sangue gelado
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sangue gelado
Claudia Gray SANGUE GELADO EVERNIGHT vol. 2 Tradução Raquel Lopes Prólogo As paredes começaram a ficar cobertas de gelo. Fascinada, observei fios de gelo a tecerem-se e entrelaçarem-se pela pedra da sala dos registos na torre norte. O padrão cobria as paredes a partir do chão, gelando até o tecto com algo quebradiço e branco. Alguns cristais de neve, pequenos e brancos, pairavam no ar. Tudo era delicado e etéreo – e nada natural. O frio cortante da sala atravessava-me a pele e deixou-me gelada até à medula. Quem me dera não estar ali sozinha. Se houvesse ali outra pessoa a ver aquilo, talvez eu acreditasse que era real. Talvez acreditasse que não corria perigo. O gelo quebrou-se com um estrondo tão grande que saltei de susto. Perante o meu olhar atónito (a minha respiração estava acelerada e entrecortada), o gelo que gravava a janela turvou a visão do céu nocturno lá fora e bloqueou o luar; mesmo assim, eu continuava a conseguir ver. A sala agora tinha luz própria. Todos os fios de gelo na janela se apartaram em várias direcções que, longe de serem aleatórias, criavam um padrão sinistro, uma forma reconhecível. Um rosto. O homem de gelo que eu via fitava-me também. Os seus olhos escuros e zangados apareceram com um pormenor tal que parecia estar a olhar 7 C L AU D I A G R AY para mim. O rosto no gelo era a imagem mais vívida que eu alguma vez havia visto. O frio apunhalou-me o coração quando compreendi: ele estava mesmo a olhar para mim. Dantes, eu não acreditava em fantasmas… 8 Capítulo 1 À meia-noite, a tempestade começou. Nuvens escuras deslizavam pelo céu, cobrindo as estrelas. O vento cada vez mais forte enregelou-me; madeixas do meu cabelo vermelho fustigavam-me a testa e as maçãs do rosto. Puxei o capuz da minha gabardina preta e protegi a mochila debaixo dela. Apesar da tempestade que se aproximava, os jardins de Evernight ainda não estavam completamente às escuras. E nada menos do que escuridão absoluta serviria. Os professores da Academia Evernight conseguiam ver no escuro e ouvir através do vento. Todos os vampiros o conseguiam. Claro que, em Evernight, os professores não eram os únicos vampiros. Dentro de dois dias, o ano lectivo iria começar e os estudantes chegariam: e a maioria era composta por mortos-vivos tão poderosos e antigos quanto os professores. Eu não era poderosa nem antiga; e ainda estava muito viva. Mas, de certa forma, era uma vampira – filha de dois vampiros, estava destinada a tornar-me também uma – e tinha apetite por sangue. Já conseguira escapulir-me por entre os professores, contando com o auxílio dos meus poderes e também com pura sorte. Mas naquela noite esperava pela escuridão total. Queria estar tão camuflada quanto possível. 9 C L AU D I A G R AY Acho que estava nervosa por ser a primeira vez que forçava a entrada numa casa. Dizer forçar a entrada faz com que isto pareça reles, como se eu fosse apenas invadir a casa das carruagens onde a senhora Bethany morava e saqueá-la para ficar com dinheiro, jóias ou algo do género. E eu tinha motivos mais importantes para o fazer. A chuva começou a cair e o céu foi ficando mais escuro. Corri pelos jardins, lançando alguns olhares para as torres de pedra da escola enquanto avançava. Ao deslizar pela relva molhada e escorregadia até à casa das carruagens de telhado de cobre, fui acometida por uma hesitação incómoda. A sério? Vais invadir-lhe a casa? Invadir a casa de quem quer que seja? Tu nem sequer descarregas música sem pagares. Era surreal: tirar da mochila o meu cartão laminado da biblioteca e usá-lo para outra coisa que não requisitar livros. Mas estava determinada. Ia fazê-lo. No máximo, a senhora Bethany ausentava-se da academia três vezes por ano, pelo que a minha oportunidade era naquela noite. Fiz o cartão passar por entre a porta e a ombreira e comecei a tentar arrombar a fechadura. Cinco minutos depois, ainda estava a agitar o cartão da biblioteca sem qualquer resultado, já com as mãos frias, molhadas e desajeitadas. Na TV, esta parte parecia sempre tão fácil. Provavelmente, os criminosos a sério não demoram mais de dez segundos a fazer isto. Porém, estava a tornar-se cada vez mais óbvio que eu não era grande criminosa. Desistindo do plano A, comecei a procurar outra opção. Ao início, as janelas não pareciam muito mais prometedoras do que a porta. É claro que eu podia ter partido o vidro de qualquer uma delas, abrindo-a com facilidade, mas isso lançaria por terra a componente não ser apanhada do meu plano. Ao contornar a casa, foi com surpresa que vi que a senhora Bethany deixara uma janela aberta – apenas uma fresta. Era tudo o que eu precisava. Enquanto levantava devagar a janela, vi no parapeito uma fileira de violetas-africanas em pequenos vasos de barro. A senhora Bethany tinha- 10 SANGUE GELADO -as deixado num lugar onde poderiam apanhar ar fresco e talvez alguma chuva. Era estranho pensar que a senhora Bethany se preocupava com algum ser vivo. Arredei com cuidado os vasos para ter espaço para me içar e passar pela janela. Entrar por uma janela aberta? Também é muito mais difícil do que parece na televisão. As janelas da senhora Bethany eram bem altas, o que implicava ter de saltar só para lá chegar. A ofegar, comecei a impulsionar-me para o interior, e foi com dificuldade que não caí no chão lá dentro. Estava a tentar aterrar de pé. Mas passara primeiro a cabeça pela janela e não podia virar-me a meio. Um dos meus sapatos enlameados bateu com força numa das janelas e eu arquejei, mas o vidro não se partiu. Lá consegui descer o que me faltava e deixar-me cair no chão. – Muito bem – sussurrei, deitada no tapete entrançado da senhora Bethany, com as pernas ainda por cima da cabeça, encostada ao parapeito e muito encharcada. – E esta era a parte fácil. A casa da senhora Bethany parecia-se com ela; tinha o mesmo toque e até o mesmo cheiro – forte e penetrante, com alfazema. Dei-me conta de que estava no seu quarto, o que fez com que me sentisse ainda mais uma intrusa. Apesar de saber que a senhora Bethany tinha viajado até Boston para conhecer «potenciais alunos», não conseguia libertar-me da sensação de que ela poderia apanhar-me a qualquer momento. Essa perspectiva aterrorizava-me. Já estava a começar a ficar bloqueada, a recolher-me no meu íntimo como sempre que sentia medo. Mas depois pensei no Lucas, o rapaz que eu amava – e que tinha perdido. O Lucas não quereria ver-me assustada. Quereria que me mantivesse forte. A sua memória deu-me coragem e eu obriguei-me a levantar-me e a lançar mãos à obra. Prioridades em primeiro lugar: tirei os sapatos enlameados, para não deixar mais lama na casa. Também pendurei a gabardina no puxador da 11 C L AU D I A G R AY porta mais próxima para não pingar por todo o lado. Depois fui à casa de banho e agarrei numa mão-cheia de lenços de papel que usei para limpar os meus sapatos e tudo o que já tinha sujado. Enfiei os lenços num bolso da gabardina para poder deitá-los fora noutro sítio. Se havia uma pessoa paranóica o suficiente para procurar provas de uma intrusão no seu próprio caixote do lixo, essa pessoa era a senhora Bethany. Achei surpreendente que a directora tivesse escolhido viver ali. A Academia Evernight era grande, grandiosa até, toda feita de torres de pedra e gárgulas – muito ao estilo dela. Aquele lugar pouco mais era do que um casebre. Por outro lado, ali ela tinha privacidade. Não me era difícil crer que a senhora Bethany prezasse isso acima de tudo o mais. A secretária parecia o local indicado para começar. Sentei-me na cadeira de madeira com um espaldar duro, afastei um retrato em silhueta de um homem do século xix numa moldura prateada e comecei a esquadrinhar os papéis que ali encontrei. Caro senhor Reed, Avaliámos a candidatura do seu filho Mitch com grande interesse. Apesar de ser como é óbvio um estudante excepcional e um jovem exemplar, lamentamos informá-lo… Um aluno humano que queria estudar aqui – e que a senhora Bethany rejeitara. Por que permitiria que alguns humanos frequentassem a Academia Evernight mas outros não? Por que consentiria que entrassem humanos de todo num dos poucos redutos vampíricos que subsistiam? Caros senhor e senhora Nichols, Avaliámos a candidatura da vossa filha Clementine com grande interesse. Trata-se como é óbvio de uma estudante excepcional e de uma jovem exemplar, pelo que é com prazer que… 12 SANGUE GELADO Qual seria a diferença entre Mitch e Clementine? Felizmente, o sistema organizado da senhora Bethany facultou-me acesso directo às candidaturas dos dois, mas ao analisá-las não descortinei quaisquer respostas. Ambos tinham obtido notas assustadoramente altas nos exames finais e apresentavam imensas actividades extracurriculares. Examinar as listas de êxitos deles fez-me sentir a maior baldas do mundo. Nas fotografias, tinham uma aparência bastante normal: não eram lindos, nem feios, nem gordos, nem magros, apenas normais. Ambos viviam na Virgínia – Mitch num prédio de apartamentos em Arlington e Clementine numa casa antiga no campo – mas eu sabia que tinham de ser podres de ricos para sequer equacionar estudar nesta escola. Tanto quanto eu conseguia perceber, a única diferença entre o Mitch e a Clementine era que o primeiro tinha mais sorte. Os pais enviá-lo-iam para um colégio interno normal para a classe alta na costa leste, onde se entrosaria com outros miúdos ultra-ricos e jogaria lacrosse, andaria de iate ou faria o que quer que se fizesse nesses sítios. A Clementine, entretanto, viveria rodeada de vampiros. Apesar de nunca vir a sabê-lo, pressentiria que algo aqui estava muitíssimo errado. Nunca se sentiria segura. Nem eu me sentia segura na Academia Evernight, e eu acabaria por me transformar numa vampira – um dia. Um relâmpago iluminou as janelas, seguido por um trovão segundos depois. A tempestade não tardaria a piorar; estava na altura de regressar. O desapontamento invadiu-me enquanto tornava a dobrar as cartas e as colocava no seu lugar. Estivera tão certa de que obteria respostas naquela noite; em vez disso, nada aprendera. Não é verdade, disse a mim mesma enquanto vestia a gabardina e olhava para os vasos. Ficaste a saber que a senhora Bethany gosta de violetas-africanas. Isso vai ser mesmo útil. Arrumei as violetas no parapeito tal como estavam antes de eu entrar e saí pela porta da frente que, por sorte, se trancava automaticamente. Era típico da senhora Bethany não deixar sequer esse pormenor ao acaso. 13 C L AU D I A G R AY O vento voltou a fustigar-me o rosto com chuva tão forte que sentia as faces a arder enquanto corria na direcção da Academia Evernight. Algumas janelas dos apartamentos dos professores ainda tinham uma luz dourada, mas já era tarde o suficiente para que eu não me preocupasse por alguém poder ver-me. Encostei o ombro à pesada porta de carvalho, que se abriu obedientemente sem o mínimo rangido. Ao fechá-la atrás de mim, pensei que estava a salvo. Até me aperceber de que não me encontrava sozinha. Em alerta, escrutinei a escuridão do grande átrio. Era um amplo espaço aberto, sem recantos ou colunas onde alguém pudesse esconder-se, pelo que devia conseguir ver quem lá estava. Mas não via ninguém. Estremeci; de súbito, parecia-me que estava muito mais frio, como se me encontrasse numa caverna húmida e intimidante e não entre as paredes de Evernight. As aulas só começariam dali a dois dias, pelo que na escola só estávamos eu e os professores. Mas qualquer professor teria de imediato começado a ralhar comigo por estar nos jardins àquela hora e a meio de uma tempestade. Não ficaria a espiar-me no escuro. Pois não? Hesitante, dei um passo em frente. – Quem está aí? – sussurrei. Ninguém respondeu. Talvez estivesse a imaginar coisas. Agora que pensava nisso, na verdade eu nada ouvira. Apenas sentira, aquela estranha impressão que por vezes temos de alguém estar a observar-nos. Passara toda a noite preocupada com o facto de alguém poder ver-me, pelo que podia estar a ser influenciada por essa preocupação. Depois vi qualquer coisa mexer-se. Percebi que uma rapariga estava do lado de fora do grande átrio, a espreitar. De pé, envolvida num longo xaile, estava do outro lado de uma das janelas – a única que tinha vidro transparente e não vitral. Devia ser da minha idade. Apesar de estar a chover imenso, ela parecia completamente seca. 14 SANGUE GELADO – Quem és? – Dei mais alguns passos na direcção dela. – És aluna aqui? O que estás… Desapareceu. Não fugiu, não se escondeu… nem sequer se mexeu. Num instante estava ali, no seguinte já não. A pestanejar, fitei a janela durante mais alguns segundos, como se ela pudesse tornar a aparecer no mesmo sítio por artes mágicas. Não o fez. Aproximei-me mais para tentar ver melhor, vi um resquício de movimento e, alvoroçada, saltei – mas depois dei-me conta de que estava perante a minha própria imagem reflectida no vidro. Bem, que estupidez. Acabaste de entrar em pânico ao veres a tua cara. Não era a minha cara. Mas só podia ser. Se alguns estudantes novos tivessem chegado naquele dia, eu saberia, e Evernight ficava numa área tão isolada que era impossível imaginar um estranho a vaguear por ali. A minha imaginação hiperactiva voltara a pregar-me uma partida; só podia ter sido o meu reflexo. Nem sequer estava tanto frio ali, bem vistas as coisas. Quando parei de tremer, subi pé ante pé pela escadaria até ao pequeno apartamento que eu e os meus pais partilhávamos no Verão, mesmo no topo da torre sul de Evernight. Felizmente, estavam a dormir profundamente; quando atravessei o corredor em bicos de pés, ouvi a minha mãe a ressonar; se o meu pai conseguia dormir com aquele barulho, conseguiria dormir durante a passagem de um furacão. Ainda me sentia aturdida pelo que vira lá em baixo; o facto de estar ensopada não contribuía para ficar mais bem-disposta. Mas nada disso me importunava tanto quanto ter falhado. A minha grande tentativa de arrombamento resultara em nada. Não que eu pudesse fazer alguma coisa a respeito dos alunos humanos em Evernight. A senhora Bethany não ia deixar de os aceitar só por eu dizer para não o fazer. Para além disso, eu tinha de admitir que ela os protegia, vigiando os estudantes vampiros para garantir que estes não lhes bebiam nem um pouco de sangue. 15 C L AU D I A G R AY Mas ter conhecido o Lucas deixara-me consciente de quão pouco compreendia da existência dos vampiros, apesar de ter nascido nesse mundo. Ele levara-me a ver tudo de uma forma diferente, tornara-me mais propensa a fazer perguntas e a precisar de respostas. Mesmo que não tornasse a vê-lo, sabia que me dera um dom ao acordar-me para a realidade maior e mais sombria. Já não podia tomar o que me rodeava como garantido. Depois de despir as roupas molhadas e de me aconchegar debaixo dos cobertores, fechei os olhos e lembrei-me do meu quadro preferido, O Beijo, de Klimt. Tentei imaginar que eu e o Lucas éramos os amantes retratados nessa pintura, que era o seu rosto que estava tão perto do meu, e que conseguia sentir-lhe a respiração na minha face. Já não nos víamos havia quase seis meses. Nessa altura ele fora obrigado a fugir de Evernight porque a sua verdadeira identidade – caçador de vampiros da Cruz Negra – fora revelada. Ainda não sabia como lidar com o facto de o Lucas fazer parte de um grupo de pessoas que se dedicava a destruir a minha espécie. De igual forma, também não estava certa de como o Lucas se sentia por eu ser uma vampira, algo que ele só percebera depois de nos termos apaixonado. Nenhum de nós escolhera ser o que éramos. Em retrospectiva, parecia inevitável que nos separássemos. E, no entanto, eu ainda acreditava, no meu íntimo, que estávamos destinados a ficar juntos. Apertando a almofada contra o peito, tentei tranquilizar-me: Pelo menos em breve não terás tanto tempo para sentir a falta dele. Daqui a nada as aulas recomeçam e ficarás mais ocupada. Espera aí. Estarei reduzida a esperar que as aulas comecem? Não sei como, mas acabei de descobrir todo um novo nível de patético. 16 Capítulo 2 No primeiro dia de aulas, pouco depois da madrugada, a procissão começou. Os primeiros alunos, poucos, chegaram a pé. Saíram do bosque, com roupas simples e, na maioria, uma única mochila pendurada ao ombro. Julgo que alguns deles tinham passado a noite a caminhar. Os seus olhos ansiosos perscrutavam a escola à medida que se aproximavam, como se esperassem obter de imediato as respostas que procuravam. Ainda antes de ter visto o primeiro rosto conhecido – o do Ranulf, que tinha mais de mil anos e nada compreendia dos tempos modernos – soube quem eram os estudantes daquele grupo. Eram os perdidos, os vampiros mais velhos. Não causavam problemas a quem quer que fosse; ficavam ao fundo, a estudar, a ouvir, a tentar compensar os séculos que tinham perdido. No ano anterior, o Lucas misturara-se com eles para entrar. Lembrava-me de como aparecera, vindo do nevoeiro, no seu longo casaco preto. Apesar de saber que não valia a pena, continuei a observar as caras de todos os alunos que chegavam a pé, desejando poder tornar a ver a dele. À hora do pequeno-almoço, os carros começaram a surgir. Observava-os a partir do corredor entre as salas de aula, dois pisos acima, pelo que conseguia ver os emblemas nos capôs: Jaguar, Lexus, Bentley. Havia 17 C L AU D I A G R AY pequenos carros desportivos italianos e jipes grandes o suficiente para que os carros desportivos estacionassem lá dentro. Percebia que eram dos alunos humanos, porque nenhum vinha sozinho. A maioria fazia-se acompanhar pelos pais, alguns traziam também irmãos e irmãs mais novos. Até reconheci a Clementine Nichols, que tinha um rabo-de-cavalo castanho-claro e sardas no nariz. Fiquei espantada ao ver a senhora Bethany no jardim a ir ao encontro de quase todos, estendendo a mão tão graciosamente como uma rainha a receber cortesãos. Parecia querer falar com os pais e sorria-lhes com calor como se estivesse a estabelecer amizades para toda a vida. Embora soubesse que estava a fingir, tinha de admitir: fazia-o na perfeição. Quanto aos alunos humanos, quanto mais tempo passavam no jardim e olhavam para as imponentes torres de pedra da Academia Evernight, mais os seus sorrisos esmoreciam. – Ah, estás aqui! Desviei o olhar da cena lá em baixo e virei-me para o meu pai, que se forçara a levantar-se cedo para a ocasião. Estava de fato e gravata, como um professor deveria vestir-se, mas o cabelo ruivo-escuro e desalinhado revelava bem mais da sua verdadeira personalidade. – Sim – respondi, sorrindo-lhe. – Acho que queria só ver o que se passa. – Estás à procura dos teus amigos? – Os olhos do meu pai brilharam quando se colocou a meu lado e espreitou pela janela. – Ou a mirar os rapazes novos? – Pai. – Estou a afastar-me, conforme solicitado. – Ergueu as mãos. – Pareces um pouco mais contente com isto do que no ano passado. – Era quase inevitável, não era? – Suponho que sim – respondeu o meu pai e ambos nos rimos. No ano anterior, eu sentia-me tão anti-Evernight que tentara fugir no dia da chegada dos alunos… parecia ter sido numa outra vida. – Olha, se queres tomar o pequeno-almoço, acho que a tua mãe já ligou a máquina dos waffles. 18 SANGUE GELADO Apesar de por hábito se alimentarem apenas do sangue que a escola providenciava através de carregamentos clandestinos, os meus pais asseguravam-se sempre de que eu tinha a comida a sério de que ainda precisava. – Subo daqui a um segundo, está bem? – Está. – Pousou-me a mão no ombro por um instante antes de se virar e começar a ir-se embora. Lancei um último olhar aos jardins. Algumas famílias continuavam a deambular por ali ou a arrastar malas de viagem, mas a terceira e última vaga de alunos tinha começado a chegar. Todos vinham sozinhos, em carros alugados. Havia alguns táxis, mas, na sua maioria, os automóveis eram sedans ou limusinas alugados. Ao saírem, aqueles alunos já envergavam o uniforme da escola (ajustado à medida de cada um) e mostravam um cabelo lustroso e penteado com cuidado para trás. Nenhum trazia malas; eram deles as muitas caixas e arcas que tinham chegado a Evernight nas duas semanas anteriores, contendo os seus muitos pertences. Com desagrado, vi a Courtney, uma das pessoas de quem menos gostava, a acenar descontraída a algumas das outras raparigas. Ela, tal como muitas outras, usava óculos de sol. Isso significava que tinham uma particular sensibilidade à luz solar, o que, por seu turno, queria dizer que não bebiam sangue havia algum tempo. Deviam estar a fazer dieta, para parecerem mais magras e ferozes. Estes eram os vampiros que precisavam de ajuda para se adaptar ao século xxi mas que não estavam por completo perdidos com as mudanças temporais. Eram aqueles que ainda tinham poder – e que não permitiriam que ninguém da escola se esquecesse disso. Pensava neles sempre da mesma maneira. Eram «os tipos de Evernight». Quando acabei os waffles e desci, o grande átrio estava a abarrotar com uma multidão de estudantes a conversar e a rir. Durante alguns minutos, 19 C L AU D I A G R AY limitei-me a vaguear por ali, sentindo-me pequena, até ouvir uma voz sobrepor-se à vozearia: – Bianca! – Balthazar! – respondi-lhe, sorrindo e levantando a mão por cima da cabeça num aceno entusiasmado. Era um rapaz grande, tão alto e musculado que poderia parecer-me intimidador ao furar pela multidão para me alcançar, não fosse a bondade nos seus olhos e o sorriso amigável que lhe ocupava todo o rosto. Pus-me em bicos de pés para lhe dar um abraço apertado. – Como foi o teu Verão? – Foi óptimo. Trabalhei no turno da noite de uma doca em Baltimore – disse com o deleite que qualquer outra pessoa usaria para descrever umas férias de sonho em Cancún. – Eu e os outros que lá trabalhavam ficámos amigos, divertimo-nos muito em bares. Aprendi a jogar bilhar. E também voltei a fumar. – Acho que os teus pulmões aguentam. – Sorrimos um para outro, sem podermos completar a piada enquanto estivéssemos rodeados por alunos humanos. – Precisas de ajuda para organizar o teu relatório? – Já está feito e deixei-o na secretária da senhora Bethany. – Todos os vampiros tinham de passar os meses de Verão «entrosados no mundo moderno», como indicava o trabalho que lhes era atribuído, e submeter relatórios das suas experiências no início de cada ano lectivo. Era uma espécie de variante infernal de uma composição subordinada ao tema «O Que Eu Fiz nas Férias de Verão». O Balthazar olhou em redor. – A Patrice já cá está? – Vai passar algum tempo na Escandinávia. – Um mês antes, eu tinha recebido um postal com uma imagem de fiordes. – Diz que termina num ano ou dois. Acho que conheceu lá um rapaz. – Que pena – comentou o Balthazar. – Estava a contar ver mais caras conhecidas. Para além da que se aproxima com rapidez de nós, às quatro horas. 20 SANGUE GELADO – O que queres dizer? – Tentei perceber que coordenadas seriam as quatro horas, mas logo ouvi a voz dela a atravessar o burburinho. O som era idêntico ao de unhas a raspar num quadro negro. – Balthazar. – A Courtney estendeu-lhe uma mão como se esperasse que ele a beijasse. O Balthazar apertou-a e depois soltou-a. O sorriso de batom brilhante dela nem por um segundo vacilou. – Tiveste um Verão maravilhoso? Eu estive em Miami, a aproveitar a zona dos clubes. Foi altamente. Devias ir lá com alguém que conheça os sítios mais populares. – Estou surpreendida por te ver aqui – intrometi-me. Surpreendida pareceu-me descrever o que sentia de uma maneira mais delicada do que desapontada. – Não achei que tivesses gostado disto o ano passado. Ela encolheu os ombros. – Pensei desistir mas, na primeira noite que passei em Miami, apercebi-me de que estava a usar um vestido da estação anterior. E os meus sapatos eram, tipo, de há três anos. Tremenda gafe! Tornou-se óbvio que precisava de me actualizar mais, pelo que concluí que podia aguentar mais uns meses em Evernight. – O seu olhar já se focara de novo no Balthazar. – Além disso, gosto sempre de passar mais tempo com velhos amigos. Comentei: – Se eu quisesse saber mais de moda, não iria para um sítio onde toda a gente veste uniforme. A boca do Balthazar contorceu-se. A Courtney semicerrou os olhos, mas o seu sorriso limitou-se a crescer enquanto observava a minha camisola sem forma e que não fora ajustada à medida do meu corpo e a minha saia de pregas. – E tu nunca te interessaste por moda. Obviamente. – Deu uma palmadinha no ombro do Balthazar. – Falamos depois. – E, saracoteando-se, foi-se embora, com o rabo-de-cavalo a oscilar de um lado para o outro ao ritmo dos seus passos. – Eu queria dar-me melhor com ela este ano – balbuciei. – Acho que não mudei tanto quanto pensava ter mudado. 21 C L AU D I A G R AY – Não tentes mudar. És fantástica tal como és. Desviei o olhar, envergonhada. Parte de mim pensava: Oh, não, agora vou ter de desiludir o Balthazar outra vez. A outra parte era incapaz de evitar ficar satisfeita por ele me ter dito aquilo. Sentira-me tão solitária durante todo o Verão – sem o Lucas, sem quem quer que fosse – e saber que estava ali mesmo alguém que gostava de mim era como receber um cobertor quente depois de meses de frio. Antes de conseguir pensar na melhor forma de lhe responder, ouviu-se um sinal para que todos se calassem. A multidão em peso virou-se por instinto para o pódio ao fundo do grande átrio. A senhora Bethany estava prestes a discursar. Vestira um fato justo e cinzento, mais apropriado ao século xxi do que o que ela costumava usar e que, não obstante, lhe frisava a beleza austera. Apanhara o cabelo escuro num penteado elegante e tinha brincos de pérolas a brilhar nas orelhas. Em vez de olhar para os estudantes, os seus olhos escuros fitavam algo um pouco acima de nós, como se, para ela, mal fôssemos visíveis. – Bem-vindos a Evernight. – A sua voz ecoava pelo grande átrio. Todos se endireitaram mais. – Alguns de vocês já frequentavam a academia. Outros terão ouvido falar da Academia Evernight ao longo de anos (talvez as vossas famílias vos tenham falado deste sítio), interrogando-se se alguma vez ingressariam na nossa escola. Era o mesmo discurso que pronunciara no ano anterior mas, desta vez, ouvi-o de maneira diferente. Escutei as mentiras implícitas em cada frase cuidadosa, a forma como ela falava para os vampiros ali presentes que já ali estavam há vinte ou duzentos anos. Como se me lesse os pensamentos, a senhora Bethany fitou-me; o seu olhar de falcão atravessou a multidão. Fiquei tensa, esperando que me acusasse de lhe ter invadido a casa enquanto ela estivera fora. Em vez disso, fez algo ainda mais surpreendente. Abandonou o guião. 22 SANGUE GELADO – A Academia Evernight tem um significado diferente para cada pessoa que vem para aqui – começou. – É um lugar de aprendizagem, um lugar de tradição e, para alguns, um refúgio. Só para as criaturas nocturnas e sugadoras de sangue, pensei. Caso contrário? Não é grande refúgio. Com uma mão, gesticulou para alguns dos novos alunos; as suas unhas longas cintilavam em tons de vermelho sob a luz que atravessava os vitrais das janelas. Para meu grande espanto, ela estava a apontar para os estudantes humanos… embora, é claro, eles não pudessem compreender porquê. – Para usufruírem ao máximo do vosso tempo em Evernight, terão de perceber o que esta escola significa para os vossos colegas. É por isso que incito aqueles que têm mais experiência a aproximarem-se dos novos alunos. Protejam-nos. Aprendam coisas sobre as suas vidas, os seus interesses e o seu passado. Só assim a Academia Evernight poderá atingir os seus verdadeiros objectivos. Algumas pessoas bateram palmas hesitantes: humanos que não sabiam o que fazer. – Okay, isto foi estranho – murmurou o Balthazar sob o aplauso ligeiro. – Se eu não a conhecesse, julgaria que a senhora Bethany tinha acabado de pedir a toda a gente que fosse amistosa. Acenei com a cabeça, que estava a mil. Por que quereria a senhora Bethany que os vampiros se aproximassem dos alunos humanos? Se não queria que os humanos se magoassem – e eu ainda estava convencida de que ela não queria que isso acontecesse –, o que pretenderia de facto? – As aulas começarão amanhã. – O costumeiro sorriso superior tinha regressado ao rosto da senhora Bethany. – Aproveitem este dia para conhecer os vossos companheiros, sobretudo os que aqui estão pela primeira vez. Estamos contentes por vos ter cá, e esperamos que aproveitem ao máximo a vossa passagem por Evernight. – Achas que se afeiçoou a nós? – perguntou-me o Balthazar assim que as pessoas voltaram a socializar. 23 C L AU D I A G R AY – A senhora Bethany? É difícil. – Por um momento, equacionei perguntar-lhe o que pensava de todo aquele mistério da «política de admissões». Ele era inteligente e, apesar de respeitar a directora, não tomava o que ela dizia como um evangelho. Além disso, já andava por este mundo havia mais de três séculos; com certeza, seria capaz de encarar a minha dúvida com a perspectiva necessária para, sob uma luz diferente, conseguir apresentar uma resposta original. Mas essa perspectiva também podia levá-lo a pensar que a pergunta se prendia com a minha relação com o Lucas – algo de que ele não gostaria de ser recordado. Nesse momento, o Balthazar sorriu e acenou a outra pessoa; era impossível dizer a quem no meio daquela multidão, em especial tendo em conta que ele era amigo de quase toda a gente. – Depois falamos, está bem? – gritei para as costas dele, já a afastar-se. – Claro! Por um instante, senti-me sozinha sem ele. Estava rodeada por vampiros – vampiros a sério, poderosos, sensuais e fortes, com séculos de experiência por detrás daqueles rostos belos e jovens. Eu ainda não era uma vampira completa e a distância entre nós não diminuíra muito durante o meu primeiro ano em Evernight. Ao pé deles, continuava a ser pequena, ingénua e esquisita. Tudo isso eram razões para me encaminhar prontamente para o andar de cima, concluí. Teria uma nova companheira de quarto e mal podia esperar para falar com ela. Quando entrei no dormitório, a Raquel suspirou. – Bem-vinda de volta… ao inferno. Estava deitada de costas sobre o colchão, com os braços estendidos. Tinha o bornal amarrotado no chão, como que vazado, e tanto as suas roupas como o material de pintura estavam espalhados em volta. Parecia que tinha esvaziado o bornal e desistido nesse ponto de desfazer as malas. 24 SANGUE GELADO – Também gosto de te ver. – Sentei-me na borda da minha cama. – Pensava que pelo menos ficarias contente por este ano podermos partilhar o quarto. – Acredita em mim, és a única razão por que consigo suportar a ideia de estar aqui outra vez. Conta lá, os teus pais subornaram a senhora Bethany ou algo do género? Se sim, estou a dever-lhes um grande favor. – Não, foi pura sorte. – Era quase uma mentira. Os meus pais não tinham pedido quaisquer favores à senhora Bethany mas, aparentemente, o número de vampiros e humanos que tinham ingressado na academia era ímpar, tanto no caso dos rapazes como no das raparigas. Dado que eu ainda comia comida normal mais do que bebia sangue, fui considerada a vampira com mais possibilidades de esconder a verdade de uma humana quando jantássemos nos quartos, como era costume em Evernight. Conseguir ficar com a Raquel, porém… isso fora pura sorte. Sorte, e o facto de quase todas as outras raparigas humanas que ali tinham feito o décimo ano se terem assegurado de que frequentariam o décimo primeiro noutra escola. Não podia julgá-las por isso. – Então – disse eu, esforçando-me por manter um tom divertido –, para além de passares mais tempo na minha fascinante companhia, por que voltaste? Bem sei que não era o que tinhas planeado. – Sem ofensa, mas nem sequer a tua fascinante companhia seria suficiente para me fazer mudar de ideias. – A Raquel rebolou na cama e ficou de barriga para baixo, de forma a olhar de frente para mim. Cortara o cabelo escuro ainda mais curto do que no ano anterior; mas pelo menos fora a um cabeleireiro, pelo que o corte tinha bom aspecto, ainda que parecesse um pouco punk. – Disse aos meus pais que queria experimentar outro sítio. Talvez ir viver com os meus avós em Houston, frequentar a escola de lá. Nem quiseram ouvir. A Academia Evernight é «privada» e «exclusiva» e isso devia chegar-me, alegaram. – Mesmo depois de saberem… do Erich… A boca da Raquel contorceu-se num esgar trocista. 25 C L AU D I A G R AY – Disseram que ele com certeza estava só a tentar meter-se comigo. Que eu sou demasiado reservada com os rapazes e que tinha de aprender a «gostar de alguém que gostasse de mim». Fiquei a fitá-la, atónita. O Erich não fora um namorado em potência com excesso de zelo, mas sim um vampiro decidido a persegui-la e a matá-la. A Raquel não sabia isso, mas percebera que ele era perigoso. Se eu tivesse contado aos meus pais que alguém me assustara metade do que o Erich assustara a Raquel, o meu pai ter-me-ia abraçado até que eu tornasse a sentir-me segura e a minha mãe de certeza teria atacado essa pessoa com um taco de basebol. Os pais da minha amiga tinham-se rido dela e haviam-na enviado de volta para o sítio que ela detestava. – Lamento – disse-lhe. Ela encolheu um ombro. – Devia ter sabido que não iam prestar-me atenção. Nunca prestaram. Nem quando eu… – Quando tu o quê? Não respondeu. Em vez disso, sentou-se e apontou com um ar acusador para a parede atrás de mim. – Então, vamos ter de ficar com o Klimt? Eu tinha pendurado a estampa por cima da cama. O Beijo era tão importante para mim que me esquecera de que a Raquel nunca o tinha visto. – O quê? Não gostas? – Bianca, esse quadro está tão visto. Há ímanes de frigorífico e canecas com essa imagem! – Quero lá saber. – Talvez seja estúpido gostar de uma coisa só porque toda a gente gosta mas, na minha opinião, é ainda mais estúpido não gostar porque toda a gente gosta. – É lindo, é uma das minhas coisas preferidas e está na minha metade do quarto. Por isso, aguenta-te. – Talvez pinte a minha parte do quarto de preto – ameaçou-me ela. – Isso não seria assim tão mau. – Imaginei colocar estrelas, daquelas que brilham no escuro, nas paredes e no tecto, como tinha no quarto 26 SANGUE GELADO quando era pequena. – Seria fantástico, mesmo. É uma pena que a senhora Bethany não nos deixe fazê-lo. – Quem diz que ela se oporia? Já fizeram tudo o resto para tornar este sítio o mais sinistro possível. Por que não cobrir tudo de preto? – Fui invadida pela imagem mental das torres de pedra da escola em preto luzidio: era quase tudo o que precisava para estar no território do castelo do Drácula. – Incluindo as casas de banho. Incluindo as gárgulas. Pensava que não conseguíamos tornar Evernight mais assustadora, mas conseguíamos, não? – Continuaria a ser melhor do que estar em casa. – Os olhos da Raquel ficaram estranhos quando disse isto… tão cansados que, por um momento, pareceu mais velha do que os vampiros que nos rodeavam durante a reunião de boas-vindas. Queria perguntar-lhe mais coisas sobre o que acontecera com os pais, mas não sabia como. Enquanto tentava encontrar as palavras adequadas, a Raquel falou com brusquidão: – Anda lá e ajuda-me a arrumar esta porcaria. – Que porcaria? – A minha tralha. – Ah – exclamei eu, acenando com a cabeça enquanto nos levantávamos e encaminhávamos para as caixas e o bornal dela que estavam num canto. – Essa porcaria. Depois de fazermos a cama dela e de arrumarmos as poucas coisas que trouxera, a Raquel quis dormir uma sesta. Os pais dela não eram ricos, como a maioria das famílias dos estudantes humanos de Evernight; em vez de ser levada até à porta da academia num sedan luxuoso, tivera de apanhar um autocarro em Boston antes da madrugada, mudar duas vezes de autocarro e esperar por um táxi para chegar à escola. Estava exausta 27 C L AU D I A G R AY e adormeceu ainda antes de eu ter acabado de atar os atacadores dos sapatos para sair. A Raquel está aqui com uma bolsa, pensei. Isso significa que a senhora Bethany, na verdade, está a pagar-lhe para que frequente esta escola. Por que faria ela isso? Todos os estudantes humanos estão aqui por um motivo, e o caso da Raquel prova que não é por causa do dinheiro. Mas por que será? Será que a Raquel é ainda mais importante do que os outros? Mais perguntas e ainda nenhumas respostas. Passeei até aos jardins para ver quanto teria Evernight mudado, agora que os outros alunos tinham chegado. Os humanos falavam ansiosos uns com os outros, fazendo novos amigos, enquanto os vampiros os observavam, lânguidos e desdenhosos. O meu estômago fez barulho. Era quase hora de almoço. Esperava ser a única vampira a pensar em comer enquanto olhávamos para os humanos mas, decerto, não era. – Ei, Binks! Nunca me tinham chamado Binks; porém, soube logo que só uma pessoa o faria, mesmo antes de reconhecer a voz. – Vic! Ele caminhava descontraído pelos jardins na minha direcção, com um grande sorriso no rosto. Como de costume, fizera alguns ajustes ao uniforme de Evernight; em vez das cores da escola, tinha a gravata decorada como uma rapariga havaiana pintada à mão, e trazia o seu adorado boné dos Phillies1 na cabeça. Corremos ao encontro um do outro, abraçámo-nos a rir e ele fez-me girar de tal forma que os meus pés deixaram de tocar no chão. Quando me largou, sentia-me tonta mas continuava a sorrir. 1 Philadelphia Phillies, equipa de basebol norte-americana. (N. da T.) 28 SANGUE GELADO – Tiveste um bom Verão? Recebi as tuas fotografias de Buenos Aires, mas depois não soube mais de ti. – Depois de toda a diversão à beira-mar, puseram-me a trabalhar. A Companhia Woodson tem um programa de estágios de Verão e o meu pai só dizia: «Tens de aprender como funciona o negócio da família.» Mas quando és um estagiário… Não aprendes como as coisas funcionam. Tudo o que aprendes é como os outros gostam do café. Passei o resto do Verão a tentar lembrar-me de quem queria um café com leite de soja bem quente. Foi mesmo foleiro. E tu? Ficaste aqui encafuada o tempo todo? – Passámos o 4 de Julho em Washington. Basicamente, a minha mãe arrastou-nos para vermos monumentos e coisas dessas. Mas gostei muito do Museu de História Natural: tinham alguns meteoritos em exibição em que se podia tocar… – A mão do Vic entrou no bolso da minha saia. Fingi que não reparava no envelope que segurava. O meu coração começou a bater mais depressa. – Bem, foi divertido. Pelo menos consegui passar uma semana fora daqui, que, apesar de isto ser aborrecido durante o ano lectivo, é bem pior quando fico aqui praticamente sozinha. – Estava a tagarelar, sem prestar a mínima atenção ao que ia dizendo. – Nalguns fins-de-semana fui a Riverton, mas não fiz muito mais. Hmm, pois. – Temos de pôr a conversa em dia depois – disse o Vic, que como é evidente compreendia que eu não era capaz de pensar noutra coisa senão no item que ele acabara de me enfiar no bolso. – E se nos encontrássemos depois do jantar? Podias conhecer o meu novo companheiro de quarto. Parece muito fixe. – Está bem, claro. – Eu teria concordado mesmo que ele tivesse sugerido que nos encontrássemos para rapar as cabeças. Sentia a adrenalina a percorrer-me o corpo e a entontecer-me. – Encontramo-nos aqui? – Podes crer. Sem mais palavras, afastei-me dele a correr, dirigindo-me para o miradouro de ferro ao fundo dos jardins. Felizmente, não estavam lá outros alunos, o que significava que ainda o tinha só para mim. 29 C L AU D I A G R AY Subi os degraus e instalei-me num dos bancos. O espesso dossel de folhas de hera protegeu-me dos raios de Sol enquanto eu levava a mão ao bolso e retirava o que o Vic lá deixara – um pequeno envelope branco, endossado apenas com o meu nome. Por um segundo, não fui capaz de o abrir. Tudo o que conseguia fazer era fitar a caligrafia que recordava tão bem. A carta fora-me enviada através do Vic, pelo seu antigo companheiro de quarto. O Lucas. 30