Ler on-line - Revista Historien
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PADURA, Leonardo. O homem que amava os cachorros. Tradução Helena Pitta. São Paulo: Boitempo, 2013. Ricardo José Sizilio1 É comum dizer que os cachorros são fieis aos seus donos, mas quanto um homem pode carregar consigo a fidelidade? Essa poderia ter sido a pergunta que o cubano Leonardo Padura, ganhador do Prêmio Nacional de Literatura de Cuba em 2012, se fez para dar o título ao seu livro O homem que amava os cachorros, lançado originalmente na Espanha em 2009 e no Brasil no final de 2013 pela Editora Boitempo. Padura antes de lançar este romance, já tinha seu trabalho reconhecido internacionalmente, sobretudo com romances policiais, e solidificou sua projeção internacional com este livro, ganhador de pelo menos cinco prêmios. Os cachorros estão ligados a vida dos três personagens principais deste romance, que trata de muitas histórias ao longo dos 30 capítulos, mas no seio dessas histórias, também está, sem dúvida, a capacidade de fidelidade dos homens, neste caso, fidelidade a uma causa, fidelidade a Revolução Russa. O livro trata precisamente do assassinato de Leon Trotski realizada por Rámon Mércader em 1940 no México, e do fictício encontro deste com o escritor frustrado Iván Cárdenas em Cuba na década de 1970. O autor optou por não fazer uma história linear e cada capítulo foi dedicado a um personagem até que as histórias começassem a se cruzar. Mesmo ancorado por uma vasta documentação sobre Trotski e produzida por ele - o mesmo não se pode dizer de Mércader - e sobre as décadas de 1920 e 1940 na qual se passa grande parte das histórias, o autor adverte que tentou realizar um livro contextualizado historicamente, verossímil, mas que não se pode perder de vista de que se trata de uma obra ficcional. Optamos aqui por relatar as histórias individuais dos três personagens principais da obra em questão, por entendermos que esta é a melhor forma desta resenha ter êxito. 1 Mestrando em História Social pela Universidade Federal da Bahia. Historien (Petrolina). ano 5. n. 10. Jan/Jun 2014: 461-466. Ricardo José Sizilio O livro começa no funeral de Ana, mulher de Iván, narrador fictício do livro, no início dos anos 2000. A história deste personagem se dá através da sua narração sobre o que vivera. Nas primeiras páginas o leitor é levado a saber da precariedade que se é viver em Cuba, principalmente com o fim da URSS. Iván recorda do seu primeiro contato com Rámon Mércader em 1977, a quem ele designa "o homem que amava os cachorros". Essa lembrança fez com que Iván também se lembrasse do início daquela década, ainda como estudante universitário, que escrevia contos e que inclusive tinha sido premiado com uma publicação. A memória de Iván nos anos 2000 está carregada de amargura pelo que o jovem na década de 1970 acreditava e fazia pelo Regime, como cortar cana, ou quaisquer outras atividades, acreditando piamente na Revolução em tempos de crescentes cerceamentos de liberdades individuais, perseguições aos críticos do Regime, a homossexuais ou a quem professasse sua religiosidade. Para exemplificar essas perseguições, o autor mostra como Iván e sua família foram atingidos, já que Iván depois de escrever um conto que não agradou aos editores foi enviado, como punição, para um lugar distante da ilha para cumprir os dois anos de atividades obrigatórias depois da conclusão do curso superior, o que fez com que desistisse de escrever e essa frustração fosse sua característica mais latente. Também como punição, o irmão de Iván foi expulso do curso de medicina, após revelar sua homossexualidade. O contato de Iván e Mércader se deu aparentemente por acaso, na praia, unidos pela paixão por cachorros. Mércader buscava alguém para contar sua história, sua versão dos fatos, e pela trama, é possível que o ex - agente do Comissariado do povo para assuntos internos (NKVD) tenha escolhido Iván por saber que ele já tinha sido um escritor. Ávido por saber mais das histórias contadas por Mércader, Ivan se informou, com dificuldade, a respeito da vida de Trotski, afinal havia pouco material a respeito dele e tudo que havia buscava difamar o antigo opositor de Stalin. Ao longo do texto, o autor mostra os inúmeros percalços que Iván passou, quase todos ligados diretamente a vida que o Regime impunha aos cidadãos. Na década de 1990, com o recebimento de mais documentações deixadas por Mércader antes de sua morte, Iván conseguiu fazer as conexões necessárias para entender a vida do assassino de Trotski. Isto fez com que ele tivesse vontade de voltar a escrever, em meio a uma Cuba esfomeada e caracterizada pela pobreza profunda desde o fim da URSS, diferentemente dos anos de 1980 que apresentava relativa prosperidade. Ao tempo que 462 Resenha: O homem que amava os cachorros retornava as letras, Iván refletia sobre a situação de extrema precariedade de Cuba, do racionamento de comida e energia elétrica, da vontade de seus moradores de fugirem daquele local e se tudo que acontecera em Cuba e na URSS teria valido a pena, se de fato era possível um mundo de iguais. Podemos afirmar que Iván era um escritor desiludido. Não apenas com sua carreira que não teve sucesso devido a perseguição política, e pelo medo e desânimo que lhe abatera depois. A desilusão de Ivan se deu principalmente por conta da situação difícil vivida pelos moradores de Cuba, desde década de 1970, mas principalmente nos anos de 1990. O autor demonstra com facilidade a dificuldade de se conseguir alimentos, de se habitar com dignidade, e ter acesso ao mínimo de bens necessário a condição humana em Cuba, e mais do que isso, como Iván, e parte de sua geração, foram sacrificados em nome de uma possível igualdade dos povos que segundo ele, nunca existiu. O segundo personagem que nos dedicamos é Ramón Mércarder, que durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) servia ao Exército Republicano, mas foi convocado por sua mãe Caridad, que era membro do Partido Comunista a fazer algo que entendia ser maior e que mudaria por completo a sua vida em nome da Revolução. Para isso seria necessário toda abnegação, sigilo e desprendimento. Padura demonstra que durante a guerra embora lutassem juntos, havia divergências entre anarquista, trotskistas e os militantes do Partido Comunista (que tinham total repúdio a Trotski e veneração a Stalin) e que as disputas entre os aliados que entraram em confrontos facilitou a vitória de Franco. Quando Stalin decidiu em 1937 que era preciso exterminar seu principal inimigo, Leon Trostki, a vida de Mércader mudou para sempre, pois, os possíveis algozes de Trotski iniciaram seus treinamentos (físico, psicológico e militar), mesmo que a execução não fosse imediata. Os agentes da NKVD tinham a noção exata que só lhe restava o caminho da obediência, fidelidade e discrição, além da fé e do ódio. Ao conhecer Moscou, Mércader percebeu a pobreza na Rússia e compreendeu paulatinamente o poder stalinista, capaz de deter todos seus inimigos, que ia dos filhos de Trotski aos antigos membros do Partido e aliados da Revolução de 1917, julgados num tribunal teatral, alicerçado na ideia de que o temor é parte necessária de um Historien (Petrolina). ano 5. n. 10. Jan/Jun 2014: 461-466. Ricardo José Sizilio governo. Os pormenores da política stalinista com seus inúmeros expurgos, perseguições e julgamentos fictícios a fim de exterminar qualquer tipo de oposição e manter Stalin como soberano no poder também são descritos pelo autor. Não era permitido aos comunistas dúvidas sobre suas convicções, apenas a fé na causa e na sabedoria de Stalin. Nesta perspectiva é que Mércader se aproximou de Sylvia (militante trotskista estadunidense) com o intuito de ganhar confiança entre os aliados de Trotski, para em seguida se dirigir ao México para executar a ordem vinda de Moscou. A aproximação de Rámon e Trotski se deu justamente a partir do intermédio de Sylvia, e fazia parte de um plano milimetricamente pensado pela NKVD. Mércader, carregado por sua vaidade, entrou para a história como o assassino de um dos pais da Revolução Proletária, ao cravar uma picareta na nuca de Trotski, mas o autor deixa claro que ele era uma peça simples e descartável na engrenagem stalinista e que as "verdades" que ouvira durante tanto tempo, era naquele jogo, mentiras, e que mortes, independente da forma ou quantidade eram mais comuns do que qualquer outra coisa, em nome de algo dito maior, a Revolução. O último personagem a que nos dedicamos é Trotski e sua história no romance começa com ele já exilado devido a sua oposição a Stalin (senhor das artes, da arquitetura e da vidas das pessoas). Com o exílio, teve o início do processo de esquecimento de sua imagem e o silenciamento de seu pensamento através da difamação e da retirada de seus livros das bibliotecas da URSS. Padura descreve que durante seu exílio na Turquia, França, Noruega e México, Trotski tentou manter oposição a Stalin e as suas ações, através de escritos publicados em periódicos europeus, que servia também na tentativa de reorganizar seus aliados. Ao longo dos anos a imagem de Trotski foi sendo destruída na URSS e a maioria dos seus aliados foram cooptados pelo Partido. Neste contexto, Stalin iniciou uma série de deportações, trabalhos forçados e assassinatos para eliminar seus adversários, além de parte da população na URSS estar passando fome. Os anos do exílio foram devastadores para Trotski que gradativamente se percebeu como coadjuvante na luta revolucionária. Os problemas políticos ocasionaram consequências drásticas na família de Trotski, haja vista que dois de seus filhos foram mortos e uma filha se suicidou, só lhe restando o neto Siova. Ao longo dos anos o ex464 Resenha: O homem que amava os cachorros comandante do Exército Vermelho se viu um homem sem nação, odiado por muitos e engessado do seu desejo revolucionário, mesmo assim não desistiu dos seus ideais e combateu até seu último suspiro Stalin. Durante a década de 1930 acumulou derrotas políticas, como a tentativa de organizar a IV internacional e de reagrupar seus correligionários para fazer oposição a Stalin, e sofreu por ter se transformado no principal inimigo da Revolução, odiado por comunistas do partido e fascista. O exílio em muitas vezes se assemelhava a uma prisão e Trotski sabia que o seu silêncio acarretaria em mais força para Stalin, por isso, conseguiu de inúmeras formas publicar seus pensamentos em diversos jornais. Em seu último exílio, no México, devido a hospitalidade dispensada a ele, tanto pelas autoridades quanto por seus anfitriões, Diego Rivera e Frida Kahlo, conseguiu através dos novos aromas e sabores experimentados e da arte compartilhada na casa dos artistas viver dias mais humanizados. No entanto, era a situação política na URSS e no mundo que o movia, principalmente depois que Stalin conseguira transformar antigos revolucionários em traidores e/ou cúmplices, fazendo com que o terror, a repressão, a mentira e a perseguição se transformassem em política de Estado. O autor também retrata de forma suave e sem juízo de valor, a súbita paixão e a relação de Trotski com Kahlo (ambos casados) que estremeceu sua relação de mais de 30 anos com sua esposa Natalia. No México, o exilado ficou sabendo que estava em curso um plano para executá-lo, desta forma foram tomadas medidas a conter os possíveis assassinos, mas em seu íntimo Trotski sabia que era uma presa fácil. Mesmo com os temores por sua vida, permaneceu produzindo intelectualmente, inclusive escrevendo uma biografia de Stalin. Stalin desejava que a morte de seu pior inimigo fosse ruidosa e que fosse atribuída aos militantes mexicanos descontentes com a presença do exilado em solo americano, a fim de não ocasionar possíveis problemas a URSS. Um primeiro atentado fora mal sucedido, com isso as histórias de Mércader e Trotski se cruzaram definitivamente. Ao ser preso depois do assassinato, Mércader permaneceu durante os 20 anos de cárcere, em silêncio, tão necessário a continuidade da sua existência. Desde que iniciou seu exílio e ao longo dos anos, Trotski viu seus aliados serem mortos ou desertando de suas convicções seja por ambições pessoais ou por Historien (Petrolina). ano 5. n. 10. Jan/Jun 2014: 461-466. Ricardo José Sizilio discordâncias intelectuais com o comunista exilado. Neste período viu também sua família ser dilacerada por ordens de Stalin, no entanto, mesmo com todas as dores políticas e pessoais que carregou até seu o último dia de vida, permaneceu convicto de seus ideais e lutou por eles. O livro retrata parte do que aconteceu no século XX com a luta pela implantação do socialismo, e através da história do assassinato de Trotski percorremos a Revolução Russa; o exílio de Trotski; a monstruosidade do stalinismo; a Guerra Civil Espanhola; a 2ª Guerra Mundial; a veneração a Stalin por parte dos militantes do Partido; a situação de precariedade em Cuba, entre outros. No livro percebemos a capacidade que os sentimentos tem de nos mover ou engessar, exemplificados no medo e na fidelidade presente nos três personagens. Outro ponto favorável do livro é o prefácio que consegue contextualizar o leitor nos temas que serão abordados na obra, no entanto o prefaciador diverge do autor ao atenuar os crimes de Stalin tratado-os como erros e excessos. A forma da escrita do autor, acostumado com romances policiais estimula e prende o leitor, e embora a obra tenha quase 600 páginas, ela não é cansativa. O grande ponto negativo da obra é a abordagem sobre as mulheres, haja vista que quase todas são caracterizadas de forma pejorativa e suas ações são questionáveis. Por fim, Mércader e Iván em muitos momentos de suas reflexões parecem traídos pela memória, carregados pelos acontecimentos do presente, o que possibilita uma boa discussão sobre memória. 466