alunos humanos
em Evernight. A senhora Bethany não ia deixar de os aceitar só por eu
dizer para não o fazer. Para além disso, eu tinha de admitir que ela os
protegia, vigiando os estudantes vampiros para garantir que estes não
lhes bebiam nem um pouco de sangue.
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Mas ter conhecido o Lucas deixara-me consciente de quão pouco
compreendia da existência dos vampiros, apesar de ter nascido nesse
mundo. Ele levara-me a ver tudo de uma forma diferente, tornara-me
mais propensa a fazer perguntas e a precisar de respostas. Mesmo que
não tornasse a vê-lo, sabia que me dera um dom ao acordar-me para a
realidade maior e mais sombria. Já não podia tomar o que me rodeava
como garantido.
Depois de despir as roupas molhadas e de me aconchegar debaixo
dos cobertores, fechei os olhos e lembrei-me do meu quadro preferido,
O Beijo, de Klimt. Tentei imaginar que eu e o Lucas éramos os amantes
retratados nessa pintura, que era o seu rosto que estava tão perto do meu,
e que conseguia sentir-lhe a respiração na minha face. Já não nos víamos
havia quase seis meses.
Nessa altura ele fora obrigado a fugir de Evernight porque a sua verdadeira identidade – caçador de vampiros da Cruz Negra – fora revelada.
Ainda não sabia como lidar com o facto de o Lucas fazer parte de um
grupo de pessoas que se dedicava a destruir a minha espécie. De igual
forma, também não estava certa de como o Lucas se sentia por eu ser
uma vampira, algo que ele só percebera depois de nos termos apaixonado. Nenhum de nós escolhera ser o que éramos. Em retrospectiva,
parecia inevitável que nos separássemos. E, no entanto, eu ainda acreditava, no meu íntimo, que estávamos destinados a ficar juntos.
Apertando a almofada contra o peito, tentei tranquilizar-me: Pelo
menos em breve não terás tanto tempo para sentir a falta dele. Daqui
a nada as aulas recomeçam e ficarás mais ocupada.
Espera aí. Estarei reduzida a esperar que as aulas comecem?
Não sei como, mas acabei de descobrir todo um novo nível de patético.
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Capítulo 2
No primeiro dia de aulas, pouco depois da madrugada, a procissão
começou.
Os primeiros alunos, poucos, chegaram a pé. Saíram do bosque, com
roupas simples e, na maioria, uma única mochila pendurada ao ombro.
Julgo que alguns deles tinham passado a noite a caminhar. Os seus olhos
ansiosos perscrutavam a escola à medida que se aproximavam, como se
esperassem obter de imediato as respostas que procuravam. Ainda antes
de ter visto o primeiro rosto conhecido – o do Ranulf, que tinha mais de
mil anos e nada compreendia dos tempos modernos – soube quem eram
os estudantes daquele grupo. Eram os perdidos, os vampiros mais velhos.
Não causavam problemas a quem quer que fosse; ficavam ao fundo,
a estudar, a ouvir, a tentar compensar os séculos que tinham perdido.
No ano anterior, o Lucas misturara-se com eles para entrar. Lembrava-me de como aparecera, vindo do nevoeiro, no seu longo casaco preto.
Apesar de saber que não valia a pena, continuei a observar as caras de
todos os alunos que chegavam a pé, desejando poder tornar a ver a dele.
À hora do pequeno-almoço, os carros começaram a surgir. Observava-os a partir do corredor entre as salas de aula, dois pisos acima, pelo
que conseguia ver os emblemas nos capôs: Jaguar, Lexus, Bentley. Havia
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pequenos carros desportivos italianos e jipes grandes o suficiente para
que os carros desportivos estacionassem lá dentro. Percebia que eram
dos alunos humanos, porque nenhum vinha sozinho. A maioria fazia-se acompanhar pelos pais, alguns traziam também irmãos e irmãs mais
novos. Até reconheci a Clementine Nichols, que tinha um rabo-de-cavalo
castanho-claro e sardas no nariz. Fiquei espantada ao ver a senhora
Bethany no jardim a ir ao encontro de quase todos, estendendo a mão
tão graciosamente como uma rainha a receber cortesãos. Parecia querer
falar com os pais e sorria-lhes com calor como se estivesse a estabelecer
amizades para toda a vida. Embora soubesse que estava a fingir, tinha de
admitir: fazia-o na perfeição. Quanto aos alunos humanos, quanto mais
tempo passavam no jardim e olhavam para as imponentes torres de pedra
da Academia Evernight, mais os seus sorrisos esmoreciam.
– Ah, estás aqui!
Desviei o olhar da cena lá em baixo e virei-me para o meu pai, que se
forçara a levantar-se cedo para a ocasião. Estava de fato e gravata, como
um professor deveria vestir-se, mas o cabelo ruivo-escuro e desalinhado
revelava bem mais da sua verdadeira personalidade.
– Sim – respondi, sorrindo-lhe. – Acho que queria só ver o que se passa.
– Estás à procura dos teus amigos? – Os olhos do meu pai brilharam
quando se colocou a meu lado e espreitou pela janela. – Ou a mirar os
rapazes novos?
– Pai.
– Estou a afastar-me, conforme solicitado. – Ergueu as mãos. – Pareces
um pouco mais contente com isto do que no ano passado.
– Era quase inevitável, não era?
– Suponho que sim – respondeu o meu pai e ambos nos rimos.
No ano anterior, eu sentia-me tão anti-Evernight que tentara fugir no dia
da chegada dos alunos… parecia ter sido numa outra vida. – Olha, se
queres tomar o pequeno-almoço, acho que a tua mãe já ligou a máquina
dos waffles.
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Apesar de por hábito se alimentarem apenas do sangue que a escola providenciava através de carregamentos clandestinos, os meus pais asseguravam-se sempre de que eu tinha a comida a sério de que ainda precisava.
– Subo daqui a um segundo, está bem?
– Está. – Pousou-me a mão no ombro por um instante antes de se virar
e começar a ir-se embora.
Lancei um último olhar aos jardins. Algumas famílias continuavam a
deambular por ali ou a arrastar malas de viagem, mas a terceira e última
vaga de alunos tinha começado a chegar.
Todos vinham sozinhos, em carros alugados. Havia alguns táxis,
mas, na sua maioria, os automóveis eram sedans ou limusinas alugados.
Ao saírem, aqueles alunos já envergavam o uniforme da escola (ajustado
à medida de cada um) e mostravam um cabelo lustroso e penteado com
cuidado para trás. Nenhum trazia malas; eram deles as muitas caixas e
arcas que tinham chegado a Evernight nas duas semanas anteriores, contendo os seus muitos pertences. Com desagrado, vi a Courtney, uma das
pessoas de quem menos gostava, a acenar descontraída a algumas das
outras raparigas. Ela, tal como muitas outras, usava óculos de sol. Isso
significava que tinham uma particular sensibilidade à luz solar, o que,
por seu turno, queria dizer que não bebiam sangue havia algum tempo.
Deviam estar a fazer dieta, para parecerem mais magras e ferozes.
Estes eram os vampiros que precisavam de ajuda para se adaptar ao
século xxi mas que não estavam por completo perdidos com as mudanças temporais. Eram aqueles que ainda tinham poder – e que não permitiriam que ninguém da escola se esquecesse disso. Pensava neles sempre
da mesma maneira.
Eram «os tipos de Evernight».
Quando acabei os waffles e desci, o grande átrio estava a abarrotar com
uma multidão de estudantes a conversar e a rir. Durante alguns minutos,
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limitei-me a vaguear por ali, sentindo-me pequena, até ouvir uma voz
sobrepor-se à vozearia:
– Bianca!
– Balthazar! – respondi-lhe, sorrindo e levantando a mão por cima da
cabeça num aceno entusiasmado. Era um rapaz grande, tão alto e musculado que poderia parecer-me intimidador ao furar pela multidão para
me alcançar, não fosse a bondade nos seus olhos e o sorriso amigável que
lhe ocupava todo o rosto.
Pus-me em bicos de pés para lhe dar um abraço apertado.
– Como foi o teu Verão?
– Foi óptimo. Trabalhei no turno da noite de uma doca em Baltimore –
disse com o deleite que qualquer outra pessoa usaria para descrever umas
férias de sonho em Cancún. – Eu e os outros que lá trabalhavam ficámos
amigos, divertimo-nos muito em bares. Aprendi a jogar bilhar. E também
voltei a fumar.
– Acho que os teus pulmões aguentam. – Sorrimos um para outro, sem
podermos completar a piada enquanto estivéssemos rodeados por alunos
humanos. – Precisas de ajuda para organizar o teu relatório?
– Já está feito e deixei-o na secretária da senhora Bethany. – Todos os
vampiros tinham de passar os meses de Verão «entrosados no mundo
moderno», como indicava o trabalho que lhes era atribuído, e submeter relatórios das suas experiências no início de cada ano lectivo. Era
uma espécie de variante infernal de uma composição subordinada ao
tema «O Que Eu Fiz nas Férias de Verão». O Balthazar olhou em redor.
– A Patrice já cá está?
– Vai passar algum tempo na Escandinávia. – Um mês antes, eu tinha
recebido um postal com uma imagem de fiordes. – Diz que termina num
ano ou dois. Acho que conheceu lá um rapaz.
– Que pena – comentou o Balthazar. – Estava a contar ver mais caras
conhecidas. Para além da que se aproxima com rapidez de nós, às quatro
horas.
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– O que queres dizer? – Tentei perceber que coordenadas seriam as
quatro horas, mas logo ouvi a voz dela a atravessar o burburinho. O som
era idêntico ao de unhas a raspar num quadro negro.
– Balthazar. – A Courtney estendeu-lhe uma mão como se esperasse
que ele a beijasse. O Balthazar apertou-a e depois soltou-a. O sorriso de
batom brilhante dela nem por um segundo vacilou. – Tiveste um Verão
maravilhoso? Eu estive em Miami, a aproveitar a zona dos clubes. Foi
altamente. Devias ir lá com alguém que conheça os sítios mais populares.
– Estou surpreendida por te ver aqui – intrometi-me. Surpreendida
pareceu-me descrever o que sentia de uma maneira mais delicada do
que desapontada. – Não achei que tivesses gostado disto o ano passado.
Ela encolheu os ombros.
– Pensei desistir mas, na primeira noite que passei em Miami, apercebi-me de que estava a usar um vestido da estação anterior. E os meus sapatos
eram, tipo, de há três anos. Tremenda gafe! Tornou-se óbvio que precisava de me actualizar mais, pelo que concluí que podia aguentar mais
uns meses em Evernight. – O seu olhar já se focara de novo no Balthazar.
– Além disso, gosto sempre de passar mais tempo com velhos amigos.
Comentei:
– Se eu quisesse saber mais de moda, não iria para um sítio onde toda
a gente veste uniforme.
A boca do Balthazar contorceu-se. A Courtney semicerrou os olhos,
mas o seu sorriso limitou-se a crescer enquanto observava a minha camisola sem forma e que não fora ajustada à medida do meu corpo e a minha
saia de pregas.
– E tu nunca te interessaste por moda. Obviamente. – Deu uma palmadinha no ombro do Balthazar. – Falamos depois. – E, saracoteando-se,
foi-se embora, com o rabo-de-cavalo a oscilar de um lado para o outro
ao ritmo dos seus passos.
– Eu queria dar-me melhor com ela este ano – balbuciei. – Acho que
não mudei tanto quanto pensava ter mudado.
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– Não tentes mudar. És fantástica tal como és.
Desviei o olhar, envergonhada. Parte de mim pensava: Oh, não, agora
vou ter de desiludir o Balthazar outra vez. A outra parte era incapaz de
evitar ficar satisfeita por ele me ter dito aquilo. Sentira-me tão solitária
durante todo o Verão – sem o Lucas, sem quem quer que fosse – e saber
que estava ali mesmo alguém que gostava de mim era como receber um
cobertor quente depois de meses de frio.
Antes de conseguir pensar na melhor forma de lhe responder, ouviu-se um sinal para que todos se calassem. A multidão em peso virou-se
por instinto para o pódio ao fundo do grande átrio. A senhora Bethany
estava prestes a discursar.
Vestira um fato justo e cinzento, mais apropriado ao século xxi do que
o que ela costumava usar e que, não obstante, lhe frisava a beleza austera. Apanhara o cabelo escuro num penteado elegante e tinha brincos
de pérolas a brilhar nas orelhas. Em vez de olhar para os estudantes, os
seus olhos escuros fitavam algo um pouco acima de nós, como se, para
ela, mal fôssemos visíveis.
– Bem-vindos a Evernight. – A sua voz ecoava pelo grande átrio.
Todos se endireitaram mais. – Alguns de vocês já frequentavam a academia. Outros terão ouvido falar da Academia Evernight ao longo de anos
(talvez as vossas famílias vos tenham falado deste sítio), interrogando-se
se alguma vez ingressariam na nossa escola.
Era o mesmo discurso que pronunciara no ano anterior mas, desta
vez, ouvi-o de maneira diferente. Escutei as mentiras implícitas em cada
frase cuidadosa, a forma como ela falava para os vampiros ali presentes
que já ali estavam há vinte ou duzentos anos.
Como se me lesse os pensamentos, a senhora Bethany fitou-me; o seu
olhar de falcão atravessou a multidão. Fiquei tensa, esperando que me
acusasse de lhe ter invadido a casa enquanto ela estivera fora.
Em vez disso, fez algo ainda mais surpreendente. Abandonou o
guião.
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– A Academia Evernight tem um significado diferente para cada pessoa que vem para aqui – começou. – É um lugar de aprendizagem, um
lugar de tradição e, para alguns, um refúgio.
Só para as criaturas nocturnas e sugadoras de sangue, pensei. Caso
contrário? Não é grande refúgio.
Com uma mão, gesticulou para alguns dos novos alunos; as suas unhas
longas cintilavam em tons de vermelho sob a luz que atravessava os vitrais
das janelas. Para meu grande espanto, ela estava a apontar para os estudantes humanos… embora, é claro, eles não pudessem compreender porquê.
– Para usufruírem ao máximo do vosso tempo em Evernight, terão
de perceber o que esta escola significa para os vossos colegas. É por isso
que incito aqueles que têm mais experiência a aproximarem-se dos novos
alunos. Protejam-nos. Aprendam coisas sobre as suas vidas, os seus interesses e o seu passado. Só assim a Academia Evernight poderá atingir os
seus verdadeiros objectivos.
Algumas pessoas bateram palmas hesitantes: humanos que não sabiam
o que fazer.
– Okay, isto foi estranho – murmurou o Balthazar sob o aplauso
ligeiro. – Se eu não a conhecesse, julgaria que a senhora Bethany tinha
acabado de pedir a toda a gente que fosse amistosa.
Acenei com a cabeça, que estava a mil. Por que quereria a senhora
Bethany que os vampiros se aproximassem dos alunos humanos? Se não
queria que os humanos se magoassem – e eu ainda estava convencida
de que ela não queria que isso acontecesse –, o que pretenderia de facto?
– As aulas começarão amanhã. – O costumeiro sorriso superior tinha
regressado ao rosto da senhora Bethany. – Aproveitem este dia para
conhecer os vossos companheiros, sobretudo os que aqui estão pela primeira vez. Estamos contentes por vos ter cá, e esperamos que aproveitem
ao máximo a vossa passagem por Evernight.
– Achas que se afeiçoou a nós? – perguntou-me o Balthazar assim que
as pessoas voltaram a socializar.
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– A senhora Bethany? É difícil. – Por um momento, equacionei
perguntar-lhe o que pensava de todo aquele mistério da «política de
admissões». Ele era inteligente e, apesar de respeitar a directora, não
tomava o que ela dizia como um evangelho. Além disso, já andava por
este mundo havia mais de três séculos; com certeza, seria capaz de
encarar a minha dúvida com a perspectiva necessária para, sob uma
luz diferente, conseguir apresentar uma resposta original. Mas essa
perspectiva também podia levá-lo a pensar que a pergunta se prendia
com a minha relação com o Lucas – algo de que ele não gostaria de ser
recordado.
Nesse momento, o Balthazar sorriu e acenou a outra pessoa; era
impossível dizer a quem no meio daquela multidão, em especial tendo
em conta que ele era amigo de quase toda a gente.
– Depois falamos, está bem? – gritei para as costas dele, já a afastar-se.
– Claro!
Por um instante, senti-me sozinha sem ele. Estava rodeada por vampiros – vampiros a sério, poderosos, sensuais e fortes, com séculos de experiência por detrás daqueles rostos belos e jovens. Eu ainda não era uma
vampira completa e a distância entre nós não diminuíra muito durante o
meu primeiro ano em Evernight. Ao pé deles, continuava a ser pequena,
ingénua e esquisita.
Tudo isso eram razões para me encaminhar prontamente para o andar
de cima, concluí. Teria uma nova companheira de quarto e mal podia
esperar para falar com ela.
Quando entrei no dormitório, a Raquel suspirou.
– Bem-vinda de volta… ao inferno.
Estava deitada de costas sobre o colchão, com os braços estendidos.
Tinha o bornal amarrotado no chão, como que vazado, e tanto as suas
roupas como o material de pintura estavam espalhados em volta. Parecia que tinha esvaziado o bornal e desistido nesse ponto de desfazer as
malas.
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– Também gosto de te ver. – Sentei-me na borda da minha cama.
– Pensava que pelo menos ficarias contente por este ano podermos partilhar o quarto.
– Acredita em mim, és a única razão por que consigo suportar a ideia
de estar aqui outra vez. Conta lá, os teus pais subornaram a senhora
Bethany ou algo do género? Se sim, estou a dever-lhes um grande favor.
– Não, foi pura sorte. – Era quase uma mentira. Os meus pais não
tinham pedido quaisquer favores à senhora Bethany mas, aparentemente,
o número de vampiros e humanos que tinham ingressado na academia
era ímpar, tanto no caso dos rapazes como no das raparigas. Dado que eu
ainda comia comida normal mais do que bebia sangue, fui considerada a
vampira com mais possibilidades de esconder a verdade de uma humana
quando jantássemos nos quartos, como era costume em Evernight.
Conseguir ficar com a Raquel, porém… isso fora pura sorte. Sorte,
e o facto de quase todas as outras raparigas humanas que ali tinham feito
o décimo ano se terem assegurado de que frequentariam o décimo primeiro noutra escola. Não podia julgá-las por isso.
– Então – disse eu, esforçando-me por manter um tom divertido –,
para além de passares mais tempo na minha fascinante companhia, por
que voltaste? Bem sei que não era o que tinhas planeado.
– Sem ofensa, mas nem sequer a tua fascinante companhia seria suficiente para me fazer mudar de ideias. – A Raquel rebolou na cama e ficou
de barriga para baixo, de forma a olhar de frente para mim. Cortara o
cabelo escuro ainda mais curto do que no ano anterior; mas pelo menos
fora a um cabeleireiro, pelo que o corte tinha bom aspecto, ainda que
parecesse um pouco punk. – Disse aos meus pais que queria experimentar outro sítio. Talvez ir viver com os meus avós em Houston, frequentar
a escola de lá. Nem quiseram ouvir. A Academia Evernight é «privada»
e «exclusiva» e isso devia chegar-me, alegaram.
– Mesmo depois de saberem… do Erich…
A boca da Raquel contorceu-se num esgar trocista.
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– Disseram que ele com certeza estava só a tentar meter-se comigo.
Que eu sou demasiado reservada com os rapazes e que tinha de aprender
a «gostar de alguém que gostasse de mim».
Fiquei a fitá-la, atónita. O Erich não fora um namorado em potência
com excesso de zelo, mas sim um vampiro decidido a persegui-la e a
matá-la. A Raquel não sabia isso, mas percebera que ele era perigoso.
Se eu tivesse contado aos meus pais que alguém me assustara metade do
que o Erich assustara a Raquel, o meu pai ter-me-ia abraçado até que eu
tornasse a sentir-me segura e a minha mãe de certeza teria atacado essa
pessoa com um taco de basebol. Os pais da minha amiga tinham-se rido
dela e haviam-na enviado de volta para o sítio que ela detestava.
– Lamento – disse-lhe.
Ela encolheu um ombro.
– Devia ter sabido que não iam prestar-me atenção. Nunca prestaram.
Nem quando eu…
– Quando tu o quê?
Não respondeu. Em vez disso, sentou-se e apontou com um ar acusador para a parede atrás de mim.
– Então, vamos ter de ficar com o Klimt?
Eu tinha pendurado a estampa por cima da cama. O Beijo era tão importante para mim que me esquecera de que a Raquel nunca o tinha visto.
– O quê? Não gostas?
– Bianca, esse quadro está tão visto. Há ímanes de frigorífico e canecas
com essa imagem!
– Quero lá saber. – Talvez seja estúpido gostar de uma coisa só porque
toda a gente gosta mas, na minha opinião, é ainda mais estúpido não
gostar porque toda a gente gosta. – É lindo, é uma das minhas coisas
preferidas e está na minha metade do quarto. Por isso, aguenta-te.
– Talvez pinte a minha parte do quarto de preto – ameaçou-me ela.
– Isso não seria assim tão mau. – Imaginei colocar estrelas, daquelas
que brilham no escuro, nas paredes e no tecto, como tinha no quarto
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quando era pequena. – Seria fantástico, mesmo. É uma pena que a
senhora Bethany não nos deixe fazê-lo.
– Quem diz que ela se oporia? Já fizeram tudo o resto para tornar este
sítio o mais sinistro possível. Por que não cobrir tudo de preto? – Fui
invadida pela imagem mental das torres de pedra da escola em preto
luzidio: era quase tudo o que precisava para estar no território do castelo
do Drácula.
– Incluindo as casas de banho. Incluindo as gárgulas. Pensava que não
conseguíamos tornar Evernight mais assustadora, mas conseguíamos,
não?
– Continuaria a ser melhor do que estar em casa. – Os olhos da
Raquel ficaram estranhos quando disse isto… tão cansados que, por um
momento, pareceu mais velha do que os vampiros que nos rodeavam
durante a reunião de boas-vindas.
Queria perguntar-lhe mais coisas sobre o que acontecera com os pais,
mas não sabia como. Enquanto tentava encontrar as palavras adequadas,
a Raquel falou com brusquidão:
– Anda lá e ajuda-me a arrumar esta porcaria.
– Que porcaria?
– A minha tralha.
– Ah – exclamei eu, acenando com a cabeça enquanto nos levantávamos e encaminhávamos para as caixas e o bornal dela que estavam num
canto. – Essa porcaria.
Depois de fazermos a cama dela e de arrumarmos as poucas coisas que
trouxera, a Raquel quis dormir uma sesta. Os pais dela não eram ricos,
como a maioria das famílias dos estudantes humanos de Evernight; em
vez de ser levada até à porta da academia num sedan luxuoso, tivera de
apanhar um autocarro em Boston antes da madrugada, mudar duas vezes
de autocarro e esperar por um táxi para chegar à escola. Estava exausta
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e adormeceu ainda antes de eu ter acabado de atar os atacadores dos
sapatos para sair.
A Raquel está aqui com uma bolsa, pensei. Isso significa que a senhora
Bethany, na verdade, está a pagar-lhe para que frequente esta escola. Por
que faria ela isso?
Todos os estudantes humanos estão aqui por um motivo, e o caso da
Raquel prova que não é por causa do dinheiro. Mas por que será? Será que
a Raquel é ainda mais importante do que os outros?
Mais perguntas e ainda nenhumas respostas.
Passeei até aos jardins para ver quanto teria Evernight mudado, agora
que os outros alunos tinham chegado. Os humanos falavam ansiosos uns
com os outros, fazendo novos amigos, enquanto os vampiros os observavam, lânguidos e desdenhosos.
O meu estômago fez barulho. Era quase hora de almoço. Esperava ser
a única vampira a pensar em comer enquanto olhávamos para os humanos mas, decerto, não era.
– Ei, Binks!
Nunca me tinham chamado Binks; porém, soube logo que só uma
pessoa o faria, mesmo antes de reconhecer a voz.
– Vic!
Ele caminhava descontraído pelos jardins na minha direcção, com um
grande sorriso no rosto. Como de costume, fizera alguns ajustes ao uniforme de Evernight; em vez das cores da escola, tinha a gravata decorada
como uma rapariga havaiana pintada à mão, e trazia o seu adorado boné
dos Phillies1 na cabeça. Corremos ao encontro um do outro, abraçámo-nos a rir e ele fez-me girar de tal forma que os meus pés deixaram de
tocar no chão.
Quando me largou, sentia-me tonta mas continuava a sorrir.
1
Philadelphia Phillies, equipa de basebol norte-americana. (N. da T.)
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– Tiveste um bom Verão? Recebi as tuas fotografias de Buenos Aires,
mas depois não soube mais de ti.
– Depois de toda a diversão à beira-mar, puseram-me a trabalhar.
A Companhia Woodson tem um programa de estágios de Verão e o meu
pai só dizia: «Tens de aprender como funciona o negócio da família.»
Mas quando és um estagiário… Não aprendes como as coisas funcionam.
Tudo o que aprendes é como os outros gostam do café. Passei o resto do
Verão a tentar lembrar-me de quem queria um café com leite de soja bem
quente. Foi mesmo foleiro. E tu? Ficaste aqui encafuada o tempo todo?
– Passámos o 4 de Julho em Washington. Basicamente, a minha mãe
arrastou-nos para vermos monumentos e coisas dessas. Mas gostei muito
do Museu de História Natural: tinham alguns meteoritos em exibição
em que se podia tocar… – A mão do Vic entrou no bolso da minha saia.
Fingi que não reparava no envelope que segurava. O meu coração começou a bater mais depressa. – Bem, foi divertido. Pelo menos consegui passar uma semana fora daqui, que, apesar de isto ser aborrecido durante o
ano lectivo, é bem pior quando fico aqui praticamente sozinha. – Estava
a tagarelar, sem prestar a mínima atenção ao que ia dizendo. – Nalguns
fins-de-semana fui a Riverton, mas não fiz muito mais. Hmm, pois.
– Temos de pôr a conversa em dia depois – disse o Vic, que como é
evidente compreendia que eu não era capaz de pensar noutra coisa senão
no item que ele acabara de me enfiar no bolso. – E se nos encontrássemos
depois do jantar? Podias conhecer o meu novo companheiro de quarto.
Parece muito fixe.
– Está bem, claro. – Eu teria concordado mesmo que ele tivesse sugerido que nos encontrássemos para rapar as cabeças. Sentia a adrenalina
a percorrer-me o corpo e a entontecer-me. – Encontramo-nos aqui?
– Podes crer.
Sem mais palavras, afastei-me dele a correr, dirigindo-me para o miradouro de ferro ao fundo dos jardins. Felizmente, não estavam lá outros
alunos, o que significava que ainda o tinha só para mim.
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Subi os degraus e instalei-me num dos bancos. O espesso dossel de
folhas de hera protegeu-me dos raios de Sol enquanto eu levava a mão
ao bolso e retirava o que o Vic lá deixara – um pequeno envelope branco,
endossado apenas com o meu nome.
Por um segundo, não fui capaz de o abrir. Tudo o que conseguia fazer
era fitar a caligrafia que recordava tão bem. A carta fora-me enviada
através do Vic, pelo seu antigo companheiro de quarto.
O Lucas.
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