Turismo Rural e Agricultura Familiar: Simbiose Possível

Transcripción

Turismo Rural e Agricultura Familiar: Simbiose Possível
TURISMO RURAL E AGRICULTURA FAMILIAR:
SIMBIOSE POSSÍVEL
COTTAGE AND FAMILY AGRICULTURE:
SIMBIOSE POSSIBLE
Cristiane Lisita Passos1
Resumo: O presente texto tem por finalidade despertar para a ampla importância
da agricultura familiar no processo de desenvolvimento do turismo rural. Avaliar a sociedade camponesa, que se percebe excluída das políticas sociais do
governo, é indispensável para melhor compreender seus símbolos, costumes,
tradições, seu modo de ser e as mudanças sociais que estão ocorrendo, com o
citadino buscando o retorno às suas raízes no campo. O imaginário do rural,
pela urbe, proporciona que o turismo nesta área comece a ganhar mais espaços
contribuindo com a preservação do patrimônio imaterial, resgatando seus significados, velando pelo futuro.
Palavras-chave: Turismo Rural. Agricultura Familiar. Simbiose. Direito.
Abstract: This paper aims to arouse the broad importance of family farming in the
rural tourism development process. Evaluate the peasant society that realizes
excluded from the social policies of the government, is essential to better understand their symbols, customs, traditions, their way of being and the social
changes that are taking place, with the city seeking to return to their roots in the
field . The imagery of the rural, the metropolis provides that tourism in this area
start earning more spaces contributing to the preservation of intangible heritage, rescuing their meanings by ensuring future.
Keywords: Rural Tourism. Agriculture Family. Symbiosis. Law.
1
Advogada, jornalista e escritora. Investigadora no CES/UC. Doutora em Ciências Jurídicas e
Sociais, pela UMSA, Argentina. Mestre em Direito Agrário, pela UFG. Pós-graduada em
Fiscalização e Controle da Administração Pública; Pós-graduada em Direito Empresarial; Pósgraduada em Direito Processual Civil; Pós-graduada em Orçamento e Finanças; Pós-graduada
em Direito do Trabalho. Titular da Cadeira n.22 da ACAD, no Brasil. Tem vários livros e
artigos publicados.
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Sumário: Introdução. 1 Do campo e da cidade. 2 Agricultura familiar. 3 Pluriatividade na agricultura familiar. 3.1 Atividade agrária. 3.2 Mudanças sociais e imaginário rural. 4 Conclusão. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
O turismo rural apresenta-se nos como um dos grandes desafios para
mobilizar a agricultura familiar e engendrá-la participativamente no processo político e socioeconômico do Brasil. Este universo permanece elementar em vários aspectos, caminhando a passos lentos nas últimas três
décadas. Tem sido tênue o interesse dos legisladores, que recentemente começaram a se preocupar com a questão. No contexto internacional2, somente a título de ilustração, em países da Europa, como Portugal, o turismo rural é aquele que tem lugar no meio rural em conformidade com o
Decreto-Lei n.39/2008, alterado posteriormente pelo Decreto-Lei 228/2009,
de 14 de setembro, e dentro dele se incluem outros setores turísticos, que
efetivamente também se dão em âmbito rural, porém cujos praticantes têm
objetivos distintos3. Diferentemente do conceito português, o turismo rural
no Brasil4 exige comprometimento com o agrário, vez que esta é a expressão mais correta, ampla, divergindo da maioria dos doutrinadores brasileiros que consideram a atividade como “agropecuária”.
O presente estudo quer demonstrar que a agricultura familiar pode
contribuir, assaz, para o desenvolvimento do turismo rural e vice-versa. Nesta
conjectura, em que o suporte socioeconômico e a eficácia jurídica não são
eficazes na proteção dos pequenos agricultores e da terra, majorando, ainda, a precariedade de subsídios que consintam abalizar este instituto, a nível nacional, é que conclamamos a comunidade acadêmica e a sociedade a
desvendar caminhos para expandir esse tipo de turismo, na discussão e deliberação sobre políticas e projetos, minimizando tais déficits – neste movimento “retrô” e silencioso, mas que busca seu espaço, erguendo-se como
marco de um novo campesinato.
QUINTAS, Paula. Legislação Turística-Anotada. 4.ed. Lisboa: Almedina, 2008.
HERAS, Monica Pérez de las. La Guia del Ecoturismo. Madri: Ediciones Mundi, 1998, p. 23.
4
BRASIL. Manual Operacional do Turismo Rural. Brasília: Ministério da Indústria, Comércio e
Turismo, 1994.
2
3
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Lourdinha Binatti5 adverte que foi com o Instituto Brasileiro de Turismo –EMBRATUR, em cooperação com o Ministério da Agricultura,
em novembro de 1998, que se elaborou a concepção para turismo rural,
nos seguintes termos:
O conjunto de atividades turísticas desenvolvidas no meio rural, comprometida com a produção agropecuária, agregando valor a produtos e serviços, resgatando e promovendo o patrimônio cultural da comunidade. Essa
iniciativa da EMBRATUR, em conjunto com o Ministério da Agricultura,
nos dá a certeza de que o governo está atento à necessidade do turismo
rural, com um novo enfoque, que entendemos o ideal: turismo e agricultura,
agora com tratamento adequado e de acordo com a importância da atividade, os benefícios gerados no meio rural e a contribuição sócio-econômicocultural-ambiental dela decorrente6.
O Estatuto da Terra, artigo 4º, inciso I, e Decreto n.55.891/65, determina sobre o imóvel rural:
É o prédio rústico, de área contínua, qualquer que seja sua localização em
perímetros urbanos, suburbanos ou rurais dos municípios, que se destine à
exploração extrativa, agrícola, pecuária, ou agroindustrial, quer através de
planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada.
Note-se que, enquanto o turismo rural se efetiva no meio rural - ressaltando o critério da destinação do imóvel, está entrelaçado com a produção
agropecuária, agregando valores tanto a produtos quanto a serviços e volvido para a preservação do patrimônio cultural –, o Turismo no Espaço Rural,
ou Turismo no Meio Rural, não possui o comprometimento com a produção
agropecuária, nem com os demais itens exigidos no outro. O Turismo no
meio rural contém, na sua oferta de serviços, produtos e equipamentos: hospedagem, alimentação, visitas tais, como a culturas de agronegócio, a exemplo da soja, do arroz, somando, ainda, a recreação e o entretenimento.
Nesse sentido, Clayton Campanhola e Graziano da Silva7 frisam que
incidem divergências entre os estudiosos quanto ao uso da terminologia
turismo rural e turismo no meio rural. Este último é mais amplo, pois consiste em:
BINATTI, Lourdinha. Legislação para o turismo rural: uma reflexão para a construção de novos
caminhos. Anais do I Congresso Brasileiro de Turismo Rural. Piracicaba: FEALQ, 1999, p. 46.
6
BRASIL. Ministério da Indústria do Comércio e do Turismo. Diretrizes do Plano de Municipalização
do Turismo. Brasília: EMBRATUR, 1998.
7
CAMPANHOLA, Clayton; SILVA, José Graziano da. Panorama do turismo no espaço rural
brasileiro: nova oportunidade para o pequeno agricultor. Anais do I Congresso Brasileiro de Turismo
Rural. Piracicaba, São Paulo, FEALQ, 1999, p. 13.
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[...] atividade de lazer no meio rural em várias modalidades definidas com
base na oferta: turismo rural; turismo ecológico ou ecoturismo; turismo de
aventura; turismo de negócios; turismo cultural; turismo jovem; turismo social; turismo de saúde; e turismo esportivo.
A atividade agropecuária, conforme nomenclatura na legislação, ainda que em pequena escala, deverá estar presente, majorando-se a essa atividade que chamamos agrária, a manifestação de símbolos e representações
nos costumes, no folclore, nas tradições em geral, no artesanato, no modo de
ser camponês, nas suas raízes, na música, na religiosidade, no patrimônio
natural e cultural, na identidade daquela determinada população campesina.
A produção de alimentos, e mesmo a criação de animais, dimana sob um
novo olhar – não é o elemento único na conciliação deste quadro lúdico e
bucólico, mas todas essas práticas da vida rústica assumem uma grande dimensão e passam a integrar o produto turístico rural, adindo valor. Valor este
obtido por meio do beneficiamento, muitas vezes, de produtos in natura e que
são colocados para venda ao turista, logo após beneficiado, a exemplo do
queijo, do leite, das conservas, dos produtos artesanais, da comida, etc.
A Lei n.11.637/2007 reza acerca dos padrões e normas de qualidade,
de eficiência e de segurança na prestação de serviços turísticos por meio do
Sistema Brasileiro de Classificação de meios de Hospedagem, bem como
elenca referenciais de qualidade no que toca a esses serviços. O Programa
de Regionalização do Turismo tem por finalidade mapear as regiões do
país com potencialidades para o turismo, pondo à disposição recursos para
iniciativas privadas, por meio de instituições financeiras, créditos para projetos, via o Fundo Rural do Turismo – FUNGETUR –, para as atividades
produtivas. Contudo, atina-se ao fato de que esses financiamentos são escassos e, além do mais, em geral, com altas taxas de juros, que criam entraves para que sejam aproveitados pelos camponeses.
A Lei n. 11.771/2008 regula, fomenta e qualifica os serviços turísticos e institui o Cadastro Nacional Unificado dos prestadores de serviços
turísticos em parceria com os órgãos delegados de turismo dos estados federados. Além disso, estabelece condutas a serem cumpridas por estes prestadores e assinala penalidades aos infratores, variando de multa à interdição dos estabelecimentos.
O Instituto Brasileiro do Turismo – EMBRATUR –, autarquia especial do Ministério do Turismo, é o responsável pela política nacional do
Turismo, juntamente com o Conselho Nacional do Turismo, órgão colegia-
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do que assessora o Ministro do Turismo com papel relevante para delinear
e fiscalizar as políticas adotadas, acerca dos produtos, destinos, serviços e
outros na área do turismo.
De acordo com a Organização Mundial do Turismo – OMT –, cerca
de 3% da população mundial está norteando suas viagens para o segmento
do turismo rural; com expectativas de ampliação desses números para os
próximos anos, recordando que este tipo de turismo vem se incrementando
na casa dos 6% anuais.
1 DO CAMPO E DA CIDADE
Em anteriores pesquisas8 constatou-se que a história camponesa tem
sido escrita, interpretada e conduzida pela cidade ou, mesmo, pelas elites
rurais. Ainda que se tenham mudado as formas de produção e de exploração do imóvel, o ingresso de novas tecnologias e aberturas de fronteiras
agrícolas, nota-se que a exclusão camponesa permanece, situação agravada
pela concentração de terras e de rendas no Brasil, que ocupa, segundo a
Organização das Nações Unidas, o 73º lugar, no Índice de Desenvolvimento Humano, na lista de 169 países elencados no planeta.
No século XX, a população brasileira, em sua maioria, vivia no campo. A relação campo e cidade foi invertida, com a virada populacional que
aconteceu na segunda metade do século passado, demonstrando a predominância do campo em quase 90% da história do Brasil, nesses termos.
George Martine9 explica que a modernização da agricultura, com a Revolução Verde, no período de 1965 a 1979, levou à criação de parques agroindustriais no campo, aumentando a supressão camponesa do pacto social. A
territorialização do capital “provocou um forte êxodo rural de quase 30
milhões de pessoas [...] além do crescente assalariamento da força de trabalho agrícola, muito da qual passou a residir nas cidades”.
Na final da década de 80, o êxodo rural volta a aparecer em decorrência de múltiplas circunstâncias. Martine10 aborda a questão: “O recru-
LISITA, Cristiane. O Modo de Ser Camponês e a Propriedade da Terra entre Camponeses: a exclusão
inspirando os movimentos sociais. Curitiba: Juruá, 2008, p. 23-24.
9
MARTINE, George. A Trajetória da Modernização Agrícola: a quem beneficia? Revista Lua
Nova, São Paulo, n.23, mar. 1991, p.12-13, p.10.
10
Ibid., p.16-17.
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descimento do processo inflacionário e a nova crise recessiva fizeram o governo retomar as medidas adotadas no auge da primeira crise, notadamente no que se refere ao encarecimento do crédito e à sustentação de uma
política de preços ativa”. E acrescenta: “A euforia de incentivos, garantias e
produção intensificada deve ter esquentado o mercado de terras, fazendo
com que os minifundistas intersticiais, os parceiros, arrendatários e posseiros tenham sido novamente obrigados a migrar em maior número”.
Veja-se que os processos que expulsaram os trabalhadores do campo
se deram, até certo ponto, de maneira abrupta. Assim, em algum momento, nossos antepassados foram camponeses, e hoje, notamos resquícios de
alguns princípios cognoscíveis de comportamentos tipicamente rurais na
cidade – sendo estes genéricos, a exemplo de certas expressões idiomáticas,
alimentação, a observação da natureza, as fases da lua, etc.
É inviável colocar o rural e o urbano contrapostos, de maneira individualizada, sociologicamente arrazoando. Ainda que existam especialidades em cada uma dessas sociedades, em função dos costumes e da cultura,
o que acarreta muitas vezes aculturação ou alienação, paradoxalmente, ao
buscarmos os pontos de convergência, ou suas diferenças, alcançaremos
que o nevoeiro chega quase a desaparecer à medida que os problemas que
incidem em uma ou em outra são universais como a fome, a miséria e a
solidão coletiva. Para ter-se ciência dos paradigmas do rural, a essência, os
valores e as tradições do homem do campo, é necessário entrar no barco e
enfrentar a tempestade que cai sobre as estruturas sociais que parecem estar
abaladas, a exemplo do próprio Estado.
A sociedade global está em constante mutação e o todo tem suas partes afetadas. O que está em baixa, ou em desaparecimento, em conformidade ao que profetizam alguns estudiosos, tanto no Brasil quanto na Europa,
não é o campo ou os camponeses; o que está sucedendo é um câmbio de
ideologias, num rural que se acha em constante roda-viva, mostrando sempre novas feições em diferentes épocas ou lugares.
A influência recíproca do urbano no rural nos desperta para a caracterização de camponeses, como destacado por Henri Mendras11: “enquanto não existe cidade, os camponeses também são inexistentes; o que existe
11
MENDRAS, Henri. Sociedades Camponesas. Tradução de Maria José da S. Lindoso. Rio de
Janeiro: Zahar, 1978, p. 34.
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são os aborígenes. Os camponeses são indivíduos rurais, autóctones, que
vivem na área de influência de uma cidade, com a qual mantêm relações
econômicas e intelectuais”. Na visão de Mendras12, apesar da existência
deste aspecto de oposição que incide entre cidade e campo, há também um
compartilhar de crenças, de cultura e de mercado econômico entre ambos.
A assertiva de Mendras13 de que “assistimos a uma urbanização do campo
e a uma ruralização das cidades” vem corroborar a necessidade permanente de se observar e de se questionar os paradigmas, estereótipos, preconceitos no tocante à cidade e ao campo, que se colocam um em analogia ao
outro. Não há marco certo para delimitá-los, da mesma maneira que não se
podem separar as águas de um rio ou de um mar que se encontram. Só é
possível perceber a diversidade pela nuance de cores. Contudo, são águas.
É sob este prisma que acreditamos que o campo não se distanciou da
cidade, nem vice-versa. Persistem certamente conectados. Émile Durkheim14
assevera que é admissível detectar que a sociedade rural e a sociedade urbana são segmentos de uma estrutura global, na qual advém uma junção de
partes que estavam ou se acham separadas. E o turismo rural vem como um
elemento silencioso, mas que no fundo pode ser um grito de retorno. Retorno ao bucolismo, num campo contemplado e vivido por meio da paz, da
beleza, do canto dos pássaros, da comida não industrializada, dos costumes, das tradições e dos símbolos que, sob algum aspecto, continuam presentes em nossa memória. Essa modalidade de turismo vem resgatar o mais
puro, um busca da qualidade de vida saudável. A celebração da fartura, da
terra bendita.
Mas é basilar a reformulação dos conceitos acerca do campo. Não
raro, o camponês se pensa um excluído. A constituição do direito positivo
no Brasil expressa claramente um compromisso entre os grupos de sustentação das sucessivas composições de poder. Dificilmente o aspecto de como
o camponês se vê no processo de desenvolvimento é levado em conta. Nesta conjuntura, muito ainda deve ser feito para colocar o turismo rural em
sintonia com os agricultores familiares.
Ibid., p. 39.
Ibid., p. 37.
14
DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. 2. ed. Tradução de Paulo Neves. São
Paulo: Martins Fontes, 1999.
12
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Eric Hobsbawn15 relata que “no fundo, os camponeses são e se sentem subalternos. Com raras exceções visa a um ajustamento na pirâmide
social e não à sua destruição, embora seja fácil conceber a sua destruição.”
E sobrepõe: “por mais militantes que sejam os camponeses, o ciclo de sua
labuta os acorrenta a seu destino”. É certo, pois, que é difícil se reconhecer
camponês quando uma parte vultosa hoje é citadina. O camponês para se
constituir como indivíduo dentro dos padrões da “normalidade” acaba tendo que passar pela referência da cidade, que não o vê como excluído, mas,
muitas vezes, como uma categoria inferior e subalterna, carregando o pejorativo nome de “caipira”.
O “monumento à desigualdade” que é o Brasil, no dizer de Hobsbawn, “foi erguido à custa das mãos camponesas, transferidas e transformadas em mãos operárias para exclusivo benefício das minúsculas e parasitárias elites brasileiras. Ídolo erguido surgiu sua religião oficial: o neoliberalismo [...]” escreve o jornalista Itamar Pires, in Lisita16. O Brasil carece conhecer de perto o mundo camponês, não como alheio, atrasado, perdido
num pretérito para ser olvidado, mas como integrante essencial da realidade brasileira, que seguirá sendo injusta e caótica, enquanto não se sobrepujar a exclusão camponesa.
2 AGRICULTURA FAMILIAR
Ressalte-se que a agricultura familiar se nos manifesta hodiernamente como uma possibilidade para o incremento socioeconômico e o resgate
da cidadania de milhares de trabalhadores rurais, tendo em vista que ela é
responsável por ampla parte da produção agrícola que chega à mesa dos
brasileiros. A ideia de agricultura familiar, adotada pela FAO, tem como
pressuposto:
[...] o trabalho e gestão intimamente relacionados; a direção do processo
produtivo assegurada diretamente pelos proprietários; a ênfase na diversificação; a ênfase na durabilidade dos recursos e na qualidade de vida; trabalho assalariado complementar; decisões imediatas adequadas ao alto grau
de imprevisibilidade do processo produtivo.
HOBSBAWN, Éric. Pessoas Extraordinárias. Resistência, rebelião e jazz. Tradução de Irene
Hirsch e Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998, p.227.
16
LISITA, Cristiane. O Modo de Ser Camponês e a Propriedade da Terra entre Camponeses: a exclusão
inspirando os movimentos sociais. Curitiba: Juruá, 2008, p.23.
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O último Censo Agropecuário, datado de 2006, ostenta que 12,3 milhões de pessoas estão vinculadas à agricultura familiar, com 74,4% do pessoal ocupado, uma média de 2,6 pessoas, de 14 anos ou mais de idade,
lavorando, sendo que mais de três milhões destas são analfabetas. Os estabelecimentos não familiares englobavam 4,2 milhões de pessoas, o que corresponde a 25,6% da mão de obra em exercício. A agricultura familiar respondia por 30% das receitas dos estabelecimentos agropecuários.
A segunda principal fonte de receita da agricultura familiar eram as
vendas de animais, sobretudo porcos e galinhas. A diversificação dos produtos é uma constante. Sobressai a produção de algodão, de feijão, de milho, de soja, dentre outros.
Essa agricultura familiar carece de tecnologias que possibilitem o arrefecimento de riscos na técnica produtiva, uma vez que o ciclo agrobiológico fica sujeito às intempéries. Diga-se que o cardeal da atividade agrária
se enraíza na atividade humana, em coparticipação com a atividade natural. Em relação à extensão territorial, prepondera-se que se a classe da atividade econômica desenvolvida na propriedade agropecuária versar sobre aquicultura e a extensão dos tanques, lagos e açudes da mesma forem superiores
a dois hectares, então o espaço será tido como de agricultura familiar.
O Censo do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), em
2006, abrangeu 5.175.489 estabelecimentos, o que importou um crescimento
de 6,5% sobre o mesmo resultado em 95/96 (4.859.865 estabelecimentos).
Todavia, em 1985, o Censo revelou a existência de 5.802.206 estabelecimentos. A área total em 2006 abrangeu 329,9 milhões de ha, o que concebe
um decréscimo sobre o mesmo resultado em 95/96 (353,6 milhões de ha).
A diferença de 23,7 milhões de hectares corresponde a menos 6,7% da área
averiguada no censo anterior. Em 1985, a área total dos estabelecimentos
atingia 374,9 milhões de hectares. Ou seja, os dados despontavam uma tendência declinante no apontador de propriedades agropecuárias e da sua
área total, ponderando os seus múltiplos usos: lavouras, pastagens, matas e
outros. Apesar da diminuição das áreas da agricultura familiar, a produção
acresceu nas unidades de estabelecimentos verificados, conforme conclusão do relatório do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística.
Por outro lado, os dados estatísticos do IBGE catalogam que, dos
aproximados cinco milhões de estabelecimentos de agricultores familiares,
cerca de 3,2 milhões de produtores tinham acesso às terras na condição de
proprietários, representando 74,4% dos estabelecimentos familiares e cin-
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gindo 87,6% das suas áreas. A pesquisa revela que quase 170 mil produtores se incluíram como assentados sem titulação decisiva, sendo meramente
posseiros ou assentados no processo da reforma agrária do governo federal.
Beirando a casa dos 690 mil labutadores, foi apurado que tinham acesso
temporário ou ainda precário no que tange às terras, abarcando 196 mil na
qualidade de arrendatários, 126 mil como parceiros e 368 mil como ocupantes. Destes 255 mil produtores sem área, quase totalidade, ou seja, 242
mil rurícolas eram agricultores familiares.
Apenas em 2006 os dados da agricultura familiar foram inseridos nas
pesquisas, embora seja ela a responsável pela enorme produção do país.
Some-se a este episódio que somente neste mesmo ano, o turismo rural
passou a constar destes documentos. Entretanto, a legislação, ao conceber
o turismo rural, não fixou como característica, a geração de empregos, o
que elucida o raciocínio de que, já que a agricultura familiar admite trabalhador além dos membros familiares, apenas em caráter eventual, tem-se
que as duas concepções são conexas e estariam em simbiose perfeita.
3 PLURIATIVIDADE NA AGRICULTURA FAMILIAR
3.1 ATIVIDADE AGRÁRIA
O tema requer que tracemos alguns comentários acerca da atividade
agrária. Se o turismo rural requer que advenha a atividade agropecuária e a
harmonia com a pluriatividade que vai ensejar rendas, diga-se do que se
trata isto. Para a caracterização da atividade agrária, nos amparamos em
três teorias: a da agrariedade, a da acessoriedade e a da agrobiológica. Giselda Hironaka17 ensina que a teoria agrobiológica segue os critérios do
argentino Rodolfo Carrera – sabendo que terra e o processo agrobiológico
é que vão compor a atividade agrária ajustando-se à especificidade que tem
na sua substância.
Hironaka, explicando a visão do italiano Antônio Carrozza, narra
que, por ver ultrapassada a teoria clássica, seria vital inserir outro fator para
distinguir a atividade agrária, associando o ciclo agrobiológico aos riscos
17
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Atividade Agrária e Proteção Ambiental: Simbiose
possível. São Paulo: Cultural Paulista, 1997, p.33-34.
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da natureza, que escapariam ao controle humano, sendo denominado, portanto, de “risco correlato”.
Na conjectura do argentino Antonino Vivanco, o critério da acessoriedade veio clarificar a proposição. Esteia Hironaka18:
Depreende-se, pois, que o autor considera como atividades agrárias, além
das produtivas, conservativas e preservativas (estas últimas distintas daquelas primeiras, mas igualmente agrárias por excelência) as atividades complementares que com ela se relacionam, sem sobrepujar-lhes a importância,
contudo.
Antonino C. Vivanco19, em Teoria del Derecho Agrario, explana:
Para definir con precisión el limite entre la actividad agraria y la actividad
industrial y comercial, es preciso adoptar alguno de los critérios enumerados. El más claro y concluyente resulta el de la accesoriedad. En efecto, la
actividad agraria productiva debe ser la que desempeña el papel principal
dentro del âmbito rural, mientras que las actividades transformadoras y comerciales constituyen el accesorio o complemento de aquélla. Cuando dejan de serlo y pasan a desempeñar el papel fundamental, dejan de ser agrárias, para transformarse en industriales o comerciales.
Nas Atividades Agrárias Próprias, adotando os ensinamentos de Hironaka, abraçaríamos, portanto, as atividades: produtiva, conservativa e
preservativa. Na classificação das Atividades Agrárias Acessórias: a extrativa e a capturativa. Nas Atividades Agrárias Conexas encerraríamos as
atividades: manufatureira, transportadora, processadora e lucrativa. Ponderadas Conexas, por conseguinte, levando em conta, que embora não se
tratem de atividades propriamente de produção, elas se complementam.
Gustavo Elias Kallás Rezek20 registra que a silvicultura não se confunde com outras atividades que englobam florestas, ou espécimes vegetais
nativas, nas quais não sobrevém a intervenção do homem no ciclo agrobiológico:
Quanto à atividade florestal, devem ser feitas algumas distinções. Será agrária a silvicultura, entendida como a plantação e o acompanhamento do desenvolvimento de florestas para a obtenção de certos produtos de origem
vegetal, integrando a noção geral de agricultura. Assim, será agrária a plantação de uma floresta de eucaliptos para extração da madeira – matéria-
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Atividade Agrária e Proteção Ambiental: Simbiose
possível. São Paulo: Cultural Paulista, 1997, p.40.
19
VIVANCO, Antonino C. Teoria del Derecho Agrario. 1975, p. 21, v.1.
20
REZEK, Gustavo Elias Kallás. Imóvel Agrário: agrariedade, ruralidade e rusticidade. Curitiba:
Juruá, 2007, p. 33.
18
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prima destinada à produção industrial de papel. Também a plantação florestal de seringueiras para a extração do látex, utilizado em inúmeros produtos, desde sandálias até a borracha empregada nos pneus de nossos veículos.
Não serão agrários, por outro lado: a) o extrativismo florestal, a simples
coleta de frutos, sementes, folhas, madeira ou cascas de árvores; b) a mera
conservação florestal reitere-se, como a que existe nos parques [...]
O artigo 1º, no seu §2º, da Lei n. 9.393/96, corroborando a Lei
n.5.172/66, dispõe sobre o imóvel rural, diferentemente do Estatuto da
Terra, desconsiderando a atividade agrária exercida e levando em conta
apenas a localização do imóvel rural, embora na prática, os tribunais têm
decidido que, quando for destinado à exploração de alguma atividade agrária, cabe ser devido o imposto de imóvel situado em zona urbana, mas
apenas com este fim.
A Lei n. 8.629/93 elencou como atividade agrária as conectadas com:
agricultura, pecuária, agroindústria e extrativismo vegetal. Neste último,
embora não haja intervenção humana no ciclo agrobiológico, a lei o fixou
como tal. Ilustrando, Kallás Rezek21 afirma que, no que comporta a atividade agroindustrial, essa só será agrária no predomínio da atividade agrária sobre a industrial, na qual há transformação dos produtos dentro da
unidade produtora, satisfazendo a teoria da acessoriedade de Vivanco. Trata-se, pois, de atividade agrária as agroindustriais que são apenas as acessórias, e não todas aquelas que se fazem existir em razão do setor primário da
economia, de acordo com explicação de Rezek.
Muitos doutrinadores arguem: se a renda com o turismo rural ultrapassar a da agropecuária, isto seria admissível? Diga-se que é provável a
simbiose entre os dois institutos de maneira que possam caminhar sem que
a agricultura seja afetada ou limitada. Ademais, haverá por certo uma adaptação dos camponeses neste novo processo, uma endoculturação, mas não
uma fusão dessas culturas, não fragmentando, portanto, as relações socioculturais e econômicas no campo. A tônica da questão está respaldada em
Almeida22: “saber se o turismo rural pode se constituir em elemento dinamizador das áreas rurais desfavorecidas”.
REZEK, Gustavo Elias Kallás. Imóvel Agrário: agrariedade, ruralidade e rusticidade. Curitiba:
Juruá, 2007, p.33.
22
ALMEIDA, J. A. Turismo rural: uma estratégia de desenvolvimento via serviços. In: Anais.
Congresso Brasileiro de Turismo Rural. Turismo no Espaço Rural Brasileiro. Piracicaba: FEALQ:
1999, p. 83-97.
21
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PASSOS, Cristiane L. Turismo Rural e
Agricultura Familiar: Simbiose Possível
A pluriatividade está ligada a ofícios não agrícolas no espaço rural,
como é o caso do Turismo rural, aumentando a renda de pequenas unidades de produção familiar e colocando seus membros numa realidade mais
complexa e que consente valorar e dar nova significação ao campo.
Sérgio Schneider23 delibera a pluriatividade:
[...] podemos definir a pluriatividade como um fenômeno através do qual
membros das famílias de agricultores que habitam no meio rural optam pelo
exercício de diferentes atividades, ou mais rigorosamente optam pelo exercício de atividades não agrícolas, mantendo a moradia no campo e uma
ligação, inclusive produtiva, com a agricultura e a vida no espaço rural. Nesse
sentido, ainda que se possa afirmar que a pluriatividade é decorrente de
fatores que lhe são exógenos como o mercado de trabalho não agrícola, ela
é uma prática que depende das decisões dos indivíduos e das famílias.
Sérgio Schneider também explica:
A pluriatividade atual ocorre através da mercantilização da força de trabalho ou prestação de serviços. O indivíduo ou a família que pratica a combinação de múltiplas atividades (pluriatividade) já não o faz como mero complemento ou acessório visando o autoaprovisionamento (com ferramentas
ou implementos de trabalho, artesanato, etc.). Em termos analíticos, não se
trata mais de uma produção de valores de uso, mas de valor de troca, que
visam o intercâmbio e, no geral, a obtenção de remuneração monetária.
3.2 MUDANÇAS SOCIAIS E IMAGINÁRIO RURAL
Henri Mendras24 diz: “o fato de as sociedades camponesas serem tradicionais e de viverem sob a égide do costume e da rotina não os impede,
no entanto, de receber e de adotar as inovações que pouco a pouco induzem a mudanças”. Mendras acredita que o camponês vê na sua experiência, no seu cotidiano, a fórmula mais acertada para as suas ações e que as
mudanças aconteceriam por sua própria iniciativa.
O mundo camponês, embora tradicional, possui no seu contorno uma
sociedade “envolvente”, que é a sociedade global. As alterações são buscadas ou aceitas à medida que se tornam imperativas. Somente as novidades
não operam ruptura no sistema social, embora transcorra um dinamismo
perpétuo. É a noção de mudança que age de maneira categórica. Jadir Pes-
SCHNEIDER, Sérgio. A Pluriatividade na Agricultura Familiar. Porto Alegre. Editora da UFRGS,
2003, p. 91-92.
24
MENDRAS, Henri. Sociedades Camponesas. Tradução de Maria José da S. Lindoso. Rio de
Janeiro: Zahar, 1978, p.201.
23
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PASSOS, Cristiane L. Turismo Rural e
Agricultura Familiar: Simbiose Possível
soa25, analisando assentamentos da reforma agrária, na última década, explana que o camponês tem sonhos, “não quer só a terra, mas o que ela representa”. E é neste quadro que ele apreende a natureza como manancial de
vida na qual tudo muda e das cinzas hão de surgir os frutos, numa recomposição possível, quer com as coisas que lhe rodeia, quer consigo mesmo.
A desconstrução da imagem de rural como um mundo atrasado torna-se imprescindível na possibilidade de mutação no processo simbólico de
inferioridade do sujeito do campo. Desconstruir, explica o francês Jacques
Derrida26, “é o processo através do qual um conjunto estrutural é decomposto nos seus componentes”. O princípio da desconstrução como fundamento modificador, não destruidor, é como mecanismo substancial para a
noção de campo, e de camponês. Desestruturar, no sentido de repensar,
lança mão de interrogações críticas sobre as convenções culturais na edificação de um conceito que, em geral, se funda na concepção de “dualidades
opostas”, que, ao longo do tempo, vão sendo consolidadas, uma vez que
foram culturalmente constituídas.
Depois de longos estudos acerca do homem do campo no Brasil, é
admissível afiançar que esse camponês tem sua condição humana e social
bastante semelhante à conjuntura latino-americana e também europeia, em
muitos termos, reduzido à exclusão. A realidade nos acena a reorganizar a
sociedade rurícola, estimulando e apoiando a participação dos sujeitos sociais na discussão e deliberação sobre políticas, propostas e projetos para
reavivar o campo. Nesse sentido, o turismo rural se mostra como um dos
fenômenos para a solidificação de um campesinato, valorizado, respeitado
em seus ofícios, em sua história, em seu modo de ser. Há que se proporcionar aos da cidade, o campo como um lugar de retorno, do resgate com o
passado e a probabilidade de preservar a sua memória para as gerações
futuras.
Nesse imaginário do rural, que o citadino vem procurando, está latente uma nova e plausível identidade camponesa. Se as afinidades da cidade com o campo, após os processos de urbanização e industrialização ficaram menos achegadas e, no dizer de Mendras27, os meios de difusão de
PESSOA, Jadir de Morais. A Revanche Camponesa. Goiânia: UFG, 1999, p.25.
DERRIDA, Jacques. Résistances de la Psychanalyse. Paris: Éditions Galilée, 1996.
27
MENDRAS, Henri. Sociedades Camponesas. Tradução de Maria José da S. Lindoso. Rio de
Janeiro: Zahar, 1978, p.52-53.
25
26
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Agricultura Familiar: Simbiose Possível
massa passam a fornecer “uma representação estereotipada e anacrônica”,
esse recente fenômeno suscita a arrecadar elementos suficientes para entender o camponês neste século.
José Gomes da Silva28 raciocina sobre o termo camponês: “designa o
homem sem terra ou com terra insuficiente, em todas as suas formas e subtipos”. E adiciona:
não designa apenas seu novo nome, mas também o seu lugar social, não
apenas o espaço geográfico, no campo em contraposição à povoação ou à
cidade, mas na estrutura da sociedade: por isso, não é apenas um novo nome,
mas pretende ser também a designação de um destino histórico.
Essa exclusão ideológica arraigada no campo e entre os camponeses
deve vir à tona e ser confrontada para aproveitar o instante em que o citadino se volta para suas raízes, nesse recompor psicológico, humanista.
De acordo com o pensamento de Le Goff29: “o processo de reatualizar coloca a memória como propriedade de conservar informações, na qual
estão inseridos elementos psíquicos de certa informação, que permite ao
homem atualizá-la.” A memória pode ser avaliada em Halbwachs30 com
certa relatividade e, para tanto, é essencial levar em apreço a ocasião histórica e a circunstância, o contexto em que está implantada.
Se, por um lado, se deve conservar a memória para preservar o futuro, por outro lado, novos paradigmas acerca do rural se fazem mister. Roscher31 escreve sobre a mudança social: “toda transformação observável no
tempo que afeta, de maneira que não seja provisória ou efêmera, a estrutura ou o funcionamento da organização social de dada coletividade modifica o curso de sua história”. Ela se dá, portanto, de caráter definitivo, devida
a vários fatores, às vezes, pela própria precisão da sociedade.
Tratemos, pois, de redescobrir a nossa história, elucidando o pensamento de Pierre Ansart32 acerca de memória e do ressentimento, suscitando a importância de se verificar aspectos “das relações entre os afetos e o
SILVA, José Gomes da. A Reforma Agrária no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1971, p.14.
LE GOFF, J. História e Memória. Tradução Bernardo Leitão. 3. ed. Campinas: Editora da
UNICAMP, 1994, p.423.
30
HALBWACHS, M. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice. (Original de 1956), 1999.
31
ROCHER, Guy. Sociologia Geral. Lisboa: Presença, 1977, p. 94-95.
32
ANSART, Pierre. História e memória dos ressentimentos. In: BRESCIANI, Stella; NAXARA,
Márcia (Org.). Memória e (Res) sentimento: indagações sobre uma questão sensível Campinas:
Editora da Unicamp, 2001, p.15.
28
29
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PASSOS, Cristiane L. Turismo Rural e
Agricultura Familiar: Simbiose Possível
político, entre os sujeitos individuais em suas afetividades e as práticas sociais
e políticas”.
E ainda, cabe destacar a ideia de Halbwachs33, acerca dos termos
Memória e História: “A história começa somente do ponto onde acaba a
tradição, momento em que se apaga ou se decompõe a memória social.
Enquanto uma lembrança subsiste, é inútil fixá-la por escrito”.
4 CONCLUSÃO
O turismo rural é uma resposta ao estilo de vida do urbano, do que
este não oferece, a exemplo do descanso, da paisagem bucólica, da qualidade de vida. É um revide à degradação ambiental também. O campo é visto
como atrativo e deve manter as características da região para valorizar os
recursos locais advindos dos saberes que foram alcançados, bem como proteger o patrimônio imaterial.
A pluriatividade, esta conjunção de atividades agrícolas ou pecuárias
com outras que gerem rendimentos no imóvel rural, vem facilitar o incremento com a demanda por produtos artesanais e alimentos frescos, motivando, em alguns casos, a participação do turista em certas práticas agropecuárias, a exemplo, da colheita de frutas e verduras. É também importante
ressaltar que a pluriatividade e a emergência de ofícios não agrícolas no
imóvel rural não são indícios de que o campo esteja perdendo as suas características, tampouco que a agricultura familiar corra o risco de desaparecer, ou de ser reduzida, abrindo espaços para situações de queda da produção de alimentos no país. Nota-se igualmente que não está em vias uma
industrialização da agricultura que induza o turismo rural a ocupar espaços maiores do que a atividade agrária, num processo agrobiológico do
homem interferindo na natureza, seja na produção de alimentos ou gado.
O turismo rural enseja uma nova ordem no campo e na cidade e, aos
poucos, silenciosamente, vai agregando espaços, evidenciando que essa organização da atividade agrária pode tornar mínimas as disparidades sociais, o
êxodo rural, podendo, inclusive, gerar mais renda ao camponês. A propósito, o camponês está aberto para este atual fenômeno, desde que o turista
33
HALBWACHS, M. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice. (Original de 1956), 1999, p. 85.
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PASSOS, Cristiane L. Turismo Rural e
Agricultura Familiar: Simbiose Possível
não interfira no seu estilo de vida, nas suas peculiaridades. O respeito é
fundamental. Nessa perspectiva, é pouco provável, ainda, que a inclusão
do turismo rural junto aos agricultores familiares possa causar impactos
ambientais graves. Para o turista, a inovação é elemento que vai compor o
turismo. Nesta circunstância, as identidades sociais vão sendo reelaboradas na medida em que campo e cidade se tornam mais chegados, num processo no qual o rural vem a ser revitalizado. O turismo rural aproxima cidade e campo, nas suas semelhanças e diferenças multidimensionais, que, na
verdade, fazem parte de uma mesma estrutura macrossociológica e se interligam de tal maneira que, em algumas ocasiões, é impossível distinguir
cada uma, vez que, em certo tempo, nossos antecessores pertenceram ao
campo e estas memórias ainda permanecem vivas.
O governo deve reelaborar as políticas agrárias e nelas implantar eficazmente o turismo rural, sendo este ainda incipiente no país, não havendo
processos unificados quanto ao seu desenvolvimento, levando em importância a heterogeneidade de tamanhos e tipos de propriedades agrárias esparramadas pelo Brasil. A sociedade, especialmente a academia, em suas
mais distintas áreas, devem se voltar para esta problemática, apreendendo
que há um movimento “retrô” em curso, como uma onda que traz um saudosismo bucólico, um repensar acerca do campo.
Embora haja muita controvérsia quanto aos benefícios que o turismo
rural ocasionaria para esse meio, é pouco provável que os produtores familiares abandonem suas ocupações agropecuárias, vez que amam a terra. A
terra não é apenas a posse, a propriedade, o usufruto, mas significa a preservação de seus costumes, dos ofícios do campo, das tradições, da religiosidade, etc., muito menos seria o caso de terceirização das suas atividades econômicas.
Observa-se que, no que tange à estruturação do turismo rural, ainda
há muito que fazer na área de comunicação, de conhecimento, de infraestrutura, que são deficientes. Faltam incentivos por parte do governo para
melhor gerir o campo.
Por fim, o retorno ao rural permite resgatar o passado, velando também pelo futuro, na preservação do patrimônio imaterial, material e também natural. A história tem mostrado que, para chegar a um nível superior
de desenvolvimento, muitas vezes, os homens têm que repensar sua trajetória para poder seguir nova marcha.
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PASSOS, Cristiane L. Turismo Rural e
Agricultura Familiar: Simbiose Possível
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Recebido em: 04 de fevereiro de 2014.
Aceito em: 23 de fevereiro de 2014.
Campo Jurídico, vol. 2, n. 1, p. 127-145, maio de 2014
145
– II –
Teoria Jurídica e
Evolução Social
148
“¿‘PARADOJA’ DE H. KELSEN SOBRE LA
INDETERMINACIÓN JURÍDICA?”
HANS KELSEN’S PARADOX ABOUT
LEGAL INDETERMINACY?
Juan Alberto del Real Alcalá1
Resumen: Este artículo, dirigido a problematizar la indeterminación del Derecho,
realiza un análisis de la idea de que la teoría del derecho de Hans Kelsen admite
“la tesis de la indeterminación jurídica”. En este sentido, se propone un
cuestionamiento de esta afirmación, argumentando que la teoría kelseniana se
encontraría más cerca de contener una “tesis de la completitud” del Derecho
que la de su indeterminación.
Palavras-chave: Indeterminación Jurídica. Hans Kelsen. Teoría del Derecho.
Abstract: This article, returned to questioning the indeterminacy of Law, performs
an analysis about the idea that the Hans Kelsen’s Law theory admit the “legal
indeterminacy thesis”. In this sense, it’s proposed a questioning of this assertion,
arguing that kelsen’s theory would be closer to contain a “thesis of incompleteness
of law” that its indeterminacy.
Keywords: Legal Indeterminacy. Hans Kelsen. Theory of Law.
Sumario: I. Introducción. II. Argumentos susceptibles de contradecir la
indeterminación en H. Kelsen. III. Conclusión.
I. INTRODUCCIÓN
En el debate contemporáneo sobre la indeterminación del Derecho,
suele afirmarse habitualmente que la teoría del Derecho de Hans Kelsen
1
Profesor Titular de Filosofía del Derecho, Universidad de Jaén, España.
149
ALCALÁ, Juan A. del. “¿‘Paradoja’ de H. Kelsen
Sobre la Indeterminación Jurídica!”
admite la “tesis de la indeterminación jurídica”. En este texto, me propongo,
muy sintéticamente, dar algunas razones de peso que ponen en cuestión esa
aserción. Si dichas razones son ciertas, la teoría jurídica de H. Kelsen se
encontraría más cerca de contener una “tesis de la completitud” del Derecho
que la de su indeterminación.
Las razones que proporciono pueden sintetizarse en una sola: que la
teoría jurídica del austriaco no contempla realmente “borderline cases”
(casos marginales), desde el momento en que puede resolver todos los casos
presentes y posibles “conforme a Derecho”. Y parecería un sin sentido “admitir”
la tesis de la indeterminación del Derecho, pero, al mismo tiempo, “negar”
la existencia de casos indeterminados en el Derecho. En mi opinión, esto es
lo que hace la teoría del Derecho de H. Kelsen. De ahí, que cuestione aquella
afirmación tradicional de que el austriaco admite la tesis de la
indeterminación jurídica.
II. ARGUMENTOS SUSCEPTIBLES DE CONTRADECIR LA
INDETERMINACIÓN EN H. KELSEN
Cuatro argumentos de peso llevarían a dudar que la teoría del Derecho
de H. Kelsen contiene una tesis de indeterminación. Son los siguientes:
1. EL ARGUMENTO DE LA DISTINCIÓN ENTRE NORMAS
“INDIVIDUALES” Y NORMAS “GENERALES”
Desde el punto de vista kelseniano, «la norma puede tener carácter
individual o general. Una norma tiene carácter individual cuando dicta un
comportamiento debido único e individualmente determinado; por ejemplo,
la decisión de un juez»; y «una norma presenta un carácter general cuando
dicta un comportamiento debido determinado en el nivel general.»2
En la perspectiva kelseniana, la norma individual parece
corresponderse con los clear cases (casos claros). Lógicamente, el Estado de
Derecho provee a los jueces de procedimientos precisos, y en buena medida
objetivos, con los que los que dirimir, conforme a Derecho preestablecido, los
clear cases. En esta clase de casos judiciales, la resolución puede ser deducida
2
KELSEN, H.: Teoría General de las Normas, traducción española de Hugo Carlos Delory Jacobs,
revisión técnica de Juan Federico Arriola, Editorial Trillas, México D.F., 2003, p. 25.
150
Campo Jurídico, vol. 2, n. 1, p. 149-156, maio de 2014
ALCALÁ, Juan A. del. “¿‘Paradoja’ de H. Kelsen
Sobre la Indeterminación Jurídica!”
desde dentro del Derecho, en contraste con los casos que sólo pueden ser
resueltos discrecionalmente. Sin embargo, esos procedimientos no son
suficientes cuando el caso judicial planteado no encuentra una respuesta
correcta en el sistema jurídico, porque se trata de borderline cases (casos
marginales).
Probablemente, si consideramos que H. Kelsen equipararía la norma
individual a las situaciones típicas de los clear cases, parecería que la norma
general se correspondería con aquellas que singularizan los borderline cases.
Sin embargo, es aquí donde surgiría la contradicción en la teoría jurídica
kelseniana, tal como puede verse a continuación.
2. A PARTIR DE LA ANTERIOR DISTINCIÓN, EL ARGUMENTO
DE LA “LA NORMA COMO MARCO”
Tal como H. L. A. Hart constató, los borderline cases se ubican en la
“zona de incertidumbre” o “penumbra” del ámbito de aplicación de las
reglas, pues «en cualquier orden jurídico habrá siempre ciertos casos
jurídicamente no regulados». 3 Los cuales, resultan finalmente casos
indeterminados.4
Los borderline cases se caracterizan por ser:
i) “casos marginales”, en virtud de que son casos que se ubican al
margen de la clara aplicabilidad o clara inaplicabilidad del Derecho.
ii) “casos dudosos”, en virtud de que hay incertidumbre sobre si están
o no están situados realmente en el núcleo de certeza aplicativa del Derecho.
iii) “casos indeterminados”, en virtud de las consecuencias, que son de
indeterminación, que suponen a la hora de abordar la aplicación del Derecho.
iv) “casos difíciles” (hard cases), en virtud de la complejidad que conlleva
la construcción de la decisión judicial en estos supuestos de indeterminación,
regulados de forma incompleta, o incluso no regulados en ningún sentido, por
el sistema jurídico. En contraste, claro está, con la sencillez con la que se
construye la decisión en los clear cases.
HART, H.L.A.: “Postscript”, en ID., The Concept of Law, 2ª. edición, Clarendon Press, Oxford,
1997, edición de Penélope A. Bullock y Joseph Raz, pp. 238-276; hay trad. esp., ID., Post scriptum
al concepto de derecho, edición de Penélope A. Bullock y Joseph Raz, estudio preliminar, traducción,
notas y bibliografía de Rolando Tamayo y Salmorán, UNAM, México D.F., 2000, p. 54.
4
HART, H.L.A.: The Concept of Law, Oxford University Press, Oxford, 1961; traducción española:
ID., El concepto de Derecho, traducción de Genaro R. Carrió, Abeledo–Perrot, Buenos Aires,
1998, p. 158.
3
Campo Jurídico, vol. 2, n. 1, p. 149-156, maio de 2014
151
ALCALÁ, Juan A. del. “¿‘Paradoja’ de H. Kelsen
Sobre la Indeterminación Jurídica!”
Según Endicott, los borderline cases pueden definirse sintéticamente
como “aquellos casos en los que uno simplemente no sabe si hay que aplicar
o no la regla, y el hecho de que uno no sepa no se debe a la ignorancia de los
hechos”.5 Utilizo la nomenclatura borderline cases o casos marginales, por
ser la más habitual en las teorías jurídicas que admiten la tesis de la
indeterminación.
Pues bien, tradicionalmente, aunque la categoría borderline cases y la
tesis de la indeterminación jurídica suelen ser habituales de las teorías
jurídicas positivistas. Ahora bien, aquí un caso interesante es la teoría del
Derecho de H. Kelsen, uno de los paradigmas del positivismo jurídico. La
teoría jurídica kelseniana presuntamente admite algún tipo de tesis de
indeterminación jurídica, pero también trata de hacerla compatible con la
tesis –contraria – de la completitud del Derecho. En mi opinión, de afirmar
una cosa y su contrario al mismo tiempo no puede resultar sino una paradoja.
Esta contradicción se generaría fundamentalmente a raíz de constatarse
que, en la teoría jurídica kelseniana, realmente no se observan en la casuística
judicial casos realmente incompletos. Ocurre que, en verdad, todos los casos
judiciales que esta teoría jurídica tiene en cuenta pueden ser resueltos
“conforme a Derecho”. Algo que parecería violar la propia naturaleza de
un auténtico borderline case.
La labor de completitud del Derecho, y de la consecuente eliminación
de cualquier indeterminación en el mismo, la lleva a cabo H. Kelsen desde
la doctrina de la “norma como marco”. En este sentido, para él,
El orden jurídico es un sistema de normas generales e individuales
entrelazadas entre sí de acuerdo con el principio de que el derecho regula su
propia creación. Cada norma de este orden es creada de acuerdo con las
prescripciones de otra y, en última instancia, de acuerdo con lo que establece
la fundamental que constituye la unidad del sistema6.
Desde un punto de vista dinámico, la decisión del tribunal representa una
norma individual, creada sobre la base de una norma general del derecho
legislado o consuetudinario, del mismo modo que esta norma general es
creada por la Constitución.7
Por tanto, el juez es siempre legislador, incluso en el sentido de que el
contenido de sus resoluciones nunca puede encontrarse exhaustivamente
determinado por una norma preexistente del derecho substantivo.8
ENDICOTT, T.: Vagueness in Law, Oxford University Press, Oxford, 2000, p. 31.
KELSEN, H.: Teoría General del Derecho y del Estado, traducción de Eduardo García Máynez,
UNAM, México, D.F., 1995, p. 156.
7
KELSEN, H.: Teoría General del Derecho y del Estado, cit., p. 171.
8
KELSEN, H.: Teoría General del Derecho y del Estado, cit., p. 174.
5
6
152
Campo Jurídico, vol. 2, n. 1, p. 149-156, maio de 2014
ALCALÁ, Juan A. del. “¿‘Paradoja’ de H. Kelsen
Sobre la Indeterminación Jurídica!”
Por lo dicho, para el intelectual austriaco, una decisión judicial «es
un acto por el cual una norma general, una ley es aplicada; pero al mismo
tiempo es norma individual que impone obligaciones a una de las partes o
a las dos en conflicto». De modo que «al resolver la controversia entre dos
particulares», ocurre que «el tribunal aplica, es verdad, una norma general
de derecho consuetudinario o legislado». Y, aunque, como afirma H. Kelsen,
«al mismo tiempo crea una norma individual que establece determinada
sanción que habrá de imponerse a cierto individuo», sin embargo, no se
trata de una creación en la que el juez “sale” del Derecho. Porque, «esta
norma individual puede ser referida a normas generales en la misma forma
en que la ley es referida a la Constitución».9 De lo que puede deducirse, que
el sistema jurídico siempre puede proveer desde “dentro” del Derecho la
solución a cualquier caso judicial.
Lo que parece claro es que la decisión judicial en los casos
indeterminados kelsenianos, que son resueltos desde la noción de la norma
como marco, no se corresponde exactamente con las características típicas
que presenta la resolución judicial en los auténticos borderline cases, es decir,
aquéllos que no sólo se presentan “inicialmente” como indeterminados,
sino que “finalmente” resultan tales. Y, por eso, no encuentran resolución
dentro del sistema jurídico. Pero ocurre que Kelsen no contempla esta clase
de casos. Y, desde su perspectiva, en la resolución de los casos indeterminados
(kelsenianos), el juez no resuelve “saliendo” fuera del Derecho, sino desde
dentro de las posibilidades de la norma y, en consecuencia, según Derecho.
La cuestión que aquí se plantea es que un auténtico caso indeterminado
no puede ser resueltos según Derecho, porque entonces no se trata
“finalmente” de un caso indeterminado, sino de un “caso difícil” (hard cases)
pero previsto por el Derecho (pivotal cases).
3. AUN CUANDO H. KELSEN ACEPTA LA FIGURA DEL JUEZ
LEGISLADOR, EL ARGUMENTO DE QUE SU TEORÍA JURÍDICA
IMPUGNA LA “TEORÍA DE LAS LAGUNAS” EN EL DERECHO
VIENE A NEGAR LA INDETERMINACIÓN DEL MISMO
Esta teoría [de las lagunas] es errada, puesto que reposa en la ignorancia del
hecho de que cuando el orden jurídico no estatuye ninguna obligación a
cargo de un individuo, su comportamiento está permitido.» [Y] «en el caso
9
KELSEN, H.: Teoría General del Derecho y del Estado, cit., pp. 157 y 159.
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de que no sea posible la aplicación de una norma jurídica aislada, es posible
en cambio la aplicación del orden jurídico, y ello también constituye
aplicación del derecho.10
Además, H. Kelsen considera que la “teoría de las lagunas” es una
“ficción”, admitiendo la tesis de que siempre es posible la “completitud”
del Derecho:
El orden jurídico no puede tener lagunas.» «La teoría de las lagunas constituye
en realidad una ficción, pues siempre es lógicamente posible, aun cuando
algunas veces resulte inadecuado, aplicar el orden jurídico en el momento
de fallar.11
4. EL ARGUMENTO DE LA “COMPLETITUD” DEL DERECHO,
POR EL QUE ABOGA DESDE UN POSITIVISMO JURÍDICO
QUE CATALOGA DE “CONSECUENTE”, ES INCOMPATIBLE
CON LA TESIS DE LA INDETERMINACIÓN JURÍDICA
H. Kelsen pretende salvaguardar ante todo «el postulado del
positivismo del derecho de que cada caso concreto debe ser resuelto con
base en el derecho positivo vigente.»12 Y, en su perspectiva, «desde el punto
de vista de un positivismo consecuente del derecho es indispensable
demostrar que el orden del derecho positivo contiene tal autorización [de
“llenar ésta o aquélla laguna”] expresa o tácita.»13 Ahora bien, que el Derecho
positivo puede resolver cualquier clase de caso no parece una idea demasiado
compatible con la tesis de la indeterminación.
III. CONCLUSIÓN
Por lo dicho, en todo caso, de ser correctos estos cuatro argumentos,
ellos pueden cuestionar que la teoría jurídica kelseniana admita la tesis de
la indeterminación, porque no parece lógico aceptar un Derecho
“indeterminado” y a la misma vez un Derecho “sin lagunas”. O, dicho con
otras palabras, si admitimos que esa teoría jurídica admite al mismo tiempo
una tesis (indeterminación jurídica) y su contraria (completitud del Derecho),
KELSEN, H.: Teoría Pura del Derecho, traducción española de la 2ª. edición alemana de Roberto
J. Vernengo, Editorial Porrúa, México D.F., 1993, p. 255.
11
KELSEN, H.: Teoría General del Derecho y del Estado, cit., pp. 176 y 177.
12
KELSEN, H.: Teoría General de las Normas, cit., p. 226.
13
KELSEN, H.: Teoría General de las Normas, cit., p. 139.
10
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hemos de asumir, al menos, que en el tema de la indeterminación, la teoría
jurídica de H. Kelsen contiene una “paradoja”.
En mi opinión, según lo expuesto, incluso podría afirmarse que hay
más razones para pensar que esta teoría jurídica se encuentra más cerca de
la tesis de la completitud del Derecho que de la de su indeterminación. O, al
menos, las razones dichas parecen cuestionar de una manera sustantiva que
esa teoría del Derecho sustente verdaderamente una tesis de indeterminación.
Quizás sea clarificador de esta cuestión el poder distinguir entre los
casos indeterminados kelsenianos, que no son verdaderos borderline cases,
porque pueden ser resueltos desde dentro del Derecho conforme a Derecho.
Y los casos indeterminados, de raíz hartiana, cuya resolución sólo es posible
“saliendo” fuera del sistema jurídico, al tratarse realmente de casos no
previstos por éste, o previstos de una forma incompleta. Sólo estos constituirían
auténticos borderline cases o casos indeterminados.
Parece que cuando se menciona la indeterminación, desde el punto
de vista del positivismo jurídico contemporáneo de raíz hartiana, se están
mencionando “casos no–regulados” (o, al menos, regulados de forma
incompleta) por el Derecho. Y si se menciona la indeterminación desde la
óptica del austriaco, a lo que se alude es, por el contrario, a “casos regulados”
por el Derecho “dentro” de la “norma como marco”. Así, mientras que los
casos indeterminados de raíz hartiana no pueden ser resueltos por el sistema
jurídico, por el contrario, los casos indeterminados contemplados por H.
Kelsen, siempre pueden ser resueltos por el Derecho y el sistema de fuentes
establecido, aplicando la doctrina de la “norma como marco”. Por
consiguiente, estos últimos supuestos nunca derivan finalmente en
indeterminación del Derecho aplicable. ¿Cómo puede entonces decirse que
la teoría del Derecho de H. Kelsen contiene una tesis de la indeterminación
jurídica? Téngase en cuenta, además, que, de admitirse que la teoría jurídica
kelseniana sí contiene una tesis de indeterminación, se trataría de una tesis
de indeterminación que niega la existencia de casos indeterminados. Algo
que parece un sin sentido.
Asimismo, si las razones expuestas son ciertas, a pesar de encontrarse
en posiciones antagónicas, paradójicamente, las teorías jurídicas de H.
Kelsen y de R. Dworkin vendrían a converger, desde caminos muy diferentes,
en la idea de negar la indeterminación jurídica. Es más, en este supuesto,
ambas incluirían una tesis de la completitud del Derecho.
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